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Arjun Appadurai * A VIDA SOCIAL DAS COISAS AS MERCADORIAS SOB UMA PERSPECTIVA CULTURAL © 1986 by Cambridge University Press Titulo original: The social life of things: commodities in cultural perspective © 2008 (iraduggo brasileira) EUUFF - Editora da Universidade Federal Fluminens= Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraf - Niteréi, RU - CEP 24220-900 Tel.: (21) 2629-5287 - Telefax (21) 2629-5288 - hnp:iwww.editora.uff.br E-mail: eduff@vm.uif.br E proibida a reprodugdi total ou parcial desta obra sem autorizacdo expressa da Editora. AGG ‘Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio -(CIP} Appadurai, Aqun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural/ Arjun Appadurai; Tradug3o de Agatha Bacelar - Niterdi: Editora da Univer- sidade Federal Fluminense. 2008. 399 p.: 21em, — (Colegio Antropologia ¢ Ciéncia Politica: 41) Inetui bibliografias. ISBN 987-85-228-0420-6 1. Antropologia. 2. Simbolismo. 3. Mercadoria. L Titulo, LI. Série. CDD _306 Normalizagao: Caroline Brito Revisdo: Icléia Freixinho e Tatiane de Andrade Braga Traduciio: Agatha Bacelar Revisdo iécnica:Leticia Veloso Capa: Mareos Antonio de Jesus Editoragdo eletrénica: Ana Caroline Feneira Diagramagéo: V Macedo de Souza Supervisito griifica: Kathia M. P. Macedo UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Vice-Reitor: Emmanuel Paiva de Andrade Pré-Reitor de Pesquisa e Pés-Graduacdao: Humberto Fernandes Machado Diretor da EAUFF: Mauro Romero Leal Passos Diretor da Divisdo de Editoragdo e Producdo: Ricardo Borges Diretora da Divisio de Desenvolvimento e Mercado: Luciene P. de Moraes tors Giada is Puccio mama. Assessora de Comunicagao e Eventos: Ana Paula Campos W I Iv VI vo SUMARIO AUTORES, 7 BREVE INTRODUCAO A EDICAO BRASILEIRA, 9 PREFACIO, 11 PARTE I - Por uma antropologia das coisas INTRODUCAO: , MERCADORIAS E A POLITICA DE VALOR, 15 Arjun Appadurai A BIOGRAFIA CULTURAL DAS COISAS: A MERCANTILIZACAO COMO PROCESSO, 89 igor Kopytoff PARTE II - Troca, consumo e exibicio DOIS TIPOS DE VALOR NAS ILHAS SALOMAO ORIENTAIS, 125 William H. Davenport RECEM-CHEGADOS AO MUNDO DOS BENS: O CONSUMO ENTRE OS GONDE MURIA, 143 Alfred Gell PARTE III - Prestigio, comemoracao e valor VARNA E 0 SURGIMENTO DA RIQUEZA. NA EUROPA PRE-HISTORICA, 181 Calin Renfrew MERCADORIAS SAGRADAS: A CIRCULACAO DE RELIQUIAS MEDIEVAIS, 217 Patrick Geary PARTE IV - Regimes de producio ¢ a sociologia da demanda TECELOES E NEGOCIANTES: A AUTENTICIDADE DE UM TAPETE ORIENTAL, 247 Brian Spooner VIE. QAT: MUDANCAS NA PRODUCAO E NO CONSUMO. DE UMA MERCADORIA QUASE-LEGAL NO NORDESTE DA AFRICA, 299 Lee V. Cassanelli PARTE V - Transformagées histéricas e cédigos mercantis IX AESTRUTURA DE UMA CRISE CULTURAL: PENSANDO SOBRE TECIDOS NA FRANCA ANTES E DEPOIS DA REVOLUCAO, 329 William M. Reddy X AS ORIGENS DO SWADESHI (INDUSTRIA DOMESTICA): TECIDOS E A SOCIEDADE INDIANA DE 1700 A 1930, 357 C. A. Bayly AUTORES ARJUN APPADURAL é associate professor de antropologia ¢ estudos sul-asiaticos na Universidade da Pensilvania. E 0 autor de Worship and conflict under colonial rule (1981). C. A. BAYLI é fellow do St. Catharine's College, na Universidade de Cambridge, ¢ smuts reader em Estudos do Commonwealth. Publicou The local roots of indian politics: Allahabad, 1880-1920 (1975) e Rulers, townsmen and bazaars: North Indian society in the age of British expansion, 1770-1870 (1983). LEE V. CASSANELLI é professor do Departamento de Histéria da Universidade da Pensilvania. B o autor de The shaping of somali society: reconstructing the history of a pastoral people (1982). WILLIAM H. DAVENPORT ensina antropologia na Universidade da Pensilvania, onde também é curador encarregado da Oceania no University Museum. Realizou pesquisa de campo na Jamaica e nas Iihas Salom4o e pesquisas histéricas sobre o Havai pré-europeu. Tem publicado diversos trabalhos sobre essas areas de estudos. PATRICK GEARY é associate professor de historia da Universidade da Florida. E 0 autor de Furta sacra: thefts of relics in the central middle ages (1978) ¢ Aristocracy in Provence: the Rhone Basin at the dawn of the carolingian age (1985). ALFRED GELL ensina antropologia social na Escola de Economia e Ciéncia Politica de Londres. E 0 autor de Metamorphosis of the cassowaries: umeda society, language and ritual (1975). IGOR KOPYTOFF, do Departamento de Antropologia da Universidade da Pensilvania, é co-editor (com Suzanne Miers) de Slavery in Africa: historical and anthropological perspectives (1977) e autor de Varieties of witchcraft: the social economy of secretpower (no prelo). WILLIAM M. REDDY € assistant professor de histéria na Universidade de Duke ¢ escreveu The rise of market culture: the textile trade and French society, 1750-1900 (1984). COLIN RENFREW €¢ Disney professor de arqueologia da Universidade de Cambridge e Fellow do St. John’s College. Eo autor de Problems in European prehistory (1979) e Approaches to social archaeology (1984). BRIAN SPOONER ensina no Departamento de Antropologia da Universidade da Pensilvania. Escreveu Ecology in development: a rationale for three-dimensional policy (1984). BREVE INTRODUCAO AEDICAO BRASILEIRA Laura Graziela Gomes A presente publicagao em lingua portuguesa da coletanea organizada por Arjun Appadurai (1988) vem completar e somar-se ao conjunto de textos académicos produzidos no contexto da antropologia anglo- americana ¢ francesa sobre 0 tema do Consumo e do consumismo modernos nas trés Ultimas décadas do século XX, mas que comega- ram a ser publicados entre nés somente nos ultimos anos (a partir de 2000).” Deve ser ressaltado que uma caracteristica fundamental desses textos, cuja publicacao no Brasil se iniciou com A ética romiintica e 0 espirito do consumismo moderno de Colin Campbell (2001), foi a retomada de uma perspectiva propriamente socioantropolégica sobre o fenémeno do consumo, que desautorizava algumas teses vigentes de carater trans- cendente e moral. Esta abordagem surgiu, portanto, como uma “terceira via” para aqueles que nao se adequavam ou nao conseguiam mais en- xergar este importante fato social do mundo contempordnea — o consumo — pela ética exclusiva das polarizagées e dos dualismos. De algum modo, todos esses textos apresentam um ponto em comum. Todos eles respondem, de uma forma ou de outra, a algumas acusa- goes graves feitas a0 consumo ¢ ao consumismo, além da classica atribuigdo de fetichizagao dos objetos. Uma dessas acusagées seria a incapacidade de ambos para estabelecer vinculos sociais “auténti- cos”. Ao contrario, tal como uma espécie de cancer, 0 consumisma moderno veio para destruir os “verdadeiros” laos sociais. Para com- pletar este cenério de Deus ¢ o Diabo na Terra do Sol, a literatura de negocios, salvo excegées, também sempre deixou muito a desejar porque, partindo de premissas reificadoras, ela acabou consagrando uma concep¢’o pecaminosa do consumo. * Uma exeegio foio livrade Marshall Salins, Cult e raze prética,cuja 1 edigio brasileira foi em 1979, Para os antropdlogos, ele anunciava uma nwa perspectiva em relagio ao tema do consumo, -ftmbora.na época nao fase lidie discutide somente por esse viés. ‘Autores como Bourdieu, Mary Douglas, Marshall Sahlins, Colin Campbell, Daniel Miller ¢ outros demonstraram exatamente 0 con- trdrio, sem cairem na tentagao de destituir o sentido c a importancia das formas de sociabilidade tradicionais criadas a partir da familia, da produgdo e do trabalho. Baseados em pesquisas empiricas, eles mostraram que 9 consumo est4 na base da formacao do gosto, da distingdo, sem o que nao se poderia falar de individualismo e de es- tratégias de reprodugdo de muitos grupos e identidades sociais no mundo moderno. Assim, além de produzir vinculos sociais, o consu- mo também gera formas particulares de solidariedade, confianga ¢ sociabilidade fundamentais para a vida social. Como as demais obras, a coletanea organizada por Arjun Appadurai é uma demonstracio eloqiiente dessa perspectiva. Ela ainda tem a vanta- gem de trazer consigo todo 0 vigor provocativo que a polémica adquiriu durante as décadas de 1980/1990, Isso se tora evidente no momento em que Appadurai apresenta 0 ponto de vista que propés aos autores dos capitulos: 0 que acontece se deixarmos de prestar atengdo apenas nos vinculos sociais que supostamente precedem ou deveriam prece- der as coisas, € comecarmos a observar as coisas durante os variados percursos ¢ trajetdrias que elas fazem e tragam na sociedade por meio das diferentes esferas de circulagao nela existentes? O livro é importante no apenas pelas respostas que cada autor en- controu no seu universo de pesquisa para esta proposicao, e que o leitor tera condigdes de avaliar, mas pela evocagao de algo importan- te em termos metodolégicos. A coletanea nos faz lembrar que a pesquisa sociolégica nao pode, de forma alguma, fiear refém de ob- jetos pré-construidos. Niteréi, 13 de fevereiro de 2008. 10 PREFACIO Embora antropélogos ¢ historiadores falem cada vez mais uns so- bre os outros, eles raramente falam uns com os outros. Este livro € o resultado de um didlogo entre antropdlogos ¢ historiadores sobre o tema das mercadorias, que se estendeu por um ano. Trés dos arti- gos (os de Cassanelli, Geary e Spooner) foram apresentados no workshop de Etno-hist6ria na Universidade da Pensilvania em 1983- 1984. Os outros (A exceg’o de meu préprio ensaio introdutério) foram apresentados em um simpdsio sobre as relacdes entre merca- dorias é cultura, sediado no Programa de Etno-histéria, na Filadélfia, nos dias 23 a 25 de maio de 1984. Lee Cassanelli, meu colega no Departamento de Histéria da Univer- sidade da Pensilvania, propds primeiramente o tema “Mercadorias & cultura” para o workshop de Etno-histéria de 1983-1984, A ele ¢ a Nancy Farriss (também do Departamento de Histéria, e mentora do workshop desde seu princ{pio em 1975), devo varios anos de estimu- lantes didlogos interdisciplinares. A proposta de Lee Cassanelli coincidiu fortuitamente com uma conversa que eu havia tido com Igor Kopytoff e William Davenport (meus colegas no Departamento de Antropologia, na Universidade da Pensilvania), no desenrolar da qual concordamos que j4 era tempo de ser feita uma revitalizagao da antropologia das coisas. O simpésio de maio de 1984, que levou diretamente ao projeto deste livro, foi possibilitado pelos auxilios que o programa de Etno-hist6- tia recebeu do National Endowment for the Humanities ¢ da Escola de Artes e Ciéncias da Universidade da Pensilvania. O sucesso desse simpésio deve muito ao apoio organizacional ¢ intelectual de estu- dantes e colegas participantes. Em particular, agradego a Greta Borie, Peter Just e Cristine Hoepfner por toda a assisténcia antes e durante o simpdésio. Eu também desfrutei de muita generosidade durante a preparagdo deste livro. Susan Allen-Mills, da Cambridge University Press, foi uma valiosa fonte de orientagao intelectual ¢ editorial. Tenho uma divida especial com a equipe do Centro de Estudos Avangados em Ciéncias Comportamentais, cujos recursos da secretaria ¢ adminis- il tragéo ajudacam materialmente na rdpida preparagéo dos originais. Em particular, é um prazer agradecer a Kay Holm, Virginia Heaton e Muriel Bell. Stanford, California Arjun Appadurai 42 PARTE I Por uma antropologia das coisas I INTRODUCAO: MERCADORIAS EA POLITICA DE VALOR Arjun Appadurat Este ensaio tem dois objetivos: o primeiro ¢ apresentar ¢ estabelecer a contexto dos artigos que compéem este livro; o segundo é propor uma nova perspectiva sobre a circulacdo de mercadorias na vida so- cial, Tal perspectiva pode ser sintetizada da seguinte forma: a troca econdmica cria o valor; o valor é concretizado nas mercadorias que sio trocadas; concentrar-se nas coisas trocadas, em vez de apenas nas formas ¢ fungées da troca, possibilita a argumentag’o de que o que cria 0 vinculo entre a troca ¢ o valor é a politica, em seu sentido mais amplo. Este argumento, que sera elaborado no decorrer deste. texto, justifica a tese de que as mercadorias, como as pessoas, tém. uma vida social.? Pode-se definir mercadorias, ainda que de um modo provisdrio, como. objetos de valor econémico. Quanto ao significado da expressio “valor econdmico”, o melhor guia (embora nao seja o padrao) é Georg Simmel. No primeiro capitulo de A filosofia do dinkeiro (1907), Simmel fornece uma descricao sistemaética da melhor forma de se definir o valor econémico. Para ele, o valor jamais ¢ uma proprieda- de inerente aos objetos, mas um julgamento que sujeitos fazem sobre eles, Mas, de acordo com Simmel, a chave para se compreender 0 valor reside em uma regio onde “essa subjetividade é apenas provi- Soria ¢, com efeito, nao muito essencial” (SIMMEL, 1978, p. 63). Ao explorar esse dominio dificil - nem totalmente subjetivo, nem exatamente objetivo, de onde o valor emerge ¢ onde ele ope- ta ~, Simmel sugere que os objetos nao sao dificeis de se adquirir Porque sio valiosos, “mas chamamos de valiosos aqueles objetos que opdem resisténcia a nosso desejo de possui-los” (1978, p. 67). O que Simmel denomina, em particular, objetos econdémicos existe no €spaco entre o desejo puro e a frui¢ao imediata, com alguma distancia entre eles e a pessoa que os deseja. Tal distancia pode ser ultrapassada, © que ocorre e por meio da troca econémica, na qual se determina ios reciprocamente 0 valor dos objetos. Ou seja, o desejo de alguém por um objeto é satisfeito pelo sacrificio de um outro objeto, que € 0 foco do desejo de outrem, Tal troca de sacrificios é 0 que constitui a vida econémica, e a economia, como forma social especifica, “consiste nao apenas em trocar valores, mas na troca de valores” (SIMMEL, 1978, p. 80). O valor econdémico é, para Simmel, gerado por essa espécie de troca de sacrificios. Essa andlise do valor econémico na discussio proposta por Simmel tem diversos desdobramentos. O primeiro € que o valor economico nao é simplesmente um valor genérico, mas uma quantidade definida de valor, que resulta da comensuragdo de duas intensidades de de- manda. A forma que essa comensuragao assume é a troca de sacrificio por ganho. Assim, o objeto econdmico nao tem um valor absolute como resultado da demanda que suscita, mas é a demanda que, como base de uma troca real ou imaginaria, confere valor ao objeto. E a troca que estabelece os parametros de utilidade ¢ escassez, nao o contrario, ¢ € a troca que é a fonte de valor: “A dificuldade de aquisi- ao, 