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passado, guardamos o compromisso com a tradigio de pesquisa etnolégica inaugurada por Egon Schaden. Com o futuro, aceitamos enfrentar 0 desafio de fazer uma revista aberta aos problemas contemporincos ¢ em sintonia com os ‘campos de investigacdo emergentes. Espera-nos seguramente um frduo trabalho. A Antropologia dos anos 90 nfo serd a mesma das décadas anteriores. © universo de pesquisadores disper- ‘sou-se em indimeros centros de pesquisa, de ensino ¢ instituigdes governamentais ou de militincia. Os caminhos da pesquisa complicaram-se: seu financiamento ficou cada vez mais erftico, a massa de dados que 0 pesquisador obrigado a processar, cada vez, mais indigesta, os universos de observagio, cada vez mais ‘complexos € 05 paradigmas te6ricos que nos orientavam, cada vez menos eficientes. esse panorama, a Revista de Antropologia pretende ser um canal de ‘expressio ¢ eflexio dos novos problemas ¢ modelos. Gostarfamos de poder Cubeo' quanto A autonomia de uma pessoa ¢ suas obrigngées com respeito & mente ensinava as criangas s0bt fndole, a arrogincia, a inveja ea malic © trabalho, para 0s Cubeo (¢ para o alienado das relagbes pessoais de comuni senso Cubeo de comunidade, havia uma conexo entre as relagbes pess que cada comunidade ¢ composta -, produgio ¢ riqueza, os prazeres do uma ética de diplomacia e sua grande valorizacéo da autonomia pessoal. tudo isso em conta em seu papel de criador de timentos dos outros, ¢ dos outros para consigo, -15- ‘OVERING, onana. A ettica da produ: o senso de comunidad entre os Cubwo eos Piaroae uma boa vida em comunidade, néo se poderia trabalhar e, sem trabalho, néo havia comunidade. Em outras palavras,o trabalho — inclusive, ou em particular, a ‘manulengio cotidiana da vida —nfo era entendido como labuta; esta € uma nogéo ‘ocidental, isto é, um produto de relagies de dominagdo e subordinacéo. Em prinefpio, os Cubeo trabalhayam quando felizes; para eles, todo esforgo devia ser ‘essencialmente satisfat6rio,”° resultado de relagées sociais prazerosas. © ponto importante que Goldman apreendeu acerca da organizacéo social € politica indigena, ¢ acerca da filosofia de socialidade que a sustentava, foi o réprio fato de que gente vivendo junta em comunidade dependia da criagdo cotidiana de moral aio entre seus membros, ¢ néo do estabelecimento de leis, regras © corporagées. Esta é uma boa razio, uma vez afastada a forma "exterior" dos aspecios de organizagio social, para que os Piaroa e os Cubeo parecam tio semelhantes. Desde que 0 vinculo com.os outros; tanto para os Cubeo quanto para 0s Piaroa, permanecia (insistentemente) em um plano mais informal e que cra, em larga medida, considerado sujeito & preferéncia pessoal, 0 grupo conservava-se junto apenas enquanto seus membros ¢ sous I{deres obtinham, ‘mantinham, inspirago nas relagSes.>® A diferenga de povos que acreditam que suas comunidades tm existéncia temporal por meio de mecanismos tais como a ropriedade corporada de bens e as normas jurfdicas desta corporagéo, nem os ‘Cubeo, nem 0s Piaroa, entendiam "comunidad", ¢ as relagdes que encerrava, como um dado politico que permitia continuidade através do tempo, mas ‘enquanto um processo de existéncia que devia ser cotidianamente obtido pelas. pessoas, pelo tato nas relagdes ¢ pelo trabalho. A escolha politica era pelo ‘conforto fisico ¢ emocional diério, em detrimento da estabilidade mais abstrata ‘que a heranga passada e futura, com suas normas ¢ regulamentos, envolve.”” Para muitos {ndios, 0 trabalho é também uma capacidade criadora, uma ‘manifestagio de conhecimento produtivo, que confere condigéo humana, ¢ através do qual podem-se criar bens, tais como omamentos, os meios materiais ‘de transformar para uso 0$ recursos da terra ¢ as transformagées em si mesmas (por exemplo, a produglo agricola, o alimento