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peMmesoupe bes SSS SOTHONOOSVA ad vValddad OCUVNaAd rg angi wn INTRODUGAG lon Maviliy de Carvally > 1 LIBERAL. Hui liberal; entio a liberdade era nova no pafs, estava nas ayes de todos, mas no nas leis, ndo nas idéias pratic np porler era tudo: fui liberal.” Assim comeca uma das mais famosas, e certamente a mais bem escrita, profissdes de fé da bistéria politica do Brasil. Embora ninguém até hoje te- tiha conseguido provar sua autenticidadel, ela tem todas as condicdes de plausibilidade. Antes de se tornar o principal teérico do Regresso conserva- dor de 1837, matéria da segunda parte da profissio de fé, Vasconcelos foi um liberal tipico do Primeiro Reinado. Inteligéncia privilegiada, orador eficien- {e pela concisao e temido pelo sarcasmo, trabalhador absessivo, legislador fecundo, foi figura marcante da oposigio parlamentar no perfodo em que 0 sistema representativo dava entre nés os primeiros ¢ inseguros passos. Embora mais conhecido pela atuacio no Regresso, seu papel ni foi menos importante na fase liberal. Foi nesta tiltima que escreveu sua obra mais * Para a realizagio deste trabalho foi indispensdvel a assisténcia de Patricia Sou- za Lima. } José Pedro Xavier da Veiga e Joaquim Nabuco parecem ter sido os primeiros a cité-la, ambos sem indicar a fonte. O primeiro 0 fez na biografia de Vasconcelos inclutda nas Bpbemérides mineiras (1664-1897), vol. I, pp. 201-9, publicadas em 1897. Nabuco ci- tou-a em Une eutadista do Império, cuja primeira edigo € também de 1897. Depois deles, todos os bidgrafos de Vasconcelos a repetem, também sem referencia, Inclusive Octavio Tarquinio de Sousa, autor da mais completa ¢ mais bem pesquisada biografia de Vascon- celos, publicada em 1957. Parte provavel de discurso pronunciado entre 1837 e 1838, cla so pode ser localizada nem nos Anais da Cimara e do Senado, nem nos jornais da época, importante, a Carta aas venboreseleitores da provincia de Minas Gerais [ver a p. 58 deste volume], nosso primeiro manifesto liberal e documento precioso de nosso aprendizado democratico. Além da Carta, restaram ainda da fase libe- ral vérios discursos transcritos nos Anais da Ciimara. Juntos, esses documen- +08 nos fornecem um retrato do liberalismo do Primeiro Reinado em sua ver- tente predominante, que, além de Vasconcelos, inclufa Evaristo da Veiga, Feijé, Vergueiro, Goncalves Ledo, Paula Souza, Odorico Mendes e outros. COMECO IMPROVAVEL Bernardo Pereira de Vasconcelos descendia de familia de jurisconsultos © advogados atuantes aquém e além-mar. O pai, Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos, portugués criado no Brasil, formou-se em leis em Coimbra, foi advogado em Ouro Preto e procurador da Fazenda, terminando a vida em 1812 como juiz criminal no Rio de Janeiro”, Foi amigo de Tomas Anténio Gonzaga e Claudio Manuel da Costa, tendo sido o primeiro seu padrinho de casamento. Suspeito de envolvimento na Inconfidéacia Mineira, foi preso ¢ interrogado, mas considerado inocente. Em 1792, quando a cabeca de Tix radentes dominava a praca, espetada na ponta de um poste, pronunciou, como primeiro vereador, um discurso, que nio Ihe faz honra, de condenagio aos inconfidentes, entre os quais estavam seus dois amigos. A mae, Maria do Carmo Barradas, era filha de advogado formado em Coimbra. Dos tios ma- ternos de Vasconcelos, um foi ministro em Portugal, outro foi reitor da Uni- versidade de Coimbra, embora brasileiros de nascimento. A familia era exem- plo perleito da integragao entre as elites burocréticas da metrépole e da co lénia. Seu irmio mais velho continuow a tradig&o e seguiu carreira militar em Portugal. Chegou a ministro da Guerra e foi agraciado com titulo de nobreza. Vasconcelos nasceu em Ouro Preto em 1795, Em 1807, aos doze anos, © pai tentou mandé-lo a Lisboa para estudar sob a guarda dos tios. O navio foi apresado pelos ingleses (os franceses ocupavam Portugal) e levado a In- glaterra, de onde 0 menino regrestou ao Brasil. Em 1813, j& morto o pai, conseguiu chegar a Portugal e matricular-se em Coimbra, onde outros 230) as, sirvoxme sobretude da excelente alia ile Ge * Para essas informagées biogrél tavio Tarquinio de Sousa, Remards Pein ee Vavenerla. Comaulleren view da Veiga (1897), Sisson (1948), clohin Aranitage (191-0, R, Wala (1AM), S dle Vasconeelox (1963), Vohian Monteira (1927) « Aliveul Valacla (1YA0), Bernardo Pereira de Vasconcelos nasceu em 1796 na cidade de Ouro Preto: seu pai, amigo de Tomas AntOnio Gonzaga e Claudio Manuel dla Costa, chegou a ser preso por suspeita de envolvimento na Inconfidéncia Mineira. [Johann Moritz Rugendas, Vila Rica (detalhe). In: Malerische Reise in Brasilien, Paris: Engelmann & Cie., 1855] |A Universidade de Coimbra foi o principal centro de formagio da elite politica imperial, mas Vasconcelos, que ali havia se formado em 1819, critican “rango dos seus compéndios”, conchuindo: "Saf um barbaro: foi-me preciso até desaprender". u brasileiros freqiientavam cursos. Dos vinte colegas de turma, alguns se des- tacariam, como ele, na politica: Costa Carvalho ¢ Joao Braulio Muniz, fu- turos membros da regéncia trina, Caetano Maria Lopes Gama e Manuel Anténio Galvao, futuros ministros. Contempordneos foram Pedro de Aratijo Lima, futuro regente, Manuel Alves Branco, Miguel Calmon, Francisco G. A. Montezuma, futuros ministros, e Candido José de Araiijo Viana, futuro tutor de Pedro II. Coimbra foi o viveiro des politicos do Primeiro Reinado e da Regéncia. A maior importancia da temporada em Coimbra talvez tenha sido a pos- sibilidade de travar relagdes com outros brasileiros. Do ensino na Univer- sidade, Vasconcelos falou muito mal quando se discutiu na Assembléia Ge- ral a criagao dos cursos juridicos brasileiros [p. 39]. “Estudei direito pabli- co naquela universidade”, disse, “e por fim saf um bérbaro: foi-me preciso até desaprender”. Na Universidade de Coimbra, continuow, ensinavam-se as doutrinas mais at surdas porque estava isolada do mundo cientifico: “Ali no se admitem correspondéncias com outras academias, ali ndo se confe- Fem os graus senio