0 sacrificio oferecido em troca, é o dnico elemento constitutive do valor, de que a escassez € té0-somente a manifestagao externa, sua objetivagdo sob a forma de quantidade” (SIMMEL, 1978, p. 100). Em suma, a troca néo é um subproduto da valoragao mitua de obje- tos, mas sua fonte. Com estas observagdes concisas ¢ brilhantes, Simmel prepara o ter- reno para a andlise do que considerava ser 0 mais complexo instrumento do procedimento de troca econdmica — 0 dinheiro -¢ de seu lugar na vida moderna. Mas suas observacdes podem ser toma- das em um sentido um tanto diferente. Este sentido alternativo, que se exemplifica no corpo deste ensaio, consiste em explorar as condi- des sob as quais objetos econémicos circulam em diferentes regimes de valor no tempo ¢ no espago. Muitos dos artigos que compdem este livre examinam coisas (ou grupos de coisas) especificas, uma vez que circulam em ambientes culturais ¢ histéricos especificos. O que estes artigos permitem é uma série de olhares sobre os modos como desejo e demanda, sacrificio reciproco ¢ poder interagem para criar o valor econémico em situagGes sociais especificas. Nos dias atuais, 0 senso comum ocidental, caleado em diversas tradi- des historicas da filosofia, do direito e das ciéncias naturais, tem uma forte tendéncia a opor “palavras” ¢ “coisas”. Muito embora isso nao 16 tenha sido sempre assim, nem mesmo no Ocidente, como observou Marcel Mauss, cm seu célebre Ensaio sobre o dom, a forte tendéncia contemporanea é considerar o mundo das coisas inerte e mudo, sé sen- do movido ¢ animado, ou mesmo reconhecivel, por intermédio das pessoas € de suas palavras (ver também DUMONT, 1980, p. 229-230). Nao obstante, em muitas sociedades histéricas, as coisas nao estavam tio divorciadas da capacidade das pessoas de agir ¢ do poder das pala- yras de comunicar (ver Capitulo 2), Que uma tal visao a respeito das coisas nao tenha desaparecido mesmo nas circunstincias do capitalis- mo industrial moderno é uma das intuigdes que sustentavam a discussao famosa de Marx sobre 0 “fetichismo das mercadorias”, no Capital. Mesmo que nossa abordagem das coisas esteja necessariamente con- dicionada pela idéia de que coisas nao tém significados afora os que Jhes conferem as transagGes, atribuigdes e motivagdes humanas, o problema, do ponte de vista antropoldgico, é que esta verdade formal nao langa qualquer luz sobre a circulagao das coisas no mundo con- creto e histérico. Para isto temos de seguir as coisas em si mesmas, pois scus significados estao inscritos em suas formas, seus usos, suas trajetérias, Somente pela andlise destas trajet6rias podemos interpre- tar as transagées € os calculos humanos que dao vida as coisas. Assim, embora de um ponto de vista tedrice atores humanos codifiquem as coisas por meio de significagGes, de um ponto de vista merodolégico sao as coisas em movimento que elucidam seu contexto humano ¢ social. Nenhuma anidlise social das coisas (seja 0 analista um econo- mista, um historiador da arte ou um antropdlogo) é capaz de evitar por completo o que pode ser denominado fetichismo metodoldégico. Este fetichismo metodolégico, que restitui nossa atengio as coisas em si mesmas, é, em parte, um antidoto a tendéncia de atribuir um excessive valor socioldgico as transagées realizadas com as coisas, tendéneia que devemos a Mauss, conforme Firth observou recente- mente (1983, p. 89). Mercadorias, e coisas em geral, despertam, de modo independente, o interesse de diversos tipos de antropologia. Constituem os principios basicos ¢ os iiltimos recursos dos arquedlogos. Sao a substancia da “cultura material”, que une arquedlogos a antropélogos culturais de diversas linhas. Na qualidade de objetos de valor, ocupam uma posi- io central na antropologia econémica ¢, com igual importancia, na teoria da troca ou na antropologia social em geral, uma vez que S40 0 instrumento do ato de presentear. Analisar as coisas sob a perspecti- va das mercadorias constitui um ponto de partida de grande utilidade para o interesse na cultura material, renovado pela orientagao semidtica, e que foi recentemente ressaltado ¢ exemplificado em uma. secao especial da RAJN (MILLER, 1983), Mas as mercadorias nao sao um interesse fundamental apenas dos antropologos. Também cons- tituem um tépico privilegiado na histéria econdmica e social, na hist6ria da arte ¢, antes que nos esquegamos, na economia, embora cada disciplina possa formular o problema de um modo diferente. As mercadorias representam, pois, um tema sobre o qual a antropologia pode ter algo a oferecer as plinas afins, como também tem muito a aprender com esias disciplinas. Os ensaios deste livro abrangem uma boa parte das questdes histéri- cas, etnograficas e conceituais, mas nde pretendem fazer, absolutamente, uma andlise exaustiva das relagGes da cultura com as mereadorias. Entre os colaboradores, ha cinco antropélogos saciais, um arqueélogo ¢ quatro historiadores sociais. Economistas e histo- riadores da arte nio estdo aqui representados, mas suas idéias nao foram de modo algum negligenciadas. Algumas das principais areas do mundo nao foram abordadas (notadamente a China ¢ a América Latina), mas a cobertura geografica é de uma extensio bem razodvel. Embora os artigos tratem de uma séric considerdvel de bens, a lista de mercadorias néo discutidas aqui seria um tanto longa, havendo uma preferéncia por bens especificos ou de luxo, em vez de merca- dorias “em estado bruto” e de “primeira necessidade”. Enfim, a maiori: dos autores dedica-se a bens em vez de servicos, embora estes tam- bém sejam importantes objetos de mercantilizagéo. Ainda que cada uma destas omissées seja grave, pretendo sugerir, ao longo deste en- saio, que algumas tm menos relevancia do que parecem. As cinco segdes que se sucedem neste ensaio dedicam-se aos seguin- tes objetivos. A primeira, “O espirito da mercadoria”, é um exercicio critico de definigo, na qual se atgumenta que as mercadorias, devi- damente compreendidas, nao sao monopélio das economias industriais modernas. Em seguida, “Rotas ¢ desvios” discute as estratégias (se- jam individuais ou institucionais) que fazem da criagdo de valor um. processo mediado pela politica. A segao subseqiiente, “Desejo ¢ de- manda”, articula modelos de longo e curto prazo na circulagao de mercadorias para mostrar que 0 consumo esta sujeite ao controle so- cial e a redefinigao politica. A dltima se¢io t40 fundamental quanto 18 as dem *Conhecimenta ¢ mercadorias”, busca demonstrar que politicas de valor sao, muitas vezes, politicas de conhecimento. A conclusao retoma a discussao sobre a politica como instancia media- dora entre a troca e 0 valor. O ESPIRITO DA MERCADORIA Poucos negariam que a mercadoria é algo completamente socializa- do. Logo, em busca de uma definigao, a questio a ser colocada & em que consiste esta sociubilidade? A resposta purisla, que se tornou rotina atribuir a Marx, é que uma mereadoria é um produto destina- do, sobretude, & troca e que tais produtos emergem, por definigag, sob as condigdes institucionais, psicoldgicas e econémicas do capi- talismo. Definigdes menos puristas vécm as mercadorias como bens destinados & troca, independentemente da forma de troca. A defini- cio purista dé um fim prematuro 4 questao. As definigdes mais frouxas correm o risco de tornar equivalentes mercadoria, didiva e diversos outros tipos de coisas. Nesta segao, por meio da critica 4 concepgan marxista da mercadoria, pretendo sugerir que mercadorias sio coisas com um tipo particular de potencial social, que se distinguem de “pro- dutos”, “objetos”, “bens”, “artefatos” ¢ outros — mas apenas em alguns aspectos ¢ de um determinado ponto de vista. Se for convincente, meu argumento resultaré no reconhecimento de que, com vistas a uma definigao, é de grande utilidade considerar as mereadorias como algo que existe em uma enorme gama de sociedades (embora tenham uma forca e projecdo especiais nas sociedades capitalistas moder- nas), ede que ha uma convergéncia inesperada entre Marx ¢ Simmel sobre o tépico das mercadorias. A discussio mais elaborada ¢ instigante acerca da idéia de mercado- tia consta da primeira parte do primeiro livro de O Capital, de Marx, ainda que a idéia estivesse muito difundida nos debates sobre econo- Mia politica do século XIX. A revisao, feita pelo proprio Marx, do conceito de mercadoria foi uma parte fundamental de sua critica 4 economia politica burguesa ¢ a base para a transig&o que se verifica entre seu proprio pensamento inicial sobre 0 capitalismo (ver, cm especial, MARX, 1973) ¢ a andlise mais madura de O Capital. Atual- mente, a centralidade conceitual da idéia de mercadoria foi substituida Pelo conceito neoclissico ¢ marginalista de “bens”, A palavra “mer- cadoria” é usada na economia neoclassica apenas com referéncia 4 ig uma subclasse especifica de bens primdrios ¢ j4 ndo exerce um papel analitico central. E claro, esse nao é 0 caso das abordagens marxistas na economia e na sociologia, ou das neo-ricardianas (como as de Piero Sraffa), nas quais a andlise da “mercadoria” ainda tem uma fungio teérica fundamental (SRAFFA, 1961; SEDDON, 1978). ‘Todavia, na maioria das anlises modernas da economia (fora da an- tropologia), 0 significado do termo mercadoria ficou restrito a repercutir apenas uma parte do legado de Marx e dos primeiros eco- nomistas politicos. Ou seja, na maioria dos usos contemporaneos, as mercadorias s40 um tipo especial de bens manufaturados (ou servi- os), que se associam somente aos modos de producao capitalista ¢, portanto, s6 podem ser encontradas onde penetrou o capitalismo, Assim, mesmo nos debates atuais sobre a proto-industrializacao (ver, por exemplo, PERLIN, 1982), a questéo nao é se as mercadorias se associam ao capilalismo, mas se certas formas de organizagio e de técnicas associadas ao capitalismo tém uma origem exclusivamente: européia. Mercadorias sao, em geral, vistas come lipicas representa- des materiais do modo de producado capitalista, mesmo quando classificadas como triviais, seu conteato capitalista como incipiente. Porém, ¢ evidente que tais andlises se valem de apenas uma parte da concepgéo de Marx da natureza da mercadoria. Pode-se dizer que 0 tratamento dado 4 mercadoria nas primeiras cento e tantas paginas de O Capital é uma das partes mais dificeis, contraditérias e ambiguas da obra de Marx. Inicia-se com uma definigao de mercadoria extrema- mente vaga (“A mercadoria €, antes de tudo, um objeto exterior, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie"). Continua, entéo, dialeticamente, com uma série de definigées mais parcimoniosas, que possibilitam a elaboragao gradual da abordagem marxista basica do valor de uso e valor de troca, 0 pro- blema da equivaléncia, a circulagao a traca de produtos ¢ 0 significado do dinheiro, E a elaboragao desta concepgao das relagdes entre a for- ma-mercadoria ¢ a forma-dinheiro que permite a Marx estabelecer a famosa disting&o entre as duas formas de circulagao de mercadorias (Mercadorias—Dinheiro—Mercadorias ¢ Dinheiro—Mercadorias—Di- nheiro)sendo a segunda a representagao da formula geral do capitalismo. No decurso deste movimento analitico, as mercadorias so intricada- mente atreladas ao dinheiro, a um mercado impessoal ¢ ao valor de troca. Mesmo na forma mais simples de circulagao (ligada ao valor de uso), as mercadorias relacionam-se por meio da capacidade de 20 comensuragao do dinheiro. Hoje, a ligacdo entre mercadorias e formas pés-industriais, sejam tais formas sociais, financeiras ou de troca, éem geral um ponto pacifico, mesmo entre os que, noutros ee nao levam Marx a sério. Contudo, nos textos do préprio Marx, pode-se encontrar a base para uma abordagem das mercadorias muito mais abrangente e proficua de um ponto de vista intercultural e histérico, cujo espirito se vai atenuan- do, 4 medida em que cle passa a estar envolvido nos detalhes de sua anélise do capitalismo industrial do século XIX. De acorde com esta primeira formulagao, para produzir mercadorias, em vez de meros pro- dutos, um homem tem de produzir valores de uso para os outros, valores de uso sociais (MARX, 1971, p. 48). A esta passagem, Engels acres- centou uma interessante glosa, inserida entre parénteses no texto de Marx, em que se reformula a idéia da seguinte forma: “Para se tornar mercadoria, 0 produto tem de ser transferido para outrem, a quem ira servir de valor de uso, por meio de troca” (MARX, 1971, p. 48). Em- bora Engels se contentasse com esta elucidagao, Marx prosseguiu com uma série extremamente complexa (¢ ambigua) de distingdes entre pro- dutos ¢ mercadorias, mas, para propdsitos antropolégicos, a principal Passagem merece ser citada na integra: Todo produto do trabalho é, em todas as estados da sociedade, valor de uso, mas 56 em uma determina- da época do desenvolvimento histérico da sociedade o produto do trabalho se transforma em mercadoria, asaber, aquela cm que o trabalho gast na producgso de objetos leis s¢ toma a expresso de uma das qua- lidades inerentes a esses objctos, ou seja, expressio de seu valor. Resulta daf que a forma-valer elemen- tar é também a forma primitiva sob a qual o produto do trabalho surge histaricamente como uma merca- doria ¢.que a transformagao gradual desses produtos em mercadorias prossegue passo a passo com o de- senvalvimento da forma-valor, (MARX, 1971, p.67) A dificuldade em distinguir 0 aspecto légico do aspecto histérico nessa argumentacao foi observada por Anne Chapman (1980), em uma dis- Cussao que retomarei em breve. No excerto de O Capital citado acima, a Passagem do produto 4 mercadoria € tratada em termos histéricos, mas 0 Fesultado final permanece muito esquemitico e € dificil especificd-lo. ou testd-lo com alguma clareza. 