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Sexi, Porta degre. arn 2, jules 18, a. 1-44 Teoria democratica, esfera publica e participacao local e Predessut du Deparia: mentor de Cabs Potnwca da UIMG Teoria democratica, participacao e governabilidade teoria democrética, hegemdnica no pos-guerra, supe a existéncia de uma contradiggo entre a governabilidade demccritica e a participacao politica. A origem de tal con- tradicao pode ser buscada nos debates teéricas do perio- do de entre-guerras € no questionamente per parte de autores tais como Max Weber, Cari Schmitt e Joseph Schumpeter de duas concepgées cenuais na teoria democratic: og conceilos de soberania po- pular e de publicidade, O resultado desse questionamento foi o surgimento de uma teoria restrita da democracia, 0 assim chamade elitismo democrati- ca, segunda o qual a democracia, para ser praticada, necesita restringir a soberania das massas a um procedimento para a selecdo de governantes. Para @ elitisme demecratico, 2 manutencda da demneracia estd dire- lamente vinculada 4 restrigga da soberania ¢ a transferéncia da racionalidade das elites para o sistema polftico come um todo. Esta Concepgac, que cer tamente é a concepcao hegeménica nc interier da teoria democratica, tem sido severamente questionada nos ultimos vinte anos, basicamente por dois motives: o primeira desses motives ¢ a mudanga das formas de mobilizagao de massas préprias do periodo de entre-guerras para as formas de mobilizagdo de massa priprias da assim chamada terceira onda de de- mocratizagao, que trouxe a democracia de volta aos paises da América do Sul e da Europa do leste. Na terceira onda, em vez de encontrarmos a demacracia ameacada por mobilzacaa de massa, o que vemos sao formas -de acio coletiva de natureza democtatica: movimentas como ode direitos. humanos na Argentina, movimentos comunitarios no Brasil ou o solidarie- dade na Polonia no repetiram as caracteristicas das mobilizagdes de massa do perfodo de entre-guerras. Em segundo lugar, 4 medida que as novas democracias foram-se consolidando minimamente, um segunda fato im- Portante veio a tona: a importancia das formas publicas de prestacSo de contas e de transparéncia nas moves democvacias. Mals uma vez a dimen- so do debate e da argumentacao piiblicos, fora da espago articulatério do sistema politica, constituerr o fate central aqui. O objetivo deste artigo é retracar o itinerdrio de debate entre 9 elitismo democratico e as formas de ampliagao da democracia atualmente em curso no interior da teoria demo- cratica, de mocio a reconstituir¢ debate acima enunciado. Este artigo terd trés partes: erm uma primeira parte pretendemas reexaminar as principais argumentos utilizados pelo elitismo democratico para propor o estreitamenta da pratica democrética; em uma segunda parte pretendemos langaros prin- cipais elementos de uma reconstrug3o ampliada da teoria democratica, baseada na distingao entre esfera publica e participacae. Em uma terceita parte pretendemos mostrar de que forma uma proposta ampliada de de- mocracia vai além do debate entre elitistas e republicanistas. ———<—— Elitismo democratico versus republicanismo: uma reconstru- g40 da discussie democratica no século XX. © século XX se inicia com um profunda ceticismo em relacde 4 possibilidade de se praticar a democracia, do modo como os teéricos do século XVIII haviam suposto: como uma forma de soberania abscluta dos cidaddos, forma essa nao institucionalizdvel. A concepgao de democracia Predominante no comeco do século XX era derivada diretamente do tepublicanismo. Como é sabido (Petit, 1998), 0 republicanismo baseia-se em dois elementos centrais: a idéia de que a politica constitul a forma de vida da comunidade ea idéia de que a liberdade, e, portanta, a democracia canstituem formas de autogoverna da comunidade {Arendt,1959; Held, 1987, Barber, 1994), As raizes da concepgac republicana de politica podem ser atribuidas a prépria Crécia antiga e 4 forma coma a democracia se cons: titui na propria expressao da vida da comunidade naquele momento. Niccola Maquiavelli ne comego da época moderna, reproduziu a mesma eoncep- Cao. Segundo ele, ndo existe um modelo natural, de inspiragao divina para a vida polftica. Pelo