iqueles que estudaram o ranco dos seus compéndios”. Depois da formatura, que se deu em 1819, e apés répida temporada com 08 tios ilustres em Lisboa, voltou ao Brasil em 1820, aos 25 anos de idade. Sua vida foi obscura até a estréia como deputado geral na primeira legislatura, em 1826, Foi juiz de fora em Guaratingueté, Sao Paulo, e foi nomeado de- sembargador da Relagio do Maranhao, cargo que nao chegou a ocupar. Mas desde 1824 sua carreia politica jé estava delineada. Nesse ano foi eleito de- putado geral por Minas, sem dtivida gragas a influéncia da famflia em Ouro Preto. Em 1826, iniciou a publicagio do Universal e jé participava do Conse- Iho do Governo de Minas. A imprensa, a tribuna e o governo foram as ocupagdes a que se dedi- cou até a morte, em 1850, causada pela primeira epidemia de febre amarela no Rio. Vitima de duenga de coluna que o atormentou desde 1827, levou-o & paralisia e 0 afastou do casamento, parecia tentar compensar o sofrimen- to ea solidao dedicando-se obsessivamente ao debate ¢ & ago politica. Vas- concelos foi politico 2m tempo integral; respirava e transpirava politica. Foi deputado geral de 1826 até 1837, senador de 1838 até a morte, conselheiro de Estado de 1842 também até a morte, ministro da Fazenda em 1831-32, ministro da Justiga 2 do Império de 1837 a 1839, ministro do Império em 1840, sem falar nos cargos ocupados no governo mineiro e na constante ati- vidade jornalistica que na época era complemento indispensavel da atuagéo politica. 12 A LIBERDADE QUE AINDA NAO ERA O deputado Vasconcelos chegou ao Rio de Janeiro no inicio de abril de 1826. As cdmaras abriam em maio e a sessiio deveria durar quatro meses. Era a primeira legislatura do novo pais, a se instalar dois anos apés a disso- lucio da Constituinte. O ambiente politico era de tensa expectativa. A lua de-mel do pafs com d. Pedro I jé acabara. A dissolugio da Constituinte cau- sara impacto traumético entre os liberais e levara a revolta dos pernambucanos liderados por frei Caneca. O argumento do carmelita para justificar a revolt era irrespondivel: a dissalugo quebrara o pacto social ¢ liberara as partes, contratantes dos compromissos assumidos. A Constituigio outorgada era ile- gfrima porque tivera origem em poder que nao tinha delegagio nacional para fazé-la. Daia revolta, Daf também a repressio violenta nas mos de comissbes, militares, esse “invento infernal” na expresso de Vasconcelos. Em sua Car- tax eleitores, 0 proprio deputado pintou em cores sombrias 0 ambiente po- rico do Rio. Sucumbira a liberdade de imprensa, “o mais precioso direito do homem’, jornalistas eram perseguidos, as comissdes militares passavam por cima das leis na repressio a movimentos rebeldes. Como conseqiiéncia, “nao poucos brasileiros tinham desesperado de verem arraigar-se entre nds instituigées liberais”. Particularmente, duvidava-se que a nova Camara pu- desse enfrentar os ministros e punir seus crimes. ‘As Caras abriram em 6 de maio. A dos deputados contava cem mem- bros, a maioria composta de juizes, padres ¢ militares. Varios tinham sido colegas de Vasconcelos em Coimbra, como Araiijo Lima e Miguel Calmon, alguns tinham participado das Cortes de Lisboa, como Vergueiro Feij6, outros tinham feito parte da Constituinte brasileira de 1823, notando-se, no entanto, a ausfncia dos Andradas, ainda no exilio. Entre os deputados mais, coahecidos, estavam José Clemente Pereira e Gongalves Ledo, militantes da Independéncia. Para a maioria, no entanto, af incluido Vasconcelos, era a primeira vez que participavam de uma Assembléia Legislativa. Tinham que aprender tudo sobre seu funcionamento, ¢ assim o pafs como um todo tinha que aprender a praticar o sistema representativo. ‘VASCONCELOS, ORADOR: Do deputado algo timido e desajeitado no inicio, Vasconcelos logo se rransformou no orador mais brilhante da Camara e na primeira voz da opo- sco. Sao abundantes os testemunhos sobre sua atuagio na primeira legis- 3 latura. Os mais interessantes, inclusive por virem de dois estrangeiros, sio 0 do historiador John Armitage e do reverendo Walsh. Armitage, em sua Histéria do Brasil aliema: "A mancira por que aadogao do sistema represen- tativo desenvolveu as faculdades intelectuais deste individuo, o Mirabeau do Brasil, causa seguramente o maior espanto”. E segue dizendo que seu talen- 10 56 se revelou apés a eleigio para deputado: “A datar deste periodo parece que um novo principio comegou a animar sua existéncia, ¢ noite e dia foram por ele consagrados ao estudo da ciéncia administrativa. [..] O orador difuso e sem nexo de 1825 tinha-se tornado, dois anos depois, tio elogiiente e tio sarodstico, ¢ havia apresentado um tio grande desenvolvimento do talento de discutir, que nenhum outro membro da casa Ihe podia ser comparado: € quando, levado pelo entusiasmo ou incitado pela paixto, dava largas a suas emogées, a sua figura decrépita e curvada clevava-se, qual a de um génio protetor, a sua maior altura; os olhos animavam-se de nove com todo o seu pristino lustre, e nas feicdes de sen arrugaco e cadavérico semblante brilha- vam por momentos a mocidade renovada ¢ a inteligéncia’. Octavio Tarquinio julga que as observacdes sobre a “figura decrépita e ccurvada” representam um retrato de alguns anos mais tarde, embora jé se apre- sentassem, & época, sintomas da doenga da coluna, Walsh, que conheceu © deputado em 1828-29, nao men rendo visitou Vascancelos em Out do famoso, considerado por seus compatriotas 0 Franklin ou o Adams do Brasil”, Segundo Walsh, Vasconcelos era “baixo, atarracado, aproximada- mente 45 anos, bastante corpulento, aparéncia de forte determinacio, cor ona tio grande degeneragao fisica. O reve- Preto. Procurou-o porque era “deputa~ amarelada, olhos negros, libio inferior saliente, abundancia de cabelos pre- tos encaracolados #0 redor do rosto”. Mesmo sem ter aparéncia de decrépito, © deputado parecen ao reverendo doze anos mais velho do que era, um ates- tado dos efeitos da doenga. Ao revé-lo no Rio, encantou-se com a simplici- dade da sua casa ¢ de seus hébitos. Encontrou-0 comendo pio com ché em companhia de