27 A questio é que Marx ainda estava preso a dois apriorismos da episteme de meados do século XTX: um estabelecia que s6 se podia observar a economia com referéncia 4s problemiticas de produgio (BAUDRILLARD, 1975); 0 outro considerava o movimento em di- tegio A produgéo de mercadorias como evolutivo, unidirecional € histérico. O resultado: mercadorias existem ou nao existem e sao produtos de uma espécie particular. Cada uma dessas suposigées pre- cisa ser modificada. A despeito dessas limitagdes epistémicas, em sua célebre discussdo0 sobre o fetichismo das mercadorias, Marx de fato observa, como 0 faz em outras passagens de O Capital, que a mercadoria nao € uma invengdo do modo de producéo burgués, mas se manifestava “em datas antigas da histéria, embora nao de um modo tao predominante ecaracteristico como nos dias de hoje” (MARX, 1971, p. 86). Ainda que explorar as dificuldades do préprio pensamento de Marx sobre economias pré-capitalistas, sem Estado ¢ nao monetizadas, seja algo que ultrapasse os limites do presente ensaio, poderiamos observar que Marx nao afastou a possibilidade de haver mercadorias, ao me- nos em uma forma primitiva, em muitos tipos de sociedade. Aestratégia de definigdo que proponho aqui consistc em um retorno 4 versdo da emenda feita por Engels 4 definigao mais abrangente formulada por Marx, que inclui a produgao de valor de uso para os outros € possui pontos convergentes com a énfase de Simmel na tro- ca como fonte do valor econémico. Comecemos com a idéia de que uma mercadoria ¢ qualquer coisa destinada 4 troca, o que nos liberta de uma preocupacio exclusiva com o “produto”, a “produg’o” intengao original ou predominante do “produtor”, e possibilita nos concentrarmos nas dinamicas de troca. Para fins compurativos, en- (Go, a questao deixa de ser “O que é mercadoria?” para ser “Que tipo de troca é a troca de mercadorias?”. Aqui, como parte de um esforgo em definir mercadorias da melhor forma possfvel, temos de lidar com dois tipos de troca que sio convencionalmente contrastades com a troca de mercadorias. O primciro é a permuta (algumas vezes chama- da de troca direta); 0 segundo é a troca de presentes. Comecemos com a permuta. A permuta é uma forma de troca que Chapman (1980) analisou re- centemente, em um ensaio que, entre outras coisas, discorda da andlise do préprio Marx sobre as relagées entre a troca direta € a troca de 22 mercadorias. ‘Combinando aspectos de diversas definigdes correntes da permuta (inclusive a de Chapman), sugiro que se trata de uma froca mutua de objetos sem alusao a dinheiro e com a maxima redu- ao factivel nos custos sociais, culturais, politicos ou pessoais da transaciio. O primeiro critério distingue a permuta da troca de merca- dorias num sentido estritamente marxista, enquanto o segundo a distingue da troca de prescntes em praticamente qualquer definigao, Chapman tem razao ao afirmar que, na medida em que a teoria do valor de Marx é levada a sério, o tratamento nela dado a permuta apresenta problemas tedricos ¢ conccituais que permanecem insoli- veis (CHAPMAN, 1980, p. 68-70), pois Marx postulava que a permuta assumia a forma tanto de uma troca direta de produtos (x do valor de uso. = y do valor de uso 8), quanto de uma troca direta de mercado- rias (x da mercadoriaA = y da mercadoria 2). Mas esta concepcao da permuta, por mai ptoblematica que seja para uma teoria marxista sobre a origem do valor de troca, tem a virtude de estar em harmonia com a reivindicagio mais persuasiva de Chapman, a saber, que a permuta, seja como forma de troca dominante ou secundiria, existe em uma grande variedade de sociedades. Chapman critica Marx por jncluira mercadoria na permuta ¢ pretende manté-las bem separadas, alegando que mercadorias assumem a fungao de objetos monetarios. (e, portanto, de valor de trabalho congelado), nao apenas a fun¢gdo de unidade de calculo ou de medida de equivaléncia. Para Chapman, a ‘troca de mercadorias sé ocorre quando um objeto monetario inter- vém na troca. Como, em seu modelo, a permuta exelui tal intervengao, hd uma distingao formal e completa entre a troca de mercadorias € a permuta, embora possam coexistit em algumas socicdades (CHAPMAN, 1980, p. 67-68). Patece-me que Chapman, em sua critica a Marx, adota uma visdo demasiado restritiva do papel do dinheiro na circulagao de mercado- tias. Marx, mesmo tendo encontrado dificuldades em sua propria andlise das relagdes entre permula ¢ troca de mercadorias, tinha ra- zo em observar, como o fez Polanyi, que a permuta e a troca capitalista de mereadorias tinham um espirito comum, ligado (em Seu ponto de vista) 4 natureza centrada no objeto, relativamente im- Pessoal e associal, de ambuas as formas de troca. Em diversas formas simples de permuta, percebemos um esforco em trocar coisas sem as Coercées da sociabilidade nem as complicagées do dinheiro. No mun- do contemporineo, a permuta esté em alta: hd uma estimativa de que 23 movimente 12 bilhées de délares cm bens e servigos por ano apenag nos Estados Unidos. Permutas internacionais (por exemplo, xarope de Pepsi por vodea russa; Coca-cola por palitos de dente coreanos ou por empilhadeiras bilgaras) estéo-se transformando em uma com- plexa economia alternativa. Nestas circunstancias, a permuta ¢ uma freag4o ao nimero cada vez maior de barreiras impostas ao comércig © as finangas internacionais e tem um papel especifico a exetcer na economia global. Assim, como forma de comércio, a permuta articu- la a troca de mercadorias nas mais diversas circunstancias sociais, tecnolégicas ¢ institucionais. Pode-se, portanto, considerd-la uma forma especial de troca de mercadorias, na qual, por uma série de razOes, o dinheiro nao desempenha qualquer papel, ou um papel muito indireto (como uma mera unidade de calculo). Com esta definigdo de permuta, seria praticamente impossivel encontrar qualquer socieda- de humana cm que a troca de mercadorias seja completamente irrelevante. A permuta parece ser a forma de troca de mercadorias em que a circulagio de coisas mais se divorcia das notmas sociais, politicas ou culturais. Porém, onde quer que haja evidéncias disponi- veis, a determinagao do que pode ser permutado, onde, quando e por quem, assim como o que impulsiona a demanda por bens de “ou- trem”, é um fato social. Ha uma forte tendéncia de perceber tal regulamentagao social como uma questéo em grande parte negativa, de modo que a permuta em sociedades de pequena escala ¢ em periodos remotos é, com freqiiéncia, considerada uma forma de troca restrita 4 relacdo entre comunidades em vez de no interior das comu- nidades, Neste modelo, a permuta é tomada como algo inversamente proporcional a sociabilidade e, pot extensio, o comércio exterior é visto como algo que “precedeu” o comeércio intemo (SAHLINS, 1972). Mas ha bons motivos empiricos e metodolégicos para questionar este pento de vista, A idéia de que o comércio em economias pré-industriais nao monetizadas é, em geral, percebido como anti-social sob a perspecti- va das comunidades de contato direto ¢, portanto, restringia-se com freqiiéncia a negociagdes com estranhos tem como contrapartida im- plicita a visio de que © espirito da dadiva e o da mercadoria séo profundamente opostos. Sob tal ponto de vista, a troca de presentes & a troca de mercadorias 840, por esséncia, contrastantes ¢ excluem-se mutuamente. Apesar das tentativas recentes de amenizar 0 exagera- do contraste entre Marx ¢ Mauss (HART, 1982; TAMBIAH, 1984), a 24 tendéncia de ver uma coposigio fundamental entre estas duas modali- dades de troca continua sendo um trago distintivo do discurso anteopolégico (DUMONT, 1980; HYDE, 1979; GREGORY, 1982; SAHLINS, 1972; TAUSSIG, 1 980). Aampliagao e areificacdo do contraste entre dadiva e mereadoria na jugio académica antropoldgica ttm muitas fontes, entre as quais esto: a tendéncia de idealizar as sociedades de pequena escala de um modo romantico; de confundir valor de uso (no sentido de Marx) com gemeinschaft’ (no sentido de Toennies), de esquecer que tam- bém as sociedades capitalistas operam de acordo com padroes culturais; de marginalizar ¢ minimizar os aspectos calculistas, im- pessoais ¢ auto-enaltecedores das sociedades nao-capitalistas. Estas tendéncias, por sua vez, s40 0 produto de uma viséo demasiado simplista da oposigao entre Mauss e Marx, que, como observou Keith Hart (1982), deixa escapar aspectos importantes dos pontas em co- mum que se verificam entre eles. Dadivas — ¢ 0 espirito de reciprocidade, sociabilidade e espontanei- dade em que sao normalmente trocadas - sio em geral postas em oposigao ao espirilo ganancioso, egocéntrico e calculista que anima a circulacao de mercadorias. Ademais, enquanto presentes vinculam coisas a pessoas e inserem o fluxo de coisas no fluxo de relacdes sociais, mercadorias supostamente representam 0 movimento — em grande parte livre de coerg6es morais ou culturais — de bens uns pe- los outros, movimento mediado pelo dinheiro, mao pela sociabilidade. Muitos dos ensaios deste livro, assim como minha propria argumen- tagdo aqui, destinam-se a mostrar que esta série de contrastes é exagerada ¢ simplista. Porém, por enquanto, apresento apenas uma importante propriedade comum A troca de presentes ¢ a circulagdo de mercadorias. O mado como compreendo o espirito da traca de presentes deve muito 4 Bourdieu (1977), que expandiu um aspecto até entao negligenciado da analise de Mauss sobre a didiva (MAUSS, 1976, p. 70-73), no qual se enfatizam certos paralelos estratégicos entre a troca de pre- Sentes e as prilicas “econGmicas” mais ostensivas. A discussao de Bourdieu, que ressalta a dindmica temporal do ato de presentear, empreende uma andlise perspicaz do espirito comum subjacente & troca de presentes ¢ 4 citculacao de mercadorias: 25 Sc é verdade que o intervalo de tempo interposto €0 que possibilita ae dom ou ao contra-dom ser visto ¢ experimentado cumo um ato inaugural de gencrosi- dade, scm qualquer passado ou futuro, quer dizer, sem célcwlo, entéo fica clare que, ao reduzir o poli 0 ae monotttico, v Objelivisme aniquila a especifividade de todas us praticas que, camo a tro- ca de presentes, (endem a, ou pretendem, colocar a lei do interesse préprio em suspenso. Por dissirau- lar, estendendo no tempo. a transagao que o contrato tr al condensa cm um instante, a troca de dons, é,sendo 0 tinico modo de circulagdo de mereadorias a ser praticado, au menos © nico modo plenameme reconhecido, em sociedades que, camo coloca Lukaes, negam “o verdadeiro solo de suas vidas”, e qe, como se nao quisessem ¢ nao pudcssem confe- rir 4s realidades ccon6micas seu sentido puramente econdmica, ém uma economia em si ¢ ndo para si (BOURDIEU, 1977, p. 177) Esse tratamento dado a troca de presentes como uma forma particu lar de circulagao de mercadorias procede da critica que Bourdieu dirige Nao apenas a tratamentos “objetivistas” da agao social, masa um tipo de etnocentrismo, em si mesmo um produto do capitalismo, que toma por incontestavel uma definicao demasiado restrila do interesse eco- némico.’ Bourdieu sugere que “a pratica jamais cessa de obedecer ao cdlculo econdmico, mesmo quando da uma impressio de completo desinteresse por escapar 4 légica do calculo interessado (no sentido estrito) ¢ estar norteada por apostas que sao imateriais ¢ dificilmente quantificadas” (BOURDIEU, 1977, p. 177). Suponho que esta sugestao converge, ainda que de um angulo ligei- ramente diferente, com as propostas de Tambiah (1984), Baudrillard (1968, 1975, 1981), Sahlins (1976) e Douglas & Isherwood (1981). ‘Todas estas propostas sao tentativas de restituir a dimensao cultural de sociedades quase sempre descritas apenas, em termos gerais, como economias, ¢ de restituir a dimensdo calculista de sociedades quase sempre retratadas apenas em termos estritos de solidariedade. Parte das dificuldades que se encontram nas andlises interculturais de mer- cadorias, como também de outros dominios da vida social, reside no fato de a antropologia ser demasiado dualista: “nds e eles”, “mate- nalistac religioso”; “objetificagao de pessoas” versus “personificagao de coisas”; “troca comercial” versus “reciprocidade”; ¢ assim por 26 diante. Estas oposigées sdo caricaturas de ambos os pélos ¢ reduzem as diversidades humanas de um modo artificial. Um sintoma deste blema tem sido uma concepgio demasiado positivista da merca- doria como um determinado tipe de coisa ec, portanto, restringindo, assim, © debate a questao de decidir de qual tipo de coisa se trata. ‘Mas, quando sc lenta comprcender o que é especifico 4 troca de mer- cadorias, nao faz sentido distingui-la radicalmente da permuta nem da troca de presentes. Como sugere Simmel (1978, p. 97-98), € im- portante considerar a dimensao calculista em todas estas trés formas de troca, mesmo se variam as formas ¢ intensidades de sociabilidade associadas a cada uma delas. Resta-nos, agora, caracterizar a troca de mereadorias de um modo comparativo e processual. Fagamos uma abordagem das mercadorias como coisas cm uma deter- minada situagao, situagdo cesta que pode caracterizar diversos tipos de coisas, cm pontos diferentes de suas vidas sociais. Isso significa olhar para 0 potencial mercantil de todas as coisas, em vez de buscar em vao amAgica distingao entre mercadorias ¢ outros tipos de coisas. Também significa romper de um modo categérico com a visao marxista da mer- cadoria, dominada pela perspectiva da produ¢do, e concentrar-se em toda a trajetéria, desde a produgau, passando pela troca/distribuigao, até o consumo. Mas coma deveriamos definir a situagdo mercantil? Proponho que a situagdo mercantil na vida social de qualquer “coisa” seja definida come a situagae em que sua trocabilidade (passada, presente ou fu- fura) por alguma outra coisa constitui seu truco social relevante. Ademiais, a situagio mercantil, assim definida, pode ser decomposia em: (1) fase mercantil da vida social de qualquer coisa; {2) a candi- datura de qualquer coisa ao estado de mercadoria; (3) 0 contexto mercantil em que qualquer coisa pode ser alocada. Cada um destes aspectos da “mercantilidade” cxige alguma cxplicagao. A nogio de fase mercantil na vida sacial de uma coisa é uma forma de sintetizar a idéia central do importante ensaio de igor Kopytoft que consta deste livro, em que se observam cerlas coisas transitando dentro ¢ fora do estado de mercadoria. Terei mais a dizer sobre esta abordagem biografica das coisas na proxima segao, mas note-se, por enquanto, que coisas entram ¢ saem do estado de mercadoria, que tais movimentos podem ser répidos ou lentos, reversiveis ou termi- Tals, hormativos ou discrepantes.