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Introducao A tragédia e os gregos Ter inventado a tragédia é um glorioso mérito; e esse mérito pertence aos gregos. Ha, de fato, algo de fascinante no sucesso que conheceu esse género, pois ainda hoje escrevemos tragédias, passados j4 25 sé- * culos. Tragédias sao escritas por toda parte, no mundo todo. Mais ainda, continuamos, de tempos em tempos, a tomar emprestado dos gregos seus temas e seus personagens: ainda escrevemos Electras € Antigonas. Nao se trata simplesmente de fidelidade a um passado bri- Ihante. E evidente que a irradiacdo da tragédia grega se prende & amplitude do significado, & riqueza de pensamento que os seus autores souberam imprimir-Ihe. A tragédia grega apresentava, por meio da linguagem diretamente acessivel da emogao, uma reflexdo sobre o homem. Sem dtivida, é por isso que, em &pocas de crise e de renovacao como a nossa, sentimos a necessidade de um retorno aquela forma inicial do género. Criticam-se os estudos gregos, mas - ainda se representam, no mundo quase todo, as tragédias de Es- quilo, de S6focles e de Euripides, pois € nelas que essa reflexdo sobre o homem brilha com sua forga primeira. Com efeito, se os gregos inventaram a tragédia, é inegdvel o fato de que, entre uma tragédia de Esquilo e uma tragédia de Raci- ne, as diferengas sao profundas. O contexto das representagdes j4 nao é 0 mesmo, nem é a mesma a estrutura das pegas; sequer 0 ptblico pode ser comparavel. Modificou-se, acima de tudo, o espf- 8 Jacqueline de Romilly rito interior — cada época ou cada pafs dio uma interpretagdo dife- rente do esquema tragico inicial. Mas é nas obras gregas que ele se traduz com o maior vigor, visto que nelas ele aparece em sua nudez original. Ademais, esta foi, na Grécia, uma ecloso repentina, breve, es- pléndida. A tragédia grega, com sua safra de obras-primas, durou ao todo oitenta anos. Em uma relagao que no pode ser causal, esses gitenta anos correspondem exatamente ao periodo da expans&o poli- tica de Atenas. A primeira representacio trdgica feita nas festas dio- nisfacas afenienses situa-se, segundo as informagdes, em torno do ano 534, durante 0 governo de Pisistrato. Mas a primeira tragédia que foi conservada (ou seja, considerada digna de estudo pelos anti- gos) tem lugar um dia apés a grande vitéria de Atenas sobre os inva- sores persas. Mais que isso, ela perpetua a sua lembranga: a vitéria de Salamina, que institui o poderio ateniense, aconteceu no ano 480; a primeira tragédia conserva a data de 472. Trata-se de Os persas, de Esquilo. Depois disso as obras-primas se sucedem. A cada ano, 0 teatro vé novas pegas, apresentadas em festivais, na forma de con- curso, por Esquilo, por Séfocles, por Euripides. As datas referentes a esses autores sao préximas; suas vidas tém aspectos comuns. Es- quilo nasceu em 525, Séfocles em 495, Eurfpides por volta de 485 ou 480. Diversas obras de Séfocles, e quase todas as de Euripides, foram representadas depois da morte de Péricles, no decurso da Guerra do Peloponeso, na qual Atenas, prisioneira de um império que j4 nao conseguia manter, sucumbe finalmente sob os golpes de Esparta. Depois de 27 anos de guerra, Atenas perde, em 404, todo 0 poder conquistado apéds as guerras médicas. Naquela data, haviam passado trés anos da morte de Euripides, e dois da de Sdfocles. Foram encenadas ainda algumas pegas deles que nao haviam sido acabadas ou representadas. E isso foi tudo. Excluindo-se o Reso, uma tragédia que nos foi transmitida como sendo de Euripides, mas cuja autentici- dade é fortemente contestada, nada mais nos resta, apds 404, além de nomes de autores ou de peas, fragmentos e alusdes por vezes impiedosas. A partir de 405, Aristéfanes, em As ras, nado via outro meio de preservar o género tragico, a nao ser procurando nos infernos um dos poetas desaparecidos. Quando 0 teatro de Dioniso foi reconstrufdo em pedra, na segunda metade do século IV, ele foi A tragédia grega 9 decorado com estétuas de Esquilo, Séfocles e Euripides. Desde 386 (pelo menos essa é a data mais provavel), havia-se comecado a in- cluir no programa das festas dionisiacas a repetigao de uma das tragédias antigas. O dpice da tragédia terminou ao mesmo tempo em que acabava a grandeza de Atenas. Em outras palavras, quando hoje se fala da tragédia grega, pensa-se quase exclusivamente nas obras remanescentes dos trés grandes trégicos: sete tragédias de Esquilo, sete de Séfocles e de- zoito de Euripides (se nelas incluimos 0 Reso). A selegao dessas 32 tragédias remonta, grosso modo, ao império de Adriano.' Isso € pouco, sob todos os pontos de vista. E pouco se pensa- mos em todos aqueles autores que sé conhecemos indiretamente, e dos quais temos apenas uma vaga idéia — em particular os grandes ‘ antecessores, como Téspio, Pratinas, e sobretudo Frinicos. E pouco se pensamos nos rivais dos trés grandes — como os filhos de Prati- nas e de Frinico, fon de Quios, Néofron, Nicémaco e varios outros, entre os quais os dois filhos de Esquilo, Euférion e Evaion, e seu sobrinho Philocles, o Antigo. E pouco, enfim, quando recordamos os seguidores de Euripides, entre eles Idfon e Ariston, os dois fi- lhos de S6focles, e sobretudo autores como Critias e Agat&o, ou mais tarde Carcino. E muito pouco, finalmente, quando se leva em conta a produgao dos préprios trés grandes, uma vez que Esquilo, segundo parece, havia composto noventa tragédias, e Séfocles mais de cem (Arist6fanes de Bizancio menciona 130, sete das quais pas- savam por inauténticas). Por fim, Euripides havia escrito 92, 67 das quais ainda eram conhecidas a época em que foi escrita sua biogra- fia. O desastre, portanto, é imenso; e quando se fala das tragédias gregas, é preciso, infelizmente, ter em conta que sio conhecidas cerca de trinta, entre mais de mil. Sem divida alguma, elas nos pareceriam t&o belas quanto as que possufmos. Além disso, desde o comego, Esquilo, S6focles e Euripides nem sempre eram os vence- dores nos concursos anuais. Contudo, por mais estranho que possa parecer, essas trinta pe- ¢as, distribufdas no perfodo de menos de oitenta anos, sao 0 teste- "A selecio feita na época de Adriano compreendia as sete pecas de Es- quilo, as sete pegas de Sdfocles e dez pecas de Euripides: as outras obras de Eurfpides conservaram-se de forma independente. j) == = "= 5b gle tii ae \\ lam em todos os domi ios uma pujanc¢: 10 Jacqueline de Romilly i ¢ munho nao apenas daquilo que foi a tragédia grega, mas também \ da sua histéria e sua evolucdo. Uma nesga de sombra permanece, -em_ambos os lados das fronteiras que encerram a vida do género, no seu grau mais elevado: essas fronteiras formam uma espécie de limiar, que ndo pode ser transposto sem cairmos naquilo que ainda nao €, ou naquilo que j4 nao é mais, a tragédia em si, digna desse nome. Entre os dois limites, 0 “ainda nfo” e o “j4 nao mais”, um impulso poderoso arrebata a t ovimento de renova- ‘¢40 que vai se definindo ano a ano. pectos, € mais ampla e mais profunda a diferenca entre Esquilo e Eurfpides do *s que a que existe entre Euripides e Racine. Essa renovacdo interna apresenta dois aspectos complementa- Tes: na verdade, 0 género literdrio evolui, seus meios se enrique- cem, suas formas de express4o variam, e € possivel escrever uma historia da tragédia que se apresente como algo continuo, aparen- temente desvinculado da vida da cidade e do temperamento dos / Seus autores; por outro lado, no entanto, ocorre que esses oitenta anos, que vao da vitdria de Salamina até _Mmoral absolutamente inigualaveis. A vitoria de Salamina tinha sido conquistada por uma demo- cracia nova, e por homens ainda completamente imbufdos do en: -» hamento pio e altamente virtuoso de Sélon. Depois disso, a “democracia conheceu répida evolugio. Atenas assistiu a chegada dos sofistas, mestres do pensamento que eram, antes de mais nada, “mnéstres da ret6rica, e que colocavam tudo em questao, langando, no lugar das doutrinas antigas, mil idéias novas. Por fim, depois do orgulho de haver afirmado gloriosamente seu heroismo, Atenas , conheceu os sofrimentos de uma guerra prolongada, de uma guerra < entre gregos. O clima intelectual e moral dos tiltimos anos do sé- culo é téo fecundo em obras e reflexSes como em seu inicio, mas é, _a0 mesmo tempo, profundamente diferente. A tragédia reflete, ano apés ano, esta transformagao; vive dela; dela se nutre, e expande-se \ em obras-primas de outra ordem. ~ Existe, evidentemente, uma relago entre a evolugao pura- mente exterior das formas literdrias e a renovaco das idéias e dos sentimentos. A flexibilidade dos meios explica-se pelo desejo de exprimir algo mais, e 0 deslocamento continuo dos interesses acar- A tragédia grega u reta uma evolugao igualmente continua nas formas de expressio. Em outras palavras, a aventura refletida pela historia da tragédia em Atenas é a mesma que pode ser observada no nivel das estrutu- ras literdrias ou no dos significados e da inspiragao filoséfica. Somente apés termos acompanhado essa evolugao dupla, no seu impulso interior, é que podemos ter a esperanga de compreen- der aquilo que constitui o seu principio comum, e enquadrar dessa forma — para além do género tragico e seus autores — aquilo que encarna o real espfrito das suas obras, isto é, aquilo que, depois delas, jamais deixou de ser chamado 0 trdgico. Capitulo 1 O género tragico A tragédia grega é um género a parte que nao se confunde com nenhuma das formas assumidas pelo teatro moderno. } 3 Todos nés adorariamos poder descrever sua origem, para i compreendermos um pouco melhor aquilo que pdéde suscitar um tdo notavel sucesso. E nao faltam livros e artigos que tentem des- q crevé-la. No entanto, o grande nimero de ensaios explica-se justa-\_ ) a mente pela auséncia de certezas. De fato, pairam muitas diividas ~~ 3 sobre 0 nascimento do género. i Todavia, possuiamos uma ou duas indicagGes seguras, que se { i traduzem na propria forma que as tragédias eram representadas e } é que, além das representacGes em si, explicam em que nivel se situa i : a tragédia. A origem da tragédia : Dioniso e Atenas i Antes de mais nada — j4 foi dito e repetido —, a tragédia grega tem, sem dtivida alguma, uma origem religiosa. Essa origem ainda era claramente visivel nas representagdes da Atenas classica. E essas derivam claramente do culto a Dioniso. ¢ As tragédias s6 eram encenadas na deste deus. O grande evento, no periodo classico, era a festa das dionfsias urbanas, que | | | | | i | \ | | | ve Jacqueline de Romilly ‘se celebrava na primavera; mas havia também concursos de tragé- dia na festa das leneanas, que ocorria no final de dezembro. A pro- pria representagdo _inseria-se, _ portanto, num __ contexto eminentemente religioso, séndo acompanhada de procissGes e sa- crificios. Por outro lado, o teatro em que ela acontecia, cujas rufnas “ainda hoje sao visitadas, foi reconstrufdo mais de uma vez, mas foi sempre chamado 0 “teatro de Dioniso”; com um magnifico trono de pedra para o sacerdote de Dioniso e um altar para essa divinda- _de no centro, onde se apresentava o coro. Este coro, por si s6, evo- cava 0 lirismo_religioso. E as méascaras que coristas e atores portavam levam-nos facilmente a pensar nas festas rituais do tipo arcaico. Tudo isso revela uma origem ligada ao culto, e pode perfeita- mente conciliar-se com 0 que diz. Aristételes (Poética, 1449 a): segundo ele, a tragédia teria nascido de improvisagGes. Ela teria se _Originado de formas liricas, como 0 ditirambo (canto coral em lou- vor a Dioniso); seria, como a comédia, a ampliacao de um rito. Desse modo, a inspiragao fortemente religiosa dos grandes autores de tragédias apresenta-se como a extenso de um impulso inicial. De fato, na Dioniso, 0 deus d deus que morre e renasce com a vegeta eréticas, nem mesmo ao vegetacao; porém, deparamos-nos sempre com uma certa presenca do sagrado, que se reflete no pré- prio jogo de vida e morte. Todavia, quando falamos de uma festa religiosa em Atenas, é preciso cuidado para n&o imaginar uma separacio freqiiente nos nossos Estados modernos. A festa de Dioniso era também uma festa nacional. Ir ao teatro, para os gregos, era muito diferente daquilo que fa- zemos hoje em dia — escolhendo o dia e 0 espetaculo de preferén- cia, e assistindo a uma representagao que se repete todos os dias, \. durante o ano todo. Havia duas festas anuais onde se encenavam tragédias. Cada festa contava com um concurso, que durava trés dias, e a cada dia um autor selecionado com muita antecedéncia apresentava, sucessivamente, trés tragédias. A representagio era _prevista e organizada sob 0 patrocinio do. Estado, pois era um dos altos magistrados da cidade quem se incumbia de escolher os poetas e de selecionar os cidadaos ricos, encarregados de cobrir Suas obras mengao especial a _ A tragédia grega 15 todas as despesas. Finalmente, no dia da representagao, todo o wo era i a comparecer ao espetdculo: a partir da época’ de Péricles, os dadios pobres podiam até receber um pequeno/’ sse fim. cat seqentemente, esse espet4culo adquiriu as caracteristicas de uma manifestagio nacional. O fato explica com clareza certos aspectos da inspirago dos autores de tragédia. Eles se dirigiam sempre a um grande publico, reunido numa. ocasiao solene: € nor- mal que eles quisessem atingi-lo e interessa-lo. Portanto, eles es- creviam na qualidade de cidadiios que se dirigem a cidadaos. Esse aspecto da representagio também tem a ver com as ori- gens da tragédia:_ 10 provavel que a tragédia S86 tenha podido nascer quando aquelas improvisacées religiosas das quais ela ria foram reorganizadas sob 0 comando de uma autori dade politica, ‘com apoio do povo. Numa caracteristica realmente notavel, 0 nas- cimento da tragédia est4 bastante ligado & existéncia da tirania ~ ous melhor, de um regime forte sustentado pelo povo, contra cracia, Os raros textos sobre os quais podemos basear-nos, na bus- ca das origens anteriores 4 tragédia dtica, conduzem sempre a tiranos. Uma lenda, atribufda a Solén, conta gue a primeira repre- sentago tr4gica seria de autoria do poeta At Ora, Arion vivia “em Corinto, sob 0 reinado do tiran andro (do final do século VII ao comeco do século VI a.C.). O primeiro caso em que Her6- { doto cita os coros “tragicos” € o de Sicione, onde coros cantavam \cas desgragas de Adrasto que foram “restituidas a Dioniso’ > ora, quem as restituiu a Dioniso foi Clistenes, tirano dessa cidade (ini- cio do século VI). Sem dtivida, temos af somente um esbogo de tragédia. Mas é dessa forma que nasceu_a verdadeira tragédia. De- pois dessas tentativas hesitantes, em diversos pontos do Pelopone- so, um belo dia surge a tragédia na Atica: devem ter existido alguns primeiros ensaios anteriores, mas houve um inicio oficial, \ que € 0 ato do nascimento da tragédia. Entre 536 e 533, Téspio produziu, pela primeira vez, uma tragédia para a grande festa dio- ‘CF. Jean Diacre, texto citado em Rheinisches Museum, 1908, p. 150, ea Souda. ? Cf. Herddoto, V, 67. | Jacqueline de Romilly nisia2 Ora, tratava-se da €poca em que reinava em Atenas 0 tirano \ Pisistrato, 0 tinico que ela conheceu. i Essa data tem para nds algo de emocionante: nenhum género literario possui um registro civil to preciso. E no se conhece ou- tra forma de expressao que tenha permitido cerimonias como as que aconteceram na Grécia, h4 alguns anos, por ocasiao da cele- bragao dos 2.500 anos da tragédia. Ao mesmo tempo, além da precisio destas origens, a data des- perta, por si s6, algum interesse. Tendo ingressado na vida ateniense em virtude de uma decisaio | Oficial, e inserindo-se em uma politica de expansdo popular, a tra- gédia apresenta-se, desde 0 principio, associada A atividade civica. Este lago s6 podia estreitar-se ainda mais no momenio em que 0 Povo, reunido no teatro, se tornava irbitro dos seus proprios desti- nos. Ele explica a ligacdo do género tragi com a expansio politi- v4 ca. Explica também o lugar ocupado, has tragédias gregas, pelos ey da guerra e da paz, da justiga e do grandes problemas nacionais BY civismo. Pela importancia que os grandes poetas conferem a esses problemas, eles se colocam, mais uma vez, como a extenso de um impulso inicial. Entre estes dois aspectos da tragédia existe, ademais, uma re- feréncia 4 sua origem. Pisistrato é, em certo sentido, Dioniso — 0 lirano ateniense havia desenvolvido o culto a essa divindade. Ele < ergueu, aos pés da Acrépole, um templo a Dioniso de Eleutério, e instituiu em sua honra as festas dionfsias urbanas, que seriam 7 aquelas da tragédia. O fato de que, sob seu reinado, a tragédia te- nha integrado a cena do culto a esse deus simboliza, portanto, a unio dos dois grandes patrocinadores daquele nascimento: Dioni- so e Atena. Surgem assim dois pontos de partida geminados, cuja combi- nacao parece ter sido essencial para o nascimento da tragédia. In- felizmente, isto nao significa que nos sejam claramente revelados nem a parte que coube a um e a outro nessa combinagdo, nem a forma em que ela ocorreu. Além disso, entre as improvisagdes reli- ° Cf. marmore de Paros: I G XII, 5, I, 444 e Charon de Lampsaque, em Jean Diacre, cf. acima. da comédia: bandos de fi A tragédia grega Ww giosas iniciais e a representacao oficial, a nica que conhecemos, * faltam-nos os elos de transi¢ao; devemos limitar-nos As hipdteses, e , as modalidades envolvem-se no mistério. Tracos do culto e da epopéia Partamos inicialmente desta palavra: a tragédia, que significa bode”. Como interpretar esse nome? E 0 que fazer com A hip6tese mais difundida consiste em identificar esse bode com os satiros, normalmente associados ao culto de Dioniso, e “aceitar as duas indicagdes feitas por Aristételes, que inicialmente, na Poética (1449 all), parece atribuir a tragédia aos autores de ditirambos (obras corais executadas, sobretudo, em honra a Dioni- so); € que, mais adiante, em 1449 a 20, especifica: “A tragédia to- \ mou alento, abandonando as fabulas curtas e a linguagem divertida / devida 4 sua origem satirica, e aos poucos revestiu-se de Majesta- / de”. Terfamos entio para édia uma origem muito préxima & 0 1 iros, Cujo aspecto ou rou . Essa hipotese é coerente e, sob certos aspectos, simpatica. No entanto, ela apresenta duas dificuldades. A primeira é de ordem técnica: 0 fato de que os sdtiros jamais foram identificados com os \\ bodes. Logo, torna-se necessdrio encontrar uma explicacao. E se apelarmos para a lasc{via, comum a uns e a outros, livramo-nos da primeira dificuldade para agravar a segunda — a de que uma génese_ assim concebida valeria mais para o drama satirico que para a tra- -g6dia, Nada nos permite imaginar que essas cantorias de satiros, \ mais ou menos lascivas, poderiam dar origem a tragédia, visto que ) esta nao era absolutamente lasciva e nao comportava qualquer tra- / ¢0 dos satiros. E essa a raziio pela qual, desde a Antiguidade, alguns preferi- ram interpretar de outra maneira a palavra tragédi: Admitiam que © bode era a recompensa oferecida ao melhor participante, ou en- * Cf. mérmore de Paros, a propésito de Téspio e Eusébio, Chronique, Olympiade 47, 2; também Horacio, Ars Poetica, 220. 18 Jacqueline de Romilly tao a vitima oferecida em sacrificio. Fernand Robert vai mais longe ainda, atribuindo a esse bode um valor catértico — fazendo dele o bode expiatério — e restituindo assim uma dimensio religiosa e solene as diversas manifestagdes ligadas a esse sacrificio.? Nesse “caso, 0 ditirambo teria servido simplesmente de modelo formal, <. tanto para a tragédia quanto para o drama satfrico,' que so géneros paralelos, mas de inspiracao inteiramente distinta. Essa interpreta- ¢4o possui o grande mérito de respeitar a diferenca entre os dois géneros, e de conduzir diretamente aquilo que constitui a originali- dade intrinseca ao género tragico. Entretanto, isso nao significa que se resolvem todas as dificuldades. Uma delas, evidentemente, 6 o fato de esta interpretagdo ignorar uma parte do testemunho de Arist6teles numa 4rea onde os testemunhos j4 sio em ntimero tao reduzido. Outra dificuldade € que a interpretago se apdia inteira- mente no sentido atribufdo ao sacrificio do bode. Ora, apesar de alguns exemplos bastante notdveis, 0 culto a Dioniso aparece muito “mais ligado aos cabritos e as corgas que ao nosso infeliz bode.’ Qualquer que seja a solucdo, de todo modo, permanece_ abrupta a passagem entre esses ritos Primitivos ea forma. Jiterdria na qual desembocaram. Em um caso, é preciso imaginar_uma_mu- danga profunda de tom e de orientagdo; no outro, a evolugao € me- nos ilégica, mas 0 caminho a Ser percorrido é estranhamente longo. O fato & que essas festas rituais, independentemente do cami- nho tomado, derivam mais ou menos da sociologia, enquanto o nascimento da tragédia permanece um acontecimento nico, sem certo que os { povos, e podem ter sido feitas comparagées sugestivas com a tra- gédia. Mas os pastores, padres e camponeses nfo inventaram a tra- > Cf. Les études classiques, 1964, pp. 97-129. ® Pratinas de Phlionte teria trazido o drama satirico para Atenas, no inicio do século V. 7 O autor cita quatro exemplos e insiste principalmente em dois epitetos de Dioniso: Dionysos Aigobolos (que bate nas cabras) e Dionysos Melanai- gis (da cabra negra). Ficarfamos evidentemente bem mais satisfeitos se a palavra empregada fosse tragos. A tragédia grega 19 gédia. Nenhuma das hipéteses levantadas sobre a origem da tragé- dia — das piores as melhores, mesmo que se provem veridicas — nos fornece a chave do mistério. Na verdade, o género literario chamado tragédia nao pode ser explicado a nao ser em termos literdrios. * Uma vez que as tragédias a que foram conservadas néo falam nem de bodes nem de stiros, € preciso entao admitir que seu alimento essencial nao procede nem ) desse culto, nem desses divertimentos. Estes podem ter proporcio- nado a ocasido; podem ter inspirado essa mistura de cantos e didlo- gos entre personagens fantasiados, representando uma ac&o mitica situada fora do tempo; podem ilustrar uma fase mais religiosa, mas nada além disso. A tragédia, como género literdrio, surgiu somente \ | porque aquelas festas em honra a Dioniso passaram deliberada- | , mente a ._procurar a substancia das suas representagdes num espago / A passagem em ‘que Herédoto fala de Arion evoca representa- ges que ilustram as desgracas de Adrasto, um dos herdis ligados ao ciclo de Tebas. Clistenes, diz Herédoto, restituiu os coros em) louvor a Dioniso. Isto quer dizer que ele fizera de Dioniso 0 her6i~ da representagao em si? Permitimo-nos duvidar disso. Clistenes pode simplesmente ter associado 0 conjunto da festa ao culto a Di- oniso. Uma coisa, em todo caso, é certa: a tragédia some ede maneira , ampla e direta, nos fato: péia. Trata-se aqui de um terceiro elemento, como um corpo estra- nho ao culto a Dioniso. Um conhecido provérbio dizia, em fom ¢ de critica ou espanto: “Af nfo hé nada que diga respeito a Dioniso”.? D> A epopéia e a tragédia tratam, na verdade, dos_mesmos as- suntos, Existiram, por certo, algumas pecas relativas aos mitos de “Dioniso (As bacantes, de Euripides, sio 0 nico exemplo); ha tam- bém algumas pegas relativas a fatos marcantes da hist6ria contem- * Cf. G. F, Else, The origin and early form of Greek tragedy, Martin Clas- sical Lectures, XX, 1965, p. 31. ° Cf. Plutarco, Questdes de banquetes, 615 a, Zendbio, V, 40, € a Souda. Esta censura é dirigida a diversos autores de tragédias, entre os quais Téspio e Esquilo. 20 Jacqueline de Romilly poranea (nosso nico exemplo é Os persas, de Esquilo). No en- tanto, a tragédia esté geralmente ligada aos mesmos mitos da epo- péia: a Guerra de Tréia, as exploragdes de Héracles, as desgracas de Edipo € sua familia. Com excecao dos dois exemplos citados ( anteriormente, todas as peas que foram preservadas encontram af \\ a sua matéria-prima. Nao devemos surpreender-nos com isso: a epopéia foi, durante séculos, 0 género literdrio por exceléncia. O préprio 1 ‘ismo nutria- _Se dela. O objeto épico foi o objeto natural de toda obra de arte. oO mais espantoso, na verdade, é que ela permaneceu como objeto da tragédia, nao apenas na Atenas do século V, mas também, depois dos gregos, até a €poca moderna. E evidente que existiram, em divi aises, tragédias hist6- ricas. Mas a hist6ria, nessas tragédias, é tratada um pouco a manei- \ ito: ela serve de exemplo; dela retemos apenas 0 sentido ~’ humano, e a modificamos ao nosso bel. zer. E preciso dizer, de modo inverso, que os mitos gregos deviam, desde o principio, res- 6ria_distante e herdica, mas geralmente_verfdica. nga nao seja radical, estes sio, de qualquer manei- Ta, personagens pertencentes a um passado coberto de herofsmo, e tevestidos de certa grandeza. Essa grandeza, oriunda da epopéia grega, permaneceria para sempre ligada ao género tragico. Esse género, dizem as vezes os autores do século XX, é “para os reis”: estes reis siio os heréis de Homero, que, tendo um dia entrado na tragédia, dela jamais have- tiam de sair. Assim se explicam as Electras e os Orestes que ainda hoje sao escritos. O empréstimo é legftimo e corresponde a um hébito anti- go bastante interessante para explicar o destino do género. Essas Jendas eram | de fato conhecidas. As criangas de Atenas haviam-nas aprendido com a epopéia. O puiblico presente as apre- sentagGes teatrais conhecia-Ihes os elementos. Um autor tragico Tetomava-os; mais tarde, um outro voltava ao mesmo tema. Isso / significa que a originalidade dos autores nao estava ali, no nivel dos acontecimentos, da acao e do desfecho, mas sim no 4mbito da »_interpretacao pessoal. Ela residia no fato de que o autor enfocava uma emogao, uma explicacdo ou um significado que nao haviam A tragédia grega 21 = sido percebidos antes dele. Assim se desenvolveu uma espécie de 0 em relag&o ao tema, 0 que por sua vez pare- ~~ ce ter contribufdo para acrescentar majestade a tragédia e confer’ he uma dimens&o particular. Ela utiliza uma determinada agdo somente como forma de linguagem, um meio pelo qual o poeta_ pode exprimir aquilo que o emociona ou escandaliza. De qualquer maneira, os autores de tragédias buscaram na epopéia a inspiragao para suas obras. E nao ha divida de que dali extrairam, ao mesmo tempo, a arte de construir personagens e ce- nas capazes de comover. Conferir 0 sentimento da vida, inspirar terror e piedade, partilhar um sofrimento ou ansiedade foram sem- pre tragos da epopéia, que ela ensinou aos tragicos. Poder-se-ia igualmente dizer que, se a festa criou 0 género tragico, foi a influ- éncia da epopéia que fez dele um género literdrio. Mas a epopéia assim transmutada tornou-se algo novo. Sea epopéia narrava, a tragédia mostrava, 0 que acarretou uma série de A inovag6es. Na tragédia tudo se revela aos olhos, real, proximo, imediato. Em tudo se cré, tudo se sabemos, por testemu- “nhos antigos, 0 quanto determinados espetdculos assustavam a platéia. Se a comparamos com a epopéia, vemos que a forga da tragédia reside no fato de ela ser tao tangfvel e terrivel. Por outro lado, a limitag&o imposta ao obrigava-o a es- colher somente um episddio, e os espectadores acompanhavam-lhe © desenvolvimento continuo, passando por todos os momentos de_ _£speranca e de medo, sem perder o interesse. A forga da tragédia também reside nessa atencao fixa a uma tnica agao. Enfim, as prprias condigdes da representagdo levavam os autores a enaltecer os herdis e os temas. E importante lembré-lo, pois 0 teatro atual, como também, j4 em sua época, 0 teatro latino, difere nesse ponto do teatro grego. Por realizar-se ao ar livre, este Ultimo foi concebido para representagdes excepcionais, reunindo um ptiblico enorme. Os rostos encobertos por mdscaras, os papéis\\ femininos representados por_homens exclufam obrigatoriamente um teatro de nuancas, dedicado 4 psicologia e aos personagens. Contrariamente ao que as terminologias poderiam sugerir ao ho- mem moderno, 0 teatro entre os gregos era menos intimista que a epopéia. Pelo fato de mostrar, em vez de narrar, e pelas préprias condi- ges em que mostrava, a tragédia podia extrair dos fatos Epicos um 22 Jacqueline de Romilly efeito mais imediato e uma ligo mais solene, o que se encaixava perfeitamente & sua dupla fungao, religiosa e nacional. Os fatos / €picos sé tinham acesso ao teatro de Dioniso se associados 4 pre- | __senga dos deuses e & preociipac’io com a coletividade, porém mais \Cintensos, mais surpreendentes, mais carregados de sentido e forga. Basta um sé exemplo para dar a exata medida dessa transfor- magcao. A morte de Agamémnon, assassinado por Egisto, ou talvez por Clitemnestra, € 0 retorno de Orestes para vingar seu pai eram fatos divulgados pela Odisséia, e narrados pela Orestia de Estesfcoro. Esquilo, portanto, nada mais fez que retomar um fato épico. Mas com ele tudo se organiza: na metade das duas primeiras pegas da sua Orestia ocorre um assassinato. Tais mortes sao, ao mesmo tempo, sacrificio e expiagao. O assassinato é esperado, temido, as- sistido e, por fim, lamentado: cada tragédia apresenta, portanto, uma unidade solidamente organizada. Na terceira delas, 0 assassi- nato € substituido por um julgamento, mas nem por isso o proble- ma € mais simples e menos terrfvel, pois existe, todo o tempo, 0 temor por uma vida que esté em jogo. Por outro lado, se 0 piblico x nao assistia aos assassinatos, que aconteciam no interior da casa, ele presenciava diretamente 0 terrfvel confronto entre mae e filho; presenciava 0 delirio de Cassandra; e, vivenciando fatos passados e bem conhecidos, ele via as Erfnias, ou Furias, bem vivas, grunhin- do de maneira horrivel, seguindo os passos do culpado. Cada tra- gédia_significava presenga, e uma_presenca at presenga de qué? Nao apenas de morte e violéncia, pois 0 assassi- nato era aprovado pelos deuses, e as Frias eram divindades. Pode- se dizer também que, na seqtiéncia das trés tragédias, se manifesta- Va a presenga divina. Mesmo no nivel dos fatos e das ages huma- nas, @ estrutura simples das pegas impde algumas questdes e desperta a atenciio dos espectadores para os deuses. Mas por que afinal? Por que 0 assassinato de Agamémnon? E apés esse primei- ro crime, por que 0 outro? Onde estava o pecado? Onde estard a peniténcia? O que decidem os deuses? Essa interrogacao atormenta 0 coro, atormenta os atores. E, na verdade, os deuses estio muito proximos. Eles falam por meio de ordculos, falam pela