cozido). Como indicarei adiante, ao tralar dos.Piatoa, a ommamentacdo e as capacidades para o trabalho nio se cencontravam desvinculadas. A beleza de uma pessoa falava da ccapacidades criadoras ¢ de sua pericia no trabalho, abrigadas dentro da comunidade, explicitadas em relagdes pessoais agradvels. O talo necessério ‘0 conbecimento produtivo ¢ & criatividade na produgio trazia consigo uma -16- ‘Revista de Antropotogia. Sto Paulo, USP, n. 34, 1991, pp. 733. ‘stética que relacionava ambos & produgio (seus prazeres) e & moralidade das, rolagées sociais (seu prazer). Em sum, podemos nos referir a isso como uma "estética social", clemento critico de um senso de comunidade indigena, ou 0 dominio do conhecimento produtivo que, no entendimento indigengy permite a construgio ¢ a manutencéo da comunidade. Goldman, em sua etnografia dos Cubeo, 20 enfatizar os valores Cubeo quanto ao extremo tato nas relagées pessoais ¢ ao prazer do trabalho, nos guia até esta drea da estética social, que desejo agora desenvolver. A ESTETICA DO TRABALHO ENTRE OS PIAROA, OU O CONHE- CIMENTO PRODUTIVO (Os valores de autonomia pessoal e de comunidade Havendo, em outro lugar, escrito extensamente sobre a informalidade da vida social Piaroa, ¢ sobre sua extrema valorizagio da tranqiilidade nas relagbes pessoais dentro da comunidade,”” devo aqui sintetizar apenas alguns pontos a fim de tomar clara a comparagio. Assim, no que segue, tratarei mais detidamente da estética do trabalho Piaroa. Os valores de comunidade que discutirei referem-se especificamente & aldeia Piaroa, a grande casa comunal fisicamente isolada, que constitufa um grupo tesidencial, semi-endégamo ¢ bastante autonomo como tunidade econdmica, cerimonial ¢ de parentesco. Tais valores de harmonia valem apenas em parte para o tertt6rio politico, a mais larga unidade social no teritrio Piaroa, composta, via de regra, ou sete comunidades multifamiliares allamente dispersas. A populagio rio, entretanto, co-residia em casa de seu lider por trés meses a0 ano, por ocasiéo da grande cerimOnia Piaroa de proliferagto, Sari. Durante este festival, a esiética da vida em comunidade © 0 {rabalho correlato que descrevo igualmente aplicavam-se aos membros, unidos, do terrtério, que somavam cerca de 350 pessoas. E, 0 que é mais importante, o festival 36 poderia ser exibido pelo lider territorial sc tais valores de comunidade fossem alcangados para o conjunto. Tipicos guianenses, os Piaroa realizavam a vida em comunidade de modo altamente informal e, como 0s Cubeo, insistiam na autonomia pessoal enquanto, 220 mesmo tempo, atribufam grande valor ao social. O direito & escolha pessoal ra proclamado constantemente na conversagéo didria,e para o antropélogo que indagava sobre suas "regras", Cabia ao individuo escolher ou nao escolher seguir ‘as maneiras apropriadas de fazer as coisas; era muito impolido comentar 178 ‘OVERING, Joanna. A esttic da produsho: 0 senso de comunldade entre os Cubeo ¢ 0s Parca. diretamente, de forma negativa, uma decisio de outro, fosse com relacio 20 alimento, 20 trabalho, & residéncia ou aos hibitos sexuais. Até 0 casamento ‘correto (que j4 descrevi"” como a tnica instituicao s6cio-organizacional da vida comunitéria entre os Piaroa que 0 antropélogo poderia facilmente categorizat) era ‘uma questio de livre interpretagio: nenhum casamento era considerado apro- priado se todas as partes envolvidas — pais, sogros, noiva ¢ noivo — com ele nfo concordassem. Além disso, nfo havia "regra de residéncia", mas parentes com quem era bom ¢ também correto viver: a escolha final era deixada ao individuo ou casal. O mesmo pode ser dito quanto ao reconecimento de lagos espectticos de parentesco, uma deciséo muitas vezes melindrosa para um individuo. © trabalho didrio era organizado de modo fluido ¢, assim sendo, comumente refletia os humores e preferéncias pessoais dos individuos envol- vidos.