* Embora o aspecto biogrifico de inn algumas coisas (tais como objetos herdados, selos postais ¢ antigui- dades) possa ser mais patente do que o de outras (tais como barras de ago, sal ou agticar), este componente nunca € de todo irrelevante. A candidatura de coisas ao estado de mercadoria é um trago mais conceitual do que temporal, e concerne os padrdes € critérios (simbé- licos, classificatérios ¢ morais) que determinam a trecabilidade de coisas em qualquer contexto social ¢ histérico em particular. A pri- meira vista, tal trago pareceria mais bem explicado como o quadro cudtural em que coisas sao classificadas, ¢ é uma das principais pre- ocupagées do artigo de Kopytoff neste livro. Porém, tal explicagéo oculta uma variedade de complexidades. B verdade que, na maioria das sociedades estaveis, seria possivel descobrir uma estrutura taxionémica que definisse o mundo das coisas, formando conjuntos de determinadas coisas, estabelecendo distingdes cntre otras, vin- culando significados e valores a esses arranjos e fornecendo uma base para regrus ¢ priiticas que governariam a circulagao desses obje- tos. No que tange 4 economia (ou seja, a troca), a descrigao de Paul Bohannan (1955) das esferas de troca entre os Tiv é um exemplo claro desse tipo de quadro cultural de troca. Mas ha dois tipos de situagio em que os padrées e critérios que governam as trocas sao tao ténues, que parecem praticamente ausentes. O primeiro tipo é 0 caso de transagées que transp6em fronteiras culturais, em que tudo o que se combina ¢ 0 prego (monetdrio ou ndo) ¢ um conjunto minimo de convengées concernentes 4 transagao em si.” O outra é 0 caso daquelas trocas intraculturais em que, a despeito de um amplo uni- verso de conhecimentos compartilhados, uma troca especifica se baseia em percepcdes profundamente diferentes do valor dos objetos que estio sendo trocades, Os melhores exemplos de tal divergéncia de valor entre culturas podem ser encontrados em situagées de extre- ma privacao (como épocas de fome ou de guerra), quando a légica das trocas realizadas tem muito pouco a ver com a comensuragao de sacrificios. Assim, um homem bengali que entrega sua esposa a pros- tituigdo em troca de uma refeicdo, ou uma mulher turkana que vende algumas de suas meJhores jdias pela comida de uma semana estao participando de transagdes que podem ser consideradas legitimas em circunstncias extremas, mas que jamais seriam vistas operando em um complexo quadro de valoragao compartilhado entre o vendedor ¢ comprador. Outra forma de caracterizar tais situagdes ¢ dizer que, nestes contextos, valor e prego foram quase totalmente desatrelados. 28 Ainda, como mostrou Simmel, do ponto de vista do individuo e sua subjetividade, todas as trocas podem conter este tipo de discrepiincia entre os sacrificios do comprador ¢ do vendedor, discrepancias nor- malmente postas de lado por causa das inimeras convengées sobre a troca que sdo cumpridas por ambas as partes (SIMMEL, 1978, p. 80). Podemos, pois, falar do quadro cultural que determina a candi- datura de coisas ao estado de metcadoria, mas devemos ter em mente que algunas situagées de troca, tanto inter quanto intracultural, se caracterizam por uma gama mais superficial de padroes de valor com- iJhados. Por conseguinte, prefiro usar o termo regimes de valor, por ado implicar que todo ato de troca de mercadorias pressuponha um quadro cultural em que se compartilhe uma totalidade de crencas, Antes, o termo sugere que © grau de coecréncia valorativa pode ser altamente varidvel conforme a situagéo, ¢ conforme a mercadoria. Neste sentido, um regime de valor condiz tanto com graus muito altos quanto com graus muito baixos de compartilhamento de pa- drdes pelas partes envolvidas em casos particulares de troca de mercadorias. Tais regimes de valor sao o fator determinante na cons- tante transcendéncia de fronteiras culturais por meio do fluxo de mercadarias, entendendo-se cultura come um sistema de significa dos localizado e delimitado. Enfim, 0 contexio mercantil se refere 4 variedade de arenas sociais, no interior de ou entre unidades culferais, que ajuda a estabelecer 0 vinculo entre a candidatura de uma coisa ao estacto de mercadoria¢ a fase mercantil de sua carreira. Assim, em muitas sociedades, transa- ges de casamento podem constituir um contexto em que mulheres 840 Vistas com maior intensidade, e de modo mais apropriado, como valores de troca. Negociagées com estrangeiros podem produzir con- sextos para a mercantilizagdo de coisas que noutras ocasides estariam Protegidas da mercantilizagao. Leildes acentuam a dimensio mer- cantil de objetos (tais como pinturas) de um determinado modo que pode muito bem ser percebido como extremamente inapropriado em es Contextos, Bazares so cendrios propensos a encorajar a fluxo mercadorias, enquante cendrios domésticos podem nao ser. A va- = tari tais contextos, no interior € através de sociedades, produz ” ‘0 entre © ambiente social da mercadoria e seu estado simbé- ne ate Como ia sugeri, 0 contexto mercantil, como uma 0 Social, pode reunir atores provenientes de sistemas culturais diferentes, que compartilhem apenas um minimo de entendi- 29 mentos (em uma perspectiva conceitual) sobre os objetos cm questaa ¢ estejam de acordo apenas acerca dos termos da negociagio. O fe- némeno conhecido por comércio sitencioso é o exemplo mais dbvio do minimo ajuste entre as dimensées culturais ¢ sociais da troca de mercadorias (PRICE, 1980). Portanto, a mercantilizagdo reside na complexa intersegao de fatores temporais, culturais e sociais. A medida que, numa determinada so- ciedade, algumas coisas, com freqiiéncia, se encontram na fase mercantil, preencher os requisitos da candidatura ao estado de mer- cadoria € aparccer em contextos mercantis, tais coisas sao suas mercadorias mais tipicas. A medida que, numa determinada socieda- de, um nimero consideravel de coisas, ou mesmo a maioria delas, algumas vezes preenche estes critérios, pode-se dizer que a socieda- de em questao € altamente mercantilizada. Nas sociedades cupitalistas modernas, pode-se afirmar que hd uma tendéncia de que um mimero maior de coisas experimente uma fase mercantil em suas carrciras, que um numero maior de contextos se torne mercanti! ¢ que os pa- drées da candidatura ao estado de mercadoria abranjam uma parte maior do universo de coisas do que em sociedades nio-capitalistas. Embora Marx tivesse razio em ver o capitalismo industrial moderno como o sistema econémico que acarrela o tipo de sociedade mais intensamente mercantilizada, a comparagao de sociedades em rela- 40 ao grau de “mercantilizagao” seria uma questao extremamente complexa, tendo em vista a definicdo de mercadorias que se abordou aqui. Segundo esta definigéo, o termo “mereadoria” passa a ser em- pregado no restante deste ensaio com referéncia a coisas que, numa determinada fase de suas carreiras e em um contexto particular, pre+ enchem os requisites da candidatura ao estado de mereadoria. A andlise que Keith Hart (1982) fez recentemente sobre a importancia da crescente hegemonia das mercadorias no mundo estaria de acardo com a abordagem que sugerimos, exceto pelo fato de, aqui, a mercantilizagio set considerada um processo diferenciado (que en- volve, de um modo diferenciado, questoes de fase, contexto € categorizagao) ¢ o modo capitalista de mercantilizagao ser visto em interagia com uma miriade de outras formas sociais nativas de mercantilizagao. Thés séries de distincdes entre mercadorias merecem ser adicionadas aqui (outras serio apresentadas mais adiante). A primeira, uma apli- cacao modificada de uma distingo estabelecida originalmente por 30 Jacques Maquet, em 1971, a respeito de producgécs estéticas,’ divide mercadorias nos quatro tipos que se seguem: (1) mercadorias por destinacdo, OU seja, abjctos destinados principalmente a troca pelos prios produtores; (2) mercadorias pot metamerfose, coisas desti- nadas a outros usas que se colocam no estado de mercadoria; (3) mercadorias por desvio um caso especial, mais acentuado, de merca- dorias por metamorfose isto é, objetos que sao postos no estado de mercadarias embora estivessem, em sua origem, especificamente protegidos de tal estado; (4) ex-mercadorias, coisas retiradas, quer temporaria ou permancntemente, do estado de mercadoria ¢ postas num outro estado. Também é valido distinguir mercadorias “singula- ses” de “homogéneas”, no intuito de diferenciar aquelas cuja candidatura ao estado de mercadoria é precisamente uma questéo de caracteristicas de sua classe (uma barra de aco perfeitamente padro- nizada) daquelas cuja candidatura reside precisamente em seu carater Gnico no interior de uma classe (uma tela de Manct em vez de umade Picasso; uma determinada tela de Manet em vez de outra do mesmo pintor). Intimamente relacionada com esta ultima, mas nao idénti- ca, € a distingdo entre mercadorias primdrias e secundarias; necessidades ¢ futilidades; ¢ o que chamo de mercadorias moveis versus mercadorias encaixadas.’ Contudo, todos os esforgos em definir as mercadorias esto condenados 4 esterilidade, a nao ser que elucidem mercadorias em movimento. Este é 0 principal obje- tivo da préxima secao ROTAS E DESVIOS As mercadorias ‘sao freqiientemente representadas como o resultado mecanico de regimes de produc&o governados pelus leis de oferta e procura. Recorrendo a certos exemplos etnograficos, pretendo mos- tar, nesta secao, que o fluxo de mercadorias, em qualquer situagdo determinada, € um acordo oscilante entre rotas socialmente regula- das ¢ desvios competitivamente motivados. Como Tessaltou Igor Kopytoff, pode ser util considerar que as merca- dorias tém histérias de vida. De acordo com esta visdo processual, a Mercantil na histéria de vida de um objeto nao exaure sua bio- Wafia é culturalmente regulada e€ sua interpretagdo admite, até certo Ponto, a manipulagao individual. Além disso, ainda de acardo com toff, a pergunta “Quais tipos de objeto devem ter quais tipos de 31 biografia?” ¢ uma questao mais de contestag4o social e de gosto indi- vidual nas sociedades modernas do que nas sociedades proto-industriais, nao monctizadas ¢ de pequena escala. Ha, no mo- delo de Kopyteff, um cabo de guerra eterno ¢ universal entre a tendéncia de todas as economias em expandir a jurisdigdo da mercantilizagao e a tendéncia de todas as culturas em limita-la. Indi- viduos, nesta concepgao, podem acompanhar qualquer uma destas tendéncias, conforime se ajustem a seus interesses ou condigam com seu senso de adequagao moral, embora nas sociedades pré-modernas 0 espaco para mudangas de rumo no seja, em geral, muito grande. Das diversas virtudes do modelo de Kopytoff, a meu ver, a mais im- portante € a proposta de um modelo genérico ¢ processual da mercantilizagdo, no qual os objetos podem transitar dentro e fora do estado de mercadoria. Estou menos seguro quanto 4 oposigao entre singularizagdo ¢ mercantilizagdo, uma vez que alguns dos casos mais interessantes (que, como o préprio Kopytoff concorda, situam-se ma zona intermediaria de seu contraste ideal e tipificado) envolvem a mercantilizagao mais ou menos permanente de objetos singulares E possivel levantar duas questées sobre esse aspecto da argumenta- cdo de Kopytoff. Uma seria que a propria definigéo do que constitui objetos singulares em oposigao a classes de objetos € uma questao cultural, na medida em que podem existir exemplos Gnicos de classes homogéneas (a barra de ago perfeita) ¢ classes de objetos singulares culturalmente estimados (tais come obras de arte ou pegas de ves- tudrio com a etiqueta do estilista). Por outro lado, uma critica marxista desse contraste sugeriria que ¢ a mercantilizagdo, como um processo histérico global, que determina, de maneira importante, as relagdes oscilantes entre coisas singulares e homogéneas em qualquer mo- mento da vida de uma sociedade. Porém, a principal questo aqui € que a mercadoria nao é um tipo de coisa, em vez de um outro tipo, mas uma fase na vida de algumas coisas. Neste ponto, Kopytoff ¢ eu estamos de pleno acordo. Tal concepgio da mercadoria e da mercantilizagéo traz diversas im- plicagdes importantes, algumas das quais siio mencionadas no decurso da argumentagio de Kopytoff. Outras serio discutidas mais adiante neste énsaio. Meu interesse imediato, porém, se volta para um aspec- to significative dessa perspectiva temporal sobre a mercantilizagao das coisas, que concerne a0 que denominei rotas ¢ desvios. Devo estes dois termos, e¢ certa parte de minha compreensao das relagoes 32 entre eles, 20 ensaio de Nancy Munn (1983), publicado em uma cole- tanea influente sobre um fenémeno de grande importancia para o assunto do presente. livro, o célebre sistema kula do Pacifico Ociden- tal (LEACH; LEACH, 1983) Okuda éo exemplo mais bem docurmentado de um sistema de troca transloca! nao ocidental, pré-industrial e nao monetizado, e, com a publicagao dessa recente coletanea, pode-se afirmar que se tornou 0 exemplo mais completo ¢ proficuamente analisado. Agora, revelou- se que a classica descrigio de Malinowski deste sistema (OWSKI, 1922) era parcial e problematica, muito embora ele tenha langado os alicerces para as andlises mais recentes, inclusi- ve as mais sofisticadas. As implicagées desta recente reconsider: do fenémeno kula para os interesses gerais do presente livro sio ind- meras, Embora os ensaios desta coletanea que irei citar repercutam diferentes pontos de vista, quer etnograficos, quer tedricos, eles, de fato, permitem algumas observagées gerais. 