voz de uma vidente; os homens estremecem ao pressentir sua cdlera; depois, A tragédia grega 23 repentinamente, surge a Erinia, depois Apolo, em Seguida a Cada tragédia assume um valor religioso. Na verdade, Ce iO significa algo mais. Atena, com efeito, éa deusa guardia de ner nas. Gragas & sua intervengao, as Farias convertem-se em divin of des protetoras da cidade: elas velarao pela ordem e os a. prosperidade do pafs no qual elas se instalam, a partir de agora. Ao mesmo tempo em que alcanga esse resultado, Atena da instrugGes para que seja mantido o ) tribunal do Areépago, instituido para jul- gar Orestes. Ora, Esquilo exalta o papel restitufdo a esse tribunal no exato momento em que Atena lhe altera os poderes. Desta for- ma, a Orestia afeta a vida da cidade: ela fala de civismo, sua inspi- ragfo assume uma dimensao nacional. ; : A Orestia ilustra muito bem os aspectos que constituem a ori- ginalidade fundamental da tragédia grega, os que simplesmente distinguem 0 género traégico do género €pico, e aqueles que dife- renciam a tragédia grega das tragédias posteriores, em virtude de suas rafzes religiosas ou nacionais. - ot EB preciso acrescentar que, na sua estrutura basica, a tragédia grega apresenta tragos nado menos originais, e que nao deixam de refletir fielmente as circunstancias das quais ela se originou. Aestrutura da tragédia O principal desses tracos originais é evidente a primeira vista: a tragédia grega funde em uma Gnica obra dois elementos de natu- teza distinta, 0 coro € os personagens. _ i ~~ Considerando-se que a tragédia nasceu do ditirambo — ou da imitacdo dos seus procedimentos —, essa dualidade nada tem de surpreendente: o ditirambo era, com efeito, o didlogo de um ps presente na estrutura liter4ria das obras, na métrica utilizada, cor- Tespondendo até a um divisao espacial. 7 De fato, uma tragédia grega era representada em duas cenas a0_ mesmo tempo. Basta, para entendermos isso, conhecermos as rui- nas de qualquer teatro grego. Os espectadores ocupavam arquiban- cadas dispostas num vasto semicirculo. Na sua frente levantavam- se paredes de fundo, que dominavam uma cena, compardvel ao ja tragédia grega, esta parceria permanece essencial; ela coe > 24 Jacqueline de Romilly cendrio dos nossos teatros. Esse era 0 cendrio reservado aos perso- nagens. Sobre ele se erguia uma espécie de sacada, onde poderiam aparecer os deuses. Nao havia, na verdade, decoragao, somente algumas portas e simbolos evocativos do quadro da agao. A agao desenrolava-se, normalmente, do lado de fora, as portas de um pa- /lacio. Se fosse necessdrio, um dispositivo de palco (ou ekkukléma) / podia colocar em cena um quadro, ou um breve episddio, que re- ‘\ velasse uma acao realizada no interior. Tudo isso era simples, e deixava grande margem 4 imaginagao dos espectadores; mesmo assim, eram procedimentos compar4veis aos utilizados pelo teatro francés tradicional. Em contrapartida, havia uma grande diferenga. Além daquele cendrio, um teatro antigo dispunha daquilo que se chamava or- chestra, ou “a orquestra” no sentido que chamamos os “lugares da orquestra”. Esta era uma vasta plataforma, de formato circular, cujo centro possufa um altar redondo dedicado a Dioniso; esta pla- taforma era inteiramente reservada as evolugdes do coro. E certo que o palco formava o fundo da orquestra, e que poucos passos levavam de um para outro. No entanto, os dois espagos permaneci- ~ am bem distintos; os atores, no palco, nado se misturavam normal- mente com os coristas da orquestra; e os coristas jamais subiam ao palco. Poet et Em outras palavras, o coro, pelo lugar que ocupava, permane- cia, de certa forma, independente da acao em curso; ele podia dia- logar com os atores, encorajd-los, aconselhd-los, temé-los, e mesmo ameaca-los, mas ficava a parte. No mais, sua fung&o era muito bem definida. Se ele ocupava 0 lugar da orquestra, era este 0 seu papel, lirico, comportando evolu- g6es que iam de um gestual quase imével a verdadeiros passos de danga, Em suma, 0 coro cantava e dangava. Podia ocorrer, eviden- temente, que um mestre de coro (ou_corifeu) tivesse um didlogo falado com um personagem (da mesma forma como um ator podia, mais raramente, apresentar um solo). De modo geral, porém, 0 coro 86 se exprimia cantando, ou pelo menos recitando, Isto se traduz na métrica empregada: visto que na tragédia grega os atores se expri- ¢ mem em trimetros jambicos (adotando a forma lirica somente num ~momento de viva emogio). A tragédia grega 25 O coro, por sua vez, expressa-se na métrica lirica caracterfsti- ca, onde os versos constituem, quase sempre, conjuntos e estrofes geminadas, alternadas, sempre diligentemente praise ee acompanhadas de evolugGes coreograficas. A tipografia a li- ges modemas revela essa diferenga: os caracteres itdlicos indicam as partes cantadas, com destaque, entre estas, para os conjuntos corais. Assim, resulta que a tragédia grega se. desenvolve sempre em dois planos, e que sua estrutura € comandada pelo principio names . £ay Como era apresentada sem 0 recurso da cortina, uma tragédia grega nao tinha atos; em contrapartida, a acao dividia-se em um certo numero de partes, chamadas episddios, separadas por trechos liricos executados pelo coro na orquestra. Por outro lado, como era necessdrio um certo tempo para que esse coro entrasse na orquestra e af se acomodasse, a estrutura ha- pitual da tragédia ‘comportava um prélogo (que precedia a entrada do coro), depois a propria entrada yu pdrados (muitas ve- zes escrita em ritmo de marcha), depois os episédios, intercalados por cantos do coro | (ou stasima), cujo nimero podia variar, segundo o.caso, de dois a cinco, e finalmente a safda do coro, ou exodos. Isso_ndo impedia que atores e coristas fossem © I mesma torrente de emogao; e essa relagao traduzia-se le uma for- ma precisa, uma espécie de recitativo, do qual participavam atores e coristas, chamado 0 commos. Como escreveu Aristoteles (Poéti- ca, 1452 b): “O commos € um lamento que vem ao mesmo tempo do coro e do palco”. Ele traduz a concordancia; ele f unde num todo a cena e a orquestra. Podem-se contar nos dedos da mao as tragé- dias que no tém pelo menos um epis6dio que culmina no commos. Tudo isso configura um esquema bem claro que se encontra no conjunto das tragédias gregas, distinguindo-as de qualquer outra obra teatral. Mas falar de regras seria cometer um equivoco. En- quanto a tragédia francesa do século XVII se preocupou constan- temente em adaptar-se a padrGes fixos, tragédia grega nao deixou nunca de inovar, de inventar, e some! eu vigor interior escla- rece 0 sentido de uma estrutura, a primeira V sta, desconcertante. ~~Ysto €, na verdade, natural, pois o género era, em si mesmo, uma invengao recente, que nao _contava com nenhum_precedente, 7 “nenhum modelo. Foi, portanto, necessério desembaragé-lo, liberta- lo, aperfeigoa-lo, como também adaptdé-lo a interesses que se modi. Jacqueline de Romilly \ ficavam, a novas curiosidades que Surgiam. De 472 a 405, ele so- *freu o efeito de impulsos miultiplos que, combinados, resultaram numa evolucao quase continua. “Em particular, a importancia relativa dos dois elementos da tragédia — agio dramética € coro litico — modificou-se aos Poucos, a ponto de inverter-se. Esta alteragdo, que acarretou conseqtiéncias diversas, acabou por traduzir-se numa Tenovacao completa: das ~ Pegas arcaicas do inicio chegou-se, em menos de um século, aum “teatro bastante préximo do nosso, © seja, que pretendiam concorrer, O poeta que desta forma c Muitos titulos, alids, dao tes} munho dessa importancia. Como it no caso da comédia, nao € taro que uma tragédia seja designada pela indicago dos Papéis confiados aos coros 5 persas, As supli- f antes, As coéforas, As euménides sio alguns exemplos; também i As troianas ou As bi nies de Eurfpides. Muitas vezes, também, um titulo € dado mesmo quando a natureza do coro nao permite ' definir 0 contetido da tagédia — como no caso de As traquinias, de | \_S6focles, ou de As JSentcias, de Euripides. a (1 a oh { !Parece que, ori iginalmente, 0 coro era formado Por cingiienta elementos: “~ depois passou a contar com doze e, na época de S6focles, quinze, A tragédia grega 27 Esse habito deriva do fato de que inicialmente © coro detinha um papel preponderante no desenvolvimento da tragédia. Ele aa presentava pessoas estreitamente interessadas na_a¢do em curso, Os seus cantos ocupavam um nimero considerdvel de versos, Assim, o futuro dos ancides que compdem 0 coro ae Os per- sas, de Esquilo, depende diretamente do sucesso ou da ruina do seu soberano. E por eles mesmos que eles temem, é sobre seu proprio futuro que eles se perguntam, pois 0 destino do seu pais depende do destino do exército. Da mesma forma, em Os sete contra Tebas, © coro € composto de mulheres da cidade, que temem todo o tempo um desastre para sua patria, e incessantemente evocam a atmosfera de uma cidade pilhada e saqueada; elas t&m medo ao pensar no que as espera, no futuro reservado As mulheres — “vitivas de defensores, af, jovens e velhas ao mesmo tempo — arrastadas pelos cabelos, como éguas...” (326-329). Etéocles, seu rei, repreende-as e exorta- as 4 calma, mas elas nao conseguem controlar-se: Eu quisera obedecer-te, mas 0 pavor mantém meu coragéo em Vigilia, e a anguistia, instalada as portas da minha alma, acende em mim 0 terror: tenho medo do exército que cerca as nossas muralhas, da mesma forma como a pomba, trémula no seu ni- nho, teme a serpente com seus anéis de morte... (287-294), O mesmo contraste, entre um homem senhor de si e um coro formado de mulheres assustadas, pode ser encontrado em As supli- cantes. Aqui também 0 coro é formado pelas mesmas mulheres em perigo; do mesmo modo, o seu pavor subsiste, irreprimivel, apesar das objurgacdes de seu pai: “Calafrios constantes perpassam a mi- nha alma; meu coragio, agora negro, palpita. Aquilo que meu pai viu do seu posto de vigia sobressaltou-me: estou morta de pavor” (784-786). : Esses trés exemplos, esses trés gritos de terror, escolhidos um Pouco a esmo no texto, demonstram bem que em pegas desse géne- TO 0 coro nao é bsolutamente_um