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3. Modo de producfo e histéria A Economia Politica cléssica elaborou categorias com a pre- tensdo da universalidade e da intemporabilidade, Sua sucessora mo- dema, assentada sobre o terreno do positivismo, deixou de ser politica e se converteu na Economics dos anglo-americanos. Preo- cupa-se apenas com as variacSes ocorrentes na alocaco quantita- tiva dos fatores de produgdo, na distribuicdo da renda e no mer- cado, conservando 0 pressuposto da imutabilidade do mundo eco- némico. Ga aa oat semeereat same nee cine nae eee aman enras eesti ee ate ectutaen ieee taane weer cae “ofa lke cmeutrims ener ve Pro 10m ie ire Genta Mls se emp a Debt & Carp pe le ae eens erbrageiers seamen soe, al ez alg noe el oe ela ae a ee Bn somtign Ee cee og ee eet ee ee Cap. Il; id. 0 Processo Civilizatério. 3.* ed. de Janeiro, Ed. Civilizagéo Sees ‘Mopo DE PRoDUGKO B HISTORIA 13 A critica da Economia Politica classica feita por Marx e Engels consistiu em desvendar o cardter histdrico de suas categorias. A teoria do modo de produgo capitalista ndo se estende aos modos de producdo precedentes. Ao invés de se ocupar com um mundo econémico intemporal, cuja racionalidade 6 relativa apenas ao capi- talismo, a Economia Politica deve ter por objeto a pluralidade dos modos de producdo, cada qual regido por suas leis especificas, Al- gumas categorias possuem, no entanto, validade universal — ma- nifestando a identidade permanente do sujeito tinico da-historia —, ‘mas elas mesmas se apresentam com a determinacao de cada modo de producao dado, Uma esséncia econémica pairando acima da sucesso dos modos de produgdo representaria pura abstragao me- tafisica. A categoria de modo de producao se qualifica por sua absoluta generalidade, uma vez que, em todo o decurso da historia, incluindo 0 que chamamos de pré-histéria, nos deparamos com alguma organizacao social produtiva. Ao mesmo tempo, a catego- ria de modo de' produg&o s6 6 concebivel em cada organizagio scial historicamente determinada, Esoreveu Marx: .) todos os estidios da producio possuem caracteres comuns que 0 pensariento fixa como determinagées gerais, porém as cha- madas condigdes gerais de toda produio nfo sio mais que estes momentos abstratos que no permitem compreender nenhum nivel hhist6rico concreto da produgio.” #1 Tratava-se de uma revolugéo no s6 no dominio da Economia Polttica, mas também no domfnio da ciéncia hist6rica. As grandes €pocas hist6ricas passavam a ser compreendidas a luz do desenvol- vimento ¢ da sucesséo dos modos de producio e das formagbes sociais Esta revolugio esterilizou-se desde o momento em que, no campo do marxismo, se instaurou o esquema da seqiiéncia evolutiva universal de cinco modos de produedo fundamentais. O materia- lismo histérico deixou de ser ciéncia social, como o entendeu Lénin*, e se converter em mais outra filosofia da histéria, mar- cada pelo apriorismo e pela teleologia. Sem pretender aqui qualquer investigacao filol6gica exaustiva, creio poder afismar que este esquema invaridvel e universal ndo se originou em Marx, nem em Engels, 31 Manx, K. “Introducci6n.” Op. cit, p. 8. 22Ct. Lewin, Viadimir. “Ce que Sont ies ‘Amis du Peuple’ et Comment Ils Luttent Contre les Social-Democrates.” In Geuvres. Paris, El. Socisies. Mos- cou, Ed. en Langues Ftrangtres, 1958, t. I. p. 155 et pas 14° REFLEXOES METODOLGcICAS B certo que Marx referiu a “épocas progressivas” da formagéo econdmica da sociedade, identificadas, 2 grandes tragos, com os modos de producdo asiatico, antigo, feudal e burgués.