Você está na página 1de 5
Cad-Est.Ling,, Campinas, (22):41-45, Jan./Jun. 1992 MUNDO DESFEITO E REFEITO ANTONIO CANDIDO Como estudar o texto liter4rio levando em conta o seu vinculo com as motivagées exteriores, provindas da personalidade ou da sociedade, sem cair no paralelismo, que leva a traté-lo como documento? A Gnica mancira talvez seja entrar pela prépria constitui¢ao do discurso, desmontando-o como se a escrita gerasse um universo proprio. E a verificagao basica a este respeito € que o autor pode manipular a palavra em dois sentidos principais: reforgando ou atenuando a sua semelhanca com o mundo real. A semelhanga ¢ reforgada quando ele escreve, por exemplo: as nuvens pairavam no alto céu; ¢ ¢ atenuada quando escreve: bandos de carnciros corriam no campo azul. Neste caso, as nuvens lembram 1 de carnciro ¢ a sua quantidade pode evocar a idéia de rebanho; como os rebanhos circulam nos campos, o céu se equipara a um campo. Nesta comparacdo, como em qualquer outra, hf um duplo movimento: de um lado ela garante 0 nexo com 0 mundo, pois as nuvens sio parecidas com carneiros, animais que conhego e posso observar diretamente; mas de outro, perturba este nexo, pois as nuvens deixam de o ser no momento em que viram carneiros e, reciprocamente, estes no so mais carneiros, porque sfo nuvens. Daf uma tensio cheia de ambigiidade, da qual surge a linguagem pottica, que a explora e incrementa, levando-a as ultimas conseqiiéncias, muito além do nfvel informativo. Portanto, na comparagio, sobretudo em sua forma mais radical, a metéfora, o mundo est4 ¢ ndo est4 presente. De fato, gragas a ela o escritor acentua a intensidade da analogia até parecer que ndo h4 mais mundo, mas sim uma mensagem com vida propria, podendo inclusive nfo se referir a algo que a experincia comprove. Explorando um pouco mais o que foi dito acima: este processo de desfazer a semelhanca com o mundo pode dar-se pela substituig§o convencional ou pela substitui¢éo nfo-convencional. Usando agora exemplos tomados a textos literérios, lembremos, no primeiro caso, a comparacio do crescente lunar com uma foice de ouro largada no campo de estrelas, no poema "Booz adormecido’, de Victor Hugo: (..) et Ruth se demandait Imobile, ouvrant Voeil 2 moitié sous ses voiles, Quel dieu, quel moissonneur de l'eternel été Avait, en sen allant, négligemment jeté Cette faucille d'or dans le champ des étoiles. O céu € um grande prado semeado de estrelas, claro como verio permanente, no qual um ceifador divino esqueceu a foice quando foi embora. Belissimo, mas perfeitamente enquadrado no fmbito de moderago que a Pottica tradicional exigia para tornar aceitdveis as comparacées. J4 num dos "Poemas da negra", de Mario de Andrade, a substituicdo ins6lita exige do leitor certo esforgo de adaptagio: Ai momentos de fisico amor, Ai reentrdncias de corpo... Meus labios so que nem destrocos Que o mar acalanta em sossego. A luz do candieiro te aprova, E.,.ndo sou eu, é a luz aninhada em teu corpo Que ao som dos coqueiros ao vento Farfatha no ar os adjetivos. No embalo da ternura fisica, os lébios do amante sao destrogos boiando na ondulagao dos gestos, enquanto o corpo amado, em vez de fazer jus a louvores, 08 produz ele proprio, como adjetivos espalhados pelos coqueiros ao vento. As fases de transformacao literdria trabalham sobretudo esta segunda modalidade, enquanto nas fases est4veis domina a primeira, mais conservadora. Mas a distingdo é relativa, porque o anti-convencional de hoje poder4 ser a rotina de amanha, Neste processo de desfazer a realidade o mundo se vai desfigurando ¢ © objeto referido pela palavra parece passar dele para “dentro” do discurso. Aparentemente, nao é mais o mundo, é outra