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Augusta Faro A FRIAGEM BARS CONTOS 2? edigao a Copyright © 1998 Augueta Foro Fleury de Meo, 1 edigso 1998 2 edigio, Ait Edita, setembro 1999 ISBN - 8895851953, Caps ‘Augusta Faro Hlastragto da Capa Ontk no Cemitério (dealte), Delacroix Projeto Gritico Gil Eduardo Perini Composigio ¢ Paginasio Jacy Siqueira Editor Plinio Martins Filho Direitos reervados 4 ATELIB, EDITORIAL Rua Manoel Pereza Leite, 15, (06700000 - Cots = SP ‘Bef: (Osx) 79229666 1998 Impresso no Brasil Foi feito depbsito lpat SUMARIO + As Formigas AGaiola A Ceia de Aninha + AFriagem AsFlores AGaivota O Dragio Chinés Saco de Lixo As Sereias Checkup + Paranbia ‘As Gemeas OFrade rt) 7 33 ed 59 65 7 83 105 dt Jat 139 a fue “Ludo consesrapéi um logy pedodorde chuvas. Choveu tanto que os ribeirdes cresceram, sumindo as pedras grandes e pequenas ¢ a Agua alargou a medida do corpo do rio e se espalhou pelos lados como se quisesse sair daqueles lugares. Depois destas chuvas todas, 0 tempo mudou para um ftio constante, o que nao era costume ali, ne- blinoso, ¢ custava a amanhecer. A noite encompri- dou 20 ponto de os galos cantarem muitas vezes, pensando quea madragada estava continuando fora das medidas costumeiras. As roupas nunca seca- vam ¢ a umidade era tanta, que o cheiro de mofo impregnou até as flores e os animais, O ar diéfano e sutil foi aderindo as plantas e pessoas e, em pouco tempo, um lodo esverdeado cobria a pele das gen- tes e.0 semblante delas empalidecera como se uma pitina cobrisse todas as coisas expostas. O sol aparecia desbotado, sem conviceZo, nada lembran- do set 0 Sol, mas apenas um claro nio definido e fragil 4 350 Por esse tempo, Nina comegou a sentir uma friagem que the trincava os ossos das pernas ¢ bra- os e as pessoas, que estavam por perto, ouviam os estalidos das juntas ¢ tendées. Mesmo assim, ela nao sentia dor alguma e, apés os ataques de fria- gem, continuava lépida e ativa como sempre fora. Mas de repente esses episbdios friorentos ficaram mais freqiientes. Alguns cobertores enrolavam os aga- salhos de Ji (pois s6 estes nao valiam), mas pouco adiantavam. Muito no inicio, todos pensavam que 6 frio fosse um resto do tempo estranho que atra- vessaram, mas 0 clima mudara, havia esquentado, céu limpou a cara e nada mais recordava a época chuvarenta e o frio. Esses tempos j estavam afasta- dos, mas Nina continuava com os surtos friorentos. ‘Toda manha a moca era colocada sentada numa cadeira de couro, na parte cimentada do quin- tal, onde havia muito sol e, ainda assim, ela batia queixo e as forcas fugiam das petnas, e nfo conse- guia caminhar. Resolveram acender duas fogueiti- nnhas, uma de cada lado da mosa, de modo que ela recebesse mais calor, além do que chegava direto do sol ardente. Nina foi perdendo o apetite, porque era di- ficil comer, o frio que sentia Ihe vinha das entra- nhas, de tal forma malignamente e com tanta forga que, além de aborrecé-la, os alimentos todos esfria- vam bastando chegar proximo ao seu hilito. 36 De modo constante ela se queixava que o frio tinha vida ¢ se moyimentava dentro dela, ini ciando a caminhada na nuca, para descer por todos ‘Os ossos, juntas e articulasdes, depois, saindo do cotaco, cominhava por todos os drgios através das artérias e veias, entio, ela sentia tudo dentro de si latejar de tanto frio. O médico, com a cara de ganso velho, chegou e queixou-se da friagem que sentira perto da doente, e nada entendendo, pediu ajuda de outros colegas, que também reclamaram nada po- derem fazer com o frio a atrapalhar seus exames. Eles ficaram com expressio de estituas, perplexos, sem atinar com o fendmeno estranho que viram. O caso foi relatado e enviado a capital ¢ logo vieram dois cientistas para examinar por que tanto frio a jovem gentia e qual a natureza desse frio. O calor grande, 0 clima ensolarado nao aju- dava em nada. Nina queixava que o frio entrava nos cabelos, ¢ cada fio ressentia, como se fossem muitos cordéezinhos de gelo a lhe cobrirem a cabe- ga qual um capacete. A Nina, que era u’a moga for- te, muitas vezes faltavam forgas, quando tentava se- gurar o tremor de seu corpo, dos ossos estalando, a ponto de os passantes na rua ouvirem o chocalhar deles. Embora viessem médicos experientes, com suas seringas esterilizadas, retirar sangue para exa- mes, nada conseguiam, apés horas de tentativas. O 583708 sangue congelava dentro dos vidros das seringas ¢ tomava uma cot esverdeada, como deveria ser 0 san- gue de répteis e outros animais de sangue frio. Os instrumentos, contendo o sangue gelado, eram aque: cidos em estufas apropriadas, por tempo medido ¢ cronometrado, mas nunca liquefazia, continuando gelado como pedra e verde como o musgo que me- dra entre as pedras dos muros da casa. Por esse tempo, 0 abatimento da moga era visivel e toda a cidade comecou em romaria a visi té-lae orar junto aos seus familiares, condoidos com a sua sorte muito esquisita, Alguma coisa vinha mudando dentro da moga, alguma coisa de muito triste passava-se den- tro de seu coragio, pois seu olhar nublado mostra- va uma solidio enorme e desconhecida, que escor- riae penetrava nas pessoas que a fitassem nos olhos, ‘Amie eo pai de Nina ficavam sempre den- tro de um quartinho nos fundos, onde improvisa- ram um altar com flores e velas, € ali oravam e cho- ravam sempre limpando os olhos com panos, para que as pessoas nao percebessem seus prantos didri- os. Resolveram, por isto, marcar as horas de preces as horas para as lagrimas, porque assim poderiam receber os parentes ¢ amigos e, mais ainda, para que a moga ndo se assustasse. AAs vezes o trincar dos ossos era tio alto, que nna rua de cima as pessoas perdiam 0 sono, porque 3880 elas ouviam os oss0s partiado ¢ se dividindo por muitos, por dentro, O pior mesmo foi quando a cadelinha de Nina, que a acompanhava desde me- nina, resolveu ficar aos pés da dona. De tal forma o corpo da moca era gelado e espargia friagem, que em trés dias a cachorrinha amanheceu morta. O que causou um choro enorme na combalida Nina, e suas lagrimas cairam dures no ladrilho, que pen- savam que fossem bolinhas de gude. Houve dias de as visitas rarearem, mesmo estando sempre curio- sas, porque era imposstvel sair dali como entraram, © frio que exalava a jover pregava, grudava nas roupas e passava para os corpos das pessoas, que, muitas vezes, mesmo permanecendo a tarde toda no sol escaldante, levavam uns trés dias para voltar- Ihes a temperatura normal. E as roupas, por no terem sangue e vida como gente, demoravam mui- tos dias geladas. Nina emagrecia a clhos vistos, pois a difi- culdade de engolir era grande, por causa da gargan- ta e do es6fago empedrados, Um dia um menino, por nome de Pedro, apareceu ali com uma borboleta presa pelas asas, para mostrar 4 Nina. Para surpresa geral, ela quis e apeteceu 0 inseto ¢, sem asco nem reccio, conseguit engolir a borboleta, que no se congelou e Nina se sentiu melhor. A borboleta era lindissima e muito colorida. Logo outros meninos do grupo escolar 06 398 resolveram sait pelos campos buscando as varia- das borboletas, para que a doente se alimentasse. Dai em diante, ela deu uma fortalecida boa ¢, ali- mentada de tantas cores de borboletas, seus labios perderam aquela aparéncia de fuligem de cal, suas faces a brancura cinzenta de pratos esmaltados ¢ antigos. Alimentando-se sé de borboletas, 0 trabalho dos parentes, para cagar os insetos, ocu- pava grande parte do dia, eo nimero delas dimi- nuia, absurdamente, voejando pelos campos. Mas a friagem ainda a incomodava muito. Por isto, re solveram construir uma lareira redonda onde colocavam Nina durante a noite, e recostavam a cabeca dela, de modo que cochilasse por algum tempo. © consumo de madeira dew para acabar com 0 bosque perto do rio, infelizmente tiveram que abater as Arvores para acudir ao frio noturno da