outres deputados mineiros, em mesa sem toalha, sem pratos nem talheres, Pareciam um grupo de trabalhadores comuns da Inglaterra “Aqueles legisladores”, observou o reverendo, “[...] nio pareciam ter a mini- 5 John Armitage, Hetdriado Brasil, Belo HorizontelSko Paulo, hatiaia/Edusp, 1981, pp. 1746 4 R. Walsh, Notias do Braal, Belo Horizonte/Sto Paulo, Hatiaia/Edusp, 1985. p. 2M. 14 i ‘A Camara dos Deputados abriu a primeira legislatura do novo pats, em maio de 1828, ‘mum ambiente de grande tensio: a lua-de-mel do povo com d. Pedro I jé havia terminado. [Recinto da Camara dov Deputados. In: Rev. R. Walsh, Notices of Braz in 1828 ‘and 1829. Londres: Frederick Westley and A. H. Davis, 1830] primeiro mandato: do deputado algo timido e desajeitado no inicio, Vasconcelos logo se transformou no orador mais brilhante da Camara e na primeira voz da oposigio liberal. ma consciéncia de que em sua refeigéo humilde e frugal ndo eram menos nos do que se estivessem cercados de jguarias servidas em pratos”’, Walsh acompanhou Vasconcelos 4 Camara, sem divida para conferir 0s dotes oratérios do “famoso orador, lider da voz popular do Brasil”, do Mi- rabeau de que fala Armitage. Tratava-se da sessio de 7 de abril de 1829, em que se discutia a resposta a “Fala do trono”. As galerias estavam, como sem- pre, cheias de espectadores (as do Senado estavam sempre vazias). Surpreen- deu-se com as boss maneiras dos parlamentares, elogio nao pequeno vindo de um inglés. Quanto a Vasconcelos, impressionou-o mais a precisio légica © a agudeza de seu raciocinio, ponto em que “nao havia igual na Camara”. Como Armitage, anota que 0 orador comegava os discursos de maneira des- graciosa mas se transfigurava fisicamente a medida que se entusiasmava. Um testemunho brasileiro é 0 de Nabuco de Araijo, transmitido ao fi- Iho, Joaquim Nabuco. Segundo esse iiltimo, os dois acontecimentos intelec- tuais da época eram a pena de Evaristo da Veiga, na Aurora Fluminense, € a palavra de Vasconcelos na Camara. O jovem José Tomas Nabuco, estudan- te no Rio & época, ia A Camara para ouvir os deputados e a figura de Vas- concelos gravou-se para sempre em sila meméria. Impressionou-o sobretu- do, ¢ aqui entra a memGéria de alguns anos mais tarde, quando Vasconcelos, ia paralitico, sé podia falar sentado, a capacidade de superar a deficiéncia ft- sica valorizando © gesto € a palavra. O futuro senador conservaria como modelo a lembransa do “busto do grande Vasconcelos, chumbado pela pa- ralisia na sua curul, mas dominando dela com um sarcasmo, uma pausa, um Jampejo de olhar, a Camara suspensa e maravilhada”®, Os Anais da Camara da época atestam a intensa atividade de Vasconce- los, que falava em quase todas as sessdes, discursando, aparteando, apresen- tando projetos e emendas, polemizando sempre, pois finha “a bossa da com- batividade”, na expressio de Xavier da Veiga. Os testemunhos sdo também undnimes em anotar sua predilegao pelo uso da ironia e do sarcasmo como armas retéricas. Xavier da Veiga fala em sua “ironia sutil eferina”. Varias vezes os Anais registram a hilaridade causada por seus discursos. No Primeiro Rei- nado, a vitima predileta de seus ataques eram os ministros de Pedro I, mui- tos pouco afeitos 2 oratéria e ao sistema parlamentar de governo. Além de admirado, Vasconcelos tornou-se um orador temido pelos adversérios. Mais 5 Idem, p. 225, Joaquim Nabuco, Um etadstado Inpero, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1975, p. 48, 16 tarde, seus inimigos criaram a expresso “o Vasconcelos caiu-lhe em cima”, para indicar que alguém fora atrozmente caluniado. VASCONCELOS, LIBERAL ‘A atuago parlamentar de Vasconcelos nas sessBes de 1826 e 1827 vem descrita em pormenor por ele mesmo na Carta aw eleitores, escrita em dezem- bro de 1827. Daf até o 7 de abril de 1831, ela pode ser acompanhada pelos Anais da Camara, Sua preocupagao central foi colocar em funcionamento a mo- narquia representativa, acabar com os res{duos do absolutismo ainda vigen- tesna cabega e nas praticas do imperador, de seus ministros e até mesmo nas leis. Rio Branco diria mais tarde que ele fora “o verdadeiro mestre do parla- mentarismo no Brasil”. Joaquim Nabuco jé dissera antes que sua palavra e a pena de Evaristo tinham sido “a ferramenta simples, mas poderosa, que ¢s- culpe o primeiro esbogo do sistema parlamentar no Brasil””. Era uma luta por idéias mas também por regras, procedimentos ¢ rituais. Lembre-se que se tratava da primeira legislatura e que muitos deputados ig- noravam o ritual parlamentar. Discusses aparentemente irrelevantes — como saber se os deputados deviam descobrir-se quando o imperador estivesse presente, se o imperador devia tirar ou ndo a oroa, se os funciondrios do palicio podiam ter assento na Camara durante as sessdes de abertura e en- cerramento — adquiriam grande importancia, pois tinham a ver com a afir- mago da dignidade e do poder da Camara perante os poderes Moderador ¢ Executivo. Mas havia questdes mais profundas, como a da obrigatoriedade dos ministr de discutir na Camara as leis Funcamentais, como a de fixagao de forcas militares e a de aprovagio do orgamerto: de prestar contas de seus atos € serem por eles responsiveis, de apresentar relatérios, de atender a convocagées [pp. 45 e 192]. Do atrito com o ministro da Fazenda, Manuel Jacinto Nogueira da Gama, marqués de Baependi, que era também conse- Iheiro de Estado e senador por Minas, surgiu um panfleto do marqués acusan- do Vasconcelos de querer se recomendar aos eleitores posando de “univer- sal acusador de todas as autoridades e piiblicos empregados” (Sousa, p. 64). A resposta do deputado foi a Carta aov eleitores A Carta €, em si mesma, um documento revelador do espirito da época. Pela primeira ver, e jé na primeira legislatura, um representante da nagio pres- ? Idem, ibidem. 