© trabalho de um terceiro nunca era dado por certo, Odireitoapreferencia referia-se tanto escolha pessoal de co-residentes com quem se considerasse mais adequado dispender tempo, quanto 20 tipo de tarefa em si mesmo. ‘Usualmente, passavam-se maitos anos de casamento antes que um jovem casal cooperasse, em conjunto, na abertura de uma roca: 0 tempo e a vontade de cuidar de seus filhos era 0 que 0s levava a esta ‘adequados os parentes com quem era hat rar ao menos em parte — por ‘exemplo, um pai ou uma mie -, viveria omunidade. Os homens, em particular, tendiam a se *especializar" no trabalho que mais apreciavam: alguns homens detestavam cacar, ¢ assim, ao invés disso, faziam artefatos oupescavam; outros cagavam diariamente, Como para os Cubeo, respeito paracomo humorea preferéncia alheios era, para os Piaroa, um aspecto essencial de scu senso de ‘comunidade. Se uma pessoa se portavamal,de maneira descontrolada, demodoa representar um constante aborrecimento para os outros, era aconselhado por um parente ou pelo lider da comunidade (seu ruwang) a submeter-se & cura com 0 der, que detinha poderes xamfinicos, afim de descobrira causa externa da falta de controle. A cura era, entdo, questo privada, enfre 0 doente e o ruwang. fa. Se alguém no considerasse A comunidade afluente, para os Piaroa, era aquela que poderia levar em conta, 20 nivel didrio, tanto a flexibilidade no hordrio de trabalho quanto as proferéncias individuais para as tarefas especificas; como para os Cubeo, Revista de Antopologia. Sbo Pt.lo, USP, 2. 4, 1991, pp. 7-33. eram membros de comunidades maiores; os mais velhos sonhavam com 0 passado, antes das epidemias dos anos 40 e 50, quando as comunidades Piaroa eram maiores. Uma comunidade muito pequena, de quinze a vinte pessoas, simplesmente no possuia recursos humanos que permitissem escola pessoal ¢ ‘animo no desempenho de todas as tarefas, requeridas para a sobrevivéncia cotidiana: a pesca, a caca, a colela de alimento ¢ lenha, 0 cultivn, o proces samento dos produtos da caga ¢ da roga, ¢.o ritual necessério & protegso cotidiana. O I(der bem-sucedido era aquele que conseguia atrair & sua comuni- dade gente suficiente, gente capaz de cooperar harmonicamente em tase digria, que lhe permitia manter 0 moral alto dentro da comunidade. Somente através do moral allo poder-se-ia obter 0 conforto no trabalho, definigfo de aflutncia para os Piaroa. Apesar de ter extraordinérios poderes, dados seus poderes mégicos vis-i-vis mundos fora do social, o Ider de uma comunidade (rawang) tinha pouco poder de coergio sobre o desenrolar de de outro; no dia-a-di, todos os prodiutos da florestaeram igualmente partlhades entre os membros da comunidade, enquanto 0s produtos da roga ¢ artefatos eram privadamente possuidos pelos individuos cujo trabalho os produzima. Nao havia esses (cee grog do ancikn ou bm sel is & ue d> nenhum deles reconhecia a legitimidade do peter a coletividade”. A nogio de {que uma "comunidade como um todo” pudesse deter direitos sobre alguém, ou de {que alguém devesse submeter-se a uma decisio proveniente de uma "vontade e.de alguém forse imposia de cima, pela comu- nidade, seriam idéias abomindveis para os Piaroa."” O uso de tais poderes de coergio seria julgado-a-social¢_politicamenteilegftimo, ono ce Cube, 0s Para insti ao detoe do Indian, a9 scemo = ‘OVERING, Jonas. A cdc da produsio 0 setso de comunidade entre os Cubco eos Paros. BELEZA E CRIATIVIDADE: AS CONTAS DE CONHECIMENTO E AS CAIXAS DE CRISTAL DOS DEUSES ‘usavam colares, bragadeiras e pemeiras Feitas de co dendo do sexo, ¢ vérias pinturas faciais © corporais. ilustrava, na superticie do corpo, as habilidades protetoras interior. As marcas corporais estampadas nas mulheres ‘conhecimento de reprodugio e eram chamadas "os desenhos de mens! ‘as marcas dos homens falavam de seu conhecimento