contrario, a tarefa da politica é criar ordem no mundo. A politica ocupa, portanta, um papel preeminente na vida social como o elemento central na constituigdo da sociedade (Held, 1987). Um segunda elemento proprio ao republicanismo éa sua concepcao da politica enquan- to parte do processo de autogoveme da comunidade, A conseqGéncia des- te postulado 4 a idéia de que ha uma contradi¢do insoldivel entre soberania # institucionatidade democratica. Jean Jacques Rousseau inaugurou tal tra- digao ac fazer 0 seguinte comentario acerca da democracia inglesa: a sobe- rania nao pode ser representada pela mesma razdo que ela nao pode ser alienada... Os deputados elites pelo Povo ndo sdo © nao poderiam ser seus representantes; eles séo meramente as seus agentes e ndo padem tomar nenhuma decisdo em cardcter final. Qualquer lei que a povo naa ratificou em pessoa € nula (Rousseau, 1968, p. 141). A concepcac republi- cana da democracia carrega consigo duas contradig6es que setae explora- das no inicio do século XX: a contradigao entre participagdo e aumento da complexidade administrativa € a contradicao entre participagéo publica e representagao. Na medida em que o republicanisma nao aceita a idéia de que 6 processo de crescente complexificagae da sociedade implica repen- sar 0 problema da participagao, cle acabou tornando-se vulneravel a critica, de que a sua concepgao de demeocracia era mais adequada ao mundo anti- 8. Algo semelhante ocorreu em relacao ao conceito de participagao publi- ca. Na medida em que o republicanisma nao adaptou sua concepgao de Participagdo 4 emergéncia da representacao, tornqu-se vulnerdvela critica. de que o seu conceito de panicipagso era somente adequado as cidades- estado antigas. Assim, no comego do século XX, a teoria democratica de corte republicanc era especialmente vulneravel a um conjunto de ataques. Max Weber foi, certamente, o precursor do questionamento do con- ceito de soberania tal como ele surgiu e se consolidou nos séculos XVIII XX (Rousseau, 1968; Marx, 1946), tanto na teoria democrdtica quanto no interior da tradigao do marxismo e do republicanismo, Weber criticou, si- multaneamente, tantoa idéia de soberania enquanto participacic quanto a idéia de soberania como exercicio da vontade geral, Para ele, o exercicio da soberania enquanto participagao nao era possivel devido 4 burocratizagdo das formas de exercicio de pader: A democracia em todos os lugares onde & uma democracia de grandes Fstados é uma de- ES mocracia burocratizada. £ precisa ser assim, pois ela substitut os efegantes funciandrios honorificas arisiocralicos @ outros por um funcionalisma remunerada. isso acontece par toda parte... 4 necessidade de uma fonga formacde profissio- nal, uma especializagde cada vez mais profun- da e a direcdo nas mos desse funcionalismo especializado (Weber, 1978, p. 257). O argumento weberiano aparece como anunciador de uma contra- digdo que ird perpassar o conjunto da prética democritica no sécula XX: a contradicao entre a ampliagao da cidadania politica e social através do cres- cimento econdmica e da oferta de servigos piiblicos e a crescente impossi- bilidade do exercicio da soberania nessas condigges. Partindo de um con- ceite de racionalidade de meias (Weber, 1968; Mommsen, 1974) aplicado 4 economia, Weber, jd no inicio da século percebia a impossibilidade da gestio participativa da economia e dessa impossibilidade deduzia a neces- sidade de uma forma de acministragan gurocratica contraditéria com c pro prio exercicio da soberania. Um segunde cansenso fei-se fermanda na interior da teoria sociolé- gica © politica desse periodo acerca da possibitidade de substituigdo da racionalidade do politica pela irracionalidade das massas. A teoria democrd- tica surge associada & idéia da racionalidade do hommo poilticus, A mani- festagac da racionalidade na esfera politica implica, desde o iluminismo (Kant, 1959; Rousseau, 1968) a rejetcao do soberano ilegitima e, conse- gientemente, a percepcae de que a legitimidade estaria ligada ao ato vo- luntatio ¢ racional da autorizagae do governante através de um processo pliblico de formacdo da vontade geral. E somente no inicio do século Xx, mais especificamente no periode de entre-guerras, que a vinculagao