7 “CARTA ad Aos : Sanwouss Buarronss pa Prorix 7 Graass, 2 Escawra vate merrano Bernard» Pevvica do Vasconcelos, aoe! Sy we fa Trrocasrm, v0 Astse 25 Seah AA famosa Carta as senhores eleitors da provincia de Minas Gerais, publicada em 1828: pela primeira vez. um representante da naglo prestava contas aos seus eleitores. [Arquivo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro] 8 tava conta aos eleitores de seu trabalho e se submetia a seu julgamento. O exemplo s6 foi seguido mais tarde, na década de 1860, por Teéfilo Oréni, um. liberal que morreu liberal. Havia candura entre os deputados, um entusias- mo juvenil, uma crenga quase ingénua nas instituigdes representativas. Ao lado da defesa do sistema reprosentasive, outros temas relevantes ‘ocuparam 0 deputado. Merece ser novamente lembrado 6 discurso sabre a criagio das escolas superiores no Brasil, em que ¢ feita impiedosa critica da , Universidade de Coimbra [p. 39]. Surpreendente £.0.discursa conteretede fico de escravos pranunciado em 3 de julbo de : 827 em apoio ao tratado com a Inglaterra [p. 55]. Nele Vasconcelos esiabeloce q incompatbilidade a escravidio ¢ a uta pela liberdade e clogia a Inglaterra por sua intecve em favor.dos escrayos. Q discurso surpreende porque, pouco mais de or \ 8, Vasconcelos delendis, pera Wal ela voltada, segundo ele, para a defesa dos int Posteriormente, no perfodo do Regresso, Vasconcelos continuaria a defen- der o trafico, afirmando, para escandalo geral, que a Africa civilizava o Bra- sil [p. 268]. Uma possibilidade de explicagao do discurso de 3 de julho, uma declarago autenticamente liberal, digna de José Bonificio, é que ele todo seja uma grande ironia, no melhor estilo vasconceliano. Fm matéria econémica, oliberalismo de Vasconcelos era incontestavel. Veja-se o capitulo VIII da Carta, que contém uma das mais enfiticas defesas do laissez-faire. Declara-se contra todo tipo de protecionismos e monopélios estatais, A indsistria o6 precisa da direcio do interesse particular, mais ative emais inteligente do que o governo. Segundo cle, as artes, o comércio e a in. diistria 66 pedem ao governo 0 que Didgenes pediu a Alexandre, isto 6, que o Ihe tape o sol da liberdade. ~ Nia 26 de critica e demoligio viveu liberal Vasconcelos. Seu talento de legislador revelou-se sobretudo na esfera do judiciério, que desejava re- formar [p. 49]. Defendeu com entusiasmo a criagdo do juizado de paz, justi- ga cletiva a inglesa. Escreveu mesmo um livro dedicado a orientagéo dos novos juizes, criados por lei de 18278, Foi dele ainds a proposta de acabar com 0 Desembargo do Pago e substitui-lo pelo Tribunal Superior de Justica. Prin- cipalmente, foi dele o projeto do Cédigo Criminal, aprovado em 1830. Con- cebido sob a inspiracio do uiilitarismo de Bentharn, o novo eédigo representou enorme progresso cm relagio ao Livro V das Ordenagées do Reino, que ain- if ® Tratacse do Commentiriod lei dea jules de paz, publicado em Ouro Preto em 1829, 19 da vigia no pats. A qualidade da obra foi reconhecida no exterior, tendo ser~ vido de modelo para a legislagio de outros paises. TRANSICAO “Hoje, porém, é diverso 0 aspecto da sociedade: os princfpios democraticos tudo ganharam e muito comprometerain; a socieda~ de que entao corria risco pelo poder, corre agora risco pela desor ganizacdo e pela anarquia.” Assim continua a profissao de fé de Vasconcelos. A luta dos liberais e dos radicais contra d. Pedro 1 terminou em 7 de abril de 1831, quando 0 im- perador abdicou a0 trono brasileiro, Nesse dia, segundo a proclamagio feita pela Assembléia Geral, deu-se uma “revolugao gloriosa” e “comecou a nossa existéncia nacional; o Brasil sera dos brasileiros ¢ livre’. No trono senteva-se uma crianga de cinco anos, incapaz de governar. Junto com a responsabilidade de governar o pais, vieramn também as dificul- dades geradas pelos inevitaveis conflitos que seguem # qualquer revolucao politica. Os radicais, antes aliados dos liberais, agora passavam & oposicao, sentindo-se traidos 9elo curso dos acontecimentos. Por seu lado, os absolu- tistas nfo abandonaram 0 campo com a saida de Pedro I. A luta entre os trés grupos durou até a norte de Pedro I em 1834. ‘Aggrande tarefu da geragdo da Regéncia foi enfrentar esses confltos, al ‘guns dos quais se transformaram em sangrentas revolugdes. Quase tudo se- ria colocado em quest4o: a monarquia, a escravidao, a propria existéncia do pats. Os liberais do Primeiro Reinado viram-se de repente do outro lado da cerca, passando de opositores a governantes e tendo pela frente a oposigao dos radicais e dos restauradores, Dentre os liberais, a trajetévia mais marca- dae mais mareante foi sem diivida a de Vasconcelos. Durta com Fro Ele ainda estava em Minas quando se deu a abdicagao. Mas ja em 16 de julho entrava para 0 Ministério da Regéncia Trina Permanente na pasta da Fazenda, ao lado de Feij6, seu aliado nas lutas do Primeiro Reinado, que ‘ocupava a da Justiga. Assumiut em meio a uma das muitas revoltas do "povo ¢ tropa” no Rio de «Janeiro, estando a Camara em sessio permanente. Deu 20 © Cédigo Criminal aprovado em 1850 revelou o talento de Vasconcelos como coODIGO legislador: foi traduzido elogiado na Buropa, tendo inclusive servide de modelo emma para outros pafses. [Arquivo da Biblioesca Nacional, Rio de Janeiro} be Fayperis do Brad, declarou anos depois que seu fim traria “ter [Johann Moritz Rugendas, Nagres «fon de ca In: Malerivee Reive in Brauilen. Paris: Engelmann & Cie, 1835] logo todo o apoio a Feijé na luta pela manutengio da ordem. Os indicadores da nova posigio dos liberais ja apareciam na Expouigdo dev principias, de 23 de julho de 1851, redigida por Vasconcelos [p. 200]. A Expavigdo reflete a prega- «fo parlamentarista ao tentar dar unidade de pensamento e aco ao gover- no. Reflete também prinefpios do liberalismo politico ae afirmar o “incontras- tavel dreito de resistencia 8 opressio”, e a0 falat na “gloriosa revolugo” que buscou popularizar a monarquia e reconcilié-la com os prinefpios da "verda- deira liberdade"” Mas a nova postura politica jé se fazia também notar. A revolugio no pretendera subverter as instituigées, nem mudar a dinastia, nem consagrar a violencia e proclamar a anarquia. Sem perceber que se contradizia, a Expaui- so, depois de elogiar o diveito & resisténeia, passa a condenar a violéncia ea sedigio. A sedigio “é crime, qualquer que sea