0 dada & um sistema regional extremamente complexo para a circu- lagao de tipos particulares de objetos de valor, normalmente entre homens de posses, no arquipélago Massim, ao longo da costa na ex- tremidade leste da Nova Guiné. Os principais objetos trocados uns pelos outros sfio de dois tipos: colares ¢ braceletes ornamentados (cada um cireulando em diregées contrarias). Estes objetos de valor adqui- tem biografias muito especificas, conforme sc movem de um lugar a outra, e de uma mao a outra, i medida que os homens que os trocam ‘ganham ¢ perdem reputacao ao adquirir, possuir e se desfazer destes Objetos de valor. O termo keda (estrada, via, rota ou trilha) é usado em algumas comunidades Massim para descrever 0 percurso desses Objetos de valor de uma ilha a outra, Mas keda também possui um Conjunto mais difuso de significados, que se referem aos vinculos Sociais, politicos e de reciprocidade mais ou menos estaveis entre os ‘homens que fazem parte destas rotas, Em sua acepgio mais abstrata, — Tefere-se & rota (criada pela troca destes objetos de valor) que va 4 riqueza, ao poder ¢ a reputaciio dos homens que negociam tais bbjetos (CAMPBELL, 1983, p. 203-204). Reda 6, pois, um conceito polissémico, no qual a circulacdo de obje- fas, a Construgao de memoérias ¢ reputagdes, e a busca de distingio ou Por meio de estratégias de parceria sao evocadas todas de uma Os vincutos delicados e complexos entre homens e coisas, 33 centrais para as politicas do keda, sao captados no seguinte excerto, a partir da perspectiva da ilha de Vakuta: ¥ © keda bem-sucedido € formado por homens que sio capuzes de manter parcerias keda relativamente estaveis por meio de admiriveis habilidades orate rias ¢ manipuladoras, c qué agem como-uma cquipe, cada um interpretando os movimentos do outro, To- davia, muitos keda desmoronam, ternanda necessdrio que os homens se realinhem regularmen- te. Alguns formam tipas de keda completamente diferentes, enquanto os remanescentes de um keda rompide podem querer formar outro keda, alicianda ‘novos participantes. Ainda outros podem jamais par- Licipar do kvefa novamemte, por sua falta de habilidade em formar outro keda em razio de uma “ma” repu= tagio na atividade Aula. Na realidade, o universo de abjetos de valor feitos cm concha em qualquer keda € migratério, ¢ a composigao social de um keda 6 transitéria. A histéria acumulads de uma concha 6 relardada pelo movimento continuo catre os keda, enquanta a reivindicacio dos homens por imortali- dade desvanece no momento em que as conchas perdem sua assaciagao com estes homens apds te- rem sido atraidas com éxito para um outro keda, assumindo, portant, a identidade social de seus n0- ves donas, (CAMPBELL, 1983, p. 218-219) Assim, a rota tomada por esses objetos de valor simultaneamente reflete e constréi parcerias ¢ conflitos saciais por proeminéncia. Mas hd um bom numero de outros fatores que sio dignos de nota no que tange A circulagio destes objetos, O primeiro é que sua Iroca nao é facilmente categorizada como uma troca reciproca simples, distante do espirito da negociagao ¢ do comércio. Ainda que as valoragies monetrias estejam ausentes, tanto a natureza dos objetos quanto uma variedade de fontes de flexibilidade no sistema possibilitam que exists aio lipo de troca calculada que sustento ser o cerne da toca de mer cadorias. Estes complexes modos de valoragaéo permitem qué parcciros negociem o que Firth (seguindo CASSADY JR., 1974) cha- mou de “troca por tratado particular”, uma situacao em que se chega auma espécie de prego por meio da negociagao de alguns processos que diferem das forcas impessoais de oferta e procura (FIRTH, 1983, p. 91). Assim, apesar da presenga de taxas de troca generalizadas ¢ convencionais, existe um complexo célculo qualitative (CAMPBELL, 34 1983, p- 203-204) que permite a negociagao competitiva de estimati- yas pessoas de valor a luz de interesses individuais tanto de longo quanto de curto prazo (FIRTH, £983, p. 101). O que Firth chama aqui de“engenharia da divida” é uma variedade da cspécie de troca calcu- jada que, segundo minha definigdo, torna turva a linha que separa a troca de mercadorias de variantes mais sentimentais. A diferenga mais importante entre & troca destas mercadorias ¢ a troca de mercadorias em economias modernas ¢ industrializadas ¢ que o diferencial que se busca nos sistemas como o ida esta pa reputagao, nome ou fama, de modo que pessoas sdo a forma crucial de capital para a produgéo desse lucro, em vez de outros futores de produgio (STRATHERN, 1983, p. 80; DAMON, 1983, p, 339-340). O nao ter prego é um Iuxo para poucas mereadorias. 7alvez ainda mais importante que o aspecto calculista das trocas no keula seja o fato de esses estudos recentes tarnarem muito dificil ob- servar a troca de objctos de valor no Ala como algo que ocorre apenas nas fronteiras entre comunidades, sendo as que se realizam no interi- ot delas mais proximas da troca de presentes (DAMON, 1983, p. 339). O conceito de kitowm fornece o vincula técnica ¢ conceitual entre as longas rotas percorridas pelos objetos de valor ¢ as trocas no interior da itha, mais intimas, regulares e problematicas (WEINER, 1983; DAMON, 1983; CAMPBELL, 1983; MUNN, 1983). Ainda que 0 termo kitoum seja complexo ¢ ¢m certs aspectos ambiguo, ‘parece claro que designa a articulagio entre o kula e outras modali- sdades de troca nas quais homens ¢ mulheres transacionam em suas (préprias comunidades. Kitoums sao objetos de valor que podem ser estos ou legitimamente retirados do sistema Auda para se cfetuarem “conversdes” (no sentido de Paul Bohannan) entre niveis discrepan- ipSde“transferéncia” (BOHANNAN, 1955). No uso de kitowm, vemos 98 cruciais vinculos conceituais e instrumentais entre as rotas mais futtas € mais longas que formam a tolalidade do mundo das trocas § Massim. Como mostrou Annette Weiner, € um equivoco isolar 0 -fande sistema de trocas entre ilhas das transferéncias de objetos que Petre por causa de dividas, morte e afinidade — trocas mais inti- aehicsy (para os homens) mais sufocantes (WEINER, 1983, p. ‘Pristema kita confere um cardter dindmico ¢ processual as idéias de Sauss RO que tange a mistura ou troca de qualidades entre homens e ‘Rises, como notou Munn em telacao as trocas Aula em Gawa: “Em- 35 bora os homens parecam ser os agentes na definigado do valor da conchas, na verdade, sem conchas, eles nao podem definir seu prd prio valor; quanto a isso, conchas e homens sao agentes reciprocg na defini¢ao do valor de um ¢ de outro” (1983, p. 283). Mas, comi observou Munn, na construgio reciproca de valor, as rotas nao sao a tnicas a exercerem um papel importante: os desvios também o fal zem. As relagdes entre rotas ¢ desvios sao cruciais para as politicg de valor no sistema Kuda, e a orquestragdio apropriada destas relagéd a principal estratégia do sistema: que este é um dos meios de tragar novas ratas. suit mais de uma rota também indica a probabili de outros desvios a partir de umia rota estabelecida’ outra, a medida que homens s¢ tornam sujeitos a ig ‘Teresses ¢ persuasivas de outros grupos de parceii [..-] De fato, no kula, os homens de posses tét desenvolver alguma cupacidade de equilibrar opi races: desvios de uma rota devem ser repostos ma larde para acalmar parceiros frustrados evitar qy a rota desuparega, ou evitar que eles mesmos seja ‘suprimidns da rota. (MUNN, 1983, p. 301} Na verdade, o sistema de rotas implica 0 na Estas trocas de grande escala representam esforgos psicoldgicos pag transeender fluxos mais humildes de coisas, mas, nas politicas q reputagdo, ganhos na arena mais ampla tém implicagdes para as arg nas menores, ¢ a idéia de Aitount assegura que tanto as transferéncig quanto as conversdes tém de ser conduzidas com cuidado com vistq aos melhores ganhos no total (DAMON, 1983, p. 317-323). O kul pode ser visto como o paradigma do que proponho chamar de tornel os de valor? Toreios de valor sio complexos eventos periddicos que, de algum forma culturalmente bem definida, se afastam das rotinas da vid econdmica. A participagdo nestes eventos tende a ser simultanet mente um privilégio daqueles que estéo no poder e um instrument de disputa de status entre eles. A moeda corrente destes torneios ta bém tende a ser distinguida por meio de diacriticos culturais mui bem compreendidos. Finalmente, o que esté em pauta nestes tomel nao é apenas 0 status, a posicdo, a fama ou a reputagao dos atores, mi a disposigao dos principais emblemas de valor da sociedade em quel to." Enfim, embora tais torneias de valor ocorram em épocas ¢ lug: especiais, suas formas ¢ resultados sempre trazem conseqiéncil 36 as mais mundanas realidades de poder e valor na vida comum. o no Kila, do mesmo modo que em tais torneios de valor em . habilidades estratégicas sfo medidas culturalmente pelo su- cesso com que os atores arriscam desvios ou subversées das rotas culturalmente convencionadas para o fluxo das coisas, A idéia de torneios de valor é uma tentativa de criar uma categoria sal, seguindo uma observacao recente de Edmund Leach (1983, p-535), que compara o sistema ku/a com o mundo da arte no Ociden- te moderno. A andlise de Baudrillard dos leildes de arte no Ocidente contemporineo permite que se amplic e aprofunde esta analogia. Baudrillard observa que o leildo de arte, com seus aspectos lidicos, tituais ¢ reciprocos, se localiza fora do ethes da troca econémica con- vencional, e que “vai muito além do cdlculo econémico e diz respeito a todos os processos de transmutagao de valores, de uma Idgica de valor a outta, que pode ser observada em determinados lugares ¢ instituigdes” (BAUDRILLARD, 1981, p. 121). A andlise que Baudrillard faz do ethos do leilao de arte merece ser citada na inte- gra, j4 que poderia ser facilmente uma caracterizagéo apropriada a outros exemplos de tormeios de valor: Ao contrario de operagées. comerciais, que institu- em uma relagie de rivalidade econdmica entre individuos em condigaes de igwafdade formal, com cada um guiando seu propria calcula de upropria- sho individual, 0 Teildo, como a festa ou 0 jugo, institui uma verdadeira comunidade de troca entre pares. Independentemente de quem arrematar os lan- ces, a fungao essencia! do leildo & a instituigio de uma comunidade dos privilegiados que se autodefinem como tis por meio da especulagio agonistica sobre um restrite corpus de signos. A com- petigdo de tipo aristocritico legitima sua paridade (que nao tem nada a ver com a igualdade formal da competigéo econdmica) ¢, assim, sua privilegiada casta coletiva diante de todos os outros, de quem ja io se separam mcramente pelo poder de compra, mas pelo ato suntudcie c coletivo de produzir e tro- ear valores dos signos. (1981, p. 117) Ao fazer uma anilise comparativa de tais torneios de valor, pode ser ete nao seguir a tendéncia de Baudrillard de isold-los, para ars analiticos, da troca econémica mais mundana, embora seja mui- ‘ ‘Provavel que a articulagao destas arenas de valor com outras arenas 37 econémicas apresente grandes variagées. Terei mais a dizer sobre tor- neios de valor na discussao acerca das relagdes entre conhecimento & mereadorias, mais adiante neste ensaio. © kuda, de qualquer modo, representa um sistema muito complexo para a intercalibragem das biogtafias de pessoas e coisas. Mostra- nos as dificuldades de separar a troca de mercadorias da de presentes, mesmo nos sistemas pré-industriais ¢ no monetizados, além de nos lembrar dos riscos envolvidos em correlacionar, de modo demasiado rigido, zonas de intimidade social com formas distintas de troca. Po- rém, e talvez.o mais importante, trata-se do exemplo mais intricado da politica dos torneios de valor, em que os alores manipulam as rotas culturalmente definidas ¢ 0 potencial estratégico dos desvios, de modo que o movimento das coisas torna mais altas suas proprias posighes. No entanto, desvios nao sio encontrados apenas como partes de es- tratégias individuais em situagées competitivas, mas podem ser institucionalizados de varias formas que remmovem ou protegem ob- jetos dos contextos mercantis socialmente relevantes. Monopélios de realezas sao, talvez, os cxemplos mais conhecidos de tais “merca- dorias encaixadas”, como aponta Kopytoff no Capitulo 2, Uma das discussécs mais amplas e interessantes sobre cste tipo de restrigao monopolista ao fluxo de mercadorias é a de Max Gluckman (1983), no contexto das propriedades reais entre os lozi da Rodésia do Norte Em sua discussio acerca das categorias de “dadiva”, “tributo” e “coi- sas régias”, Gluckman mostra como, mesmo em um reino agricola com baixos excedentes, 0 fluxo das mercadorias possui implicagdes muito diversas e significativas. Em sua andlise das “coisas régias”, torna-se claro que a principal fungdo destes monopdlios reais era manter a exclusividade suntudria (como no monopélio real de espan- ta-moscas feito com pele de elande), a primazia comercial (como corn as presas de clefante) e a cxibigao da hierarquia. Tal restrigao de coisas retiradas das esferas de troca mais indiscriminadas € parte do modo pelo qual, em liderangas ¢ impérios pré-modernos, a rea- leza podia assegurar a base material da exclusividade suntudria. Este tipa de processo pode ser chamado de desmercantilizagao “de cima para baixo”. Mas 0 caso mais complexo conceme a Areas inteiras de atividade e producao que sio destinadas a fabricar objetes de valor que nao po- 38 dem ser mercantilizados por ninguém. O corpo da arte ¢ do ritual em sociedades de pequena escala é uma destas zonas encaixades, onde o espirite da mercadoria 86 adentra sob condigées de mudangas cultu- rais massivas. Para uma discussio mais longa deste fendmeno, temos o ensaio de William Davenport sobre a produgio de objetos destina- dos ao uso ritual nas ilhas Salomao Orientais. Os fendmenos discutides nv artigo de Davenport elucidam os aspec- tos mercantis da vida social precisamente por ilustrarem uma espécic de quadro moral e cosmoligico no qual a mercantilizagao ¢ restzita e resguardada. Durante as observancias finebres desta regido, particu- larmente na celebragao de larga escala chamada murina, investem-se muita energia ¢ despesa na confeccao de objetos que desempenham um papel central no ritual, mas sao rigorosamente postos na catego- tia de mercadorias “terminais” (KOPYTOFF, Cap. 2), ou seja, objeios que, devido ao contexto, ao propésito e ao significado de sua produ- cio, fazem apenas wm trajeto da produgao ao consumo. Em seguida, ainda que algumas vezes tenham ¢ventuais usos domésticos, jamais lhes € permitido retornar ao estado de mercadoria. O que os torna desmercantilizados €, pois, uma complexa concepgao de valor (na qual se unem o estético, 0 ritual ¢ © social), ¢ uma biografia ritual specifica. Podemos parafrasear as observagdes de Davenport ¢ ob- Servar que © que se passa aqui — no centro de um conjunta extremamente complexo ¢ calculado de investimentos, pagamentos ¢ créditos — é um tipo especial de transvaloracao, no qual objetos so postos além da zona de mercantilizagao culturalmente demarcada, Este tipo de transvaloragao pode assumir formas diferentes em so- cCiedades diferentes, mas, em muitas sociedades, caracteristicamente ds objetos que representam elaboragdes estéticas e aqueles que ser- vem de sacra sio proibidos de ocupar 0 estado de mercadoria (quer social, definitiva ou temporariamente) por muito tempo. No rigoroso compromisso dos ilhéus de Salomao de colocar seus produtos rituais mais estetizados fora do aleance da mercantilizagio, vemos uma va- Hiante de uma tendéncia muito difundida. Um exemplo um tanto diferente da tensio entre a troca de sacra ede mercadorias pode ser visto na andlise de Patrick Geary acerca do Intercmbio de reliquias nos primdrdios da Europa medieval. As re- liquias descritas sio, obviamente, “encontradas” em vez de fabricadas”, e sua circulagao repercute um aspecto muito importan- te da construgio da identidade comunitaria, do prestigio local