jovem. Aconteceu que alimentado o fogo, este nem sempre conseguia debelar a friagem, que nascia de dentro, mas de qualquer forma abrandava a sua violéncia. Tia Nocenga veio de longe visitar a sobri- nha e conseguiu que ela tomasse colheradas e mais colheradas de uma pogio feita com gengibre, cra- vo, canela, carrapicho ¢ alho. Essa mistura era a racio liquida, pois como as borboletas, nao conge lava a0 aproximar dos labios gelados e do halito de Nina. O povo era muito solidario, até os das cida- 40 Be des vizinhas ajudavam, s6 nao o fazendo mais, pois, percebendo que o frio, que morava dentro da me- nina, passava para as pestoas ¢ os velhos, muitos demoravam a se aquecer novamente e, nessa angtis- tia de friagem, muitos ficaram acamados ¢ alguns nao resistiram. © tosto da moga cada dia mais ficava im- passivel, embora no comeso ainda conversasse, s¢ queixasse ¢ até ria; depois de algumas semanas, ela estava ali, mas parecia que estava fora do corpo € mantinha os olhos ¢ a boca fechados a maior parte do tempo. ‘A situacdo estava nesse desespero ea impo- téncia de resolver o problema prolongava. Foi as- sim quando chegow na cidade, numa tarde quentis- sima, tum jovem de cabelos longos e vestes brancas como as de um monge, Ninguém conhecia o rapaz € nunca o tinham visto por ali. Quando Raimundo entrou no bar da esqui- na e pediu um copo de leite, ao segurar o vasilha, 0 Ieite ferveu no mesmo instante. As pessoas, que as sistiram ao acontecimento, pensaram o mesmo pen- samento — levilo até Nina. Assim que ele entrou no quintal cheio de sol e cumprimentou a moga, a mio que foi tocada perdeu a rigidez gélida, Naque- la noite a mio da menina nao estava congelada, como na noite anterior. Buscaram o rapaz de novo e ele permaneceu mais tempo, conseguiu alisar o wae cabelo de Nina ¢ abragou-a demoradamente. Ela dormiu melhor, porque o frio diminuira. Dai pra frente, muitos dias seguidos, Raimundo vinha con- versar com Nina, tocar-lhe o rosto e dar comida em. sua boca. As borboletas j4 néo eram necessarias. Durou quase um més o rapaz ajudando a familia a aquecer a jovem, que devagar, como se nascesse de novo, foi aprendendo a lidar, segurando os objetos, a andar devagarinho e, constantemente, aumentava, a temperatura do corpo. A friagem estava sendo vencida, Os sinos no paravam de tocar e as procis- s6es entravam e saiam das ruas, sempre com cinti- cos de gracas e louvores. Um fato foi notado por todos: Do lado esquerdo da veste de Raimundo o coragio aparecia, sob o tecido grosso, como uma fornalha vermelha que pulsava, tamanho o calor que se acendia ali. Passados mais dias, as pessoas, os médicos vitam que Nina voltara a cor e a tempera- tura de u’a moga de sua idade. A friagem, que a havia atormentado até quase a morte, desaparecera por completo, Os pais mandaram buscar musicos, magi- cos, dangarinos nas cidades vizinhas e prepararam um churrasco que consumiu 3 000 vacas, barris de cerveja, muitos quilos de arroz e mandioca cozida e mais farofa com queijo ¢ azeitonas. A festa era para no ser esquecida munca mais. Tado preparado, uma comissio familiar foi até a pensio buscar Raimun- a do, o responsével pela volta & tranqitilidade daque- le povo, mas [4 no estava, no conseguiram en- contrié-lo. Ninguém soube de onde viera, nem para onde foi aquele mogo de cabelos longos. Algumas velhinhas, que viviam nas janelas olhando o ermo do tempo, disseram que um bando de colibris se- guiu o vulto de um rapaz até que sumisse na estra- da, mas no garantiam se fora Raimundo quem par- tira, 43 Be A funy Copyright © 1998 Augusta Fato Fleury de Melo, 1 edigdo 1998 2 eligi, Ateié Editorial, setembro 1999 ISBN - 8585851953 Copa Augusta Faro Mustragio da Capa Orf no Cemitéro detalhe), Delacroix Projeto Grifico Gil Bduardo Perini Comporigio e Paginagio Joey Siqueira alton Plinio Martins Filho Diretoe reservados & ATELIE EDITORIAL Rua Manoel Pescira Leite, 15 ‘700.000 - Catia - SP “Tefc (Qexl1) 79229666 1999 Impreisa no Brasil Fo feito depésite lege SUMARIO ‘As Formigas AGaiola ‘ACeia de Aninba A Friagem AsFlores AGaivota O Dragio Chines Saco de Lixo As Sereias Checkup Paranoia ‘As Gémeas OFrade v 27 33 45 59 65 7 83 105 I i121 139 Oy WA ae A boca de Dolores era limpa, Escovava os dentes umas seis vezes por dia. Usava o fio den- tal, um por um, dois por um, entre cada, em cima, embaixo. Todos os dias a escova interdental ia para 08 cartos nio-movedigos. Sem Faltar ages ¢ablu- 60s. A boca limpa. “Limpa a boca, meninal” Ou- via a vor da tia de olho vesgo ¢ saia amarrada como calga-culote. “A boca é cartio de visita”, re petia. “Ser4 que minha mie morteu por que sujou a boca?” Perguntava as bonecas em siléncio. E lavava a boca das bonecas, escovava, quebrava os denti- hos de celuldide delas. Palavra mais linda! Ce - tu -I6i- del Queria se chamar Celuldide. Por isso, quando o mogo pegou nos peitinhos dela e falou 20 ouvido: “Seu nome é mesmo Celuldide?” Ela ainda se derretendo, disse: “E Celuléide, sim; ape- lido, Dolores”. © mogo foi embora, ¢ ela pensou aq, talvez, ndo tivesse gostado de seus celuldides nascendo. Depois que o nego Celu morreu daque- le eito, ¢ Dolores soube que havia 0 Léide Aéreo aioe Brasileiro, caindo muitos avides, achou melhor en- terrar de vez 0 nome. Ficou s6 com os dentinhos limpos. A boca limpa. ae — De uns tempo pra cé, doutor, sé sonho com a boca cheia de formigas. Que é isso? — Falta de casar. — Mas 0 que tem casar com boca cheia de formigas? — Entio, esta diabética, comendo muito doce. — Mas nao como doce, nem came, jé falei pro senhor. — Por isso que sonha esquisito. Onde ja se viu ua moga de 50 anos sem comer doce nem cat- ne, sendo que nio é preciso? ~E bom pra satide, doutor, lina revista, —E bom quando a cabeca boa. —Mas, minha cabeca nao & boa? —E. Poderia ser melhor. te Ela saiu brava do consultério. Também mé- dico de casa, nesse fim de mundo, formado ha tan- to tempo e plantador de toga, s6 nisso que poderia 412 be dar mesmo. Como é que ele iria dar valor a suas queixas e sonhos com formigas? De tio conhecido perdeu a graca —Niio quero doces nesta casa, nem pra visita, nem pra remédio, Visita toma café, e s6! Nao quero biscoitos, nada que chame formiga, viu, Aurora? Dai pra frente os sonhos amiudaram. A boca estufada de formigas deixando pedacos de dentes nas frestas do assoalho. As formigas mordiam os beicos com os serrotes de celuloide, separadinhos tal qual os dentes das bonecas, As formigas faziam caminhos da boca pro cho, do cho pra boca. E clas riam alto com seu riso de formiga. Estalavam 08 labios, cerravam os dentes, trincando, trincan- do; 0 barulho parecia mesmo serrinha de brinque- do ¢ Dolores acordava pingando mel, ia pro chu- veiro, escovava os dentes muitas vezes no meio da madrugada. Noutro dia levantava tarde, abria as janelas e procurava as formigas pra toda banda, Nada. Cha- mava as meninas, nenhuma formiga 4 vista, nem rastro. 13 Dolores pediu 4gua benta e 0 padre Romu- lo veio molhar os cantos, as aberturas dos armérios, a despensa, as frestas das prateleiras. Dolores dormiu bem, ficou sem sonhar muitos dias. Nem boca, nem formigas, nem denti- hos de celuldide batendo, batendo. De repente, lé vem elas roendo ¢ rindo alto. De todas as cores ¢ feitios. As tanajuras balangando os traseiros sem modos. As formigas queima-quei- ma fazendo moldura dos quadros, em fila, direiti- aho, as de ferro rodeando as janelas e portas, nas paredes, dependurando nos lustres, circulando os miéveis da sala, As formigas de asas subiam nas me- sas, uma atris da outra, em marcha cadenciada, igual a soldadinhos. Ai, Dolores pds a boca no mundo, juntou gente na casa, A cidade buligou-se como um formiguciro. —Falta de couro. —Nio, Zé, paciéncia, isso é solide que co- zinha os miolos dela. — Que mané solidio, falta de servigo, isto sim. — Até que pode ser, mas é sua irma, tem que ter dé, Vamos levar