* Nao indi- cou, porém, que tivesse em vista uma linha tinica de desenvolvi- mento histérico. Qualquer divida que restasse ficaria eliminada nas cartas que escreveu ao diretor dos Otiechestviennie Zapiski (fins de 1877) e a Vera Zassulich (8 de marco de 1881), nas quais taxativamente declarou ndo atribuir cardter universal & linha de evolugdo da Europa ocidental, estudada em O Capital. A génese do capitalismo no Ocidente europeu nao deveria ser metamorfo- seada numa teoria hist6rico-filos6fica da marcha geral que o destino impGe a todos os povos, quaisquer fossem suas circunstdncias hist6- ricas, A primeira das mencionadas cartas encerra-se com palavras que vale a pena reproduzi “Assim, pois, acontecimentos ndtavelmente anilogos, que, no en- tanto, ocorrem em meios histéricos diferentes, conduzem a result dos totalmente distintos. Estudando em separado cada uma dessas formas de evolugio e comparando-as depois, pode-se encontrar facilmente a chave do fenémeno, porém nunca se chegard a isso mediante o passaporte universal de uma teoria histérico-filoséfica geral, cuja suprema virtude consiste em ser supra-histérica”.™ Ironia amarga da qual néo escapam muitos marxistas. Na Origem da Familia, da Propriedade Privada e do Estado, encontramos a conhecida seqiiéncia evolutiva: comunismo primi- tivo, ,escravismo, feudalismo ¢ capitalismo.%® Mas, ao iniciar a ex- posigéio da linha de evolucdo historica, advertiu Engels expressa- ‘mente que no se ocuparia com a parte oriental do Império Romano —o que restringe aquela sequiéncia & Europa ocidental — e, adiante, introduziu a evolugdo particular dos povos germfnicos, os quais passaram da comunidade primitiva ao feudalismo sem conhecer 0 estidio escravista®® Nada, pois, que devesse ser tomado por es- quema universal, decorre da concepgao de Engels. % Cf. Manx, K. Contribution dla Critique de MBconomie Po B ‘3M Manx, K. “De Marx al Director del Oslechestviennie Zapiski." In MaRx, Carlos y ENoELS, Federico. Correspondencia, Buenos Aires, Ed. Problemas, 1947. p, 371-372. "Marx a Vera Zassulich.” In GoDELIER, Manx, ENGELS. Sobre ei Modo de Produccién Asidtico. Barcelona, Ed. Martinez Roca, 1969. B I71-172. 35 ENoELS, F. “El Origen de la Familia, la Propriedad Privada y el Estado,” In Manx y Enosts. Obras Escogidas. Moscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1982. t. Th, p. 300-302. 438 bid. p. 27% © 285. ie, OP. cit Mopo be Propugio 8 mistéma 15 © mesmo se pode dizer de Lénin, se considerarmos a concep- cdo € a metodologia do conjunto de sua obra, Nao obstante, lemos em sua conferéncia Acerca do Estado, de julho de 1919: “O desenvolvimento de todas as sociedades humanas no curso de milénios, em todos os paises sem excecio, nos demonstra que este desenvolvimento obedece a leis comuzs, € regular © conseqiiente, de modo que, a principio, tivemos uma sociedade sem classes, & sociedade patriarcal primitiva, na qual no havia aristocrat seguida, a sociedade baseada ha escravidio, a sociedade escravista. ‘Através destas etapas passou toda a Europa civilizada contempord- nea, na qual a escravidio era o regime dominante em absoluto hi dois mil anos. Através desta etapa passou também a enorme maio- ia dos povos dos demais continentes (...) A este regime se seguiu na histéria outro, o da servido da gleba. Na imensa maio- ria dos pafses, a escravidio, no curso de seu desenvolvimento, con- verteu-se na servidio da gleba (...) No curso do séeuloXVIIT e no curso do século XIX, tiverai lugar revolug6es em todo 0 mundo. A servidio da gleba foi eliminada em todos os pafses da Europa ocidental. Isto sucedeu na Rissia mais tarde que em ne- nhuma outra parte. Em 1861, também na Rissia se operou uma reviravolta radical, que teve como conseqiiéncia a substituigao de uma forma de sociedade por outra, a substtuigfo da servidio da sleba pelo capitalismo (...)"27 Percebe-se que Lénin conferiu generalidade ao proceso que Engels relacionou exclusivamente ao Ocidente europeu incluido no Império Romano. Talvez 0 trecho citado seja nico na obra de Lénin ¢ sua evidente simplificagdo da complexidade historica obe- decesse a fins didaticos. Todavia, é dificil argumentar que nao re- presentasse 0 pensamento maduro do autor, jé refletindo possivel- mente uma corrente de idéias no campo do marxismo. O fato € que Stilin se encarregou de “oficializar” 0 que se converteu em esquema no sentido estrito, ao escrever: “A hist6ria conhese cinco tipos fundamentais de relagées de pro- dugo: 0 comunismo primitivo, a escravidio, o feudalismo, o capi- talismo e 0 socialismo" 25 Na verdade, a exposicdo no se reporta a relagbes de produ- go, mas a modos de produgio. Conquanto estabeleca a ressalva LENIN, Vladimir. “Acerca del Estado.” In Mars, Engels y el Marxismo. Moscou, Ed. en Lenguas Extrangeras, 1947. p. 454-455. 