e do 39 controle eclesidstico e centralizado na Europa latina do periodo me dieval inicial. Estas reliquias pertencem a uma economia particular de troca ¢ de. manda na qual a histria de vida da reliquia em questo € essencial, em vez de incidente, a scu valor, A autenticagio desta historia é igual. mente central para seu valor. Tendo em vista a abordagem geral da diferenga entre didiva ¢ mercadoria que fiz neste ensaio, eu sugeririg que Geary talvez delineie um contraste por demais rigido entre ambas; na verdade, seu proprio material mostra que o presente, o roubo e d comércio eram, todos, modos de movimentar os sacra no contextg is amplo do controle eclesidstico, da competigao local ¢ da rivali« dade entre comunidades. Sob esta perspectiva, as reliquias mediewaig parecem estar menos cautelosamente protegidas dos riscos de mercantilizacao que os objetos ritaais de Davenport. No entanto, per manece a inferéncia de que modos comerciais de aquisicio dat reliquias cram menos desejaveis que a dadiva ou o roubo, nic exata mente por uma antipatia direta a negociagao de reliquias, mas, antes por serem os outros dois mados mais emblematicos do valor e & eficacia do objeto. t Assim, também essas reliquias caem na categoria de objetos cujé fase mercantil ¢ idealmente curta, cujo movimento € restrito e qué aparentemente nao “recebem um prego” da mesma maneira que ou tras coisas. No entanto, a forga da demanda ¢ tamanha que as fa: circular com uma velocidade consideravel e de modo muito parecidk com o de suas contrapartes mundanas. Portanto, mesmo no caso dé objetos “transvalorados”, que ussumem as caracteristicas de merca dorias encaixadas, em vez de méveis, hd variagdes consideraveis not motivos para, ¢ na natureza de, tal enclave. As “coisas régias” dt Gluckman, as reliquias de Geary ¢ os objetos rituais de Davenport so tipos diferentes de mercadorias encaixadas, abjetas cujo poten! cial mercantil é cautelosamente resguardado. Pode, ainda, sei apropriado notar que uma forma institucional bem significativa restringir a zona da troca de mercadorias em si mesma € 0 “porto-de comércio” associado a muitos reinos pré-modernos (GEERTZ, 1980) embora tais restrigdes ao comércio na politica pré-moderna possail nao ser tao radicais quanto se imaginou (CURTIN, 1984, p. 58). O1 motivos para tal resguardo sao bem variaveis, mas, em cada caso, 4 bases morais da restricao tém implicagées claras para enquadrat 4 facilitar trocas politicas, sociais ¢ comerciais de um tipo mais mun 40 dano. Tais mercadorias encaixadas guardam uma semelhanga famili- arcom outra classe de coisas, freqitentemente discutida na literatura sntropolégica como “objetos de valor primitivos”, cuja especificidade ge vincula diretamente 4 treca de mercadorias. Embora as mercadorias, em virtude de seus destinos de troca ¢ de sua comensurabilidade miitua, tendam a dissalver os vinculos entre pes- soas € coisas, tal tendéncia é sempre equilibrada por uma contratendéncia, em todas as sociedades, de restringir, controlar © canalizar 2 troca. Em muitas economias primitivas, objetos de valor exibem estas qualidades socialmente restritas. Devemos a Mary Douglas (1967) a idéia de que varios destes objetos de valor se asse- meJham a cupons ¢ licengas das economias industriais modernas. Ou seja, apesar de serem parecidos com dinheiro, nao sao um meio ge- neralizado de troca, mas possuem as seguintes caracteristicas: (1) os poderes aquisitivos que representam sao altamente especificos; (2) gua distribuicao € controlada de formas diversas; (3) as condigdes que governam sua emissdo criam uma série de relagdes do tipo cliente; (4) sua principal fungao é fornecer a condi¢éo ne- oessdria ao ingresso em posigdes de alto siatus; ¢ (5) os sistemas seciais em que tais cupons e licengas funcionam sao engrenados para ekiminar ou reduzit a competigae em favor de um padrao estavel de status (DOUGLAS, 1967, p. 69}. Tecidos de rfia na Africa Central, Wampum! entre os indios do leste dos Estados Unidos, dinheiro-con- ha entre os Yurok ¢ a moeda-concha da Ilha Rossell e outras partes ‘da Oceania siio exemplos de tais “cupons de mercadoria” (nas pala- ‘as de Douglas), cujo fluxo restrito est a disposicao da reproducgao od Sistemas politicos ¢ sociais. Coisas, nestes contextos, continuam mecanismos de reproducao das relagdes entre pessoas (ver tam- ym DUMONT, 1980, p. 231). Tais cupons de mercadorias Fypresentam um ponto intermedidrio entre dadivas “puras” © um om “pure”. Com a dédiva, eles compartilham uma certa in- a pela oferta e procura, um alto grau de codificagio em f de etiqueta ¢ apropriabilidade, ¢ uma tendéncia de seguir baa Socialmente estabelecidas. Com a pura permuta, sua troca 5 partilha © espirito do calculo, uma receptividade ao interesse Proprio ¢ uma preferéncia por transagdes com pessoas relativa- Mente esiranhas, , tais sistemas restritos de fluxo de mercadorias, nos quais objetos : ©xercem 0 papel de cupons ou licencas destinados a proteger 4] sistemas de status, vemos 0 equivalente funcional, que € tambem 0 inverso técnica, da “moda” nas sociedades mais complexas. Sc, num determinado caso, sistemas de stazus sdo protegidos ¢ reproduzidos pelas restrigdes de equivaléncias e trocas em um universo estdvel de mercadorias, em um sistema de moda, o que se restringe e controla é © gosto, num universo de mercadorias em Constante mulagaa, com a ilusdo de um carater totalmente intercambiavel c de acesso irrestrito. Leis suntudrias constituem um mecanismo intermediario de regulari- zagio do consumo, apropriado a sociedades preocupadas com exibigdes de status estaveis em contextos mercantis de expansio ace- lerada, tais como a india, a China ¢ a Europa do periodo pré-moderno (prosseguirei com estas comparagées na préxima seco deste ensaio).!° TJais formas de restrigdo, e as mercadorias encaixadas que criam, as vezes fomecem 0 contexto ¢ as metas das estratégias de desvios. 0 que significa dizer que o desvia pode, em certas acasides, envolver a remocao calculada e “interessada” de coisas de uma zona encaixada para alocé-las em uma zona onde a troca € menos limitada ¢ mais lucrativa, num sentido de curto prazo, Onde o enclave atende aos interesses de grupos, em especial os grupos que detém o poder eco- némico e politico em qualquer sociedade, os desvios sao, com freqiiéncia, os recursos do individuo empreendedor. Mas, sejam gru- pos ou individuos os envolvidos cm qualquer tipo de atividade, o contraste fundamental é que, enquanto o enclave busca proteger cer- tas coisas da mercantilizagao, o desvio freqiientemente: visa atrair coisas protegidas para a zona de mercantilizagao. Em uma discussio extremamente interessante sobre 0 comércio bri- tanico no Havai em fins do século XVIII ¢ inicio do século XIX, Marshall Sahlins mostrou como os chefcs havaianos, ao estender concepgies tradicionais de ‘aby para incluir novas classes de bens comerciais (adaptando-os a seus interesses cosmopoliticos), tiveram éxito em transformar a “finalidade divina” até mesmo de tabus eco- némicos em instrumentos de oportunismo (SAHLINS, 1981, p. 44-45), Assim, 0 que Sahlins denomina “pragmitica do comércio” desgasta e transforma as fronteiras culturais no interior das quais sio inicialmente concebidas. Em suma, as politicas de enclave, longe de serem uma garantia de ¢stabilidade sistematica, podem se tornar 0 cavalo de Troia da mudanga. O desvio de mercadorias para fora das sotas especificadas € sempre um sinal de criatividade ov crise, seja estética ou econdmica. Tais 42 crises podem assumir uma variedade de formas: adversidades econ6- micas, em qualquer espécie de sociedade, podem levar familias a se desfazerem de objetos transmitidos por diversas geragées, de anti- guidades ¢ de memorabilia para mercantiliza-los. Isso € 40 verdadeiro para objetos de valor mais modernos quanto no Auda. A outra forma de crise em que mercadorias sao desviadas de suas rotas apropriadas, obviamente, € a guerra ¢ a pilhagem que a acompanhou ao longo da histéria. Em tal pilhagem, e no espdlio que dela deriva, vemos o inverso do comércio. A transferéncia de mercadorias em tempos de guetta sempre tem uma intensidade simbélica especial, exemplificada na tendéncia de enquadrar uma pilhagem mais mundana no transpor- te de armas especiais, insignias ou pattes de corpos que pertenciam ao inimigo. Na pilhagem pretensamente legitima que instaura 0 qua- dro propicio a saques mais mundanos, vemos o andlogo hostil do duplo processo de sobreposigao de camadas dos circuitos de troca mundanos ¢ mais personalizados em outros contextos (tais como o kula ¢.0 gimwali na Melanésia). O roubo, condenado na maioria das sociedades humanas, é a forma mais simples de desvio de mercado- tias de suas rotas predeterminadas. Mas ha exemplos mais sutis de desvios de mercadorias de suas rotas. Uma drea de grande abrangéncia é a que tem sido chamada de arte turistica, em que objetos produzidos para usos estéticos, cerimoniais ou suntuarios em pequenas comunidades de contato direto sao trans- formados cultural, econdmica e socialmente pelos gostos, mercados € ideologias de economias maiores (GRABURN, 1976). Terei mais a dizer sobre a arte turistica na secao deste ensaio intitulada “Conheci- mento ¢ mercadorias”. Outra drea relacionada € a da historia e da natureza das grandes colegdes de arte e arqueologia no mundo aci- dental, cuja constituigao apresenta uma complexa mistura de Pilhagem, venda e heranga, combinada com o gosto ocidental pelas Coisas do passado ¢ dos autros.”* Neste trifego de artefatos, podemos encontrar, hoje, a maioria das mais sérias questoes de debate cultural Bo fluxo internacional de mercadorias “auténticas” (ver SPOONER, cap. 7) ¢ “singulares” (ver KOPYTOFE, cap. 2). As disputas atuais ea museus ¢ governos norte-americano ¢ britinico com varios ou- Paises trazem A tona tados os embaragos politicos e morais que =o eae em jogo quando as coisas sao desviadas, repetidas ede ¢ suas rotas minimas e convencionais, ¢ sao transferidas por goes 'ao variados que fazem com que suas historias de reivindica- € contra-reivindicagdes sejam extremamente dificeis de julgar. 43 O desvio de mercadorias de sua rota costumeira sempre carrega uma aura arriscada e moralmente ambigua. Sempre que aquilo que Bohannan (1955) chamou de transferéncia da lugar ao que ele chamou de conversdes, o espirito de empreendimento e 0 de corrup¢do moral entram em cena simuitaneamente. No caso das trocas kula na Melanésia, o movimento de mercadotias através de esferas, ainda que de algum modo fora de ordem, também esta no cerne da estratégia do participante Auia bem-sucedido e habilido- so. Convers6es inapropriadas de uma esfera de troca a outra sao com fregiiéncia corroboradas, recorrendo-se 4 alegagao de crise econémica, quer se trate de peniria ou de faléncia. Se tais alega- gdes nao forem validas ov criveis, acusagées de motivos inapropriados ¢ venais serao manifestadas, Excelentes exemplos das implicagées politicas do desvio sao encontrados na arena de trocas de mercadorias ilegais ou quase-legais. Um caso de trocas deste tipo é abordado em seguida. O intrigante artigo de Lee Cassanelli que consta deste livro discute a alteracéo na politica econémica de uma mercadoria quase-legal cha- mada gat (catha edulis), durante os dltimos 50 anos, no nordeste da Africa. Qat fornece um excelente exemplo de mudanga no que se pode denominar um ecimeno mercantil,'* quer dizer, uma rede transcultural de relacionamentos que vinculam produtores, distribui- dores e consumidores de uma mercadoria, ou conjunto de mercadorias, particular. O que € especificamente interessante, neste caso, é a dras- tica expansdo da escala de consumo (¢ de produgao) de gat, claramente Jigada a mudangas na infra-estrutura técnica, assim como 4 econo- mia politica da regio. Embora a expansio da produgao parega condizente com condigdes que se ajustam a padrées mais universais na comercializacéo da agricultura, o que € mais intrigante é a expan- sio da demanda e a reacao do Estado — em especial na Somalia — ao sdbito crescimento tanto na produgdo quanto no consumo de gat. A recente proibicdo (1983), promulgada pelo governo somali, de plantar, importar e mascar gat é claramente 0 movimento mais novo da ambivaléncia estatal sobre uma mercadoria cujo consumo é per- cebido como um habito ligado a formas de sociabilidade improdutivas e potencialmente subversivas. No caso da proibigao somali em vigor, parece que a gat (como o tecido na retorica de Gandhi) é vista como um problema de miltiplos niveis, que desafia nao somente o controle do Estado sobre a economia, mas a autori- 44 dade do Estado sobre a organizagao social do lazer entre os cida- dios recém-ricos ¢ ¢m ascensao social da Somélia urbana. Com este exemplo, somos mais uma vez lembrados que mudangas rapi- das nos habitos de consumo, quando nao reguladas pelos que estao no poder, tendem a Ihes parecer ameagadoras. Ainda, no caso da Somalia, temos um étimo exemplo da tensdo entre uma alteragao brusca na polftica econémica de um ectimeno mercantil regional ¢ aautoridade de um Estado nesse eciimeno, Bem entendido, os melhores exemplos de desvios de mercadoria de suas conexées originais devem ser encontrados no dominio da moda, da exibigao doméstica e das colegées no Ocidente moderno. No vi- sual high-tech inspirado por Bauhaus, a funcionalidade de fabricas, armazéns ¢€ locais de trabalho é desviada para a estética doméstica. Os uniformes de varios offcios passam a fazer parte do vocabulario da confecgao de roupas. Na ldgica dos objets trouvés, mercadorias cotidianas sao deslocadas ¢ estetizadas. Tudo isso s40 exemplos do que podemos chamar de mercantilizagao por desvia, em que o va- lor, seja no mercado de moda ou de arte, é catalisado e intensificado, colocando-se objetos ¢ coisas cm contextos improvaveis. E na esté- lica da descontextualizagao (ela mesma motivada pela busca da novidade) que esta a esséncia da exibigao, nas casas de ocidentais supostamente intelectualizados, de utensilios ¢ artefatos do “ou- tro”: alforjes turcomanos, langas massais, cestos dinca.'’ Nestes objetos, vemos além de uma equivaléncia entre o auténtico e 0 co- tidiano exdtico, a estética do desvio. Tal desvio nao é apenas um instrumento de desmercantilizagio do objeto, mas também a (po- tencial) intensificagao da mercantilizagio pelo aumento de valor que resulta deste desvio. Este aumento de valor por meio do desvio esta por trds da pilhagem de objetos de valor dos inimigos em tem- Pos de guerra, da compra e exibicgéo de objetos utilitarios “primitives”, do deslocamento dos objetos “encontrados”, da for- magio de colegdes de qualquer espécie.!