la pra casa. — Vamos nada, Por que no casou, para ter sua casa? Mulher tem que casar, santa. E tudo ficou por isso mesmo, Deu em nada © ajuntamento de gente. ade a Dolores quieta, cismando. De um dia para 0 outro foi piorando de forma insistente. Agora os mogos vinham rindo, ¢ a boca ia se inchando de formigas, de repente. — Sai, gente, sai daqui! Vocés s6 querem pe- gar nos meus peitinhos de celuldide e vio casar com moga de cidade grande. Saiam daqui ja! Os mogos corriam, mas acabavam voltando com formigées nas mios ¢ eles cresciam e ficavam tao altos como os telhados. me Dolores acordava, ia lavar a cabega no chu- veiro ou na bica, chorava ¢ ia escovar os dentes. Nada de dormir. No outro dia, de olhos fundos, embutidos, sem sumo, levantava tarde, calada, Cha com torradinhas, ¢ escovava os dentes mandando chamar os irmios, mas ninguém vinha nada. Se apareciam, mal ouviam a moca contar seus medos ¢ iam embora, batendo a porta, emburrados. ee Dolores comesou a visitar as casas vizinhas indagando pelas formigas. 15 Be —Nio, Dona, aqui nio tem tido. Olha as roseiras, estio inteirinhas, Vamos ver os doces nas prateleiras, tudo limpinho, nao tem formiga nao. Acho que a senhora esta impressionada mesmo. sae Dolores resolveu mandar lavar a casa com Alcool, depois querosene. Passou a dormir de dia, para evitar a peleja noturna. Mas elas apareciam sempre. Cambaleantes ou espertas ¢ devoravam tudo e saiam do nariz dos retratos presos nas pare- des, entravam pelas orelhas, pela boca. As vezes subiam pelas pernas de Dolores, nos bracos, rindo ¢ trincando os dentes de celuléide. As bonecas que enfeitavam as prateleiras foram ficando de olhos secos, as formigas foram chupando um por um. ‘Tudo veio repetindo tudo € novas insénias e gritarias. Naquela manhi de sol, a moga se armou de coragem e foi ao Corpo de Bombeiros. Tiveram boa vontade, chegaram, fiscalizaram de ponta a ponta, as beiradas todas da casa. “E impressio, Dona, ca- pais que € cisma, TA tudo em ordem, nio ti tendo formiga nio.” 16m Dolores abriw fogo dessa vez. Colocou qus- tro latas de querosene Jacaré repletas d’4gua nos pés da cama, “- Quero ver se sobem, com esses batris elas vio ver! Ah, ah! O que vai ter de formiga morta, ninguém vai acreditar.” Mas foi sé uns dias de sossego. De noite ou de dia, devagar, aos poucos surgiam e vinham aumentando a marcha, marchan- do, marchando, mascando, mascando, cortando os cabelos dourados de Dolores (sera que é pra fazer ninho? pensava a moca), a boca, 0 nariz, os ouvi- dos logo logo, como se fossem agucarados. — Zé, jé falei, vamos levar sua irma pra tra- tar noutro lugar maior. Afinal voce que ficou res- ponsivel por ela. Tadinha! — Que nada, Mulher que nao tem servico, no casa, dé nisso, Tem que ter marido ¢ filho para cuidar, senio endoida, cada qual de um jeito. ‘A cunhada se calou, ja cansara de pedir aju- da pro marido. Coitada da Dona Dolores, 0 jeito era formigar mesmo. He Aguele dia o siléncio estava grande na ca- sona, até que Dona Felisbina no meio da tarde quis ver o que acontecera: normal nao estava. As portas fechadas desde a vispera, tudo calado ¢ no lugar. 7B Dena Felisbina entrou pé ante pé até o quar- to de Dolores e deu com uma cena triste. Dolores nao respirava, imével, branca como leite, mia, mas coberta de formigas de todas as co- res € feitios, num movimento de fim de mundo. O ruido delas era imenso, vaivém ensandecido. ‘A cama da moca rodeada de bonecas com bocas abertas, com os dentinhos de celuldide. Mui- tas bonecas de todos os tamanhos, sentadinhas, for- mando uma guirlanda ao redor do leito, E Dolores ria seu sorriso de solido, com a boca limpa e chei- rosa mas destilando um fio—formiguinhas descen- do num filete — que passava pelas cobertas, percor- ria 0 cho, saindo pela janela. Aquele fiozinho de formigas risonhas, pequenas, as menores de todas. 418 6 A Gaiola BARS

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