o pretexto de que se revista’, ‘Também a violéncie ¢ crime porque leva a perturbagao da ordem, que s6.um governo fraco pode tolerar, O governo promete abafar as facgSes para pre- servar a ordem publica. Nessa defesa do governo forte, havia pleno acordo de Vasconcelos com Feij6, Mas a Exposiedo continha algo mais substantive, a distingao entre dois tipos de resisténcia, a que defendia a “verdadeira liber- dade" e a que promovia a anarquia. A primeira era a dos liberais, a segunda, ‘a dos radicais. Nao se tratava af apenas de questio de ordem, era também questo de organizacao politica, monarquia ou repiblica, e de organizagio social, envolvendo a propriedade da terra e de escravos, Vasconcelos ¢ Feijé ficaram no governo até maio de 1852, quando am- bos foram etimplices de um projetado golpe de estado visando transformar a (Camara em Assembléia Nacional Constituinte e alijando o Senado, baluarte da resiauragio®. O golpe fracassou e a luta evoluiu para um compromisso segundo o qual os cieitores autorizariam a legislatura de 1854 a reformar al- guns pontos da Constituigéo. Depois de enfrentar com éxito, como vice-pre- sidente da provincia uma revolta militar caramuru em Minas Gerais [p.204], em 1833, Vasconcelos voltou, reeleito, & Camara, onde apresentow o projeto da reforma constitucional, transformado no Ato Adicional de 1834. O talen- to de legislador, jé r=velado no projeto do Cédigo Criminal, agora se aplica- va na reforma politica, ‘Tratava-se de etender as principais reclamagées liberai quicios absolutistas da Constituigo, sobretudo os caferentes ao poder Mo- yuanto aos res- ° Sobre esta tentativa de golpe, ver Octavio Tarqutnio de Sousa, Tres gulpes de cata- 20, Belo Horizonte/Sie Paulo, Itatiaia/Edusp, 1988, 22 derador, ¢ & centralizagio politica e administrativa. No que se refere ao tlti- mo ponto, propostas de uma monarquia federativa foram rejeitadas, mas 0 Ato Adicional introduziu elementos de federalismo na criagao das Assembléias Provinciais, em substituigao aos antigos Conselhos Gerais. As rendas provin- ciais foram também especificadas e separadas das nacionais. Os presidentes de provincia continuaram a ser nomeados, mas seu poder de nomeagio de Funcionarios publicos aumento. No que se refere ao poder Moderador, ele foi mantido, mas o Conselho de Estado foi aboliclo ¢ o chefe do governo pas- sou a ser eleito pelo voto popular. Vasconcelos manteve posig&o ambigua em relagio ao Ato. Autor do pro- jeto, lutou durante os debates contra posiedes exageradas, Particularmente interessante é seu discurso de 1" de julho de 1834 [p. 218], no qual compara a situagio brasileira com o federalismo nortc-americano e mostra a diferen- cada experiéncia histérica dos dois paises, concluindo pelo perigo de copiar as instituigées daquela repuiblica. O excesso de descentralizagao teria entre és efeitos desastrados como no México, onde resultou na guerra civil. A anar- quia ¢ a guerra civil seriam também entre nés a conseqiéneia de colocar a unio A mereé das provincias. Aparece ainda neste discurso um trago que j4 revela uma caracteristica conservadora do pensamento de Vasconcelos: aidéia de que as mudangas devem ser feitas lentamente, sem saltos, de maneira quase imperceptivel. Nko quer opor-se ao movimento do século, diz, mas nem por isso quer dar saltos que “em vez de fazer produzir os efeitos que a civilizagio espera, nos faré retrogradar”. Outro tema conservadar presente no diseurso 6a insisténcia em nao se perder de vista 0 “estadc de civilizagio” do pats. Ne- rnhuma reforma teré éxito se nao for adequada as cizcunstincias nacionais ‘Sao posigdes que lembram Burke, embora nao se encontre referéncia a esse tipico representante do pensamento conservador. INICIO DA SEPARAGAO Embora nao tenha renegado o Ato Adicional, Vasconcelos afirmou, cinco anos apés sa aprovacao, que as emendas ao projeto inicial fizeram-no re- cear que ele se transformasse na carta da anarquia (Sousa, p. 130), quando a idéia era fazer com que ele servisse para parar © carro revolucionério. De qualquer modo, fei a partir da aprovagio do Ato que Vasconcelos comesou a.afastar-se dos antigos companheiros moderades, sabretudo de Evaristo da Veiga e de Feijé. Enquanto os dois titimos se mantinham dentro do campo liberal, combatendo os radicais 8 esquerda e A direita, Vasconcelos orientou- 23 se cada ver mais para o campo conservador. Os ataques contra Evaristo ¢ sua Aurora Fluminense, a partic do Sete de Abril, jornal fundado em 1833 e tido como ligado a Vasconcelos, comesaram jd em 1854, estabelecendo-se, a par- tic dai, um acirrado debate entre os dois jornais. A Aurora passou a chamar ‘Vasconcelos de Proteu, a figura mitolégica que mudava de forma quando que- ria, Contra Fei, eles se tornaram mais acentuados depois de outubro de 1835, quando o padre assumiu a regéncia nica. Segundo Evaristo, a prépria guina- da de Vasconcelos seria devida a inveja e aversio que teria contra o padre!®, (O duclo entre Vasconcelos ¢ Feijé durowtaté a morte do tiltimo, em 1843. Foi um duclo de gigantes. Ambos fortes personalidades, ambos autoritérios ¢ indoméveis. © padre, um interiorano de costumes rigidos, reli fntegro, casmurro, pess tico. Vasconcelos, mais cosmopolita, pouco escrupuloso, intelig@ncia brilhante, grande orador, religioso por conveniéncia, quase rico, com grande habilida- de politica. O padre, preocupado com a ordem e a justica, e favordvel A abo- lig do tréfico, embora ele préprio fosse senhor de escravos. Vasconcelos, tam- bem em busca de governo forte, embora parlamentar, era cada vez mais um defensor do escravismo como fator indispensével para a economia nacional. (O duelo assumiu caracterfsticas draméticas gracas & precéria saide dos contendores. Vasconcelos jé era quase um paralitico desde 1834 e diseursa- va sentado. Feijé so ‘vera um ataque de paralisia as vésperas de tomar posse na Regéncia, agravado por um derrame logo apés a remtincia, que fez dele um hemiplégico. Em 1842, houve o titimo embate entre os dois, no Senado, ‘em torno do pracesso contra Peijé por sua participacao na revola liberal desse mesmo