produtivo de ca ‘cantar, curar ¢ proteget. Os desenhos faciais masculinos eram também chamados "ps caminhos das contas" ou "o caminho das palavras do canto", indicando 0 ‘conhecimento especifico de cantar: o desenho era 0 caminho, ou a seqiéncia, das 20- Revista de Antropologia. Ss Paulo, USP, 2.34 1991, pp. 7-38. homens Piaroa, que ostentavam os desenhds do "caminho das ram usadas por eles para guardar itens de valor ritual, tis como seus 4 drogas, drogas e pentes; por meio do uso de pentes, as forgas de seus pensamentas produtives eram "mantidas em ordem". Tal como as forgas para cultivo, caga, pesca eram entendidas como poderes produtives, assim tam- bém 0 eram as forgas do canto: através delas o lider Piaroa, ruwang, trazia da morada dos deuses. todos os poderes para a vida e produtividade para 0 inte- esias capacidades gradual- 1a pedido, se sentissem que (kackwaewa reu) porque designavam a forga para a ) que, dentro de um individuo, o habilitava a ter desejos. © conhecimento, produtivo © outro, nelas contido era, em contraste, chamado "vida dos pénsamentos" (ta’kwaru). A quantidade de contas em colar le de contas usadas em decoragio contava do grau de capacidades possuido pela pessoa que as portava: o grande Ider ruwang e a mulher com muitos filhos eram carregados delas. beleza. Os deuses, que eram a fonte de poderes produ- encontrava-se a linda luz de seus cantos, junto a uma longa fieira de contas em 21- ‘OVEERING, Joanna, A estética da produglo: 0 senso de comunidade entre os Cubeo os Paro. todas as cores do arco-iris; outra franja de contas pendia de sua rede sua coroa de penas de tucano ficava em um caga estavam seus lindds amuletos e ‘suas caixas de poder ficavam muitas li ‘$6 abundancia, porém, ‘comportamento excessivo (feio) ¢ & loucura, ‘conhecimento produtivo trazia consigo uma teoria, seu lado moral e politico. Em outras palavras, no co © conhecimento produtivo ampliava-se para conhecimento estético, © BELO E 0 FEIO: UMA TEORIA DO SOCIALE DO A-SOCIAL Os Piaroa descreviam os poderes bons ¢ produtivos da magia néo apenas 3", mas também como "limpos" e "frescos" pertencentes aos deuses, era Ifmpida e fresca; nesta égua o ruwang, limpava e embelezava as palavras de seus cantos. Todo 0 contetido di cristal dos deuses permanecia belo porque estes seres etéreos, através de uma ura "vida de pensamentos" (ta’kwaru), continuamente limpavam seus poderes, ‘Uma mulher era bonit walwahu) ¢ um homem era bonito (a’kwakwa) quando recém-banhadi portanto ~ ¢ ornamentados com seus desenhos ‘corporais © contas de rtante notar que os produtos do trabalho de alguém — um filho, um pe toga, uma zarabatana — eram rotulados seus a’bwa, Beleza (a’kwakwa), ponsamentos (ta’kwaru) ¢ 0s produtos do trabalho (@’kwa) estavamn lingtisticamente vinculados. Poderes especialmente malfazejos provinham do calor e da luz imoderados do sol: cfreulos ou chuvas manchadas de ferrugem pela forga do sol, e cheias de Joucura, cafaim do céu para envenenar alguém. Um cagador inescrupuloso poderia 2 Revista de Antropologia, Sho Paulo, USP, n.34, 1991, pp. 7-33. ‘tomar poderosos venenos ou encantagées de caga do urubu, da ferrugem do céu ‘ou do centro do ou, todos plenos da violenta forga do sol, mas seria envenensdo por esta forga brilhante ¢ entraria em um estado de parandia e de mau compor- tamento. No entanto, todas as forgas produtivas eram potencialmente maléficas em uso. O deus criador destas forcas produtivas durante o tempo mitico era fisica- mente feio, louco, mau ¢ insensato em suas agbes. A fonte de suas capacidades para usar e transformar recursos da terra — cultivar, cagar, cozinhar — eram alucin6genos venenosos a ele concedidos pela deidade suprema de sob a terra. Jubiloso, cometeu o incesto € devorou seus afins potenciais. O vensno de seus oderes veio, finalmente, a afetar todos 0s outros deuses do tempo da criagSo. © tempo mitico foi um tempo de répido desenvolvimento tecnolégico, ‘quando os meios para uso dos recursos da terra foram criados, ¢, devido 20 ta quanto & propriedade da nova € dos recursos de que esta se utilizava. Se, ao principio, 0s deuses ‘ou menos capazes de, pacificamente, obter tais recursos ¢ as forgas para atividade produtiva por meio de casamento ¢ troca, estas forcas foram-se tornando demasiado vérias ¢ poderosas para que os deuses dominassem sua poténcia ¢, 20s poucos, envenenaram a vontade ¢ os desejos daqueles que as terra; e, entdo, comecaram a matar e a canibalizar pela dominios em si mesmos. Todas as relagées culmi- dador ¢ presa, ¢ a criago de uma comunidade pactfica tomou-se Este perfodo criativo da histéria findou quando todas as forgas transformacionais para produgéo foram lancadas deste mundo para uma nova estével morada no espago celestial: tais poderes so aqueles alojados na seguranga das caixas de cristal dos deuses de hoje, acima discutidos. E muito significative que os deuses etéreos, celestiais, que hoje possuem todas estas forgas produtives, nfo tenhem "vida dos sentidos" para ser assim Be COVERING, Juana, A ettia da produghr 0 senso de comunidade entre os Cubeo 0s Paroa, cenvenenada, Nio podem, portanto, usar 0s poderes que possvem; a0-contrério, com toda a forca de sua "vida de pensamentos", eles os limpam e embelezam. ‘Um Piaroa que tenha tomado dos deuses forgas produtivas em excesso, além de sua capacidade de domind-las, no seré capaz de limpé-las de seu venen0 ¢, portanto ~ como se deu com o deus criador destes poderes e, depois, com todos ‘0s deuses criadores -, sua "vida dos sentidos” seria envenenada, ele sofreria a loucura ¢° agiria a-socialmente."° Por este motivo, os Piaroa insistiam na aquisigéo limitada © gradual de poderes pro presente, criar ¢ manter a comunidade social, tempo da criagao. 08 outros. Este um povo que preza a tranglilidade em um homem, mais do que sua estreza na.caga. Os aspectos a-sociais de su} eexcesso~sinais de eS ainda envenenadas p josae violentaluz-do vas deloucura, avi adeearrogancia, mais abominavam. Nio se poderia viver Sob controle as Forgas {ais recursos, eram chamadas "as caixas de dominagio ¢ tirania". Na teoria Piaroa da socialidade, era a-social a pessoa que tentava dominar seus vizinhos, competia com eles, os roubava eat mesmo os comia. O incdmodo dilema ontolégico com que se defrontavam os Piaroa era o de como prevenir que {al ocorresse na vida cotidiana, uma vez que coi vivere preencher necessidades matcriais como seu interior era 0 "espfrito do combate". Em suma, poderes produtivos eram venenosas forgas transformacionais de predagio e, enquanto tais, forgas para a ‘conquista ¢ dominagéo de outrem. a Revista de Aniropolgia. Sho Palo, USP, n. 34, 1991, pp. 7.33, © segundo dileme para os Piaroa era o de que as contas de vida, que continham conhecimento ram a fonte que investia perigosa do universo, a anta/suc utilizagéo segura e, portanto, vida dos sentidos quanto as 1e seu perigo,e, poreste motivo, os da lua. Este poder possibilitava livrar as contas ¢a capacidade prod jores de seus respectivos venenoe selvageria. Eis por que, a cada noite, 0 ruwang limpava e, deste modo, ‘embelezava suas contas de conhecimento e as palavras de seus cantos: ele a5 livrava de sua selvageria ¢ de sua loucura ve predatbria. O processo de limpar as contas da sujeira das fezes da anta/s ‘bem como oconhecimento produtivo do veneno do deus eriador, os fazia belos. © conhecimento estético ¢, pois, conhecimento produtivo embelezado e, ‘em decorréncia, civilizado. A beleza da omamentagdo Piaroa remetia nem tanto & beleza das forgas produtivas dentro de alguém per se, mas 20 dominio deste alguém sobre estas forgas. Capacidades transformacionais nao eram consideradas belas, a nfo ser quando limpas de sua pegonha ¢ de sua violéncia