entre ractonalidade e democracia serd posta novamente em quesiao através de um pracesso que pode ser denominado de “a emergéncia dos interesses particulares”. Se, por um lado, a teoria democrdtica dos séculos XIX @ XX admitia a livre discussdo do contetido da vontade geral enquanto parte de um debate democratico, por outra lado, ela deixou de perceber que o caminho que vai de Rousseau a Mar pernite ura variante capaz de levar @ particularizagao do debate piiblico e, portanto, 4 substituigao da racionalidade pelo interesse. Carl Schmitt foi o primeira autar 2 perceber as implicagdes desse falo para o entendimento da democracia erkyuanto pra- tica racional. Para ele, 4 situagdo de parlamentarisma tomou-se critica uma vez que o desenvolvimento da moderna democracia de massas tamou a discussdo poiiti- ca através de argumentos uma discussdo vazia. Muitas das narmas da moderna fegislagéa parta- mentar, sobretudo as dlispasigées referentes 4 independéncia dos representantes 2 a abertura das segdes funcionam como uma devoragéo supérflua ¢ embaragosa .. Os partidas ... nao enfrentam uns aos Gutros discutindo opinides mas enquanta grupos de poder econdmico-so- ciais catculanda os seus interesses mutuos e oportunidades de poder... (Schmitt, 1926, p. 6). ‘O argumento schmittiane parece bastante claro, assim como as suas implicagdes anti-democraticas, implicagdes essas que apantam na diregio do decisionisma, isto é, de um processo através do qual o Estado de direita € 9 Parlamento sao substituidos por um Executive forte, capaz de assumir tarelas legislativas. Desse modo, a critica da particularizagao da politica pos- sui implicagées que apontam claramente na dire;ao da ruptura com a or dem demorratica. E possivel, portanto, perceber que, ao final da primeira metade do séeulo XX, a tearia democralica e/ou a pratica da dernocracia enfrentavam trés criticas principais: 1).a problematizagao de significada e da amplitude do conceito de soberania popular, um problema cujas dimensées foram-se ampliando na mesma medida em que a administracac estatal foi-se tarnan- do mais complexa; 2} 0 problema da particularizagao dos interesscs envol- vidos no debate paiftico, problema esse causado pela entrada de interesses especificos em arenas a principio desenhadas para a argurmentagao racio- nal: 33.0 problema do efeito da sociedade de massas sabre a instituctonalidade politica, especificamente a passibitidade de formas de mobilizagaa capazes de passar ac largo das instituigoes encarregadas do processo de formagao da vontade geral. Os problemas acima apontades estao nao apenas na ori- gem de uma teoria de questionamento da democracia no perioda de entre- guerras, como também no surgimente de alternativas politicas de organiza- Gao do sistema demoacratico e de refiexao sobre a prética democratica, que surgem no periodo imediatamente posterior & segunda guerra mundial, es- pecialmente de urna vertente denominada de elitismo democratica. A reconstrugao da democtacia e da teoria democratica no perfodo do pds-guerra se verificard a partir das reflex6es de Joseph Schumpeter, 0 inaugurador do clitismo demacratico, tanto de ponto de vista biografico quanto do ponto de vista da produgaa de uma teoria democratica. O autor constitul um caso exemplar a este respeite, uma ver que se trata de um intelectual curopeu que experimentou as incertezas do periode de entre- Querras e se radicou nos Estados Uniclos, pais cuja pratica politica serviu de vinspiragdo para a proposta de reestruturagéo da democracia feita por Schumpeter. A inovacao operada por Schumpeter reside na capacidade do- autor de utilizar os trés elementos apontades acima como base nao mais de Uma teoria da impassibilidade da democracia mas, precisamente, no marco de uma teoria da democracia. Schumpeter adotara, como ponte de partida Para a sua andlise, as mudancas na forma de exercicio da demecracia tal como foi concebida pelos seus fundadores nos séculos XVIII @ XIX, ac colocar em questdo, com base na teoria da sociedade de massas e na constatagao do aumento da complexidade, os dois elementos constituintes do canceito de soberania. Cada uma dessas teorias cumprira 0 papel de jancar uma ditvida sobre 0s fundamentos do conceito de soberania