ano, Foi um duelo de paraltticos, de duas ruinas fisicas, mas também de dois gigantes que representavam dimensées fundamentais da luta politi cada época. Ironicamente, os dois seguiam, no vestir, modelos trocados. Se- gundo Vicira Fazenca, Fei vestia-se come o conservador e pragmatico Gui- zt, Vasconcelos, como o liberal e romantico Chateaubriand. de cardter sta, posses e talentos modestos, sem traquejo poli- ‘SOU REGRESSISTA “Come eniio quis, quero hoje servi-la [a sociedade], quero salvécla, por isso sou regressista. Néo sou trdnsfuga, nao aban- dono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua Fraqueza: " Aurora Fluminense, PA/08836, pp. 1-2. Pp. Diogo Anténio Feijé (acima) e Bernardo Pereira de Vasconcelos (8 direta) foram grandes aliados durante « Primeiro Reinado, mas acabaram se tornanda ferrenhos adversérios politicos apos a eleigao de Feijé para Regents, em 1836. Diamek Boh Fimady Is. Pua 427 s problemas de saiide acompanharam toda a carreira de Vasconcelos: com 0 passer dos anos sua ruina fisica acentuotce, ¢ sua assinatura tornou-se teépega [Assinaturas de Bernardo Persira de Vasconcelos em 1827 e 1847] 25 deixo-a no dia em que tao seguro € o seu triunfo que até o excesso a compromete. [...] Os perigos da sociedade variam, 0 vento das tempestades nem sempre é 0 mesmo: como hé de o politico, cego ¢ imutavel, servir o seu pais? Assim termina a profissio de fé de Vasconcelos, justificando sua passa- gem para o campo conservador, ou regressista, como dizia. A formulagio politica e ideolégica da nova posigio foi desenvolvida entre 1854 e 1837 Na regéncia de Feijé (1835-37), Vasconcelos jé assumiu a lideranga da oposicdo. O regente, a despeito de suas virtudes cfvicas, nao se diferenciava de Pedro I no que se refere ao autoritarismo e a incapacidade de ser um mo- narca constitucional e, muito menos, parlamentar, Sua vocacio era de presi- dente de repiiblice: nao se submetia & pratica de nomear ministros em con- cordancia com a opinido da Camara. Em menos de dois anos, sucederam-se quatro ministérios, encerrando-se sempre as sessSes com queixas do regente contra a Camara.e vice-versa. Vasconcelos atacou-o por esse lado. Junto com seus novos aliados, o mineiro Honério Hermeto, o baiano Miguel Calmon, colega de Coimbra o fluminense Rodrigues Torres, e 0 pernambucano Maciel ‘Monteiro, fustigava os ministros e cobrava do regente um governo parlamen- tar [p. 225]. No ano de 1837, a oposigao chegou mesmo a levantar a hipéte- se da maioridade de d. Pedro II, entéo com doze anos, como recurso para se livrar do regente. Paralelamente a critica ao autoritarismo de Feijé, e A medida que as reformas do Ato Adicional comegavam a fazer efeito, a oposigdo, Vasconce- los a frente, intensificou a campanha pela mudanga tanto do Ato, como dos Cédigos Criminal « de Processo, considerados focos de impunidade e de anar- quia e fatores da fragmentasao do pais. O debate comegou em 1835, quando foi criada comissdo da Camara para cuidar do assunto. Nem mesmo Evaristo era hostil a mudansa. Concordava que a reforma dos dois cédigos era recla- mada por todos os que tinham interesse na ordem e na felicidade puiblical!, Concordava mesmo, jé em 1835, com o que chamava de “Regresso curto ¢ racional” para corrigir as imprudéncias dos primeiros ensaios de liberdade. Vasconcelos, segundo ele, teria detectado com precisio essa necessidade, Per- dera-se, no entanto, por extremar as propostas regressistas, afastando por este modo 0s antigos aliados!?. 4 Aurora, 22/06:1835, p. 1 Aurora, 12/08°1835, pp. 1-3 26 Ha, no entanto, a partir de 1835, uma diferenga mais profunda entre Exaristo, ou Feij6, e Vasconcelos. Embora fossem todos proprietérios de es- ‘eravos, Vasconcelos tomou atitude cada vex mais clara em defesa do tratico e da eseravidao em nome do interesse nacional, enquanto os dois antigos com- panheiros de moderagéo julgavam necessario ir aes poucos substituindo 0 es- eaavo pelo trabalhador livre. Em agosto de 1835, Vasconcelos falou contra a lei de 1831 que proibira o trafico e disse ser a escravidao “acomodada aos nossos costumes, conveniente aos nossos interesses"", Quando o tréfico no for mais conveniente aos interesses paiblicos e particulares, acrescentou, es- tes serio seus mais pronunciados inimigos. Posigo semelhante tinha defen- dido, na virada do século, 0 bispo Azeredo Coutioho, e defenderia mais tar- de José de Alencar. Em 1843, Vasconcelos levou seu escravismo ao extre- mo, afirmando no Senado: “i uma verdade: a Africa tem civilizado a Améri- ca! Renuncio a todas as teorias [...] quero s6 0 positivismo dos fatos”4 (Sousa, p. 196). Bra a postura utilitéria e amoral diante da politica, de que Vascon- celos foi sempre acusado. Segundo seus inimigos, ole seria partidério de Bent- ham, 56 admitindo a moral dos interesses, o «til como tinico prinespio dire tor das agies* Com toda a probabilidade, Vasconcelos comegou por essa época a for- mular uma teoria do poder que ia além de desenhos juridicos e institucionais. ‘As turbuléncias da Regéncia the haviam sugerido que a ordem piiblica s6 poderia ser mantida se sustentada em pessoas que tivessem interesse material ‘em sua manuteng&o. O que Feijé fizera pragmaticamente, como ministro da Justiga, armando os proprietérios do Rio para hutar contra as revoltas mili- tares, Vasconcelos erigiu em filosofia politica. Em 1838, jé de nove no minis- tério, essas idéias aparecem na teoria da “classe conservadora”. Essa classe era composta “dos capitalistas, dos negociantes, dos homens industriosos, dos que se did com affiaco is artes e ciéncias: daqueles que nas maudangas repen- tinas tém tudo a perder, nada a ganhar"!S. Essa classe existiria em todos os paises. Apareceria sempre que o progresso atingisse ritmo exagerado, como na fase jacobina da Revolugio Francesa. Sua politica era a do “progresso 5 0 Sete de Abril, OO8/I835, pp. 1-2. 6 Octévio Tarquinio de Sousa, Bernarte Penna de Vasconcelos, Belo Horizonte/Sto Paulo, Itatiaia/FEdusp, 1988, p. 196. ° “O filosofiamo do ministro da Justiga”, Aurora Puuminense, 17/10/1838, pp. 1-2. 