elemento estranho & acdo. Ela, normalmente, se concentra nele. E por ele, por intermédio dele, gue ela pode tocar os espectadores. Fica claro que ele tinha que inter- vir, suplicar, esperar, € que, por fim, as suas emogdes acompa- nhem, do inicio ao fim, as diversas etapas da aco. \ i | } Jacqueline de Romilly E assim bem evidente que, em tragédias desse tipo, 0 coro es- teja, mais do que ninguém, interessado no desfecho dos aconteci- mentos, sendo, no entanto, incapaz de influir nele por meio de qualquer acao. Ele é, por definigao, impotente, Alids, na maioria das vezes, 0 coro é nado por mulheres ou velhos, velhos demais para irem batalha, velhos demais para se defenderem: os ancides de Os persas, e os de Agamémnon, constituem exemplos nitidos, Os de Agamémnon lamentam-se desde 0 inicio da peca. Para que 0 coro pudesse conciliar tao importante fungdo com , ssa incapacidade de agir, era necess4rio que a ago da tragédia fosse pouco desenvolvida. A Partir do momento em que ela adqui- riu maior importancia, 0 coro deixou de desempenhar o papel cen- - tral que até entGo detinha. J4 nas tltimas pecas de Esquilo (em Prometeu acorrentado e na Orestia em geral), 0 coro é apenas simpatizante; pouco tempo depois, comegam a aparecer coros que viriam a tornar-se clssicos, compostos por mulheres do pafs, por confidentes, por testemunhas. Sem dtivida, permanece uma relacao essencial entre o herdi e 0 grupo que dele depende, mas esse elo tende tornar-se fro ipides, ¢ completamente. ~~ Basia um exemplo para ilustrar essa evolugao. Em Os sete contra Tebas, de Esquilo, 0 coro era composto por mulheres ater- radas, temendo pela cidade e pelas préprias vidas. Ora, Euripides Tetomou 0 mesmo tema em sua pega intitulada As fenicias. Desta vez 0 Coro era composto por jovens fenicias a caminho de Delfos: elas se encontram em Tebas apenas como familiares em transito, cheias de simpatia, porém estrangeiras. As jovens conferem 8 tra- gédia uma nota ex6i ica, que chegou a seduzir Euripides; todavia, mantém com a acéo somente um lago indireto e ténue. Podemos imaginar um passo a mais — um Passo jamais dado pela tragédia grega, mas alcancado por outros -, e teremos entio uma tragédia sem coro, pois — isso € 6bvio —a duragao dos cantos do coro é par- cialmente ditada em fungio da aten¢ao dada aquilo que ele expri- me, Nas pecas de Esquilo, os Cantos do coro sio longos, amplos e complexos. Como escreveu Maurice Croiset: “Para Esavilo, a tra- gédia era o canto de um coro, intercalado aqui € ali por didlogos”. Certas tragédias comportam conjuntos liricos de mais de duzentos ra de Euripides, ele se desfaz_quase 29 A tragédia grega yersos. Numa tragédia em que a ago se diversificava, 7 eee tais conjuntos, durante os quais nada acontecia, s6 po: _ P: — tediosos; assim, as partes cantadas passaram a ser 7 a vez curtas. Arist6fanes nos traz um testemunho dessa mudanga le pre “feréncia, a0 introduzir no seu As rds 0 personagem de Euripi les criticando a obra de Esquilo. Ao falar dos personagens intermina- velmente mudos da tragédia de Esquilo, ele faz o seu Euripides exclamar, a guisa de critica: “O coro demorava-se eect em quatro séries de cantos, sem interrup¢ao. E eles ficavam cala- dos!” (As ras, 914-915). Esse sire tao extenso, portanto, nao era ii reendido, nem apreciado. eC Bis aged mais um canbe para ilustrar essa evolugao. Em As coéforas, de Esquilo, mais de quatrocentos versos Sao dedicados ao / coro, de um total de 1.076, ou seja, bem mais de um tergo. Em , Electra, de Séfocles, que trata do mesmo tema (a mudanga do ti- tulo j4 € por si_s6 reveladora), 0 coro intervém com cerca de du- zentos versos, do total de 1,510, ou seja, menos de um sexto, Da mesma forma, em Electra, de Euripides, hé um pouco mais de du- zentos, dos 1.360 que compéem a pega, também uma sexta parte, Uma tal evolugao deveria, naturalmente, refletir-se sobre a forma da tragédia. Nao ha diivida de que a importancia do_coro ia As tragé Esquilo grand najestade, as quais, ‘todavia, nao tardaram a reduzir-se com seus sucessores imediatos, : Tal duragio é, antes de mais nada, formal. Os coros tragicos | podiam ser arrebatados pela angtstia, tornar-se ofegantes e trans- i tomados, mas seus cantos e evolugdes obedeciam sempre a uma | estrutura de conjunto cuidadosamente elaborada e controlada. Sobre este aspecto, nenhuma tradugdo pode ser esclarecedora, € poucas sao as representagdes que compreendem seu principio. A versificagao antiga baseia-se no comprimento das silabas, e as ordena segundo ritmos definidos. Ora, 0 principio essencial do lirismo coral requer que a estrofe seja respondida por uma anties- trofe, e que as figuras ritmicas se repitam de uma para outra, metro por metro, sflaba por sflaba. Por outro lado, além desses duetos, \ organizam-se, ocasionalmente, conjuntos mais complexos, sempre ‘ rigorosamente disciplinados. Os cantos do coro, na obra de Esqui- lo, contam muitas vezes com duas, trés, mesmo quatro duplas de / estrofes. O canto de entrada do coro, em Agamémnon, comporta até uma triade (estrofe, antiestrofe, epodo), apds versos recitados 40 Jacqueline de Romilly em ritmo de marcha, sendo seguida de cinco pares de estrofes: o todo forma uma seqliéncia de 223 versos encadeados, Tecitados, | falados e cantados, de acordo com ritmos que se alteram em fungaio ; do pensamento e dos sentimentos, com estribilhos e Tepeticdes. Na metade, est4 0 pensamento mais importante, isolado do resto, Eyj- dentemente, durante a representacao, as evolucées e os Sestos tor- nam visiveis essas mudangas e essa ordem. A paixdo do coro era, _Portanto, controlada, dominada, transformada em obra ‘deg arte. Para nés, que nao dispomos de mais que palavras ~ e ainda pronuncia- _das incorretamente! ~, toda essa arte ficou perdida. Representacdes “ modernas que nos oferecem passeios harmoniosos e frios, ou entio < uma espécie de transe arcaico e selvagem, sao, em ambos os casos, \ falsas e enganadoras. Enfim, mesmo supondo que elas saibam pre- | servar 0 justo equilibrio, nos seria transmitido pouco mais que uma impressao artificial, Pois as cadéncias do texto j4 nao nascem dire- | tamente do peso das palavras e das sflabas, Essa grande harmonia que realga, gracas ao privilégio da for- ns ma, todos os temas sustentados pelo coro reveste-se de outra ma- Hi jestade, decorrente do sentido desses temas. Pois a esse coro, tio li apaixonadamente interessado no desenvolvimento da agao em cur- i So, e todavia incapaz de Participar dela, s6 ) resta permanecer a dis- tancia, Nos momentos em que ele nao é submerso pelas ondas de yo terror, nés o vemos a interrogar-: €, procurando as causas, dirigi _do-se aos deuses Ele se esforca por compreender, e por esse moti- vo_relembra_ fregiientemente o passado, buscand extrair-lhe a ligdo. O coro oferece, Portanto, novas pers; pectivas ao espfrito dos espectadores, t40 amplas no seu contetido quanto Ihes permitia a duragao da forma. Assim, a itago do coro confere A aco pro- priamente dita uma dimensio a mais. A entrada do coro do Agamémnon nao constitui apenas um il conjunto lirico de extensio excepcional. Este canto encerra tam- i bém uma reflexio mais profunda do que qualquer outra; sua pré- pria extensio mostra-se 0 caminho Para esse aprofundamento. Com efeito, 0 coro comeg¢a por dizer por que a situagao deve causar in- quietagao. Depois, quando comega a cantar, ele evoca, num estado quase contemplativo, os pressdgios funestos que acompanharam a H partida da frota para Tréia. A evocagao € solene e permeada de A tragédia grega 31 sdes religiosas e, na metade do canto, assume a forma de um Sie fé na justiga de Zeus. E o préprio nome do rei dos deuses a . i a a inicio da estrofe: “Zeus ... qualquer que seja o seu on dara apie se este for do seu agrado, é por este mesmo que oS ng? Ea lei de Zeus é afirmada em toda a sua forga: essa lei, a an as homens, ordena_“‘sofrer para compreender” (verso Bes artir desse momento, apds este par de estrofes de Ho ele- — innate, passa-se & lembranga do crime cometido Por Agamémnon, quando sacrificou a propria filha. 0; coro, entiio, He se contenta em deixar entrever um desastre proximo: seas nt também uma justificativa no tempo e uma tentativa de explicacao teolégica. Gragas & sua extensao, este canto torna-se uma filosofia, que da sentido aos acontecimentos que se seguirao. A presenga dessa filosofia contribui expressivamente me grandeza do teatro de Esquilo, mas ela logo hana e ee menos perde a sua importancia, quando passamos para S6foc! ese Euripides. A majestade do pensamento conciliava-se com | forma um tanto imével, mas solene e inspirada, que era o lirismo coral. O declinio de uma corresponde ao declinio da outra, : Certos coros de Séfocles figuram entre os mais belos do ah \ grego, e adquirem, na obra de Euripides, uma graga pungente. \ elo com a aco, porém, € cada vez mais ténue, e esta nao encontra ” mais no lirismo aquela extens4o que iluminava os sentidos. : Em contrapartida, € evidente que a aco tenha se enriquecido com aquilo que perdia o lirismo. E se passarmos dos coros para os Personagens, assistiremos, de modo inverso, a.um enriquecimento Progressivo, Do comego ao fim, a tragédia sempre evoluiu ee “diregao, desenvolvendo cada vez mais a parte reservada ao palco. Os personagens Inicialmente, antes de Esquilo, havia, aparentemente, um - \ narrador em frente ao coro (na verdade, 0 proprio autor): quando \ esse narrador se integrou & ficgo pottica, ele se tornou um perso- \\ nagem. Mas um s6 personagem nao era suficiente para constituir uma aco, Eram necessdrios pelo menos dois. oO mérito dessa ino- vacao, aparentemente, deve-se a Esquilo. Aristételes é explicito sobre esse ponto: Jacqueline de Romilly / Esquilo foi o primeiro a aumentar de um para dois o ntimero de atores, a diminuir a importancia do coro e a transferir 0 papel principal para o didlogo; S6focles aumentou o ntimero de atores para trés, e mandov pintar 0 cenario (Poética, 1449 a), Essa breve frase resume a eclosio ea expansio de um género, E possfvel que ela delimite demais as etapas. Na verdade, se Séfo- cles foi o primeiro a aumentar