* Em todos estes exemplos, © desvio das coisas combina o impulse estético, o vinculo empre- endedor ¢ um toque de choque moral. Todavia, desvios s6 sio dotados de significado se relacionados as Tolas de que foram extraviados. Na verdade, ao se observar a vida Social de mercadorias em qualquer sociedade ou periodo determina- dos, parte do desafio antropolégico € definir as rotas relevantes € Costumeiras, de sorte que a ldgica dos desvios possa ser entendida de 45 um modo apropriado ¢ relacional. As relagées cntre rotas ¢ desvios sao, em si mesmas, histéricas e dialéticas, como mostrou com mes- tria Michael Thompsom (1979) a respeito de objetos de arte no mundo ocidental modetno. Desvios que se tornam previsiveis estio a cami- nho de sé tornarem novas rotas, que, por sua vez, irio inspirar novos desvios ou retornos a rotas antigas. Estas relagdes histéricas sao rapi- da e facilmente verificaveis em nossa prépria sociedade, mas menos visiveis em sociedades em que tais alteragdes sao mais graduais. Na construcio cultural de mercadorias, a mudanga deve ser buscada nas relacdes alternantes de rotas a desvios durante a vida das merca- dorias, Seus desvios de rotas costumeiras fazem surgir 9 novo. Maso desvio é com freqiiéncia uma fungao de desejos irregulares ¢ deman- das recentes. Passemos, entéo, a considerar o problema do desejo e da demanda. DESEJO E DEMANDA A razio por que a demanda continua sendo em geral um mistério se deve, em parte, ao fato de supormos que ela possui alguma relacao, de um lado, com o desejo (por sta natureza supostamente infinita e transcultural) e, de outro lado, com a necessidade (por sua natureza supostamente estavel). Seguindo Baudrillard (1981), sugiro que tra- temos a demanda —e, portanto, 0 consumo — como um aspecto geral da politica econémica das sociedades. Quer dizer, a demanda surge como uma fungio de uma série de praticas e classificagdcs sociais, em vez de uma misteriosa revelagio das necessidades humanas, de uma reagio mecinica A manipulagao social (como em um modelo dos efeitos da propaganda em nossa sociedade), ou de uma redugio de um desejo universal ¢ voraz por qualquer coisa que, por acaso, esteja disponivel. O magnifico retrato dos dilemas de consumo entre os gondes murias da india central, feito por Alfred Gell no Capitulo 4, discute questées importantes ¢ interessantes sobre as complexidades culturais do con- sumo e os dilemas do desejo em sociedades de pequena escala que estdo passando por mudancas bruseas. Apés a leitura deste artigo, seria praticamente impossivel ver o descjo por bens como algo sem fundamentos ou independente da cultura, ¢ a demanda como uma reagdo natural ¢ mecanica 4 disponibilidade de bens e de dinheiro para compra-las. O consumo entre os gondes é intimamente ligado a 46 exibigdes colctivas, ao igualitarismo cconémico e a sociabilidade - 0 gue gera um problema para os murias que, como conseqiiéncia de alteragdes na economia tribal mais ov menos ao longo do ultimo sé- culo, adquiriram uma riqueza consideravelmente maior que 0 resto de suas comunidades. O resultado é um padrao que, invertendo Veblen, leriamos chamar de “parciménia conspicua”, em que a simplic dade do estilo de vida e das posses é mantida contra as crescentes pressées do aumento da renda. Quando despesas com mercadorias sao feitas, tendem a girar em torno de formas de mercadorias tradi- cionalmente accitas, tais como cintaros de bronze, ornamentos cerimoniais ou casas, que concretizam valores compurtilhados cole- tivamente. Nao se trata de um mundo dominado pelo ethos de bens limitados, como pode parecer a primeira vista, mas de um mundo onde nao ha interesse real na maioria das coisas que os mercados tém para oferecer. Identidade do grupo, homogencidade suntuaria, igual- dade econdémica ¢ sociabilidade hedonistica compdem uma estrutura de valores no interior da qual a maioria dos bens introduzidos de fora € desinteressante € preocupante. A regulamentacao coletiva da de- manda (c, assim, do consumo) ¢, aqui, parte de uma estratégia consciente dos ricos para comter as implicagdes divisivas da diferen- ciagio. O exemplo muria é um caso impressionante de regulamentagio social do desejo por bens, mesmo quando as condigdes técnicas ¢ logisticas para uma revolugio do consumo foram atendidas, como no caso dos tecidos na India, o préximo a ser discutido. A contribuigao de Christopher Bayly para esta coletanea é uma and- lise xtremamente sutil e sugestiva das mudan¢as na economia moral € politica dos tecidos na India desde 1700."7 O texto demonstra, de um modo muito claro, os lagos entre politica, valor e demanda na historia social das coisas. De acordo com 0 argumento de Bayly, a produgao, a troca e o consumo téxteis constituem o material de um ‘discurso politico” (um tanto como a gat na Somalia) que vincula a demanda tégia, as estruturas de producao ¢ solidariedades sociais locais, ¢ a construcao da legitimidade politica. E o aspecto do consu- MO presente neste discurso politico que explica a grande penetragio de tecidos ingleses nos mercados indianos durante 0 século XIX, e na0 meramente a légica bruta da utilidade e prego. Enfim, no movi- mento. nacionalista do final do século XIX ¢ comego do século XX, inter na retérica de Gandhi, os intimeros fios do discurso po- erca do tecido sao reconstituidos ¢ reempregados no que se 47 pode chamar de uma linguagem de resisténcia mereantil, na qual sig- nificados mais antigos ¢ mais recentes do tecido se voltam contra 0 império britanico. O ensaio de Bayly (que, entre outras coisas, € uma aplicagdo extraordinariamente rica das idéias de Werner Sombart), ao examinar os efeitos de longo praze na vida social de uma merca- doria particular significativa, nos fornece duas elucidagées de considerfve! importancia em termos comparativos: primeiro, que as légicas do consumo habitual em comunidades pequenas se ligam in- timamente a regimes de valor mais amplos, definidos por sistemas politicos de grande escala; e que o vinculo entre processos de “singularizagao” © *mercantilizagao” (para usar os termos de Kopytoff) nas vidas sociais das coisas €, em si mesmo, dialético ¢ estd sujeito (nas maos de individuos como Gandhi) ao que Clifford pis Geertz chamaria de “jogo absorvente”. A demanda é, pois, a expressao econdmica da légica politica do con- sumo; logo, seu fundamento tem de set buscado nessa ldgica- Seguindo os rastros de Veblen, Douglas ¢ Isherwood (1981) € Baudrillard (1968, 1975, 1981) sugiro que 0 consume € eminente- mente social, relacional e alive, em vez de privado, atémico ou passivo. Douglas tem uma vantagem sobre Baudrillard, a de nao res- tringir & sociedade capitalista contemporfinea seu modo de ver 0 consumo como um ato de comunicagio, mas estendé-lo jgualmente a outras sociedades. Baudrillard, por sua vez, coloca a légica do con- sumo sob o dominio das légicas sociais tanto de produgiio quanto de troca, ¢ de modo idéntico. Além disso, ele faz uma critica extrema- mente eficaz a Marx e seus colegas economistas politicos no que diz respeito ao par de conceites “necessidade” e “utilidade”, ambos vis- tos como entaizados em um substrato primitivo, universal € natural da condigao humana. Minha propria inclinagao é dar um passo 4 frente na desconstrugao que Baudrillard faz dos conceitos de “necessidade” e “atilidade” (eo deslocamento dos mesmos em uma esfera mais ampla de produgao € (roca) ¢ estender sua idéia também a sociedades nao-capitalistas. Em que consiste esta visio do consumo? Em observar 9 consumo fea demanda que o torna possivel) como um ponto de convergéncia nao apenas de envio de mensagens sociais (como propés Douglas), mas, igualmente, de recepgdo destas mensagens. A demanda, portanto, oculta dois tipos diferentes de relagao entre consumo € produgio: 1) de um lado, € determinada por forgas sociais & econdmicas; 2) de 48 outro, pode manipular, dentro de certos limites, estas forgas econé- micas € sociais. 0 ponto essencial ¢ que, de uma perspectiva histérica, estes dois aspectos da demanda podem afetar um ao outro. Tome-se, rexemplo, a demanda régia, como na discussao de Bayly sobre a India pré-moderna, Aqui, a demanda régia constitui uma forga que envia mensagens ou molda a producio, vista sob a perspectiva inter- na da sociedade indiana no s¢culo XVIII. Quer dizer, a demanda da realeza estabelece os parametros tanto do gosto quanto da produgao po campo de influéncia que Ihe concerne. Mas a demanda real tam- bém € uma forga de recepgo de mensagens, na medida em que tem suporte em suas relagoes Com os estilos e produtos europeus contem- poraneos. Gostos da elite, em geral, tém essa fungao de “torniquete”, fazendo seleces a partir de possibilidades exdgenas e, entio, forne- cendo modelos, assim como controles politicos diretos, para os gostos ea produgao interna. Um mecanismo que freqientemente transpde o controle politico na demanda de consumo é o das “leis suntudrias”, que caracteriza so- ciedades complexas pré-modernas, mas também sociedades de pequena escala, pré-industriais ¢ pré-letradas. Sempre que vestimenta, comida, moradia, ornamentagao do corpo, niimero de esposas ou de escravos, ou qualquer outro ato manifesto de consumo esto sujeitos a uma regulamentacdo externa, podemos perceber que a demanda esté igualmente sujeita & definicao social e ao controle. Desse ponto de vista, os imimeros “tabus” das sociedades primitivas, que proi- bem determinados tipos de casamento, de consumo de alimentos ¢ de interacio (assim como suas injungdes cognatas positivas), podem ser considerados como estritos analogos morais das leis suntudrias, mais explicitas, e legitimadas, de sociedades mais complexas ¢ letradas, E por meio deste elo que podemos compreender melhor a perspicaz analogia que Douglas (1967) traga entre sistemas de racionamento ‘primitivos” e “modernos”. O dinheiro moderne esta para os meios de troca primitivos, assim como a moda esta para as primitivas regulamentagdes suntuarias. Ha similitudes morfolégicas claras entre ambas, mas o terme “moda” eee alta velocidade, répida rotatividade, a ilusio de um acesso = ede uma alta conversibilidade, a suposigao de uma democracia bl ee e de objetos de consumo. Por outro lado, os meios aa 4 primitivos, como as leis suntudrias ¢ os tabus, parecem rigi- , dé movimento lento, frageis em sua capacidade de comensurar, 49 ligados a hierarquias, discriminagoes e posigdes da vida social, Mas, como demonstraram téo bem Baudrillard (1981) ¢ Bourdieu (1984), as autoridades estabelecidas que controlam a moda eo bom gosto na sociedade ocidental contemporanea nao sao menos eficazes em limi- tar a mobilidade social, em demarcar a posigao social ¢ a discriminagao, ¢ em colocar os consumidores em um joge com re- gtas constantemente alteradas, determinadas pelos que “ditam o gosto” e seus especialistas afiliados, que habitam o topo da sociedade. Os consumidores modernas sao certamente tao vitimas da velocida- de da moda quanto os consumidores primitivos 0 sio da estabilidade da legislacao suntudria. A demanda por mercadorias ¢ drasticamente regulada por esta variedade de mecanismos que ditam os gostos, cuja origem social ¢ compreendida de modo mais claro (tanto por consu- midores quanto por analistas) cm nossa prépria sociedade do que naquelas distantes de nds. Do ponto de vista da demanda, a diferenga crucial entre as sociedades capitalistas modernas ¢ as baseadas em formas de tecnologia ¢ trabalho mais simples ndo é que nés possui- mos uma economia totalmente mercantilizada, ao passo que, na economia daquelas socicdades, dominaria a subsisténcia e a troca de mercadorias teria feito apenas incursées limitadas. Antes, tal dife- renga reside no fato de, em nossa sociedade, as demandas de consumo das pessoas serem reguladas por critérios de “apropriabilidade” (moda) de alta rotatividade, em contraste com as alteragocs menos fregiientes nos sistemas de regulamentagao mais diretos, suntudrios ov consuetudindrios. Porém, em ambos os casos, a demanda é um impulso gerado ¢ regulamentado socialmente, ndo um artefato de caprichos ou necessidadcs individuais. Mesmo em sociedades capitalistas modernas, € claro, os meios € 0 impulso de imitar (no sentido de Veblen) nao sao os dnicos instru- mentos da demanda de consumo, A demanda pode ser manipulada por recursos politicos diretos, seja sob a forma especial de apelos para boicotar alfaces cultivadas em mas condicées de trabalho ou sob as formas generalizadas de protencionisma, “oficial” ou “nao- oficial”, Novamente, o tratamento dado por Bayly & manipulagao que Gandhi faz com o significado do tecido produzido na India é um arquiexemplo de politizagio direta da demanda. No entanto, esta manipulagdo em larga escala da demanda por tecido na india do sé- culo XX sé foi possivel porque o tecido vinha sendo, em um nivel local, um instrumento para o envio de mensagens sociais sofisticada- 50 mente sintonizadas, Assim, podemos postular como uma regra geral que as comunidades em que o consumo sé vincula de um modo mais intricado com mensagens sociais cruciais tendem a ser menos susce- tiveis a alteragdes bruseas na oferta ou no prego, porém mais suscetivcis 4 manipulagdo politica no nivel da tegulamentagao da sociedade, Do ponto de vista social, ¢ ao longo da histéria humana, os agentes decisivos na arliculagao da oferta e procura de mercudorias tém sido nado apenas Os governantes, mas, é claro, os comerciantes. O magni- fico trabalho, recentemente publicado, de Philip Curtin sobre o comércio entre culturas ao mundo pré-industrial sugere que modelos anteriores, como o de Polanyi, da administragao do comércio podem ter superestimado o controle do Estado sobre economias complexas pré-modernas (CURTIN, 1984, p. 58). O que fica claro é que as rela- Ges entre governantes e Estados variaram enormemente no tempo e no espago. Embora estudos come o de Curtin estejam comegando a demonstrar padroes subjacentes a esta diversidade, o componente da demanda nessas dinamicas de comércio permanece obseury. As pro- ligagdes histéricas estrcitas entre governantes e comerciantes (sejam de cumplicidade ou de antagonismo) poderiam, parcialmen- te, ser a fonte das reivindicagdes de ambas as partes pelo papel principal na regulamentagao social da demanda, As politicas de de- manda encontram-se, com freqiiéncia, na origem da tensdo entre comerciantes ¢ elites politicas; sempre que comerciantes apresentam uma tendéncia de ser os representantes sociais de uma equivaléncia irrestrita, de novas mercadorias ¢ de gostos estranhos, as elites politi- cas apresentam uma tendéncia de ser os zeladores da troca restrita, de Sistemas mercantis estaveis e de gostos cstabelecidos e normas Suntudrias. Este antagonismo entre bens “estrangeiros” e estruturas Suntuazias (c, portanto, politicas) locais ¢, provavelmente, a razio fundamental da tendéncia, muitas vezes notada, das sociedades pri- Mitivas em restringir o comércio a um conjunto limitado de mercadorias e a negociagdes com estranhos, em vez de parentes ou amigos. A idéia de que o comércio viola o espirito da dadiva pode, €m sociedades complexas, ser apenas um subproduto, vagamente apa- Tentado, deste antagonismo mais fundamental. Em sociedades pré-modernas, portanto, a demanda por mercadorias algumas vezes Teflete dindmicas do Estado, ou, como no caso do kula, a fungao de Ponto de articulagéo na competicao de status entre elites masculinas a0 ligar sistemas de troca interns ¢ externos. 