coisa, que parece no existir fora dos limites do texto, Para obter este efeito o escritor pode recorrer a diversos meios. A sua finalidade € encontrar recursos pra dar realce ao discurso, no campo sonoro ou no campo semiintico, sendo certo que as modificagdes ou singularidades no campo sonoro tém um poder singular de conferir toques semanticos. O resultado ¢ a criagdo de um sistema espectfico de sentido, que pode ser convergente, paralelo ou 42 divergente em relagdo ao sistema do mundo. ‘Como se vé, estou bordando & roda do ponto de vista de Jakobson, que se poderia simplificar dizendo que o discurso poético € aquele que chama a atengéo sobre si mesmo. No limite (acrescentemos) ele tanto chama a ateng&o sobre si que faz esquecer o mundo, tornando-se outro mundo. Ora, para isso sio fundamentais no apenas os efeitos de alteragdo sintética, mas também os de ritmo ¢ sonoridade, que formam a base para as alteragdes no terreno da analogia ou do nexo, por sua vez atuantes no significado. ‘Vejamos um trecho do capitulo inicial, "Origens, meméria, contacto, iniciagdo", em A idade do serrote, de Murilo Mendes: O dia, a noite . Addo e Eva - complementares ¢ adversativos. Meus pas: Onofre e Ekisa Valentina, Addo ¢ Eva descendentes. A multiplicacdo dos pais. A multiplicago dos peitos. A multiplicago dos pas. A multiplicagdo dos pianos. O jardim-pomar da casa patema, limite tragado ao meu incipiente saber. O sabor das frutas. A drvore da citncia do bem e do mal ao meu alcance. Um esbogo de serpente pronta para armar o bote. Outros jardins-pomares da casa de tias e primas. O princfpio que rege este texto é a assimilacSo aleg6rica do mundo nascente do narrador ao mundo nascente descrito pelo Génesis. Os pais, novos Adio ¢ Eva, se multiplicam gerando o filho, que tem por menagem o Eden-pomar, onde esto as frutas reais ¢ as frutas metaforicas das iniciagSes, junto as primas que também vivem a descoberta da vida em seus pomares edénicos. O recurso principal de escrita é a elipse, que sugere a experiéncia fragmentéria ¢ desconexa da infancia, condicionando uma realidade aproximativa ¢ descontiaua, que parece residir mais nas palavras do que nas coisas que clas designam. O mundo da experiéncia racionalizada foi desfeito, reduzido a impressées fugidias ¢ incompletas, nascidas da percepcio embriondria do menino pequeno. Mas a seguir foi refeito pela palavra, tratada como se sobre ela, ndo sobre a realidade, repousasse o significado profundo. Interessante sob este aspecto € 0 terceiro segmento, que representa de mancira mais pura 0 processo de desfazer-refazer, porque somos embalados pela sua sonoridade antes de pensarmos com rigor no sentido, gracas A poderosa combinagdo de andfora ¢ paronomésia. A mesma palavra ("multiplicagdo") € repetida quatro vezes, multiplicando-se efetivamente, sempre ligada a outras irmanadas por uma homofonia feita de rimas quase toantes ¢ entrelacadas: "pais"-"pdes", "peitos’-"pianos*. £ como se a palavra propusesse um mundo refeito por ela, de tal modo que o 8B discurso parece propor-se como finalidade de si mesmo, ao chamar a atengSo sobre si por meio dos recursos de sonoridade ¢ simbolizagio. Portanto, a légica fonica parece antepor-se a outra, criando uma razio especifica, antes de deixar ver a sua raz4o enquanto referéncia a realidade externa. ‘Um discurso como este garante ¢ ao mesmo tempo perturba o nexo com o mundo. Mas, milagrosamente, a perturbac4o torna o nexo mais significativo, porque ao destacar o discurso d4 maior expressividade ao mundo. Aqui o mundo € 0 do nascimento, do aleitamento, das percepgées iniciais. Mas para um cat6lico como Murilo Mendes 6 também o senso do milagre (multiplicagao dos pies, extensiva a