popular. © questionamento do conceito de soberania popular parte de um problema jé levantado por Max Weber e que Schumpeter ird trans- formar em uma petgunta: “coma é possivel que o powo governe?”, A constatagac @ qual chega o autor de “Capitalismo, Socialisma e Democra- ia” é que o sentido ample do conceito de soberania enquanto farmagao e determinagac do conteddo da vontade geral ¢ imposstvel, conclusao ja apontada por Weber no inicio do século XX. Segundo Schumpeter, para manter os fundamentos do conceito de soberania popular & necessaria retirar do seu conteudo a idéia dz busca de um bem comum substantivo, transformands, portante, a soberania em um métode de escolha de Bovernantes: A Demecracia constitui um métode pollti- £0, iste é, urn certa tipo de arranjo institucional Pata se alcangar decisGes legislativas e admi- nistrativas. Desse modo, ela nao é capaz de ser um fim em si mesma, independentemente do tipo de decisio que ela itd produzir sob determina- ds condigdes histévicas (Schumpeter 942, p. 247}. A solugdo schumpeteriana parece clara: trata-se de reduzir a abrangéncia e o significado da idéia de scberania transformando esta tilti- ma, de um proceso de formagso da vontade geral em um proceso de autorizagao de governantes. A deciséo schumpeteriana de reduzir o escopo da idéia de soberania oferece ao autor a passibilidade de integrar, no inte- rior da teorla democratica, duas preocupacdes que, até entao, predomina- vam entre aqueles autores criticas da prépria possibilidade de existéncia da democracia: uma teoria das elites e uma teoria da sociedade de massas. Schumpeter, ao aceitar uma idéia restrita de soberania no interior da propria “operacionalidade da demacracia ir4, em primeira lugar, restabelecer a com- patibilidade entre democracia ¢ elites. A definigao histérico-ontolégica das elites proposta por Pareta, apesar de no ser nepada por Schumpeter, é por ele compatibilizada com a democracia, entendida como um métode de tevezamento das elites no poder, A reduce do escope do conceito de soberania implica, portanto, limitar o papel do povo a produtor de gover- nos, iste 6, a selecionador daquele grupo no interior das elites, que Ihe parece o mais capacitado para governar. A operagao schumpeleriana de reducio do estope da soberania cans- titui, simultanéamente, uma mudanca na concepgao da relacdo entre de- mocracia e racionalidade. Para ¢ autor de “Capitalisma, Socialismo e De- mocracia” as elites politicas, uma vez ern competicéa, garantem a possibi- lidade do acesso dos mais qualificados 4s posigées de lideranca politica (Schumpeter, 1942, p.280). Para o autor de “Capitalismo, Socialismo e .Bemocracia”, sequer na condicao de consumidor o individuo moderna consegue formar sua vontade independentemente dos mecanismos de publicidade e de persuasdo. No entanto, é no campo da politica que a possibilidade de transformagao do individu racional em membro de uma turba se manifesta mais claramente: O cidadio comum resvala para um nivel exlfemamente baixo de performance mental assim que ele penetra no campa da politica. Ele passa a argumentar € 4 realizar andlises de uma forma que ele mesmo reconheceria coma in- fantil no campo da sua propria esfera de inte resses... Ele torna-se novamente primitivo... (Schumpeter, 1942, p. 263). Entretanto, o surpreendente no argumento schumpeteriano é me- nos a repetigdo de argumentos acerca da sociedade de massas e mais & possibilidade de tornar tais argurnentos compativeis com a pritica da demo- cracia. Para o autor de “Capitalism, Socialisme e Democracia”, na medida em que o exorcicio da soberania pelas massas ¢ reduzido a um mero pro- cesso de selecdo de elites em competicaa, tal proceso toma-se isento dos riscos da irracionalidade prdpria 4 sociedade de massas. Nesse sentido, a teotia schumpeteriana ndo nega as voligdes irracionais. Pela contrario, 2 teoria proposta pelo fundador do elitismo democratico parece capaz de limitar o papel de tais voli¢oes na politica (Schumpeter, 1942, p.270). Para Schumpeicr, o que desestabiliza o sistema democratico no é a existéncia de voligdes itracienaise sim a sua utilizagao direta. Uma vez garantida a sua expressao indireta pelas massas, no hé,-segundo o autor, maiores proble- mas em conciliar sociedade de massas e democracia, O elitismo democr4- tica pode ser considerada uma teoria restrita da democracia, baseada em trés elementos. - A transformacso da teoria das elites em um elemento central da teoria democtatica. O elitisma demacratico ao definir a democracia como “« Q sistema politico no qual o poder respousa na demas ative...” abre SspaG0 para a entendimenta dessa mesma democracia enquanto ~... 