180 Sete de Abril, IINL/SS8, pp. 2-5. 27 ordenado”, sem inéreia, sem precipitagéo. No Brasil, cla fez pacificamente a Independéncia e evitou, apés 07 de abril, que a prépria patria se perdesse'® DE VOLTA AO GOVERNO Feij6, acossaclo por revoltas no Pars e no Rio Grande do Sul, eas tursas com a Camara, preferiu cenunciar. Pedro de Araijo Lima, ministro do Im- pério, assumiu a Regéncia, No melhor estilo parlamentarisia, Vasconcelos, como chefe da oposigdo, tornou-se a figura dominante do novo ministério (19 de setembro de 1837), no qual ocupou os eargos de ministro da Justiga e do Império. Junto com ele estavam dois colegas de Coimbra, 0 proprio regente ¢ Miguel Calmon, ninistro da Fazenda. Logo em 20 de setembro enviou cir- cular aos presidentes de provincia insistindo na necessidade de ter 0 gover no a forga necesséria para manter a ordem e a liberdade e cobrando de seus delegados obedigncia, lealdade e cooperagao [p. 242]. No ano seguinte, 1858, tomou posse nova legislatura de grande maioria conservadora. Nos quatro anos que durou, ela aprovou todas as grandes medidas do Regresso: a inter- pretagio do Ato Acicional (em 1840), a reforma do Cédigo de Processo Penal (em 1841) eo restabelecimento do Conselho de Estado (em 1841), Todas essas medidas tiveram a participago decisiva de Vasconcelos [p. 247], como mi= nistro ou senador (a partir de 1838), sobretudo as duas dltimas, que se origi- naram de projetos seus. Fora do campo politico, sua grande criagao como ministro foi o Colé- gio Pedro II, inaugurado em 1838. Deu-lhe atengio total. Supervisionow as obras de reforma co antigo seminario de Sao Joaquim, escreveu 0 regulae mento do nove colégio, ¢ fez 0 discurso de abertura das aulas em 25 de mar- 0 de 1838. Desde a discussao da eriagio dos cursos superiores, na década de 1820, Vasconcelos sempre se interessou pelo casino superior, médio e pri- nério. No caso do Colégio Pedro II, pensou-o como modelo para as escolas particulares ja existentes no Rio, convencido da superioridade do ensino Piblico, come deixou claro no discurso de inauguragao [p. 244]. Nao Ihe es- capava também, come homem das Luzes, a importéncia do saber, adepto que era do Iluminismo. No mesmo discurso encontra-se esta afirmaciéo absolu- tamente atual: “O suber é forga: e €v. exc. que vai sero moderador desta forga ircesistivel, desta condicao vital da sociedade moderna’ "6 0 Sete de Abril, O7N2BS8, p. 5 cc RELATORIO ™ REPARTIGAO DOS NEGOCIOS DO IMPERIO araxsextane ‘ ACTEMELRA GEBAL LEGIOLATIVA NA sessio ORDINARIA DE 1838. PELO BESPECTIVO MINISTRO B SECRETARIO DEESTADO ITERINO Bemarde Zoreia de Vesconcelles, gl RIO DE JANEIRO. NA TYPOGRAPHIA NACIONAL. 1838. inistro do Império: ¢ ex-liberal acabou tendo 1a sprovagio de todas as grandca medidae do Regresto. [Arquivo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro} No campo politico, o ministério teve que enfrentar uma nova revolta, a Sabinada, e nao conseguiu debelar a Farroupilha [p. 265]. Em seu relatério de ministro da Justiga em 1838, Vasconcelos insistiu na reforma do Cédigo Cri inadequado as nossas circunstdncias ¢ fonte de impunidade. Pediu também que a Camara modificasse o Ato Adicional. Talvex um tanto cinicamente, pro- meteu também continuar a luta contra o tréfico de escravos, A luta do gor verno teve pouco éxito, disse ele, porque “a ambigio do luero e a sede do ouro arrastam os homens”. Vasconcelos saiu do ministério em abril de 1839, $6 voltou mais uma vez ao governo em 1840, Nesse ano, osliberais deram o golpe politico da maio- ridade do imperador para tentar interromper o movimento do Regresco. Na tentativa de frustrar 0 golpe, 0 regente chamou para 0 ministério o politico mais temido da época, Vasconcelos. Este tentou adiar a Assembléia Geral, masa reagio foi grande, Os liberais reagiram, o povo invadiu as casas do par- lamento, os militares aderiram, e o jovem monarca aceitou a antecipacio. O ovo ministro permaneceu apenas nove horas no governo. Justificou-se de- pois, historianco os acontecimentos e dizendo ter sido contrério & maneira ilegal e inconstituc‘onal por que se fizera a maioridade. Nao era traidor nem inimigo de Pedro 11. Terminou a exposigao em seu estilo arrogante ¢ desa- fiador: “Venham sobre mim todos os males; ainda estou impenitente” [p. 262]. inal, que, embora obra sua, tradurida e elogiada na Buropa, se revelara DERROTA FISICA, VITORIA POLITICA A partir desta passagem-relampago pelo governo, provavelmente a mais, curta da histéria do pais, Vasconcelos nao mais voltou ao ministério. Seus bidgrafos nao explicam a razao do ostracismo, Provavelmente a raz3o tinha «ver com Aureliano Coutinho, presenga dominante nos primeiros anos do Segundo Reinado « grande desafeto de Vasconcelos, com quem tivera sévio atrito durante a Regéncial’. A oposigdo de Vasconcelos ao golpe da maiori- dade também nao deve ter servido de recomendacao perante 0 jovem monarca e seus dulicos. Seja como for, o velho batalhador continuou a luta no Senado € no recém-criado Conselho de Estado. Desses dois postos de combate ajuc "7 Ver a este respeite "A impostura de sr. Bernardo Pereita de Vasconcelos des mascarada”, panflero publicado em 1835 e atribuide a Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho. Reproduzido na Revista do Instituto Misiricoe Gzogrific Brasileiro, 65 (7), 1908, pp. 327-406, 30 dou 2 completar a legislagio do Regresso redigindo e defendendo os proje- tos da reforma do Cédigo de Processo Criminal e da eriagao do Conselbo de Estado. No ministério de 1841, que fez aprovar esses dois projetos, estava seu discfpule e continuador, Paulino José Soares de Sousa, futuro viseonde de Uruguai, o principal formulador do pensamento conservador brasileiro no século XIX8, Juntamente com a interpretagio de Ato Adiefonal, a reforma do Cédi- g0 de Processo foi um dos esteios da centralizacao politica do Segundo Rei- nado. Pelo efeito conjugado das duas leis, as provincias perderam jurisdigio sobre funciondrios da justica e da policia, que passaram a depender do mi- nistro da Justiga. Os jutzes de paz perderam grande parte de seu poder para 8 delegados de