outros nfveis), que infunde transcendéncia a0 quotidiano, E é senso do absurdo, exprimindo a nutrigéo espiritual através da arte, na proliferagio surreal dos pianos, isto 6, da sua sonoridade captada pelo menino. Talvez a articulagao se deva a nexos de tipo associativo: o leite conduz ao pio (alimento); este ¢ assimilado ao milagre da sua multiplicagio por Jesus; 0 milagre por sua vez abre a possibilidade da multiplicagéo meton{mica dos pianos. E assim vemos de que mancira um elemento ideol6gico, a religido, permite infletir o discurso no rumo do ins6lito, resultando 0 sentimento do quotidiano como milagre poss{vel, idéia cara aos surrealistas e, por motivos em parte diferentes, a Murilo Mendes. E como se o sentido “interno’ passasse de algum modo ao primeiro plano, pois d4 vida especial ao sentido “externo’, isto 6, 0 que garante a relagdo do discurso com o ser e com o mundo. proceso de desfazer a semelhanca da palavra com o mundo pode ir mais longe, a ponto da realidade interna do discurso, a sua auto-referéncia (se for possfvel dizer isto), parecer maior do que a referéncia externa. Veja-se como somos arrastados pela légica propria das associagSes, sempre com base na anéfora ¢ na paronomésia, neste outro trecho do mesmo capitulo inicial de A idade do serrote: As témporas de Antonieta. As témporas da begénia. As témporas da romd, as témporas da macé, as témporas da hortel. As pitangas tempords. O tempo tempordo. O tempo-serd. As temporas do tempo. O tempo da onga. As témporas da onga. O tampdo do tempo. O temporal do tempo. Os tambores do tempo. As mulheres tempords. O tempo atual, superado por um tempo de outra dimensdo, e que ndo é aquele tempo. Temporizemos. Tudo se ordena ao redor da palavra "tempo", segundo um critério sonoro, nao légico, pois as afinidades fOnicas regem as associagées que constituem © discurso, exprimindo 0 sentimento do tempo passado por meio de evocacdes em revoada da experiéncia infantil. Uma referéncia do pardgrafo anterior amarra um pouco o significado, de outro modo completamente solto: * (...) no tempo em que nao era antrop6fago, isto ¢, no tempo em que nfo devorava livros (...) as témporas de Antonieta me tentavam ¢ me alienavam, a mim o atento: que tento tenho, ¢ “4 quanto". Neste trecho j4 se esbogava a dominfncia fénica da dental T, mas interessa mais notar que o Menino se impressionou com as “tEmporas" de Antonieta, fragmento da sua pessoa que se estende sobre o resto do mundo, porque tudo o mais passa a possuir témporas, e a meméria abrange todas as impresses remotas (isto 6, do “tempo da onca’, que foi "temporio” para ele) por meio de associagées desencadeadas pela obsessio inicial. Resulta um universo fantfstico, afastado do nosso, embora nascido rigorosamente dele em todos os seus elementos. Portanto, o poeta efetuou uma substituicéo do mundo real por meio da forca criadora da palavra. Poderfamos dizer que o mundo real est presente com a sua forga de gentes, frutas, folhagens, emogées, mas foi refeito no movimento da recordago, que transfigura. Tanto assim, que chegamos a perguntar se o verbo final, “temporizemos", significa mesmo o que os dicionfrios indicam: “adiemos *, "“demoremos", "aguardemos ocasiao mais favordvel *, “contemporizemos". No estar4 © poeta criando outro sentido, qualquer coisa como “mergulhemos no tempo para refazer o passado perdido’; ou “nos transformemos em tempo a fim de captar 0 passado"? Neste caso, seria qualquer coisa equivalente a um ficticio verbo “tempar". Mas 0 fato é que Murilo Mendes abre muitos significados possfveis, alguns virtuais, mostrando a capacidade que a palavra tem de refazer um mundo desfeito pelo impacto da imaginago. 45

Você também pode gostar