0 poder das minorias democraticas ativas (Sartori, 7 987, p. 105-106}. - O elitismo representa, em segundo lugar, uma forma de compatibilizacio entre sociedade de masses e democracia, O reconheci- mento da sociedade de massas pelo elitisma ne constitui em si um empe- cilho para o funcionamento da demacracia, tal como argumentaram alguns dos tedricos do periado de entre-guerras. O elitismo, diferentemente des- sas leorias, na medida em que postula a Precedéncia das elites enquanto Propositoras de politicas, sustenta o respeito 3s regras do jogo democratica nas sociedades de massas. ~ Come conseqiiéncia dos elementos acima mencionades, c efitismo substitui a idéia de consenso vigente na teoria demacrética desde 0 século. XVIII (Mansbridge, 1991). A democracia deixa de ser formada Por um con- Junto de individuos cuja atividade constitui a discuss3o ea procura de bem tomum é passa a lidar com a individuo auto-interessado almejando a parti- haa seu favor ca maior quantidade Possivel de bens piblicas. A dimenszo conflitiva da democracia passa, entao, a envolver individuos, partides e governos. Todos esses incorporam a mesma dinamica conilitiva. 4s trés criticas do elitisme ao republicanismo de corte democtatica tiveram um efeito quase mortal, O republicanismo se tomou, no perfoda _ do pds-guerra, uma teoria politica isolada, incapaz de migrar para o centre do debate da teoria democratica. Um debate sucinto entre elitismo e fepublicanismo sempre continuou fazende parte da teoria democratica, apenas com o objetivo de mostrar a impossibilidade contemporanca das formas de participagao democratica advogadas pelo republicanisme (Babbio, 1974). No entanto, esse debate desprezou uma terceira possibilidade que eu vou me referir na préxima secao: uma teora da esfera publica. O conceito de esfera pdblica e a ampliagao do debate democratico Oconceite de esfera publica constitui a renovagao mais importante na teoria democratica da segunda metade do século XX (Habermas, 1989; Calhoum, 1992; Cohen e Arato, 1992). Uma dimensao do ¢onceito de esfera publica permite ir além do debate entre o elitismo democratico © 0 republicanismo. Trata-se da recuperagao na modemidade tempara de uma esfera para a livre interacao de grupos, associagGes e movimentos. Tal esfe- rasupde 2 possibilidade de uma relagdo critieg-acgumentativa com a politi- ca ao invés de uma relacao participativa direta (Cohen, 1996), abrindo, assim, uma mova via para a andlise da democracia. No seu livro classico “A Transformagao Estrutural da Esfera Ptiblica”, Habermas langou os fundamentos dessa via alternativa, a partir da introdu- Gao do conceito de estera publica. Para éle, o processa histérico que levou Aescensdo da burguesia permitiu o estabelecimento de uma nova forma de relagao com 9 poder palitico: 05 burgueses sdo pessoas privadas e enquanto tal eles no governam, as reivindicacées de po- der dos burgueses em relacdo 3 autoridade pii- blica nga sao, Portante, dirigidas conira uma determinada concentracao de poderes que te- tiam que ser divididos...o principio de controle que os burgueses opuseram em relagdo [a au- toridade publica} — 0 principio da publicidade - linha a intengao de mudar 0 pripao canceito de dominagio (Habermas, 1989, p. 28). Assim, pata Habermas, a publicidade emerge historicamente como @ resultacéo de um processo no qual os individues demandam dos govemantes transparéncia nas suas decisGes e justificagao moral des seus atos. © conceite de esfera publica tem duas de suas caracteristicas cen- trais ligacias ao debate demacratico contemporéneo: a primeira delas & a idéia de um espaco para a inleracao face-a-face, diferenciado do Estado. Nesse espago, os individucs interagem uns com os outros, debatem as decisdes tomadas pela autoridade polftica, debatem a contedde moral das diferentes relagdes