policia. Direta ou indiretamente, o ministro da Justiga no- meava e demitia desde o desembargador até o guarda da prisio. Centraliza- ‘glo excessiva que, no entanto, se revelou um instrumento eficaz nas maos dos governos. Em 1844, os liberais a usaram para cleger uma Camara esmaga- doramente situacionista. Outra contribuigdo importante de Vasconcelos no campo legislative Foi © projeto sobre sesmarias e imigracéo, apresen:ado ao Conselho de Estado em 1843 por ele e José Cesério de Miranda Ribeiro, sendo ele o relator. O projeto tramitou por dez anos no Congresso até se transformar na lei de terras de 1850. O pragmatismo de Vasconcelos na questo da escravidio af aparece com clareza. O projeto continha medidas destinadas a enfrentar um eventual rico, «eno mesme da esctayido, tornado provével pele sa, Usando idéias que E. G. Wakefield “importar trabalhadores pobres que substituissem os escrayas. A lei fracas- Sou, mas deixou mais um testemunho do deseortine politica de Vasconcelos. Aruina Fisica de Vasconcelos acentuava-se. A patalisia, inicialmente dos membros inferiores, expandia-se para os superiores. J nem conseguia redi- gir bithetes. A assinatura tornara-se trépega. Manuel de Aratijo Porto Ale- gre, 0 pintor e poeta, introdutor no Brasil da arte da caricatura que aprende- rana Franga, retratou com crueldade a desgraga fisica do Iider do Regresso, °8 Para avaliar a influéneia de Vasconcelos sobre Paulino, basta verificar 0 nime- 10 de citagdes do primeiro contidas no livro docile, Ensaio arbre o rit admintatrativo Por outro lado, tamanha era a confianca de Vasconcelos em Paulino que se dispunha a lerno Senado discursos escritos pelo disefpulo. Ver cata de Vasconcelos a Uraguai em 12/06/1846, Arquivo do visconde de Uruguai, lata 5, pasta 10, IHGB. 3 Vasconcelos fot duramenteerticade por sua guinada de liberal aregressiat, sendo alvo de una série de caricaturas quando ministro {[Caricaturas de Bernardo Pereira de Vasconcelos, ateibuidas a Manuel de Aratijo Porta Alegre, Lithographia de Briggs, . 1858-59, Arquivo da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro} 2038 00 sere ‘No primeiro desenho dla série ("Napoleoncellos visitanda o timulo do Sete", no alto da égina), Vasconcelos ¢ retratado como Napoledio Bonaparte, de muletas (aheio a seus sérios problemas de aa.ide), observando um grupo de escravos carregando um barr (ceferéncia aos barris tle excrementos utilizados na época como esgoto das residéncias) com 2 inserigéo: “Aqui jaz o 7 de abril” (dia da rentincia de d. Pedro Ie simbolo da vitéria politica dos lberais, assim como nome de jornal que propagava as idéias de Vasconcelos em sus fase pré-regressista) ‘A segunda caricatura ("Apoteose do Sete”) refere-se 20 mesmo tema: Vasconcelos, ‘mais wma vez apoiado sobre muletas, € acompanhado por dois deménios ao inferno, onde uma cadeira (de mimero 7) 0 aguarda — dela trovejando as palavras “imoralidade”, “pervervidade”, “esperteca”e “Tinuea” (malica). A estampa acima (“A escada de Jacé") mostra Vasconcelos deitado (@ frente), ‘sonhando com sitatrajet6ria pessoal: jovem, subindo ( direita) a escada que vai da terra a0 o6u, com um livro ¢ uma Ancora na mio, alusdo aos pures ideais do entio iniciante na politiea ejé mais velho (2 esquerda), como ministro do Regresso, voltando do céu cabisbaixo e envergoahade, escondends o resto com as mos. Na tikima caricatura da série (’Nabueo de Nosor’), Vasconcelos 6 retratado como ‘Nabucodonosor, antigo rei da Babilénin, vestindo ums roups. feita de moedas e notas do yuro, eercada de sacos de dinheiro ¢ ladeado por eseravos com a etiqueta de 100 (il ris) 1a pescogo (refertncia a um esciindalo da época, segundo 0 qual o ministro teria vendido escravos por aquele valor); abaixo, 0 verso "Escura faz qualquer estranha gléria (Camoes). 33 ——_—_____ em charges que José Antonio Soares de Souza data de 1838 ou 1839!9, Em. uma delas o chefe conservador € caricaturado em pose napolesnica, susten- tado em muletas, ventre protuberante, pernas atrofiadas, visitando o témulo do Sete de Abril, representado por um barril de detritos sustentado por trés escravos. Em outra caricatura, Vasconcelos, com o corpo deformado, apare- e¢ como Nabuco de Nosor, sentado em trono formado do mesmo barril de detritas e rodeado de eseravos. Apesar da savide precéria, a atuagio de Vasconcelos no Senado eno Con- selho de Estado continuava intensa, primeiro na oposigio, durante o qua- trignio liberal de 1844 « 1848, depois apoiando o ministério conservador de Olinda. Em 1850, chefiava o gabinete o visconde de Monte Alegre. No Mi- nistério dos Estrangeiros estava seu diseipulo Paulino José Soares de Sou- sa, na Justica, Eusébio de Queiroz, na Fazenda, o futuro visconde de Htabo- raf, Era. fina flor dos saquaremas. Os liberais de Pernambuco tinham ten- taco uma dltima revolta em 1848 ¢ foram derrotados. A vitéria do Regresso era total e ncla Vasconcelos desempenhara papel decisivo no campo politico « institucional, Nesse mesmo ano de 1850, 0 Rio de Janeiro foi visitado pela primeira epidemia de febre amarela. Vasconcelos, aos 56 anos de idade, foi sua vitima ‘mais ilustre, Era o dia 1° de maio. Seja pelo panico despertado pela epide- mia, seja pela baixa popularidade do morto, que um dia fora earregado nos ombros do povo, veja pelas duas razbes, a noticia da morte teve pouca reper- cusso ¢ 0 enterro no cemitério do Catumbi foi modesto. Gigante intelectual, na definigao de Nabuco, sustenticulo da monarquia representativa, teérico do liberalismo conservador em politica ¢ economia, construtor de instituig6es, mas também avesso & democracia e & igualdade social e insensivel & sorte dos escravos, tudo isso foi Vasconcelos. Admirado, temido e odiado, nao deixou ninguém indiferente & sua passagem. O pats também guardou sua marca nas instituigdes e no viés conservador de suas elites, expresso no ideal do progresso na ordem. '? José Antonic Soares de Souza, “Vasconcelos e aa eaticaturas”, Revista 3o Inet: (0 Histrio ¢ Geogrfics Brasileiro, v.210 (jan-mar. 1951), pp. 105-15. 34

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