para trés o niimero de atores, certas tragédias de Esquilo nao podem absolutamente ser explicadas sem recorrer a trés atores. Poder-se-ia imaginar que ele adotou de ime- diato a inovagao do seu jovem rival; e pode-se pensar também que, / a despeito de Aristételes, ele foi o primeiro a fazer essa experién- & ~ cia. Parece-nos, em todo caso, que foi justamente a sua obra, que para nds resume as formas mais arcaicas da tragédia, aquela que tefletiu o mais vigoroso esforgo de liber: novar €ssas formas. Mas os novos meios requerem a ; 86 ads poucos é que , Sao descobertas as suas possibilidades, Tanto isso é verdade que a \. Presenca de um maior ntimero de atores 6 se popularizou na época ‘ dos seus sucessores. A diferenga fica clara se compararmos a estrutura das suas tra- gédias com a dos seus sucessores. A tragédia de Esquilo | e uma fori imples, algo rigida, € por momentos quase hierdtica. Durante episddios inteiros, nao acontece quase nada. Ademais, cada pega comporta, em geral, apenas um evento, que ocupa quase dois tergos da tragédia: toda a parte | siste em esperd-lo, e. toda a parte final em lamenté-lo. E claro que existe arte em manter renovado 0 interesse, deixando que esse famoso evento se mostre 40s poucos, mas nao h4 propriamente surpresa, nem complexidade. Em Os sete contra Tebas, sabe-se, desde o comego, que Tebas € atacada por um dos filhos de Edipo e defendida pelo outro; sabe- se igualmente que uma maldigio paterna condena os dois homens a morrer golpeando-se um ao outro. Pois bem, a peca nao contém nada além disso. Até 0 verso 650, 0 espectador esta preso a angtis- tia da cidade, e vé aproximar-se 0 momento em que os dois irmaos irdo se confrontar. Uma cena longa ~ de trezentos versos — 6 ocu- pada inteiramente pela descrigdo dos brasdes dos sete chefes siti- antes e dos sete chefes defensores. Ou melhor, seis, em vez de sete, pois quanto mais avanga a lista, mais claramente se percebe que, A tragédia grega 3 + ,exoravelmente, os dois tltimos sero os dois irmaos. Por fim, a ae t4 langada! Etéocles, 0 defensor, abandona a cena para en- Be Polinize © sitiante. A partir do verso 800, é anunciada a \ Pee iss dois: nada resta a nao ser pranted-los — durante cerca TSOS. a ee tal como o conhecemos, neo suportaria nenhuma peca de contetido tao linear, nem uma cena tao estitica. E evidente -que 0 teatro que nos é familiar prefere um desenvolvimento ee KA visivel: enquanto Esquilo trabalhava com a previsdo e 0 efeito de uma certeza crescente, nés fomos habituados a que 0 interesse seja_estimulado pela incerteza e renovado pela surpres ‘ais ha bitos foram introduzidos por obra dos sucessores de Esqui 0. 7 Essa evolugio ja havia sido iniciada nas suas Ultimas obras. fa yerdade, tal evolucio, no teatro grego, é tao continua e tao ec que provocou grande espanto quando, ha alguns anos, se descol iu um papiro que revelou nao ser 0 drama As suplicantes a pega mais antiga de Esquilo, como se acreditava, mas que fora, sim, escrito pouco antes da Orestia. Esta era uma peca em que 0 coro parecia ser composto por cinqiienta elementos (a Jenda fala das cingiienta filhas de Danao, e a pega menciona seus cinqiienta pretendentes. Acima de tudo, esse coro desempenhava um papel excepcional- mente importante na peca (pois trata-se do destino dessas jovens, suas emogGes, sentimentos, e de fato elas Tecitam mais da metade dos versos da pega). Por fim, a ago nao podia ser mais reduzida (a pega inteira trata de um pedido de protegao, contra uma ameaga, pedido que é apresentado, aceito e confirmado). Pelo visto, era quase certo tratar-se de um exemplo bem njitido da tragédia no seu comego; € muitos até, mesmo em face de um documento tao antigo, \. sentiram enorme dificuldade em admitir uma data mais recente. . E preciso ainda acrescentar que essa extrema simplicidade, que caracteriza a estrutura das tragédias de Esquilo, era atenuada, em certa medida, pela maneira como eram representadas. Elas nao Se apresentavam isoladas, mas formavam conjuntos de trés pegas — 1 E possivel também que Esquilo tenha retomado um projeto antigo, mas a data indicada pelo papiro sugere, ao menos, que esse estilo, um tanto arcaico, se conservou entre as preferéncias do autor. 34 Jacqueline de Romilly trilogias.'* Com excegio de Os persas, todas as tragédias conheci- das de Esquilo pertenciam a trilogias. As suplicantes & Promeiey acorrentado constituiam, cada uma, a primeira pega de uma trilo- i gia; Os sete contra Tebas, ao contrario, € uma conclusio, Aga- mémnon, As coéforas e As euménides, por sua vez, compdem uma trilogia completa — a Orestia. Analisando a Orestia, é facil perce- ber quanto ganhava cada tragédia com a conexdio com as outras duas, encontrando um prolongamento natural, fazendo parte, desde 0 inicio, de um conjunto harmonioso. Agamémnon era morto por Clitemnestra; depois Clitemnestra por seu filho: o assassinato ocor- rido na segunda pega era explicado pelo da primeira, e vinha em resposta a ele. Por outro lado, esse_ encadeamento levantava um problema moral, pois se cada assassinato chamava outro, qual seria 0 final? E se cada assassinato era justificado, como se poderia di _tinguir entre 0 crime e seu castigo? Esse problema, suscitado pelas -duas primeiras pegas, résolvia-se na terceira, Assim, pode-se ima- ginar 0 quanto As suplicantes cresceriam aos nosso olhos, se sou- | béssemos como a trilogia das Danaides resolveria o problema Jevantado por essas virgens que se recusavam a casar; e podemos i imaginar também quanto sentido teriam os diversos detalhes de Os t sete contra Tebas, se conhecéssemos os eventos, julgamentos, co- -mentérios e problemas aos quais a peca trazia conclusao." A trilo- gia, na obra de Esquilo, € um verdadeiro conjunto coeso — quase i uma agao em trés partes. No entanto, se 0 propésito fosse conferir maior movimento e variedade & agdo, esta solugo nao seria suficiente; ela permitia i mais um prolongamento da ago do que uma aceleragio do seu ritmo. Por isso, Sdfocles e Euripides partiram para outro esquema. Ambos, praticamente, abandonam a trilogia, Depois de Esquilo, por vezes, encontram-se ainda trés pecas tratando do mesmo tema, mis A essas trés tragédias juntava-se um drama satirico, apresentado pelo // ™esmo poeta; mas mesmo na obra de Esquilo esse drama raramente ti- S\._ nha alguma relag&o com o tema das tragédias, -? A wilogia era composta das seguintes pecas: Laio, Edipo e Os sete contra Tebas, as quais se juntava, como drama satfrico, A esfinge. A tragédia grega 35 9. a série sobre As troianas,'* a qual pertencia a tragédia de Eu- a i Mas elas nao sao mais ligadas por uma relagao tao estreita ee tragédias de Esquilo; muitas vezes, até, essa relagio nao ae Por outro lado, tanto Séfocles como Euripides empenharam- se em elaborar, em cada tragédia, a parte reservada a agao. No lugar de uma tragédia resultante de algum golpe cruel dos _ deuses, que levava um coro angustiado a interrogar-se, em grande temor, 0 interesse passou a centrar-se sobre o que eram € 0 que fa- ziam os homens. A tragédia comegou a mostra-los em luta com os mpunham. A isso correspon- deu, necessariamente, uma Tenovagio dos meios literarios. A pega de Esquilo onde Orestes retorna e mata a mie chama- se As coéforas, porque 0 coro entrava trazendo libac6es funerdrias, \ ou choai. Ambas as pecas — uma de S6focles, a outra de Euripides =, que tratam do mesmo assunto, chamam-se Electra. Com efeito, a irma de Orest aqui o centro da ago. Ela espera o ir- mao, incita-o ao crim . Nosso intérésse, portanto, reside naquilo que ela sente e faz; comovemo-nos com sua desgraca é: com sua firmeza. Electra, na sua dor e na sua determinagio, tor- nou-se na verdade a heroina da tragédia. Ora, so herdis como ela que emprestam os seus nomes a todas as outras pecas conservadas de Séfocles, menos uma. Temos, assim, Ajax, Antigona, Edipo rei, Edipo em Colona, Filoctetes. Poder-se-ia dizer: uma galeria de fi- ~ guras engrandecidas pelo sofrimento e pela coragem — engrandeci- das pela tragédia. A esses nomes correspondem os dos herdis de Euripides, ou, mais freqiientemente, os das suas herofnas: Alce te, Medéia, Hécuba, Helena, Ifigenia em Aulida, Ifigénia em Tauri da... Os personagens sao, a partir de agora, o centro do interesse. Tal evolugdo decorre, naturalmente, do desenvolvimento da acdo. Pois se nos comovemos com 0 destino dos personagens, é \ evidente que essa emociio sé tende a aumentar com os diversos / golpes aos quais eles séo submetidos. E se nos interessamos por suas virtudes ou paixdes, é igualmente evidente que esse interesse 86 poderd avivar-se se assistirmos As suas reagdes diante das s diver- Sas peripécias que deverao enfrentar. A Electra de Séfocles, dessa ™ A trilogia era composta das seguintes pegas: Alexandre, Palamedes e As troianas, &s quais se acrescentava, como drama satfrico, Sisifo. 36 Jacqueline de Romilly forma, tem a chance tanto de nos comover verdadeira natureza, gracas a idéia de S6focl mentira inventada Por seu irmio. Ela es fica sabendo de Sua morte. Desesperada cobre entao que ele nao apenas est4 vivo, diante dos seus olhos, Essa Provacio e es, tam destaque ao Personagem. deverd enfrentar esse desafio. Ele Poderia viver ¢ aceitar, Far4 isso? Os seus Prop6sitos Parecem sugerir que sim. Mas Ajax seria Ajax se aceilasse; e eis que, no momento em que todos acre- t4 salvo, Ajax se suicida. A brusca Teviravolta da € € por meio dela que se afirma tal como é. portancia conferida 40s Personagens, se Psicol6gica, Em Sé6focles e Euripides, assistimos a que co; A se explicar, a se tificar, e mesmo m ute) sobre aquilo que pensam Sentem. A Electra de S6focles tem uma irma, com a q ual discute; essa discussio Permite ao autor colocar em evidéncia o contraste Profundo entre as bersonalidades de cada uma delas. Da mesma forma, Ajax discute com Tecmessa, e ambos leita como pensam que se deya agir. lo: u expdem detalhadamente aman Os personagens ja nao se contentam mais em agir: eles se explicam, E preciso, além disso, acrescentar que a mi mero dos Petsonagens permiti Tebuscada e mai nas em cenas, eles se enriquecem, se afirmam. A tragédia empenha-se cada vez mais em faz8-los viver, No teatro de S6i ‘Ocles, esses contrastes e desai quanto de revelar sua les de fazé-la Vitima da 'Perava por Orestes, quando » decide agir sozinha, Des. » Mas também presente, Ses contrastes acrescen. i tro onde cada um defende seus sentimentos ou teatro onde = A tragédia grega a7 : ; . . _ is realista, chega- se, com nando-se cada vez mai ge aim Euripides utilizou amplamente uma forma literdria que tomou a estada da vida de sua época - 0 debate organizado. 