existentes ag nivel da sociedade e apresentam deman- das em relago ao Estado. © conceito de publicidade incorpora no interior da teoria democrética a inspiragao participativa republicana sem, no-entan- to, uansformd-la em uma forme alternativa de administragéo ptblica, Os indivfduos no interior de uma esfera publica demacrdtica discutem e deli- beram sobre questées politicas, adotam estratégias para tornar a autoridade politica sensivel as suas discussGes ¢ deliberaches. Nese sentido, o concei- to de publicidade estabelece uma dindmica no interior da politica, que no é movida nem por interesses particularistas nem pela tentativa de concen- trar pader com 6 abjetiva de dominar outros individuos. Pele contrario, a idéia aqui presente 6 de que 0 uso piiblico da razao estabelece uma relagao entre participagae e argumentagda pablica. A paridade sob a qual 2 autori- dade do meihar argumento pode prevalecer contra 2 hierarquia social e a0 final se icrnar vitoriosa significou, no pensamento daquele momento, a paridade da condicdo humana comum (Habermas, 1989, p. 36). Tal coloca- §40 significa uma enorme renovagac em termos de teoria democratica, na medida em que ela substitui as hierarquias de participacac pela participagso igual associada & autoridade de melhar argumento. 0 segundo elemento central no conceita habermasiano de esiera publica a idéia da ampliagdo do daminia piblico levando aa que alguns autares denominam de “politizacdo de novas questdes” (Melucci, 1996) Para Habermas, a dessacralizagio da politica significou a possibilidade de submeter & discusso publica problemas tratedos anteriormente através de menopélios interpretativos detidos por macroinstituigaes camo a Igreja Catélica, Esses elementos passam a fazer parte ou da discussao cientifica ou da discussdo piiblica tormando-se, portanto, passiveis da argumentagao racional. Assim, a esfera ptiblica habermasiana é igualitiria nao apenas por- que permite a livre participacdo, mas também porque novas questoes como a dominagéo das mulheres, no espaco privado da casa, ¢ dos trabalhadores, no espago privado da fabrica, penetram o debate politico (Benhabib, 1992). O conceito de esfera poblica abre uma nova matriz ne interior da teoria democratica aa romper com dois elementos da tradicao elitisla de- mocratica. O primeiro desses clementos, que teve a sua origem com a andlise weberiana do aumento da complexidade administrativa & a impossi- bilidade da existéncia de formas Participativas de administrac&o (Schumpeter, 1942; Bobbio, 1974), Habermas, ao distinguir entre Estado e-eslera piblica muda os elerhentos desse debate introduzinde um nivel adicional paraa participacae politica. Ao nfvel da esfera publica, a racionalidade de processo participative ndo leva 4 constituigao imediata de Propostas administrativas, mas conduz apenas a um proceso democritica de discussdo. O outro elemento da teoria habermasiana que rampe como modelo propesto pele elitisma democration € a dissociacdo entre o problema do bem comum ¢ as formas substantivas de aleangado. De acordo coma concepgao habermasiana de esfera publica, o bem comum pode ser formal e ser pensado em termos da capacidade dos diferentes atores sociais para publicizar sua luta contra formas privadas de daminagao, Diferentes atores construinda identidades em publico, estabelecendo novas formas de solidariedade & Possibilitanda a Superagao de uma condigéo privada de dominagdo constituem 65 ele- Mentos centrais da nogac de esfera pdblica. A teoria da esfera publica nao apenas abre espaco Para a participa- a0 come também fundamenta a pessibilidade da Participagao na forma Como as sociedades modemas estag esteuturadas. Em seu livre “Teoria da Aggo Comunicativa , Habermas apresenta uma com preensao das socieda- des modernas enquanto caracterizadas pela emergéncia tanto de formas sistémicas de ago quante de formas de arso baseadas na possibilidade de akangar 0 conserso através da linguagem (Habermas, 1964). alcangamente do consenso atrawés da comunicagao face-a-face é a caracteristica que jus- tifica a existéncia permanente de um espaga piiblico. A publicidade se toma, assim, uma caracteristica das demacracias modernas, Tal andlie leva auma ruptura adicional com a tradigao do elitismo