predat6ria. A ‘quantidade de conhecimento anulava-se & falta de cuidadosa maestria: ao menos ‘moralmente falando, tornava-se feia a pessoa que tomava a si habilidades produ- tivas além de sua capacidade de domind-las. © ado social da limpeza (¢ embelezamento).era 0 dom{nio que o indi- ‘viduo adquiria tanto sobre sua "vida dos sentidos" quanto. sobre suas capa- cidades produtivas, através de outro aspecto, sua *vida dos pensamentos", 1a’kwakomenae. A "vida dos pensamentos” (ta’kwaru) de um individo ¢ feita de dois componentes, ambos provindos das caixas de cristal dos deuses:*” uma parte ra constitufda pelas forges produtivas para a existéncia material (ta’kwanya); outra, pelas capacidades sociais ¢ pela inclinagio moral (ta’kwakomenae). A {otalidade de ta’kwaru (ambos, ta’kwanya ¢ ta’kwakomenae) formatia 0 conheci- ‘mento estético de um individuo, Ta'kwakomenae conferia a capacidade de tomar decisdes pessoais, ¢ era portanto a escolha pessoal de um individuo tal como este a desenvolvia: a ago virtuosa em relagio aos outros era uma questio de decisio pessoal. Uma glosa 25- ‘OVERING, Joanna A esttica da producto: 0 senso de comunidade entre os Cubeo os Para. Assim, em inimitével 1égica indigena, ta’kwakomenae, 0 dominio de um individuo sobre a socialidade, era igualmente sua rmagio de autonomia pessoal, ‘meu jeito, minha decisio"), era a frase mais recorrente na vi Piaroa. relagbespredatrias ecanibalisticas do jaguar eda sua. O idioma do canbe: lismo impregnava 0 pensamento Piaroa acerca de relagées, fossem relagdes entre ~~ Revista de Antropologia. Sto Pa-lo, USP, 2. 34,1991, pp. 7-33. os douses do passado, entre estes ¢ humanos, entre humanos ¢ animais, ou fossem, por fim, entre humanps, especialmente entre afins (nilo co-residentes), ¢ Comunidade no eram potencialmente selvagens e, por este motivo, por exemplo, ‘um jovem desejava o casamenio endégamo, um cbnjuge de sua propria ‘comunidade. Tal escolha era esteticamente fundamentada, (© "SENSO DE COMUNIDADE" PIAROA: 0 CONHECIMENTO ESTETICO EA CRIATIVIDADE DA CONSERVAGAO Como observei anteriormente, Goldman afirma, acerca dos Cubeo, que a coletividade dependia da criagio cotidiana de um mioral alto, ¢ que 0 manejo do ‘bom humor levava & alta produtividade dentro da comunidade. No entendimento ‘da autonomia do grupo doméstico ¢ do individuo que produz. Nesta linha, argumenta que 0 modo de produgéo doméstico €, portanto, refratério ao exerefcio do poder politica ¢ ao aumento da producéo, icho, a-sociais, na esfera da natueza, em seu roduglo doméstico fo primi, firma," ccorrobora 0 ‘OVERING, Jonnna. A esttica da produto: o senso de comunidad entre ot Cubeo €0s Paso. A anarquia de que fala Sablins nfo ¢ anarquia social ou politica, mas a anarquia da natureza. Argumenta 0 aulor que, "economicamenie, a sociedade primitiva € fem uma anti-sociedade"™ e, para que sociedade ou um estado social seja alcangado, os, "defeitos econdmicos" do Modo de Produgio Doméstico devem ser superados.*® A moralidade do parentesco ¢ o poder politico do chefe, por exemplo, poderiam, através de instituicbes de hierarquia e alianga, suplantar a anarquia do modo de produgéo doméstico. Os valores econdmicos de ‘aulonomia ¢ igualdade deveriam ser solapados antes que o social possa ser criado. Basicamente, Sahlins esté eq estado de natureza, a-socialidade: ‘complexidadeda.categoriade conheci associada a tais economias, onde 0 Sociais ¢ de uma estética de comunic "Social", "seusenso de comunidade" ¢ iltimo podem ser muito diferentes d cessencialmente ocidentais (¢ antropolégicos). Aquilo que Sains vé como a anarqua da entendiam como estado Pollticoprimetrodestas Soclalidade ~ conforme seu "senso de comunidade”~ dependia & écondmica dos membros da comunidade ind moralelevadoentrcles.Qobjetvoccondmico da *regra de Chayanov" quanio mais a comuni sua capacidade do trabalho, menos