1 : oN scida do habito do debate Judiciério, aperfeicoada pela reté- AL epea, a ar do embate oratério florescia plenamente. Era o nag "> Ora, quase toda a tragédia de Euripides \ contém pelo menos uma cena de agon. O agon € um confi : izado, no qual se contrapdem dois longos discursos, geralmente _gan: s fc ee guidos de um intercdmbio de versos, tornando os aa Juais ie i i ida um defendia i us crepitantes. No agon, ca lensos, mais tensos, mai 0. a a a ponto de vista com toda a forga retérica possivel, numa gran de exposi¢ao de argumentos, que naturalmente contribufa para es- a paixdo. larecer seu pensamento, ou su do. ; : Dois exemplos podem dar uma idéia da diferenga do enfoque "que esses hdbitos de anilise e discussdo podem conferir aos perso- eis havia dotado sua Clitemnestra de uma grande: guecivel. Mas p ssa_grandeza resid fia justamente no a que Esquilo dei pairar sobre sev motivos. Clitemnestra, ie vez cumprida a sua vinganca, vangloria-se do seu ato, eek ™ -Jamais descrever os seus sentimentos: ela era A Vinganea. oe como compard-la com a Clitemnestra de Euripides que, * ae tra, 86 aparece muitos anos depois do assassinato, velha e desilu i da. Deve-se antes comparé-la as herofnas de Euripides, uma das quais — Medéia —, a exemplo da Clitemnestra de Esquilo, pratica um assassinato monstruoso no decorrer de uma tragédia. Ora, Me- ‘rio de Clitemnestra, fala, grita, insult ve se la ja peca, ela sé lamuria sem cessar, nos deix. 0.0 que a estd ferindo. Por duas vezes ela a primeira traz um confronto sincero e cheio de Imitagao, com todos os seus rancores asperamente formulado; Euripides faz dis So uma cena de agon. Naturalmente, isso é tudo. Quando Medéi: Se decide pelo assassinato, ela precisa explicar-se mais uma vez. Ela o faz num moi logo de quase_quarenta versos. Depois, de ea . Ch, entre outros, J, Duchemin, L'agdn dans la tragédie grecque, Patis, 1945, SN abriu, a forca, um espago maior. Jacqueline de Romilly novo, no momento de passar A acio, Euripides brinda-a com outro mondlogo, com mais de sessenta versos. Nesses dois Mondlogos, hesitante, cedendo a todo momento a solicitagdes contra: : ‘vinganga, o orgulho, o amor maternal, tudo af tem o seu lugar. Seria preciso ainda mencionar que, apds o assassinato, bem no final da peca, um ultimo enfrentamento com Jasiio da o toque derradeiro 4 imagem do seu 6dio, Assim, nessa tragédia, embora seja uma das mais simples do autor, os estados de alma da heroina , Tevelam-se, abertamente, em todos os Passos da ago. A grandeza de Clitemnestra estava no fato de nao deixar transparecer nada; a grandeza de Medéia reside no fato de ela se revelar por inteiro. Da mesma forma, 0 Etéocles de Esquilo, em Os sete contra Tebas, partia subitamente para combater o seu irmao, impelido por uma maldi¢do, embora nao fossem claros Os sentimentos que o fa- » tiam obedecer a tal impulso. Eurfpides, ao contrario, retomando esse tema, deleitou-se em imaginar que houvera um encontro entre os dois irmaos ~ um encontro Preparado e arbitrado por Jocasta, mae de ambos. Eles se queixam, e expdem as suas razdes, Desco- brimos um Etéocles inebriado pelo poder, encarnando a ambicao, Esse Etéocles extrai do confronto uma Tealidade psicolégica Nova, € a0 mesmo tempo reveste-se de um valor quase simbélico, ao tor- nar-se porta-voz de uma moral e de uma atitude politica: postas as claras, suas motivagGes conferem-lhe 0 seu sentido pleno, Confrontos andlogos opdem, em Eurfpides, grande mimero de idéias, doutrinas e paixGes. Os personagens multiplicam-se, as pe- ripécias pdem-nos todos & prova. Acompanhamos as suas aventu- Tas como o farfamos com pessoas Teais, cujo destino nos interessa. Entretanto, seria uma Perspectiva errénea ver na maior impor- tancia concedida aos ersonagens um interesse antes de tudo psi- coldgico, ou imaginar que 0 Unico objetivo da agaio seja ressaltar os sentimentos de uns ou de outros. O teatro grego jamais foi um tea- tro predominantemente psicolégico, e a psicologia somente obteve algum destaque na medida em que uma ag&o mais elaborada The 9 A tragédia grega 3! Ne édias de S6focles j4 existe uma arte bem definida, ave al ues gee Itivar o interesse e desperté-lo sempre de novo. See air a, em As traquinias, pode prové-lo. Ela es! 4 a espe- ee ray is que chegam boas noticias: 0 seu marido che- . ee fe a encontrar-se com ela; todos esto felizes. a a ten eram incompletas. Um personagem mais bem ae sab or revelar-Ihe que seu marido est4 realmente de ee nas acompanhado de outra mulher, pela qual esta oe ado A noticia € evidentemente dolorosa, mas Deja- Be ecipers a esperanga acreditando poder Poe ae i fio magica. Restabelece-se, Hl en a Mos a ‘hogs Bestrat 0 “pedaco de 1a com 0 qual foi aa, E estd de volta a angistia. E nao sem in porque 2 Be ee eles tama Vvocou a mol : os hi e ek essas noticias fragmentadas, essas alternancias de ale: di ‘gria e desespero encontram: pegas de Sdfocles, Edipo pi | TeV : oa Scobie quem ele é e o que faz: a primeira enche-o de ale- \, ~ i e, gria, a segunda inquieta-o e a terceira traz-Ihe a Sea i 7 ersonagem secun , Mesmo quando se trata de um pi gem 7 Egisto, em Electra, S6focles deleita-se ao imaginar a eae um cadaver, acredita que Orestes est4 morto: ele exul ices tudo est salvo; mas logo descobre que se tratava de Clil 1b _ e sabe entao que est4 perdido. . Et fi __ Essas reviravoltas constituem aquilo que Aristételes ae a as « eripécias”’. Quando, na Poética, ele quer dar-thes a et : go, o melhor exemplo que lhe ocorre é 0 de Edipo rei, ter crito (em 1452 a): ai i drio, con- A peripécia € 0 reverter da aco ao seu sentido contrario, forme o que foi dito; e isso, uma vez mais, segundo a verossi- i Edi ageiro milhanga ou a necessidade; assim, em Edipo, ° maida : chega, na certeza de que vai alegrar Edipo e tang tied lo a Tespeito de sua mie; mas a revelacao de sua verdadeii dade produz em Edipo o efeito contrario. : Jacqueline de Romilly Ora, tais artificios, capazes de despertar 0 interesse, tornar-se= iam, na obra de Euripides, a regra do género, Ele inventou © que poderfamos chamar de trama. Seu teatro estd cheio de_asticias, Surpresas, confusées € reconhecimentos. Ele multiplicou os episé- dios e os personagens, visando tornar essa trama mais variada e emocionante. Basta um exemplo para mostrar até que ponto se desenvolveu, com Euripides, 0 uso de varios Personagens, e a variedade que ele confere ao desenrolar da ado: As fenicias, tragédia que goza da vantagem de tratar do mesmo tema de Os sete contra Tebas, de Esquilo. A peca de Esquilo é bastante simples. Além de Etéocles e do coro, s6 hé a intervengao de um ou mais mensageiros, e a acdo consiste unicamente em aguardar a decisio de Etéocles, para de- pois lamentar 0 seu defeito. Em, As fenicias, ao contrario, toda a familia de Edipo est4 envolvida no drama, e sofre seus golpes. Aparece Polinice, para fazer oposi¢ao ao seu irmao Etéocles, num conflito ruidoso; esta presente Jocasta, mae dos dois, assistindo a esse conflito que a dilacera, h4 também Antigona e o Ppedagogo, que fazem uma comovente apresentacao da abertura. Antigona re- aparece no fim, logo seguida pelo proprio Edipo, que, contrariando- toda a tradigdo, parece ter permanecido no palacio sé para unir-se ao luto de sua filha. Além disso tudo, no meio da peca, Eurfpides apresenta Creonte, irmao de Jocasta, que discute com Tirésias os meios de salvar a cidade, bem como Meneceu, filho de Creonte, que morrerd para salvd-la. Se juntarmos a essa lista os dois mensa- geiros do final, teremos nada menos que onze personagens. Muitos destes tém basicamente a fungo de valorizar e variar a ressonincia humana do drama, mas € claro que, no conjunto, eles também impdem_ Aacio um movimento que precipita o ritmo « € renova 0 interesse. A entrada de Polinice nessa cidade que se tornou inimiga tinha © propésito de instigar a curiosidade. 0 embate entre os dois ir- mios podia levar a diversas diregdes. A chegada de Tirésias pode- ria dar origem a novas esperancas. Porém, Tirésias revelou um desastre imprevisto para Creonte: para salvar Tebas, ele deveria matar seu filho Meneceu. Ele faria isso? Ele nao quer, e recusa. Mas eis que esse filho, de maneira imprevista, se oferece esponta- A tragédia grega oe O fato suscita muitas emogoes, surpresas € ori- ee : Te Nesse meio tempo, chega o mensageiro. Ira ele, eolasoss ae em Esquilo, anunciar a morte dos dois inmaos? a ae Se Ele traz noticias da batalha em geral: tudo esté en es erangas. Quanto aos dois irmaos, bem, eles esto aoe \do . enfrentar-se! O corte introduzido no relato fun- = ns ha espécie de “a seguir”, no estilo dos nossos seria- he ao, Jocasta e Antfgona precipitam-se een ae “esperanca de ainda poder deter o combate. S6 no epis6dio seg : sabe-se que esta esperanga foi frustrada. E facil acreditar eh ; tragédia tao rica em personagens e tao fértil em peripécias nao _ esse ide is Outras_p ompleté-la, nem poder fei se numa trio logia: ela constitui, i, um mundo in _ - onde os acontecimentos se apresentam com toda a gama _ implicagd manas. ¢ Tapa que intensificagao do patético! A luta entre 7 dois irmaos é uma cena digna de andlise: a presenca de Jocasta, es : mae, e um elemento de dor e crueldade: “Desgracada de nim _ que fareis agora, meus filhos?” O pedido feito por ae a e onte (sempre em As fenicias) poderia levantar um prob! lema a 7 tesolvido entre um chefe e um advinho: 0 sacrificio voluntério lo _ jovem Meneceu, ainda quase menino, torna o episddio comovente. As noticias do combate entre os dois irmaos poderiam ser trazidas -A0coro, como na obra de Esquilo; - k f ia inna P z parte com Antig na ancia e inha — 7 os seus filhos. Do mesmo modo, para prantear os mortos, temos Antigona e Edipo ~ uma jovem e um velho cego — em vez do coro. / Ambos estio feridos nos seus sentimentos mais fntimos. O evento a refrange-se em sofrimentos pessoais e impotentes, com 0 propésito = ee de suscitar a piedade. : i . Esse aspecto patético, deliberadamente Posto em pratica pot meio de uma aco mais elaborada, é uma das tendéncias essenciais Se © Por constitufrem um mundo fechado em si mesmas, € considerando também que Euripides imaginava quase sempre situagdes estranhas 7 lenda, mas que enriqueciam a trama, suas pegas comecam a ag com longas explicagées, dadas num mondlogo (cf. L. Méridier, Prologo na tragédia de Euripides, 1911). 