3] Esse pode ser um ponto apropriado para se observart que hd diferen- as importantes entre a hiografia cultural e a historia social das coisas. As diferengas dizem respeito a dois tipos de temporalidade, duas for- mas de identificar uma classe e dois niveis da escala social. A perspectiva da biografia cultural, formulada por Kopytoff, é apro- priada a coisas especificas enquanto passam por miéos, contextos € usos diferentes, acumulando, assim, uma biografia especifica, ou um conjunto de biografias. No entanto, quando observamos classes ou tipos de coisas, é importante considerar alteragdes de longo prazo (muitas vezes na demanda) e dindmicas de larga escala que transcen- dem as biografias de membros particulares dessa classe ou tipo. Assim, uma reliquia particular pode ter uma biografia especifica, mas a tota- lidade dos tipos de reliquia — e, ainda, a propria classe de coisas chamadas “reliquia” — tem um fluxo e refluxo histérico mais amplo, no decurso do qual seu significado pode se alterar expressivamente. O ensaio de Colin Renfrew, “Varna e o surgimento da riqueza na Europa”, levanta uma série de questées importantes, de cunho metodolégico e teérico, sobre as mercadorias vistas no decurso de um longo periodo de tempo. Seu ensaio lembra-nos que as mercado- rias sdo essenciais para algumas das alteracdes muito antigas e fundamentais na vida social humana, especificamente a passagem de sociedades relativamente nfo-diferenciadas de caga € coleta as pri- meiras sociedades com formas de governo, mais complexas. Em primeiro lugar, observar tais processos no decurso de periodos muito longos €, necessariamente, estar envolvide com modelos de inferéncia que vinculam a producao com o consumo. Em seguida, examinar processos de produgéo nos primérdios da histéria humana implica observar mudangas tecnoldgicas. Aqui, Renfrew nos mostra de um modo muito persuasivo que os fatores decisivos na inovagdo tecnolégica (crucial para o desenvolvimento de novas mercadorias) sao muitas vezes sociais ¢ politicus, em vez de meramente técnicos. Isso posto, segue-se que, como Renfrew deixa claro, consideragoes sobre valor ¢ demanda tornam-se centrais para a compreensao do que, 4 primeira vista, parecem saltos estritamente técnicos. Assim, ao analisar 0 papel do ouro e do cobre em Varna, como tam- bém de objetos similares de “valor primordial” em outros sitios pré-histéricos da Europa, Renfrew nos afasta das tentagdes de uma visdo reflexionista (segundo a qual abjetos de valor refletem o alto status das pessoas que os usam) em prol de uma visio mais constru- 52 tiva, segundo a qual ¢ o uso de objctos de alta tecnologia que é crucial para alteragdes na estrutura de status. Portanto, 0 que se deve expli- car S40 nogées de valor mutaveis, que, por sua vez, implicam novos usos de descobertas tecnoldgicas ¢ navas formas de controle politica dos produtos de tais inovagécs. A complexa argumentagao de Renfrew ilusira 4 questo de que mudan¢as no papel social de objetos de exi- bicgdo (eles mesmos fundados no controle sobre materiais de valor superior) explicam alteragdes de longo prazo no valor e na demanda. Ao mesmo tempo, seu ensaio nos lembra que © papel cultural das mercadorias (conquanto tema central deste livro) nao pode ser, em Ultima instincia, separado de questées de tecnologia, produgio e co- mércio, Contudo, ainda que o problema arqueoldgico sirva para realgar a complexidade e a dimensio histérica das relagdes entre valores, diferenciagao social e mudanga técnica, a auséncia de documentos escritos ou orais mais convencionais, na verdade, dificulta mais a reconstrugao da mudanga de valor que a da mudanga social e tecnolégica, O ensaio de Renfrew tem a virtude de ir ao revés do que suas evidéncias confirmariam de um modo mais confortavel. Processos de longo prazo envolvendo o papel social das mercadorias foram recentemente estudados em trés grandes obras, duas da autoria de historiadores (BRAUDEL, 1982; CURTIN, 1984) ¢ uma de um antropologo (WOLF, 1982). Cada um destes estudos tem algumas virtudes particulares, mas também ha sobreposigGes significativas entre eles. O livre de Curtin é um audacioso estudo comparativo do que cle denomina “diisporas comerciais”, comunidades de comerci- antes que moveram bens através das fronteiras culturais ao longo da historia registrada e até a época da expansao industrial européia. Ele se empenha em manter uma visdo nfo-eurocéntrica do mundo do Comércio antes da era industrial ¢, nisso, possui muitos tragos em comum com os objetivos de Eric Wolf em seu livro recente. Contu- do, 0 estudo de Wolf, em parte por seu ponto de vista tedrico e por se Scupar de um capitulo bem mais recente da histéria dos lacos da Europa com o resto do mundo, se orienta muito mais em diregio & Europa. Curtin e Wolf fazem um grande esforco para demolir a idéia de fluxos de mercadoria como algo recente ou exclusivamente ligado 40 capitalismo metropolitano, ¢ servem como lembretes importantes do pano de fundo institucional, logistico e politico a despeito do qual ©comércio aconteceu por entre as fronteiras sociais e culturais. Mas, Por diferentes motivos em cada caso, Curtin e Wolf interessam-se. SF menos pela questio da demanda ¢ o problema da construgdo cultural do valor, Os ensaios no presente livro, entéo, complementam e enri- quecem © amplo panorama institucional, econdmico e tecnoldgica dos fluxos de mercadoria apresentados nesses dois estudos. Braudel, o formidavel decano da Escola dos Anais, ¢ uma outra his- téria. No segundo volume de seu estudo magistral sobre o capitalismo ea vida material le 1500 a 1800 d.C, , Braudel nao se contenta em nos dar uma descrigio densa e comovente da formagao do mundo industrial moderno. Nesse volume, cujo titulo em inglés ¢ The Wheels of Commerce," Braudel se ocupa, tal como Curtin e Wolf (além de, é claro, muitos outros historiadores sociais e econGmicos) da nalureza, estrutura ¢ dinamica do comércio no mundo apés 1500. Na verdade, tomados em conjunto, estes trés estudos apresentam um retrato im- pressionante de um grupo extremamente complexo ¢ inter-relacionado do que chamei de “ectimenos mercantis”, que, comegando por volta de 1500, liga diversas partes do mundo, Braudel discute brevemente a parte da demanda neste grande esquema. No que concerne as rela- des entre oferta e procura nos primérdios do mundo capitalista, sua argumentacio, como sempre, coloca as coisas em uma ampla pers- pectiva temporal (BRAUDEL, 1982, p. 172-83); mas, sobre as origens € as conseqiiéncias das mudancas na demanda, pouco do que diz nao havia sido antecipado por Werner Sombart, que sera discutido logo abaixo. Todavia, estes trés principais tratamentos recentes do fluxo de mercadorias na construcio do sistema global sao titeis por realgar e fornecer o contexto para aquilo que os ensaios deste Jivro buscam realizar, que é esclarecer as dindmicas sociais ¢ culturais do fluxo de mercadorias. Toda esta discussao acerca de quest6es relativas a va- lor, carreira e classificagiio tem, obviamente, o objetivo de enriquecer nossa compreensao das idiossincrasias das coisas, uma dimensao a que a produgio académica prévia nao tem dado uma atengdo muito sistematica. A histéria social das coisas ¢ suas biografias culturais nao sao assun- tos de todo separados, pois ¢ a histéria social das coisas, no decurso de longos periodos de tempo e em niveis sociais extensos, que Cons- trdi coercivamente a forma, os significados ¢ a estrutura de trajetéri de curto prazo, mais especificas e particulares. Também ha casos, ainda que tipicamente mais dificeis de documentar ou prever, em que muitas altcragdes pequenas na biografia cultural das coisas podem, com o tempo, levar a alteragées em suas histérias sociais. Exemplos S¢ destas complexas relagées entre trajetérias de grande e pequena es- cala ¢ padrées de longo c curto prazo no movimento das coisas néo so muito difundidos na literatura, mas podemos comegar a observar tais relagdes com referéncia as transformagoecs dos sistemas de troca sob o impacto do regime colonial (DALTON, 1978, p, 155-165; STRATHERN, 1983) ¢ as transformagées da sociedade acidental que levaram ao surgimento do souvenir, do objeto colecionavel e da lem- branca (STEWARD, 1984). Neste livro, os ensaios de Bayly, Geary, Cassanclli e Reddy sio discussdes especialmente interessantes das selagdes entre estas duas dimensdes da temporalidade das coisas. Nao é uma coincidéncia que estes estudiosos sejam, todos, historiadores sociais, interessados em processos de longa duragdo. A melhor abor- dagem geral da relagao entre demanda, citculagao de objetos de valor ¢ alteragdes de longo prazo na producao de mercadorias encontra-se no trabalho de Werner Sombart (SOMBART, 1967). Bevemos a Sombart a importante observagao histérica, de que, no periodo entre 1300 e 1800 na Europa, que cle vé como 0 cerne do comego do capitalismo, a principal causa da expansio do comércio, inddstria ¢ capital financeiro era a demanda por bens de luxa, sabre- tudo da parte dos nouveaux riches, das cortes e da aristocracia, Ele identifica a fonte deste aumento da demanda, por sua vez, na nova forma de compreender a venda de amor “livre”, nos refinamentos sensuais e na politica econdmica das relacdes de corte durante este periodo. O significado dessa nova fonte de demanda era que a moda havia se tornado uma forga motriz para as classes mais altas, sacia- das apenas por artigos de consumo em quantidades cada vez maiores € qualidades cada vez mais diferenciadas. Esta intensificagio da de- manda, sexual e politica em suas origens, assinalava o fim de um estilo de vida senhorial ao mesmo tempo em que estimulava a manu- fatura e 0 comércio do capitalismo nascente. Embora a abordagem geral de Sombart da histéria social do capita- lismo tenha sido, durante e apés sua vida, legitimamente criticada por uma série de deficiéncias empiricas ¢ idiossincrasias metodolégicas, ela permanece como uma alternativa potente (embo- Fa subterranea) as visGes de Marx ¢ de Weber sobre as origens do Capitalismo ocidental. Ao voltar-se para o consumo e a demanda, a Obra pertence a uma tradigdo minoritéria ¢ opositiva, algo de que Sombart estava bem ciente. Neste sentido, Sombart é um dos primei- tos criticos do que Jean Baudrillard chamou de “espelho da producao”, 55 no qual uma boa parte da teoria dominante da economia politica do Ocidente moderno tem se visto. Em sua énfasé na demanda, em suas observagies fundamentais sobre as politicas da moda, em sua colo- cacéo das forcas econémicas no contexto das transformagdes da sexualidade e em sua visio dialética das relagdes entre luxuria ¢ ne- cessidade, Sombart antecipa recentes abordagens semidticas do comportamento econémico, tais como as de Baudrillard, Bourdieu, Krisieva e outros. A abordagem de Sombart foi recentemente retomada cm um estudo extremamente interessante das circunstincias que antecederam 0 co- meco do capitalismo, da autoria de Chandra Mukerji (1983). 0 argumento de Mukerji, que converge para o meu em diversos pontos, é que, longe de serem resultado da revolugdo tecnolégica/industrial do século XIX, uma cultura materialista ¢ um nove tipo de consumo voltado para produtos ¢ bens provenientes de todo o mundo foram pré-requisito pata a revolugao tecnolégica do capitalismo industrial. Nesta audaciosa critica & hipétese weberiana sobre o papel do ascetismo puritano de fornecer 0 contexto cultural para 0 célculo ca- pitalista, Mukerji segue Nef (1958) ¢ outros. A argumentacao dela é uma sofisticada descrigdo histérica do pano de fundo cultural dos primérdios do capitalismo na Europa. Apresenta novas evidéncias ¢ argumentos para colocar o gosto, a demanda ¢ a moda no centro de uma explicagio cultural das origens do capitalismo ocidental, assim como para a centralidade das “coisas” nessa ideologia na Europa Renascentista (ver também GOLDTHWAITE, 1983). Para os nossos propésitos, a importincia do modelo proposto por Somburt para as relagdes entre luxiria e o comego do capitalismo reside menos nas especificidades histricas ¢ espaciais de sua argu- mentagao (que é um problema para historiadores dos primordios da Europa moderna) do que no carater generalizante da ldgica de seu argumento no que diz respeito A base cultural da demanda por, a0 menos, alguns tipos de mercadoria, aquelas que chamamos de luxos. Proponho que consideremos os bens de luxo nao exatamente em con- traste com necessidades (um contraste cheio de problemas), mas como bens cujo uso principal é retdrico e social, bens que sao simplesmen- te simbolos materializados. A necessidade a que efes correspondem é fundamentalmente politica. Ou melhor, ja que a maioria dos bens de luxo € consumida (ainda que de formas especiais ¢ a custos espe- 56 ciais), poderia fazer mais sentido ver luxos como um “registro” espe- cial de consumo (por analogia com o modelo lingiiistico} do que vé-los como uma classe especial de coisas, Os tragos distintivos deste regis- tro, em relagao 4s mercadorias, sio alguns dos ou todos os seguintes atributos: (1) restrigao, quer por prego ou por lei, a elites; (2) comple- xidade de aquisi¢ao, que pode ou nao ser uma fungao de “escassez” real; (3) virtuosidade semi

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