os nd contrastar com isio de Sahlins dz inidade produtiva (¢ ‘ecursos, trabalho ¢ seus produtos seriam, através de relagdes d ‘explorados ao méximo. Para os Piaroa, apenas eles, de todos 0s agentes na-histéria do universo, oderiam adquirir‘as capacidades de socialidade, Os deuses do passado mitico, que possufam tantos poderes para transformar os recursos da terra para uso ¢ 28 ‘Revista de Antropologia. Sto Paulo, USP, n.34, 1991, pp. 7.33. riqueza, foram enlouquecides por seus poderes ¢, por isso, nunca poderiam ‘manter a5 relagdes sociais da vida em comunidade. A histéria do tempo da ctiagéo, dos deuses criadores, foi um de desenvolvimento tecnol6gico répido, caracterizado pela competicio tecnologia ¢ de recursos. Se podemos deuses criadores conduz a0 progresso hhumano, os Piaroa, por sua parte, julgave tirania ¢ ao comportamento canibalistico e, portanto, destrutivo do social. Aquilo que poderfamos ver como "natural" na hist6ria humana, os Piaroa viam como “barbaro". nada pelos deuses criadores, loucas ¢ évidos. A criagéo desta, ‘cumulativa (¢ 0 mundo social que era seu objetivo) dependia das fduos. Dado que este mundo terreno Os Ifderes Piaroa, os ruwatu, tomavam a si mais capacidades produtivas dos deuses do que a gente comum, ¢ tinham, por isso, mais responsabilidades do {que 0s legos no trabalho de construir a comunidade, Sem o trabalho do ruwang, 4 comunidade no poderia ser criada ¢, devido aos seus poderes criadores mais, amplos,”” ele era ambém o membro mais produtivo da comunidade. Além disso, devido a0 fato de suas capacidades produtivas dentro da comunidade muitas vvezes dependerem de suas capacidades destrutivas fora dela, nfo surpreende que, 1a teoria politica Piaroa, grande peso fosse atribufdo a limitagdo dos ruwwans, mais do que & comum das pessoas. . ‘A aquisigéo cotidiana de comunidade devia-se nfo apenas & sua criaglo infinita pelo Lider ruwwang, mas também por todos os adulfos Piaroa, enquanto uusavam e dominavam suas habilidades transformacionais.”® Este dominio thes conferia a capacidade de reproduzir e transformar para uso os recursos da terra. Era obrigagio do individuo alcangar 0 equilfbrio adequado de forgas dentro de si, ue Ihe permitiia viver uma vida trangiila dentro da comunidade, ¢ assim ajudar crié-la, © mundo social e produtivo no poderia se manter, nem se regenerar, (OVERING, Joann A esttica ca produgt: 0 sen de comunidad entre cs Cubeo eo Paroa, ‘sem seres humanos constantemente o recriando, por meio da vontade e da ca- acidade cultural. Como no caso dos Cubeo, 0 social era considerado uma aquisigio cotidiana, m questo era uma criatividade de conservacéo, valor que ica de vida em comunidade e &s estruturas igualitérias que poceriam co Como para 0s Cubeo, a criagio de conforto emocional era valorizado em detrimento da criagio de proveito material: nfo era uma riatividade que valorizasse a criagio de novas formas ou uma economia em expansio a que uma nova tecnologia poderia levar. A criatividade competitiva ¢ violenta do perfodo da criagio foi por demais licenciosa ¢ perigosa para a Possibilidade do estabelecimento de uma comunidade moral; assim sendo, 0 social para 0s Piaroa era um infinito ato de resisténcia contra um retorno a um tipo espectfico de criatividade e de proceso ‘no tempo mitico dos deuses criadores. A lade do tempo de manifesta na aqui comunidade ~ individuos vivendo, reprodi trabathando juntos pacificamente -, era, portanto, um antidoto p: closidade passada, uma prevengio do retomo de um processo histéri agem Passado, proibitivo no que tange & aquisi¢ao de uma socialidade trangtila Prociutiva, Somos gente que conjuga histéria € processo evolucionério, € segue ‘dentificando este iltimo com "o progresso", “o bem" ¢ "0 criativo". Devido 20 fato de valorizarmos progresso, tendemos a ver os que néo toleram nosso senso do "historicidade” como