28Sriuin, J. “Sobre el Materialismo Dialéctico y el Materiatismo Hist6rico." Jn Cuestiones del Leninismo. Moscon, Ba. en Lenguss Estrangeras, 194i. P. 658, 46 SEFLEXOES METODOLOGICAS a respeito dos tipos fundamentais, Stélin deles excluiu 0 modo de producdo asidtico que, para Marx, correspondia a uma época da formagao’ econdmica da sociedade. Os tipos secundérios de rela~ Ges de produgao ficaram omitidos e nao se sabe que lugar teriam na hist6ria, De qualquer maneira, Stélin nfo deixou margem a dividas, a0 concluir sua seqiiéncia dos cinco tipos fundamentais: “Tal € 0 quadro que apresenta o desenvolvimento das relagdes de produgio entre os homens, no curso da hist6ria da humanidade”.”° & dispensdvel insistir na forca institucional com que este es quema, durante muito tempo, se impés aos estudos marxistas. Toda a hist6ria universal ficava de anteméo decifrada por uma seqiéncia unilinear, J se conhecia previamente o que precisava ser pesqui- sedo e esclarecido, Bastava selecionar fatos para encaixe na seqiién- cia preestabelecida. A este esquema, que dispensa 0 penoso traba. Iho de pesquisa ¢ reflexio da citncia, poderiamos aplicar’a critica de Hegel ao método intuitive de Schelling: “(...) se considerarmos de mais perto este desdobramento, vemos ‘que nao resulta de que uma s6 e mesma matéria se configurou ¢ se diversificou; ele €, pelo contrario, a repeti¢éo informe do Idéntico que & somente aplicado do exterior a materiais diversos ¢ obtém, com isso, uma fastidiosa aparéncia de diversidade, Se o desenvol- vimento no € nada mais do que esta repeticao da mesma formula, idéia, indubitavelmente verdadeira por si mesma, fica sempre, de fato, no seu comeco. Quando 0 stijeto explicitanda seu saber po faz outra coisa que pregar esta forma tinica e imével aos dados Aisponiveis, quando os materiais so mergulhados de fora neste calmo elemento, tudo isso, bem como as fantasias arbitrérias sobre © contetido, no constitui a consecugo do que é reclamado, ou seja, a riqueza jorrante de si mesma, a diferenga de figuras se auto- ctesminando. Tal procedimento é antes um formalismo mono- cromo, que chega & distinggo no céntetido-somente porque este contetido diferenciado jé fos preparada ¢ jé € bem conhecido”.® No precisamos ser hegelianos para reconhecer que dificil. ‘mente se caracterizaria melhor todo dogmatismo na Filosofia e na cigncia, Inclusive o dogmatismo stalinista, também reduzido a um formalismo monocromo para 0 qual o contetido, diferenciado ape- nas na aparéncia ou em detalhes insignificantes, ja esté preparado bem conhecido, 39 bid, p. 662. 80 Hecst, G. W. F. La Phénomenologie de Esprit, Paris, Aubier, 1939. t. 1 p. 15. t6aIco & misroRIcD 17 Inspiradas no esboco genial das Formen *, as investigagbes marxistas mais recentes vem explorando a multilinearidade da evo- lugdo histérica, de acordo com a concepgio genuina de Marx ¢ Engels. © moda de produedo asiético, discricionariamente abolido por Stélin, recuperou o estatuto de categoria marxista. E, a0 invés da teleologia, do finalismo ideolégico, 0 reconhecimento do pro- gresso histérico decorre de um critério objetivo: 0 da imanéncia da dialética entre 0 desenvolvimento das forgas produtivas — em primeiro lugar, os préprios homens — ¢ a revolucio das relagdes de producdo. Qualquer que seja a respeito o julgamento de valor, as diregdes da hist6ria humana, em suas variadas formas, consubs- tanciam o progresso das forcas produtivas, em iltima andlise, a clevagio da produtividade social do trabalho e o crescente domfnio do homem sobre a natureza.®*

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