democratico sem reque- fer, ao mesma tempo, uma revisio do argumento acerca da complexidade administrativa. Para Habermas, todos os atores sociais sdo igualmente capa- zes de dominar a linguagem e de argumentar publicamente. Este processa que esta na raiz da geragae de uma lorma comunicativa de poder impiica a capacidade de submeter a autoridade publica a critica. Ao mesmo tempo, para Habermas, a administracads piblica esta ligada a um processo diferente chamado de complesificagac, processo esse enlagado a possibilidade de aplicar a razao instrumental ao processo administrativo. Ao diierenciar raci- onalizagao de complexificagac, Habermas oferece uma alternativa as res postas repubticana e elitista democratica acerca da participagaa. Ca tradi- Ao elitista democratica ele resgata a preocupacao com os limites internos préprics 4 complexidade da administragao publica, Do republicanisme ele Fesgata a compreensdo da democracia com um processo de utilizagao pu- blica da razao. Uma vez gue o sistema administrative deve waduzir todos os inputs normativos na sua pro- pria linguagem, 6 necessérin explicar como esse sisterra pode ser programade a partir de politi- cas € leis que emergem de processos de forma- (40 da opiniao péblica e formagda da voniade politica. A administracdo deve abedecer a seus préprios critérios de racionalidade, na medida em que opera legalmente. Na perspectiva do emprego do poder administrative o que conta ndo € 2 razdo pratica, mas @ efetividade da implementaggo de um certo pragrama... RazGes normativas podem afcangar um efeita balizador indireto apenas na medida em que 9 sistema politico nde guie a prépria produ- gdo dessas razées. O problema mais diffcil, fo entanta, € come assegurar a autonomia da proceso de formagao da opiniao publica e da vontade politica que j4 foram Jnstituctonafizados (Habermas, 1995, p. 484- 484). Desse mad, a teoria habermasiana pretende operar no espaco que se pera entre uma administracao estatal, cuja autonomia esté asse- gurada pelo direito, e um processa de formacao da opiniao pdblica que tem duas caracteristicas principais: a sua informalidade, na medida em que pata Habermas apenas o sistema politico pode agir (Habermas, 1995, p. 301) € a sua capacidade de gerar fluxos comunicativos que deixem claro a origem comunicativa das formas administrativas de utili- zag¢a0 de poder politico. A teoria habermasiana da esfera pablica recebey muitos tipos de critica (Fraser, 1989; 1995; Landes, 1995; Hall, 1994: Thompson, 1995}. Para os objetivos deste trabalho, vou lidar apenas com dois tipos de critica: a primeira delas diz respeito ao problema da homogeneidade dos pdblicos e a segunda, a insuficiéncia dos procedimentos deliberativos visualizados pelo autor. Na préxima secac deste trabalho abordare? os dois pos de critica para propor um modelo de esfera publica deliberativa. Movirnentos saciais e deliberagao publica: um madelo ofen- sivo de esfera publica O modeio de esfera publica proposta por Habermas em “A Transfor- magac Estrutural da Esfera Poblica” &um modelo inspirado na politica do século XVIII. Diversas das suas caracteristicas apontam nessa diregdo, entre 5 quais caberia destacara tomadla dos calés londrinos e dos sales parisienses como modelo gerai de uma esfera ptiblica. Varios autores(as), dentre cles, Nancy Fraser ¢ Joan Landes, apontaram para a parcialidade dos publics constituides nesse periodo, No caso dos cafés ingleses, esses cram publi- cos formadas exclusivamente por homens, brancos, proprietirias e ociden- tais. No caso dos salées franceses, apesar de incluirem as mulheres, eles eram excludentes em Lodas os culres aspectos, como, par exemplo, o fato de os saldes serem freqdentados 56 por individuos brancos ¢ proprietarios. Nancy Fraser abordou essa dimens3o da obra habermasiana tentando problematizar, justamente, o grau de inclusividade de uma esféra publica baseada em tais critérios. Joan Landes vai mais além e levanta o problema da auséncia de toda uma andlise acerca dos publicos plebeus que, ne caso da Inglaterra, foram temporalmente simultaneos @ formagae da esfera pa- blica burguesa. © problema que est4 por trds das criticas feitas elas duas autoras € o problema da homogeneidade dos piblicos