Você está na página 1de 19
A mulher sem pecado (Nelson Rodrigues) PERSONAGENS: Olegario (paralitico e marido de Lidia) Inézia (criada) D. Aninha (doida pacifica, mde de Olegario) Umberto (chofer) Voz Interior (Olegdrio) Lidia (esposa de Olegério) Joel (empregado de Olegirio) Mauricio (irmdo de criagdo de Lidia) D. Marcia (ex-lavadeira e mde de Lidia) Menina (Lidia aos dez anos) (O autor, em 45, excluiu a menina quando da representacao dirigida por Turkow. Conforme a conveniéncia, a menina podera ser suprimida, ja que o autor assim o fez na segunda versdo, levada em cena em 1945) Mulher (primeira esposa de Olegario, ja falecida) (Como a menina, poderd ser suprimida, jd que o autor assim o fez na segunda versao) Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) PRIMEIRO ATO. (Cendrio com um fundo de cortinas cinzentas. Uma escada, Mobilidrio escasso e sébrio. O Dr. Olegario, um paralitico recente ¢ grisatho, esté na sua cadeira de rodas. Impulsiona a cadeira de um extremo a outro do paleo, e vice-versa. Excitagao continua, Num canto da cena, D. Aninka, de preto, sentada numa poltrona, esté perpetuamente enrolando um paninho, D. Aninka, mde do Dr. Olegarto, é uma dotda pacifica, Laz em penumbra. Sentada num degrau da escada, esté uma menina de dez anos, com um vestido curto, bem acima do joelho, e sempre com as maos eruzadas sobre 0 sexo, Luz vertical sobre a crianga, Esta é uma figura que s6 existe na imaginagdo doentia do puralitico. No decorrer dos trés atos, ela aparece nos grandes momentos de crise) (A ‘menina atravessa o palco e sai de cena) OLEGARIO — Inézia! Inézia! — (a eviada, entrando) Pronto, dowtor OLEGARIO — (parando a cadeira no meio do patco) Entao? O que hi? INEZIA — Nada, doutor, nada de novo. Quer dizer. OLEGARIO - (impaciente) Quer dizer 0 qué? Alguém telefonou para minha mulher? INEZIA — Telefonaram, doutor. A manicura, perguntando se podia vir hoje. D. Lidia disse que hoje no. Marcou para amanha. OLE RIO = (atento) Quem mais? INEZIA — A modista. D. Lidia foi la. Ah, também telefonou uma voz de mulher que eu aio conhege. OLEGARIO - (com 0 maior interesse) Hum! Voz de mulher, mesmo? (aproxina-se) ‘Tem certeza que ndo era voz de homem disfargada? EIA — (hesitante) Nio. Pelo menos, nfo parecia Nilo, era vor de mulher, sim OLEGARIO — Voce perguntou quem queria falar com ela? (Inézia desconcerta-se) OLEGARIO - (rispido) Eu nao the disse para perguntar sempre? INEZIA — (contrita) Disse sim, doutor, mas. OLEGARIO ~ (interrompendo) Mas... Qué? Ela recebeu alguma carta? INEZIA — (tirando do avental) So um telegrama. OLEGARIO - (curioso) Um telegrama, Deixe ver. EZIA — (entregunly o telegramu) Se D. Lidia sub! OLEGARIO ~ (abre o telegrama e 0 Ié com certa ansiedade. Ainda othos fitos no papel) Souber, como? Sé se voc’ disser. Voeé ou Umberto, Mas ndo caia nessa asneira! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) INEZIA — (com precipitacdo) Deus me livre! Eu no! (nowiro tom) Mas, iis vezes, fico assim. OLEGARIO ~ Fica assim... (noutro tom) Nio pago mais a vooé para fazer essas coisas? Pode ir. Nao, espere... Espere um pouco. (E absirai-se, relendo o telegrama) ZIA — Est na hora da comida de D. Aninha, OLEGARIO — (distraido com 0 telegrama, custa a falar) Esta? (nowtro tom) Entao dé e... Chame Umberto, INEZIA - Sim, senhor. (Inézia sai) OLEGARIO — (pensativo, relendo o telegrama) Engragado... UIMRERTO — (entra E magn, meio sintetro, cam unifarme de chafer) Me chamou, doutor? Eu jé vinha pra ca... OLEGARIO — (embolsando o ‘elegrama) O que é que ha? A senhora saiu, aonde foi? UMBERTO ~ (mascando qualquer coisa) Saiu depois do almogo. Mais ou menos umas duas horas. Voltou as cinco horas, OLEGARIO — (irritado) Que diabo ¢ isso que vocé esti mastigando? Que mania! UMBERTO — (parando de mastigar) Nada, Um palito de fosforo. OLEGARIO —E vocé viu o qué? (com desconfianca) Eu acho que vocé me esconde as coisas! Eu pago para obter informagdes! (nouiro tom) Bla foi aonde? UMBERTO — A modista OLEGARIO~ A modista. Qual? TIMRERTO — Aquela francesa, Aquelat OLEGARIO - Sim, sim, sei. Continue. UMBERTO — Demorou li. OLEGARIO — (em movimento) Quanto tempo? UMBERTO — Quase uma hora. OLEGARIO ~ (parando a cadeira. De costas para Umberto) Uma hora? UMBERTO - Sim, senhor. OLEGARIO - E depoi UMBERTO — Depois foi a Confeitaria Colombo, La demorou mais ou menos uma hora emeia, Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — (surpreso) Uma hora e meia na Colombo! (nowiro tom) Sentou-se sozinha? UMBERTO — Nao, Encontrou ld trés mogas. Duas vém aqui: D. Barbara e D. Sandra. A outra niio conhego. (Entra Inézia) INEZIA ~ Vou dar comida 4 D. Aninha. Na iltima ver ela niio quis. OLEGARIO = O qué? Nao quis? (impaciente) Ah, bom, bom! Insista, que diabo! (ézia vai dar comida dD. Aninha, Olegdrio ucompanha com os olhos a menina que passa. Umberto otha, displicente, um detathe qualquer do mobilidrio) OLEGARIO — Entio, como foi? Sentou-se com D. Barbara e D. Sandra. UIMRERTO ~ (displicentie) #86? OLEGARIO ~ (rispido) Que $9, 0 qu’? O que & que houve na Colombo? Quero saber tudo! UMBERTO - 1 fiz. como o senor disse: fiquei vendo se cla olhava para fora. OLEGARIO — (com atengdo concemrada) E entio? UMBERTO — (com certa intencdo) Bem, de vez em quando ela olhava para fora, (A ‘menina sobe @ escada e desaparece. Maguinalmente, Olegario impulsiona um pouco a cadeira de rodas. Para, ficando de costas para Umherto) OLEGARIO - D. Lidia estava othando para alguém, para alguém... "Particularmente" Olhar sem querer, por acaso, cla podia olhar, Mas eu quero saber € - se olhava pata alguém com insisténcia, UMBERTO — (depois de wm siléncio, em voz baixa) Na calgada estava aquele sujeito oxo. OLEGARIO = (virando a cadeira para Umberto com espanto) Que sujeito coxo & esse? UMBERTO ~ £ um que sempre est na caleada quando D. Lidia vai Colombo. OLEGARIO — (ainda exspantado) E & coxo? Voeé nunca me falou dele! Mas que espécie do sujeito? UMBERTO — Anda mancando, Tem uma perma mais eurta do que a outra, OLEGARIO - (apreensiva) D. Lidia olha para ele? UMBERTO ~ (sintético) Nao OLEGARIO ~ (nowtro tom, com certo alivio) Ele olha para D. Lidia? UMBERTO ~ Nao. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO ~ (espantado) Entao o que é que tem de notavel esse camarada? UMBERTO ~ (confidencial) Eu acho que ele nio regula bem. Fica andando de um lado para outro, o tempo todo, e ndo sai disso. Mancando, OLE RIO — (rispido) Que & que eu tenho com isso? Tenho aalguma coisa? UMBERTO — Falei nele por falar. Me lembrei dele. (Olegdrio olha Umberto demoradamente, Pausa incdmoda. Umberto desvia o othar) OLEGARIO ~ (incisive) Voce quer saber de uma coisa? Nao, nada, (noutro tom) Quer dizer que D. Lidia ndo olhou para ninguém - particularmente? UMBERTO ~ Nio, nao olhou para ninguém - particularmente, Quer dizer. OLEGARIO — (curioso) Quer dizer 0 qué? Continue! Pode falar! UMBERTO — (com intenao) Ela estava olhando de vez em quando.. OLEGARIO — Para quem? Diga! UMBERTO ~ (com descaramento) Para mim, OLEGARIO — (espantado) Para voc’? (noutro tom) Para vor’, hem?! UMBERTO ~ (cinico) Para mim OLEGARIO - (ofhando para Umberto) Para voc8...E quando saiu... (interrompe-se) Mas espere um pouco... (em tom especial) Vocé disse que D. Lidia olhou para voci A — (nervosa, voltando com 0 prato) Doutor, outra ver. ela nfo quer comer! OLEGARIO ~ (com irritagdo) Nao quer... Vocé precisa ter paciéneia — que diabo! INEZIA — (nervosa) Eu tenho, doutor, eu tenho! Mas se ela nao quer? OLEGARIO - (saturado) Entio espere um pouco e depois veja se ela come! INEZIA ~ (com resignacdo) Vou esperar, doutor, (num lamento) Ma fago!... Inézia volta para junto de D. Aninha) do que eu OLEGARIO — (impaciente) Até perdi o fio da historia! (lembrando-se) Entao D. Lidia olhou para o senhor? Vocé esti querendo insinuar alguma coisa, seu. UMBERTO - (escandalizado) Nada, doutor! Que 0 qué! OLEGARIO — Tome cuidado! Vocé nao me conhecel... UMBERTO ~ (ressentido) Eu sei-me colocar no meu lugar, doutor. Conhego a minha posigao. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — Venha ci. Othe bem para mim! (Pausa. Os dois se olham) UMBERTO — (com desplante) Estou olhando. OLEGARIO — (encarando Umberto) Ainda agora vocé me falou, sem que, nem pra que, nohomem coxo, Vooé esti-me querendo fazer de idiota? UMBERTO ~ (firma 0 olhar) Nao. Me lembrei porque... (haivando a voz) As pessoas coxas me impressionam muito! OLEGARIO ~ (irritate) Vooé pia ou no pica de mascar essa porcaria? Tire isso da boca! UMBERTO — (parando ¢ olhando para o teto) Eu estava distraido! OLEGARIO ~ (cam suspeita) Paton comegand a desconfiar que voc nha & chafer. F quando cismo uma coisa, dficilmente erro! UMBERTO — (entre misterioso e sardénico) O senhor acha entdo que eu no sou... Chofer? (nowtro tom) Quer ver a minha carteira profissional? OLEGARIO ~ (insistente) Vocé nao tem cara de chofer!... (Aproxima-se Inéz nervosa, com 0 prato) INEZIA — Nao adianta, doutor! Ela no quer outta vez! OLEGARIO — (com irritaciia) Se cla mio quer, que é que en vou fazer? (saturado) Nao precisa tentar mais. Depois eu falo com minha mulher. (inézia sai) OLEGARIO ~ (irrituio) Essa "zinha" ndo serve nem pata dar comida & minha mae! (noutro tom, voltando-se para Umberto) Olhe aqui, Umberto: se vocé arranjar uma coisa positiva, uma carta, por exemplo - eu dou a voce cinco mil cruzeiros. Sem discutir, UMBERTO - Fique descansado, Dr. Olegirio, Nao era preciso dinheiro... Mesmo sem dinheiro OLEGARIO- (impaciente) Eu sei eu se... Mas dou um conto de res. Est owvindo? UMBERTO - Esti bem, Dr. Olegatio. E s6? OLEGARIO — £. sé. Pode ir. Nao, espere. Na Colombo, minha mulher ndo encontrou nonhum conhecide conhecide homem? UMBERTO - Nao. Nao vi cumprimentar nenhum homem. OLEGARIO Tem reparado se otham muito para minha rmuther na rua? UMBERTO - (hesifante) O senhor sabe como ¢. OLEGARIO — (noutro tom) Entio 0 tal coxo é velho? UMBERTO - £, doutor. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — Esta bem, pode ir. (Umberto sai) OLEGARIO ~ (sozinho, impulsionando a cadeira) ‘Tem; desearamento esse malandro... (Mudanga de lus VOZ INTERIOR — (microfone) E cu falando sozinho! Sera isso um sintoma de loueura? OLEGARIO — Homem manco. VOZ INTERIOR — (microfone) Nao pode ser! Um louco ndo pergunta a si mesmo: Serei um louco? OLEGARIO — Mas seri que esse imbecil pensa que Lidia quer alguma coisa com ele? chafer VOZ. INTERIOR — (mierafane) Muitas mulheres achariam honita, amar v OLEGARIO~ Ah! VOZ INTERIOR — (microfone) Eu devo estar doente da imaginagao, para admit isso, VOZ INTERIOR ~ (microfone) La vem ela outra vez. Nao me larga. (Refere-se @ menina, que volta debaixo do foco luminoso. Inézia desce a escada. Volta a luz normal) OLEGARIO — Inézia! (Inézia se aproxima) Nao apareceu nenhum homem me procurando? INEZIA — Nao, doutor OLEGARIO ~ Estou esperando um camavada, Quando ele chegat, mande entiar. E veja se arranja alguma informagao ‘itil. Voc’ e Umberto so dois fracassos! Pago a voeés e quando acaba ndo sei de nada, continuo na mesma, Voeés precisam dar um jeito nisso. INEZIA — Gustificancdo-ce) Mas. é que nia tem havido nada, dontor! Se hauvesse, 9 gente diria! OLEGARIO (sardénico) "Nao tem havido nada!" Sei li se no tem havido nada? (saturado) Esta bem, esta bem! (Inézia sai. Entra Lidia, Lindo tipo de mulher. Muito Jovem e vestida com gosto) LIDIA -_D. Aninha nto quis a comida, mou fiho? Inézia me disse! OLEGARIO — (com mau humor) E. dar um jeito nisso. jo quis. Nao quis agora, nem antes. Vocé precisa LIDIA - (admirada) Eu? Mas que jeito voce quer que eu dé? OLEGARIO ~ fle mas humor) Que jeito, ora... Vooe porta inte diabo! Mas nao. Larga tudo na mao da criada. aise mais = que Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) LIDIA — (magoada) "Larga tudo na mio da criada”, nfio! Eu nio posso fazer mais do que fago, OLEGARIO - (irénico) Ab, nto pode!.. até bom. (noutro tom) O que eu acho & que voeé, enfim, devia-se lembrar que ela é minha mie! LiDIA — (com veeméncia) Voce pensa entdo que se ela néo fosse sua mae eu estaria sempre em cima’? (noutro fom, suplicante) Eu ja disse a vocé, no disse, que as veres nilo posso, fico nervosa? (com angiistia) Ab, Olegivio! Tratar uma pessoa que nio compreende, que passa todo tempo enrolando um paninho... (exasperagdo) Aquele pano que ela cnrola, aquele pano! OLEGARIO ~ (sardénico) Acho engragado vocé. "Fico nervosa.” (outro rom) Esti ‘bem. Um dia vocé vai ver minha mie morrer, ai, de inanig@io! Nao come! LIDIA — (oom angieria) Pelo menos, Oleghrin, pelo menos diga o que quer que en faga Sua mae ndo quer comer: o que eu devo fazer? Diga! OLEGARIO ~ (depois de uma pausa) Esti bem. Vamos esperar entiio. Daqui a pouco voeé tenta outra vez LIDIA — Bem, meu filho, Vou mudar de roupa. OLEGARIO — Acho graga dessa mania que voeé tem de me chamar "meu filho" LiDIA — (com um susprro) Ha algum mal nisso?! OLEGARIO — Mal, mal, no ha. (outro tom) Mas eu nao gosto. Isso devia bastar! LADIA ~ /conwindd-se) Voos agora we abonreee eon aguntalines colkns|-Aliyane0 Deas! OLEGARIO - (impaciente) Nao & se aborrecer! (sardénico) Interessante isso, Vocé nio quis ter filhos, e quando acaba cisma de ser maternal comigo! LIDIA. (rerunen) Parece mentia. Tua prrque en disse "men filha. Faté heen. Nunca mais chamarei vocé de meu filho. OLEGARIO ~ Isso ¢ um vicio em vocd. Outra coisa. . LIDIA - 0 qué? OLEGARIO~ Vocé dou para me chamar ‘meu filho” depois que eu fiquei assim, Foi, sim! LIDIA — Que bobagem, Vlegario! OLEGARIO - Bobagem, eu sei! (Siléncio. Os dois se olham. Olegério impulsiona a cadeira para mais perto de Lidia) LIDIA - Ah, uma coisa, Olegério. Por que é que vocé nao chama outro médico? Mamie disse que tem um tao bom. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — Nio interessa. Para que outro médico? Jé nao tenho um? LIDIA — Mas esse que vocé tem - esse seu amigo - é to esquisito! Dizem até que bobel... OLEGARIO — (impaciente) "Bebe!" E 0 que & que tem isso? Pois olhe. Ele é melhor do que muitos que andam por ai. E, além disso, minha filha, basta que eu tenha confianga nele. Fu'é que sou o doente, nao &? LiDIA - Nio custa! certo, Olegirio, esti certo. Mas voeé podia chamar outro ~ s6 pra ver! OLEGARIO — (com exasperacdo) B, Mas ndo quero! Basta um ¢ eu estou satisfeito com o meu! LIDIA — (resignada) Fsti hem OLEGARIO ~ (sombrio) E,além disso, nao adianta, Eu sei que nunca fearei bom. © médico disse. LIDIA - Que nao fica bom 0 qué! Vo também &, Oleg: OLEGARIO — (recordando se) Antos que eu me esquega: vocd tom um primo Rodolfo, no tem? LIDIA — Tenho sim, Ele até assistiu ao nosso casamento. OLEGARIO — "Assistiu a0 nosso casamento". (entregando 0 telegrama) Ele mandou esse telegrama. LIDIA — (queixosa) Vocé sempre controlando as minhas coisas! Eu no me incomodo. Sé acho que vocé no tem confianga - nenhuma mesmo - em mim. OLEGARIO - (irdnico) Sei disso. Mas eu quero que vocé me explique: por que cargas gna ele tom que da satisfagaes a vos? LIDIA ~ (surpresa) Satisfagoes a mim?! OLEGARIO ~ (incisivo) Satisfagdes a vocg, sim! "Parto amanhd." O que & que voce tem com isso? LIDIA — (nervosa) Oma, Olegiio, ra! (outro tom) Sou a nica parente que ele tem no Rio! Eu, mame, Mauricio ¢ vocé, OLEGARIO ~ (desabrido) bu, néo! Tenha paciencia! Nao sou parente dos primos de minha mulher. LIDIA - Esté bem, Olegitio, esté bem. OLEGARIO ~ (com irritagao) E no minimo esse cavalheiro vai-se instalar aqui! LIDIA ~ 4 comegou vocé outra vez! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO ~ fincisivo) Outra vez, sim! (patético) Que posso fazer sendio comegar sempre? LIDIA — Mas que foi que eu fiz, meu Deus? Aponte uma coisa qualquer, a0 menos isso. (enérgica) Vocé ndo tem nada, nada, contra mim, Vooé no vé que isso até fica feio para voee - feio? OLEGARIO — (irritado) *Feio"! O que & que é “feio"? Como é imbecil a gente dizer "fica feio"! LIDIA — (desafiante) Entao acuse. Pronto! Acuse! Acuse, mas no me faga sofrer a toa! Vocé nao me acusa porque nfo pode. Minha vida no tem mistérios. Todo mundo sabe ‘© que eu fago. OLFGARIO — Vooé me desafia, hem? LIDIA - (enérgica) Desafto, sim! OLEGARIO — (sardénico) Me desafia! Diz "minha vida nao tem mistérios"! E eu ando atrés de vocé o tempo todo? Sei Id pra quem vocé olha na rua? Estou dentro de voce para saber 0 que voeé sente, 0 que voeé sonha? LIDIA — (suspirando, dolorosa) Ah, Olegario! OLEGARIO — Voce otha para mim com um olhar de martir! Pois bem. Agora mesmo, neste minuto, vocé pode estarse lembrando de um amigo, de um conhecido ou desconhecido. Até de um transeunte, Pode estar desejando uma aventura na vida, A vida da mulher honesta & tio vazia! E eu sei disso! Sei! LIDIA — (nervosa e revoltada) Vocé esti louco, Olegario, doido! Entio, até isso! OLEGARIO — (repetindo) "Minha vida nao tem mistérios"! Que ¢ entdo o seu passado, sendio um mistério? LIDIA - (dolorosa) Mas que é que tem meu passado, meu Deus? OLEGARIO — (sombrio) Eu sei ké 0 que voe€ andou fazendo antes de mim? LADIA ~ Anes niio importa! $6 vale o que eu fiz depois de vocd! OLEGARIO — (vemente) Esti enganada! Afinal de contas, eu me casei também com 0 passado de minha mulher. LIDIA - (iromica) Ab, casou-se? Pois olhe, meu filho. OLEGARIO - (interrompendo) Parou? LIDIA - Vocé fala no meu passado. Alguma vez jé the perguntei pelo seu? JA the falei na sua primeira muther!? OLEGARIO ~ E nem fale! Nunca, ouviu? Eu no quero, nao admito! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) LIDIA - Ji sei, Olegario, nunca mais falarei OLEGARIO — Agora vou-lhe fazer uma pergunta 4 queima-roupa, Vocé me responde teri coragem? LIDIA - Conforme. Sei li se essa pergunta... Enfim... OLEGARIO — (enigmatic) Voce. LIDIA ~ (desafiante) Ande, Esti com medo? OLEGARIO - 0 que quero dizer é simples até demais, Eu admito que vocé no fez nada. Que no pecou... Ainda, LIDIA ~ (irénica) Ainda? Que mais? OLEGARIO — (noutro tom) Admitamos que nio houve nada - até agora. Mas... E a sua imaginagio? LIDIA - (espantada) O que & que vocé quer dizer com isso? OLEGARIO - Quero dizer 0 seguinte: seus atos podem ser purissimos. Mas seu ponsamento nem semprs - seu ponsamento, seu conhe. Quem é que vai moralizar © pensamento? O sonho? Voeé, talvez! LIDIA - fromca) Bonito, bonito, Continue. OLEGARIO — Esta bem, vou continuar. Quando um homem vé uma mulher no meio dda rua, beija essa mulher em pensamento, poe nua, viola, Isso tudo num segundo, numa fiagZo de segundo sei li! Mas seja como for — a imaginagao do homen faz 0 diabo! LIDIA ~ (revoltada) Que é que tem. OLEGARIO - Se um homem é assim - qualquer homem - por que sera diferente a mulher? Se en posso vibrar cam sma hela mulher, por que nia viheari voce com sim belo homem? Mesmo que esse homem seja um transeunte? LiDIA - Quer dizer que eu devo... "vibrar"?! OLEGARIO ~ (impaciente) Exclamagies no adiantam, Nao provam nada, Posso continuar? LIDIA = (contendo-se) Ah, meu Deus, pode. OLEGARIO — Esses rapazes de praia que as mulheres véem na rua, Voce vai me convencer que ninea vin um que a impressionasse? Vai? Um rapar moreno, forte, de costas grandes, assim. (jaz respectivamente o gesto) Vocé nunca beijou em pensamento uum homem desses? Hem? Beijou, claro! Nao tem ninguém, ninguém tomando conta de sua imaginayao! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) LIDIA — Serd possivel? (com ironia) Estou gostando de ver vocé, to descritivo, tio minucioso... Um rapaz forte, moreno... (explodinda) Vové niio vé que isso ¢ infame? Nao descontfia? Indecente! OLEGARIO ~ (sardénico) Infame. Isso & . m adjetivo, :m reles adjetivo. Infame, & boa... LIDIA - Parece incrivel! OLEGARIO ~ (encarando-a com raiva) Eu queria encostar voes na parede, ouviu? LIDIA - (contendo-se) Estou ouvindo.. OLEGARIO ~ (continuando) Mas de maneira que voce no pudesse fugir. Depois, eu faria uma série de perguntas, uma atras da outta. LIDIA — (amarga) Fago idéia que perguntas! OLEGARIO — (continuando) Perguntas coneretas, exigindo respostas também coneretas. Por exemplo, eu perguntaria, ... "Voce sempre me foi fiel em pensamento?" Voeé me responderia... LIDIA - (dolorosa) Paciéncia, mew Devs, paciéncia! OLEGARIO — (cruel) Responderia: "Nao. Jé fui infiel em pensamento,” Entio eu perguntaria: "Mas com quem?" E voce: "Com um rapaz", ow entdo... Ah, € mesmo! "Com Mauricio". Esta ai: Mauricio! LIDIA - Vocé nao achou exemplo melhor? Logo meu irmio! OLEGARIO — Irmio o qué? Inmao de criago nao € nada, no é coisa nenhuma! E eu ainda ponho ele aqui dentro, mora aqui, passa o dia todo em casa, nlo sai! Qualquer dia acabo com isso, vocé vai ver! LIDIA ~ (caninien) Ulm marida dizenda essns coisas! Sugerindal Metenda coisas na cabeca da mulher. Eu acabo, nem sei! (Inézia entra. Sobe a escada. Olegério acompanta-a com a vista, demonstrando uma irtagao doentia) OLEGARIO — Mas essa mulher nio para de descei e subir essa escadal Sera possivel? LIDIA — Ora, Olegirio! Ela esti fazendo o servigo dela! OLEGARIO — Esté bem. (outro tom) Voce é mulher de um paralitico. LIDIA — (numa explosto) Voce nao devia falar tanto na sua paralisia! Isso 6 quase - quase uma chantagem! Vocé me Ianga no rosta, todas os dias, essa paralisia! F eu no posso reagir! OLEGARIO ~ fadmirady) Come nie pode veagi? Reaja, ora esa! LIDIA — (exaltada) Nio posso! Seria 0 camulo que eu quisesse ficar em igualdade de condigdes com vocé - eu sa, vocé doente. Nao me faga dizer coisas que eu ndo quero! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) Nio me obrigue a ser cruel! Pelo amor que vocé tem... (Umberto entra. Vé Dr. Olegario com D. Lidia e péra, indeciso. Desce a menina, sob a luz vertical. Olegdrio olha-a. Depois, olha para Umberto) OLEGARIO — Que hi, Umberto? UMBERTO — Coisa sem importancia, Eu volto depois. OLEGARIO — Nao, espere. (para Lidia) Depois eu falo com voce. LIDIA — Entao cu vou dar comida a D. Aninha. OLEGARIO — (impaciente) Ja, nao. Depois, depois. (Lidia sobe a escada) OLEGARIO ~ (para Umberto) Que é que houve, Umberto? UMBERTO — (aproximando-se cheio de mistério) O homem esta a. OLEGARIO — (adimirado) O homem quem? UMBERTO — 0 coxo da Colombo. 0 tal que manca. OLEGARIO — fespantado) Mas esté aqui, onde? UMBERTO — Quer dizer, esti na esquina, Esté li hi uns dez minutos. RIO — Mas vocé no disse que cle nao olha para D. Lidia, nem D. Lidia para UMBERTO ~ Disse. OLEGARIO - Entdo 0 que é que eu tenho com ele? Que importa que ele esteja na ‘esquina ou deixe de estar? Nds temos alguma coisa com isso? UMBERTO — Nao Mas OLEGARIO— Mas 0 qué? Voce tem cada uma! UMBERTO ~ Achei que devia dizer ao senhor! Um manco que a gente encontra sempre, na Colombo, aparecendo agora, aqui, na esquina! OLEGARIO pensativo) Ele 6 velho? Muito velho? UMBERTO — No. E mogo. OLFGARIO ~ espantado) Mogo 0 qué! Vocé no me disse que era vetho? UMBERTO — Fu disse? Entdo me enganei! E mogo! Sé tem aquele defeito na perma. No mais, € muito bein parecido. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — (contendo a irritacdo) Esti bom. Entio fique controlando esse camarada, Veja se ele se aproxima aqui de casa. Outra coisa, Talvez vocé pudesse dar um jeito de falar com ele - quem sabe? UMBERTO - £. Talvez. Vou ver, doutor. Falo com ele, sim. ZA — (de passagem) Estéo batendo ai, (Sai Inézia) OLEGARIO - (aproxima a cadeira de Umberto) Bem, Umberto, Fique vendo esse camarada e depois venha-me contar o que houve. UMBERTO — Esta bem, doutor. OLEGARIO — Pode ir. (Umberto sai. Eniram Inézia e Joel. Joel, rapaz pobre; terno sebento; servilismo abjeto; mesuras. Inézia sai) OLEGARIO — (com certa impaciéncia) E entio? JOEL ~ Fiz 0 que o senhor mandou. Fal som o Samp: OLEGARIO — (profindamente interessado) E 0 que é que cle disse? Senta! JOEL ~ Virias coisas, doutor. OLEGARIO — Conte tudo, tudo, direitinho. Senio, jé sabe, Deixo de me interessar por voce. (advertindo) Voce quer subir no eseritorio, nao quer? JOEL — Quero sim, doutor. OLEGARIO ~ E que & que © Sampaio disse? (com rancor) Ordinario como & esse sujeito! Uma alma de pintano! Ele se abriu? JOEL ~ Se abriu! O Sampaio falava de vez em quando. OLRGARIO — (covern) F. coma & que da onten vez. vacé disse que nmnea tinha envide nada sobre a minha esposa no esctitério? JOEL - (atrapathado) Fiquei sem jeito, doutor. Foi por isso que no contei logo. (pausa) O Sampaio disse que sim. OLEGARIO — (rispido) Que sim, 0 qué? Pale claramente. JOEL = (ainda atrapathado) Ble disse que D. Lidia devia ter um... Amante. OLEGARIO — (desabrido) Devia ter ou tem? (Passos na escada, Lidia desce) LIDIA - Boa noite! JOEL ~ Boa noite! (Lid sui) Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO — fiendo acompanhado Lidia com o othar) Olha, Joel, ou voc’ deixa de retic@ncias ou... Bem, Quero saber o que ele disse. Pode repetir até os termos, Eu nio me incomodo. JOEL — (mais resoluto) Bom. Ble disse que ela tem. Foi o que ele disse. Tem! OLEGARIO — (sombrto) Disse que tem! E nao disse quem era? Ble deve saber nomes, enderegos, o diabo. JOEL ~ Eu perguntei para verse ele me dizia quem. OLEGARIO - (sombrio) E enti JOEL — Nao quis dizer. Fiz forga, mas nfo adiantou. O senhor sabe que ele fez um poema e datilografou? OLEGARIO — (sem compreender imediatamente) Que histéria é essa? JOEL ~ Uns versos mexendo com sua senhora, Bobagem, doutor! OLEGARIO — (exasperado, contendo-se) Pode contar. Va contando! JOEL — Também falou... Pausa) OLEGARIO — (saturado) Va contando. JOEL ~ ... Do Grajati. © Sampaio foi vizinho de sua mulher, de sua senhora, no Grajat. OLEGARIO - (impaciente) Eu sei. E foi por isso que mandei vocé conversar com ele. JOEL — (um pouco retusante) Ble me contou o apeido de sua senhora no bai. OLEGARIO ~ (concentrando-se) Apelido? E que apelido era esse? JOEL. = (depnis de uma pasa, baiva) VR OLEGARIO ~ (surpreso) V-8, por qué? Que negocio é esse de V-8? JOEL — Foi o que Sampaio disse. Que todo mundo chamava D. Lidia assim, no Grajai OLEGARIO — (abalado) V-8? (pausa) Mas por que V-8, ora essa? JOEL ~ Chamavam D. Lidia de V-8 porque - diz o Sampaio - namorava. Era muito namoradeira, OLRGARIO - (como que em monélogo) Marido de V8... outro tom) Naturalmente, todo 0 escritério sabe disso. Ou nao sabe? JOEL = (em jeito) Sabe. E um pessoal incrivel. Quando ela vai a caixa buscar dinheiro, ficam comentando: "A V-8 veio ai." E coisas parecidas. Comenta-se, também, que a sogra do senhor era lavadeira... (Umberto entra. Detém-se a uma certa distancia do Dr. Olegario) Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO ~ (com irritacdo) O que ¢ que voce quer, Umberto? UMBERTO — (aproximando-se) Aquele negécio. OLEGARIO — (sem compreender) Que negécio? UMBERTO — Do homem manco, Ele foi embora, OLEGARIO — (lembrando-se) E vocé falou com ele? UMBERTO — Pois é. Nao pude. Quando voltei, depois de falar com o senhor, cle ja tinha ido embora. OLEGARIO — (encerrando 0 assunto) Entao esti bem, Pode ir. VOZ. INTERIOR — (microfone) V-& V-8 (Limherto sai Entra Lidia e sohe a eseada Joel e Olegério acompanham-na com 0 olhar) OLEGARIO ~ (sombrio, voltando-se para Joel) Agora uma coisa, Joel. Eu quero avisar a yocé 0 seguinte: tudo 0 que dizem de minha mulher é uma infimia. Minha mulher é honestissima - esté ouvindo? JOEL - Estou. Eu sei, doutor. OLEGARIO — (categérico) Portanto, no se lembre de dizer que eu mandei voce saber isso ou aquilo, Se voce andar comentando, nao sera negocio para voce, compreende? JOEL — Eu sei, doutor Olegitio. RIO ~ faproximando-se) O que € que voré tinha pedido? Passar para o lugar do Sampaio, nao &? JOEL — (vacilante) Eu estava querendo, Ou a eaixa? O senhor & quem sabe. Isso é com © senhor. OLEGARIO - (pensativo) Vai para o lugar do Sampaio. JOEL — (animado) Obrigado, muito obrigado! OLEGARIO - (ameagador) Esse negdcio do poema niio ¢ invengao sua para tirar 0 lugar do homem mais depressa? JOEL = (atarantado) Jaro, doutor! Ele recitou pra mim. (levantando-se) Entéio, muito obrigado, doutor Olegario. (nowtro tom) Ah, outra coisa que 0 Sampaio disse que 0 senhor é um... Predestinado. OLEGARIO — Predestinado! Como? JOEL ~ Quer dizer, predestinady porque a sua primeita mulher ndo Ihe fyi fel. E agora a segunda também nao ¢ fiel... Disse também que D. Lidia. Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) OLEGARIO - (explodindo, agressive) E.D. Lidia o qué?... mpulsiona a eadetra para Junto de Joel, que recua alarmado) Lidia 0 qué?... (siléncio) Voc’ chegou cheio de dedos — com mil e uma reficéncias - e agora diz as coisas espontaneamente! Quem mandou voe8 dizer isso? Falar na minha primeira mulher? JOEL — (alarmado) Mas 0 que € isso, doutor Olegario, que & isso? OLEGARIO - (com asco) Vocé é um canalhazinho. Fazer um papel desses! JOEL ~ (justificando-se) Mas foi o senor que mandou! S6 fiz 0 que o senhor mandou. OLEGARIO — (gritando) Nao fizesse! (olha para a escada e baixa a voz) Vocd era obrigado a fazer, era? (rancoraso) Bom, formickivel, chamar - na minha cara - a minha mulher de V-8, hem? JOEL, — (asaraniado) Bu 86 estava repetindo 6 que os outros OLEGARIO — (com voz surda) Os outros!... (ameacador) Eu devia te arrebentar a cara! (com desprezo) Mas ndio farei isso. Voce sairia daqui dizendo 0 diabo! Pode ir. Eu voubotar vocé no lugar do Sampaio. Mas suma! JOEL ~ Boa noite, doutor! Boa noite! (Joel sai, apressado. Inézi pela direita. Olegério acompanka a com 0 othar) passa ¢ desaparece L{DIA — (descendo a escada) O homem ja saiu, Olegirio? Vou buscar a comida de sua mae. Tomara que ela coma agora. OLEGARIO — (com ar de fadliga) Come, sim. A questao é ter paciéncia VOZ INTERIOR ~ (microfone) Canalha! Canalha! (Lidia faz mengau ile sair) OLEGARIO ~ Lidia! (Lidia volta-se. Olegdrio impulsiona a cadeira na direcdo de Lidia) OLRGARIO— (parando junto de Lidia) Venha me-faer wm praca de companhia LIDIA — Vento, sim. Vou s6 buscar a comida de D. Aninha. OLEGARIO — Entao ande, (fz manobra com a cadeira, para vird-la) (Lidia observa 0 movimento) LIDIA - (com nervos irepidantes) Voc® sabe 0 que me deixa nervosa? E quando vos ira a cadcira, OLEGARIO — (admirado) Deixa nervosa, por que? LIDIA - (com certa angiistia) Nao sei, Bobagem! OLEGARIO~ firritade) Aly, VOZ INTERIOR — (microfone) Eu devia ter quebrado a cara daquele... (Impulsiona a cadeira, afustando-se de Lidia. Esta, por um momento, acompanha, com 0 olhar, 0 Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) marido com uma expressdo de édio. Sai em seguida. Entra Inézia com wm telegrama na mao) INEZIA — (inerrompendo © pensamento de Olegério) Telegrams para o senor, doutor! OLEGARIO ~ Para mim? (Inézia entrega o telegrama ¢ sat. Ulegario abre 0 telegrama e o Ié com profunda atencao. Lidia entra com a comida de D. Aninha) LIDIA — Vamos ver se ela come, Olegirio. (Lidia fica dando comida a Dona Aninha, dle costas paru a platéia, Olegirio aprosima a cudeira de Lidia e D. Aninha) OLEGARIO - (com amargura) Logo que eu fiquei doente, voc’ nao saia de junto de mim 0 dia todo, Andava triste, no usava batom. Agora... (amargo) Pinta-se. Vai i Colombo. Todos os dias sai, Vocé me visita apenas. So vem quando chamo. LIDIA — (nervosa) Ora, Olegario, que ¢ isso? OLEGARIO ~ (com irritagdo crescente) Eu sei! Voce esti sempre arranjando pretextos para nfo ficar aqui! "Vou mudar de roupa! "Preciso ver a comida, "Tenho que ir Id dentro". Passa comigo cinco minutos - assim mesmo por obrigacao, LIDIA — (sempre dando comida a D. Aninha) Eu até tenho modo do vir aquil Voed se aborrece e cu me martirizo. Vocé nio sabe como isso ¢ horrivel! OLEGARIO — (com angustia) Voce diz: “Isso € horrivel!" E pensa que eu ndo sofro, talver? Tenho um inferno aqui dentro, LIDIA — (sempre de costas) Mas eu tenho culpa, Olegério? Tenho? Vocé tem raiva de mim, como se eu fosse culpada! Meu Deus! (com dogura e tristecu) Fui eu que fiz sua doenga? (Olegdrio vira a cadeira e a impulsiona até a ouira extremidade do palco. Lidia tem um olhar intraduzivel para a cadeira. Olegario volta para junto de Lidia e Dona Aninha) OLEGARIO = (ernel) V8! LIDIA ~ (uirando-se, rapida) 0 qué?! OLEGARIO — (com rancor e com voz surda) V-8! V-8, sim! Nao adianta olhar para mim dessa maneira. (com escérnio) V-8! No Grajad era assim que todo 0 mundo chamava vocé. Ou vai dizer que ndo? LIDIA = (desesperada) Vocé esté vendo? E por isso que cu evito vir aqui! Para no ‘ouvir o que vocé me diz! Para nfo aguentar seus citimes! OLEGARIO ~ (com insisténcia cruel) Mas chamavam ou nao chamavam vocé de V-8? LIDIA - (sem the dar atengdo as palavras) Engragado, vocé nao era assim! OLEGARIO ~ (obcecado) V-8! (Lidia vira-se para olha-lo com absoluto desprezo, Olegario esta de costas para a platéia) Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com) LIDIA - (com voz surda) Continue dizendo V-8! Continue! OLEGARIO — (cinico) Vocé quer saber de uma coisa? Eu acho que a fidelidade devia ser uma virtude facultativa. LiDIA - (com desprezo) Desistiu de me chamar de V-8? OLEGARIO - (continuando, cinico) Vocé nio acha que seria negécio para vocé e para todas as mulheres? Que a fidelidade fosse uma virtude facultativa? A mulher seria fiel ‘ou nao, segundo as suas disposigdes de cada dia. (sardénico) Voce com o direito ~ de ser infiel. Que beleza! (Lidia volta-se para D. Aninha, ficando de costas para u platéia) OLEGARIO — (perverso) Nao diz nada? (Lidia, em siléncio. Olegdrio mete a mao no bolso. Tira o telegrama. Lé para si) OLEGARIO ~ (cam intoncta) Po ten a ler! am telegrama que voc daria tudo para LIDIA - (cortante) Nao me interessa! OLEGARIO - (positivo) Isso é 0 que voce pensa! (provocador) Se voce soubesse 0 que diz esse telegrama! Faga uma idgia! LIDIA — (desabrida) Nao fago idéia nenhuma! OLEGARIO — (enigmdtico) Sabe quem sofreu um acidente? Imagine!?. LIDIA - (vira-se para Olegdrio. Otha-o) Quem? OLEGARIO ~ (com ufetucdv) Coitado! Umi desastie de automsvel - veja vocé! Ficou ‘com as duas pernas esmagadas! LIDIA ~ (contendo-se) Mas quem foi? OLRGARIO — (cardénica) Ents nic desconfion ainda? LIDIA - (nervosa) Desconfiar de que, Olegrio? Diga! OLEGARIO — (cruel) Quem ficou com as pernas esmagadas!... (O pano comeca a descer lentamente) OLEGARIO — (gritando) Foi ele! Ele, © seu amante! Ficou com as duas pemas cesmagadast. LIDIA ~ (num sopro de vor Nao! Naot. OLEGARIO — Seu amante! Seu amante! (riso de louco) (Lidia cai de joethos, aos pés de Olegario, chorando como uma alucinada) FIM DO PRIMEIRO ATO Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

Você também pode gostar