sociedades estéticas e, conseqientemente, néo criativas. lo mudam, nfo "progridem* para tecnologias cada vez "mais. altas", Constitutiva de nossa prépria filosofia social de revolia contra o passado, e contra @ comunidade, A apreciago Piaroa de criatividade nada tinha a ver com uma Glosofia social de rebeligo, mas, a0 contririo, versava sobre a aquisigao das Possibilidades do passado que Ihes foram concedidas. Seria diffcl, para nés, ompreendermos & estétca que valoriza uma tal cratividade de conservagio ¢, a Darts de nossa propria referencia de estética, considerariambs mais compre- ensivel a criatividade do passado mitico Piaroa, que conduciria ao progresso'¢ & liberagto de nosso dominio social, humano. Esta é uma criatividade que os Piaroa Julgam conducir 20 canibalismo, criatividade, portanto, destrutiva do social. Os 30. Revita de Antropologia. Sto Palo, USP, 2.34, 1991, pp.7-33. Piaroa opor-se-iam fortemente a participar do desenvolvimento do que Sablins vé como "0 vocal”. A socadeds pare eo; Cosoo Fiten 86 Bo exit mun ‘ou menos o tipo de economia que Sahlins descreve como seu modo de producéo doméstico, mas a anarquia a que este estava associado era uma visio altamente ‘moral e politica que carregava consigo uma estética particular de agir neste mundo, NOTAS (1) Antigo originalmente pblicado em Dialectical Anthropology, 198, (@)Hane-Georg Gacamer, Trach and Method. London, Speed snd Wa (@) Vela-se expeciaimente a dictssto de Gadamer, bid, pp. 19-24, (© Vejase, por exemplo, ving Goldman, The Cubeo (Urbana, Univer 1963), p 294; Irving Goldmun, The Mouth of Heaven (New York, John Willey & Sons, 1985), pp. 14, 208, Peter Rive, Individual and Society in Gulana (Cambeldge, Cambridge University Press, ean 19 p20 {9 orn or ennp os ep nbn Jnain Ray, "Te Bzeoay and (OVERING, Jonna. A esftica da produgto: senso de comunidade entre os Cubeo€ 0s Piaroa. (1 Goldman, opt, 19.74, 75. (49) Gotdmas, op. city. 76, Vejse ainda, quanto 20 Chaco paragiaio, John Reashay, “Property resources and equity among the Indians of he Paraguayan Chaco" May, vol 23.2 1988). (2 Gotan op ct 8 (20) Vejase Goldman, op cit, pp. 22, 39-40, Compura-se aos Yanomami, que obviamente ‘lo compartiham um tal valor ma prvacidade. Vejacse a efinada etnografia de Jacques Lit, Tale (G4) Foi contibuigho de Gow (op. ct) comproender a relako entre tabalbo € desejo no peasamentoamaznico, ea importinca desta relagSo para ciao de comuskdade, (@5) Golda, pct, pp. 67,87. (G6) Goldman, op. et, pp 279-83; vase também, sobre os Piatos, Joanna Oveting Kaplan, The Plaroa (Oxford, Clarendon, 1975). (27) As comunidades nfo eram assim to frgels quanto pode-te-a pensar, dante de tl ‘lesofia social. As comunidades Paros tiaham uma duragfo temporal normal de vinte a quarenta (8) Goldman, op. cit, p75. tj Joanna Overng, "Personal Autonomy and the lahoda and Joan Lewis (ed) Acquiring Culture: Croom Helm, 1988}; © Overing, opt, 1989, , in Joanna Oveing (e.), Reaton and Reashaw sobre os grupos do Chaco 11 (Carns, Panda La Sal de Cenlas Natale, Monte Avil Bales 1560, 32 i Revista de Antropologia. Sto Paulo, USP, 2. 4, 1991, pp. 7-38, (44) Utlizo o termo "magia", em ver do "eigaia", porque os poderes do mago sho importante apontar qu, quando flo de *poderes criadores, estou falando do ponto de ‘A exegese Piaroa quanto b critividade do ruwang & especialmente rica, outo pico sobre o qual excrevoatualmeate. Moral snd Seed St en 2 0990, 13558 ‘ABSTRACT: This pope recurs to Vieo's notion of "seme of community" ~ wich icomportes the oes not mean lack of socal organisation but, quite on the contrary, representa plical creed with an aesthetic nd mera intention KEY WORDS: ethaoaesbetcs, Paroa, sease of community, aesthetical knowledge, rituals of nomination, Guyana. Recebido para publicagio em abril de 1992.

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