burgueses.' Seria a teoria habermasiana uma teoria de pdblicos homogéncos ou seria cla uma teoria do espaco publica em geral? Haveria no préprio conceita de esfera 11 Asolug3o apresentadis pelas dua autocas, cipectalmente porAlaney Fraser, patece-nas, noenianta, muito: poco satidateria. Fraser transforma 2 reac-bo das mulheres 2 de grupos plebeusem um modelo de pubsicos fubakemonem cuniltg, Amey Urs, tal models lermina comprometendls o pripeu caret de etfera publica, narmedidaem que ospublicos nJasSo-senslves an problema da inclusko, A iormula;So por Fraser de um proceso de cormunicagse interpublices néo é capaz de deixar dara a dlferensa operacinal entre ove intrapiblicun one! inte rpaalie. pdblica uma intolerancia em relacio a formas nao burguesas de apresenta- so em pliblico au seria possivel mastrar que a tearia habermasiana pode desvencilhar-se das parcialidades dos exemples por ela utilizades, que sao 06 cafés @ saldes do século XVIMi Ameu ver, 6 possivel optar pela segunda altemativa, isto 6, por uma teoria plural do espaga publics se substituirmos o papel cumprido pelos pUblices burgueses no século XVI pelo papel cumpride pelos mavimentos sociais na contemporaneidade. A tena dos mowimentos sociais nos permite ir além da idéia de sociedade de massas que inspirou o elitism democratico substitui-la pela idéia da apresentago em pliblice da diferenca nas sociedaces contemporaneas. Os movimentos sociais cumprem, nas sociedades contem- poraneas, o papel de apresentaddres de identidades em puiblico. Airavés de ates Comunicativos, estes atores constroem espacos de reconhecimento mu- tuo, que tém camo objetivo apresentar uma identidade a principio negada pelo sistema politico. Os atorés socials entram em conllite corm as instituigdes sistémicas, no intuite de alirmar uma identidade negada por eles ou ... reapropniar-se de algo que eles los atores sociaisj acreditam que thes perten- ce... Melelucci, 1996, p. 74). esse made, a ago dos movimentos sociais implica reconhecer em paiblico algo que comum a todas os participantes. Através dese ato de apresentagdo pliblica, 0 atores sociais oferecem uma resposta distinta ao problema da complexidade social: ao invés de demanda- rem a incorporagao da diferenga no sistema de representagio publica, eles se Propdem a apresentarem publico uma identidade cuja diferenga no é passt- vel de processamento pelo sistema de representagio. Asegunda dimensia importante dos movimentos sociais é a redefinigha do conceito sobre a que € politico. A apresentagao publica de novas identida- des é apenas a primeira dimensdo da redefinicae acerca do. que & politica, O ‘outro passo é mostrar que a definigao do que é politico constitui uma dimen. Sao sempre contestada € que o papel do espago puiblico é atuar na ampliagao dessa definigaa. O espaco puiblico se toma a arena da defini- do contenciosa acerca do que é o politico, isto é, do que pertence 4 polis. Sua funedo principal é trazer para a discusséo aberta quesides problematizadas pelos mavinventos socials... per muting é sociedade come urn todo assumir seus dilemas... enquanto dilemas interngs, transfor. mando-os ern politica (Melucci, 1996, p. 221). Ag lado de problema da anulacao da diferenga, coloca-se um outro: problema, que é 2 tentativa permanente dos mavimentos socials de ampliar o escopo do que deve ser politizado, naves temas como o ambientalisme ou a questdo dos direitos, e a wentativa dos atores sistémicos de reduzir o ndmero de questées com as quais a politica deve lidar. Tal conilita ocerre primordial- mente no espaco piiblice, que se torna ¢ local por exceléncia da ampliagao das questées pallticas. Ad pensar o espago publico desta forma, ¢ possivel ir além de ura concepgao defensiva de pdblico, defendida por Habermas e colocar a questao da ofensividade do espago publico na democada. Ao redefinir o que pertence 3 pdlis, tal espage relira quest6es do dominio privaco e obriga © sistema politico a traté-las. A questao que permanece em suspenso, no entanto, é como transformar as aches que ooorrem nesse espaco em arGes instituctonais de ampliagas da pratica democritica, 0 que coloca o problema da dimensaa deliberativa ou ndo da esfera publica.

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