43 A tragédia grega Jacqueline de Romilly 7 da tragédia, tal como foi concebida por Euripides, Sur, nstrumentos, todos cipio, Tro & pessoa. No primeiro caso, a situ- ir, 4 um erro a pt . No pi izados tribuir, a principio, D ara es ao atribuir, “= pe Os, tii S pa se fim. “aciio leva ao que se denomina golpe teatral; no segundo, chen eet ae Be ie 0, 0 qual também pode — mas nem sempre — reconhecimento, “yar aum golpe teatral. ; FH : Ths a de reconhecimento nao eram novidade. E Euripides s cenas de re ie lguma, © pr 0 a utilizé-las no teatro. De 0. foi. forma alguma, 0 primeir n 0 ee ais a epopéia jé havia apontado o caminho, pois era ae ia Odisséia, 0 momento em que Ulisses é teconhecido por ie ana. do-elte, a qual, ao banhé-lo, se lembra de uma ron ie inka identificando-o deste modo. A na Pata ate 7 ae © eth I atético. Quando Aristételes, em sua Poética, fal a ‘ agho Pe ioxk em oposi¢ao a aco simples, define a primeira a ee = «4 0 tne a mudanga no destino ocorre CORL.O F hec pee fe ipécia, ou com ambos” (1452 a). Aristételes define, inclusi e, i Sa para um bom reconhecimento: é preciso que See . i i mplo, a n tético. O melhor exemplo, mil € o natural se aliem ao pat : ase : nee rei de Séfocles, onde 0 reconhecimento constitufa, \ ie BT do-a com revi- n i 6prio nticleo da agdo, entrecortan na realidade, 0 proprio mic! a0, jad : i E evi Euripides, com sua sutil Tavoltas diversas. E evidente que i ae seu habito de verossimilhangas ret6ricas, Sinha io para a es ee é do caso, ele debocha si dos mestres do género. Em to. ) caso aa reconhecimento concebido por Esquilo entre a pee 7 ‘i : reconhecimento baseado na descoberta uma me a a ido depois pel n da marca de uma pegada, confirma A ha de cabelo e uma pega __velho pano bordado. Mas uma mec! de ca n ot _am os Fiction entre um irmao e uma irma? an Sa oon te ain ae 7 78. : is de tantos anos? Euripides deveri ‘ ie stn ‘ de modo favoravel, ao reconheci- melhor. E Arist6teles refere-se, de 0 an ~ mento concebido por ele, entre Tfigénia e Orestes, em Jfig. Téurida. 7 A é i no teatro de O fato é que cenas desse género sao eed eee ds 2 Eurfpides. fon € uma peca repleta de falsos reco fae foie ? culminam com o verdadeiro. E em Helena, Euripide: i giram Varios — falar, ao me- nos para breves répli S de aflicao ou de stiplica. Por outro lado, em ndmero quase igual de pecas, ele introduziu velhos alquebra- i dos, tanto pela idade como pelas desgracas, também Vitimas de_ insultos e violéncias, contra os quais permaneciam inertes. Mas, sobretudo, mais do que os personagens Patéticos, a tragédia desco- briu a arte de apresentar SituagSes patéti as. Foram vistos infelizes refugiados ao pé de um altar, prestes a serem arrancados dali para Serem conduzidos a morte, e espadas desembainhadas para execu- g6es iminentes. De forma mais elaborada, viam-se cenas de luta acontecendo na presenca da vitima, cujo destino estava em jogo: { f Andrémaca, com seu filho, €ncontrava-se ainda sob pesadas amar- Tas, enquanto Peleu e Menelau enfrentavam-se Por sua causa. Ifi- 1 génia escutava sua mae suplicar a Agamémnon por ela. Viam-se inclusive Personagens utilizando-se de um outro, para fazer pressio sobre um terceiro, Fazendo uma chantagem, Menelau consegue a libertagdo de Andrémaca, ameacando seu filho de morte; e num belo rasgo de justiga literdria, Orestes, por sua vez, na peca que Hy leva o seu nome, Pressiona Menelau, ameacando sua filha, Her- mione, que detém a sua mercé, sob os olhos do proprio Menelau. » €ssas diversas situagdes foram levadas a um ni- | ainda mais Patético, com a utilizagao de dois artificios que seri- Heit am considerados, mais tarde, onstitutin af ime impre- inclusive, circunstancias que exigiam um reconheci pent, 2 ae eg imei i a é Vi € prodigioso, entre Helena e Menelau, marido e m . oO Primeiro consiste em levar uma situagio ameacadora até 0 Daene ne ea aT Q i bina- Parece que ele preferia aqueles Teconhecimentos que se ee a vam com os golpes teatrais, porque ent3o o interesse na ») €feito patético se elevavam ao mais alto grau. jue oO desastre & inevitavel; articularmente horrivel, noticia que altera a 5 Jacqueline de Romilly “ Ele domina admiravelmente a arte de criar tensao, de infundir medo, de fazer a plaléia palpitar! Esta é, pode-se dizer, a arte do escritor profissional, de um homem de letras. O caso mais simples €0 da espera de wm salvador, que tarda a um ponto tal que se ins- tala o desespero; € SUbitamente, quando ninguém mais acredita, eis 7 que ele aparece. Assim foi o aparecimento de Héracles, na peca gue leva seu nome? ele chega para salvar os seus, no exato mo- mento em que, ap6S mnuitas lamentagGes, esperangas e stiplicas, seu pai acaba de dizer: “Mas de que adianta invocar-te: vaos esforgos! Estou vendo, a morte é inevitével” (502), Da mesma forma, em Andrémaca, 0 velho Peleu surge no momento em que, apés muita gisteeuic # argumentacao, Andrémaca e seu filho esto sendo le- vados 4 morte. Eles estio acorrentados; j4 deram adeus a vida; Me- nelau acaba de pronunciar palavras inexordveis, concluindo: “Tu descer4s a0 Hades infernal”, quando © coro anuncia: “Mas eu vejo Peleu que se aproxima...” Outras vezes, 2 salvagao no vem de uma pessoa, mas de uma a ‘agao. Neste caso, 0 reconhecimento assume a forma de um golp' teatral, pois vem encerrar uma situagio que. acabaria em um drama monstruoso. Muitas vezes sao parentes pré- ximos ~ ou mesmo Pais ¢ filhos ~ que « ponto de se eliminar, mento dO que se passa. E assim em fon, onde a mae quer, jo, matar aquele que é, de fato, seu filho; depois esse filho prepara-se pata 4 sua vinganca; e est4 a ponto de fazé-lo, quando surge a Ppitia: “Alto 14, meu filho!” No ultimo minuto, acontece o reconhecimento tardio entre mie e filho. Jé foi dito que, nas pecas que se perderam, como Cresfonte, Alexandre, Hipsipila, Euripides extrafa efeitos surpreendentes de situagdes andlogas, E mesmo na Ifigénia et Téurida, 0 reconhecimento entre irmao e irma alcanga uma dimensao ainda mais patética pelo fato de que Ifigénia, sem de nada saber, est prestes a imolar esse irmio no culto de Artemis. ; Estes sfio apenas alguns exemplos. Se féssemos além, arrisca- riamos dar a impress40 de que 0 teatro de Eurfpides nao ia além de artificios da profiss4o € de cenas de efeito. Naturalmente, nao é nada disso. Todavia, 8© Momento em que as primeiras tragédias de Esquilo poderiam desOrientar-nos, com seu porte hierdtico e meios A tragédia grega 45 Jimitados que evocavam mais a tradig&o dos mistérios religiosos quea do teatro moderno, constatamos, um tanto incomodados, que Euripides, sobretudo na segunda metade da sua vida literdria, se aproxima, por momentos, da comédia nova e de Menandro, as ve- zes até do drama burgués. No entanto, a evolucdo é continua — e breve. O impulso inter- ih no que renova a tragédia grega, multiplicando seus meios e deslo- cando seus centros de interesse, move-se, no espago de oitenta anos, do arcaismo mais austero a uma modernidade, de certo “modo, excessivamente rapida. ~~ possivel também que essa modernidade, em certo sentido, marque o fim da tragédia grega, pois a evolucao foi de tal ordem “que um dos dois elementos da sua composi¢ao perdeu totalmente sua fungao essencial. O coro, em certas tragédias de Euripides, ja _nao desempenha mais do que um papel secundario; e a graca ine-' gavel do lirismo acaba tornando-se um atrativo dispensdvel — que 0 teatro moderno, de fato, dispensa. / Podemos até nos perguntar se nao foi a percep¢ao de algo que _se enfraquecia que inspirou uma das duas tltimas tragédias de Eu- ripides (a ultima ou pentltima), uma das mais fiéis ao esquema »\_ origin: “‘Trata-se da pega intitulada As bacantes. Composta na corte do rei da Macedénia, pouco antes da morte do poeta, esta é uma tragédia na qual o coro volta a desempenhar um papel importante, novamente associado a ago. E também uma tra- gédia de inspiracdo religiosa, que caminha para uma catédstrofe tini- _ca, Enfim, é uma tragédia hostil ao espirito racional e sofisticado, que tanto se destacou na inspiragao de Euripides. Por conseguinte, tudo leva a crer num retorno a fonte, cuja vertente secaria aos pou- cos, tragada pela areia. De fato, a tragédia, como género literdrio, tinha evoluido até o limite daquilo que definia a sua originalidade. Mas ela sé pode evoluir assim em raziio de uma profunda transformagio do espirito_ geral que animava seus autores. E no momento em que a tragédia , grega chega ao seu fim, vemos que a inspiracao religiosa e nacio- nal, que havia suscitado as suas grandes produgoes, estava em de-/ cadéncia, para logo mais desaparecer. ‘ _O impasse a que chega a tragédia grega, quando um dos seus elementos basicos perde sua fungao essencial, col i Passe a que chega Atenas, quando o individual _ivismo, assim como 6 ateismo sobre a devogio, € Mente 9 futuro do homem deve ser repensa Jacqueline de Romilly Esta coincidéncia confirma a originalidade da tragédia grega e seu vigor profundo. Mas, ao mesmo tempo, ela nos convida a ob- servar mais de perto o que cada um dos trés trdgicos tinha a dizer sobre o homem. Esta evolugao do pensamento e da inspiragdo pode definitivamente esclarecer nio apenas as transformagoes literdrias aqui destacadas, mas também o que ainda nao foi definido ~ 0 sen- tido que se deve atribuir & no¢ao do tragico,

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