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ARTIGO ARTICLE 469

Modelos tecno-assistenciais em saúde:


da pirâmide ao círculo, uma possibilidade
a ser explorada

Technical health care models:


from the pyramid to the circle, a possibility
to be explored

Luiz Carlos de Oliveira Cecilio 1

1 Departamento de Medicina Abstract The technical health care model that portrays the health system as a pyramid with as-
Preventiva e Social,
cending and descending flows of users obtaining access to differentiated levels of technological
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade complexity within articulated reference and counter-reference processes has been conceived as a
Estadual de Campinas. rationalizing perspective, the merit of which would be to provide greater efficiency in the use of
Cidade Universitária
resources, in addition to universal, equitable access. In practical terms, by assuming that facts
Zeferino Vaz, Campinas, SP
13084-100, Brasil. occur differently than intended under a certain technocratic rationality, the author provides
some explanations for this “distortion”. He also defends the idea that the health system would be
more adequately thought of as a circle, containing multiple “portals of entry” located at several
points in the system rather than at a presupposed “base”. The author also questions the sense of a
“top level”, a kind of expression related to a certain “technological hierarchy” with the hospital
occupying the apex. At the same time he highlights the health system as an entity to be organized
focusing on what is most relevant to each user, offering the most adequate technology in the right
place and at the most appropriate time.
Key words Techno-assistance Model; Health Services Accessibility; Health Planning; Public
Health

Resumo O modelo tecno-assistencial que pensa o sistema de saúde como uma pirâmide, com
fluxos ascendentes e descendentes de usuários acessando níveis diferenciados de complexidade
tecnológica, em processos articulados de referência e contra-referência, tem se apresentado como
uma perspectiva racionalizadora, cujo maior mérito seria o de garantir a maior eficiência na
utilização dos recursos e a universalização do acesso e a eqüidade. Reconhecendo que, na práti-
ca, os fatos se dão de maneira muito diferente da pretendida por uma certa racionalidade tecno-
crática, o autor aponta algumas explicações para esta “distorção”. Defende, ainda, a idéia de que
o sistema de saúde seria mais adequadamente pensado como um círculo, com múltiplas “portas
de entrada” localizadas em vários pontos do sistema e não mais em uma suposta “base”. Questio-
na a idéia de um “topo”, expressão topográfica de uma certa “hierarquia tecnológica” que teria o
hospital no seu vértice, e aponta a necessidade do sistema de saúde ser organizado a partir da
lógica do que seria mais importante para cada usuário, no sentido de oferecer a tecnologia certa,
no espaço certo e na ocasião mais adequada.
Palavras-chave Modelo Tecno-Assistencial; Acesso aos Serviços de Saúde; Planejamento em
Saúde; Saúde Pública

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(3):469-478, jul-set, 1997


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Uma breve contextualização das idéias prática, novas possibilidades de construção do


apresentadas a seguir SUS que queremos.

Boa parte da literatura sobre modelos assisten-


ciais em saúde tem uma certa postura de “exte- A pirâmide que traduzia nosso projeto
rioridade” em relação ao objeto trabalhado, um de atenção à saúde
olhar “desde fora”, quase sempre com a inten-
ção de uma abordagem mais “estrutural”, no Por tantos anos, temos utilizado a figura clássi-
sentido de totalizador, como apresentado em ca de uma pirâmide para representar o modelo
documento do MPAS (1983). Observa-se assim tecno-assistencial que gostaríamos de cons-
uma visão que se poderia denominar de racio- truir com a implantação plena do SUS. Na sua
nalizadora e “técnica”, na medida em que as ampla base, estaria localizado um conjunto de
pessoas reais, com suas angústias e sofrimen- unidades de saúde, responsáveis pela atenção
tos passam a ser vistas, no jargão tecnocrático primária a grupos populacionais situados em
presente nesta literatura, como “usuários” do suas áreas de cobertura. Para esta extensa rede
sistema, espécie de “agentes” dotados de com- de unidades, distribuídas de forma a cobrir
portamentos previsíveis, que deverão ser en- grupos populacionais bem definidos (popula-
quadrados a partir desta racionalidade exte- ções adscritas) seria estabelecida, de uma for-
rior. ma geral, a seguinte missão: oferecer atenção
As observações que são feitas a seguir não integral à saúde das pessoas, dentro das atri-
pretendem pensar o modelo assistencial do buições estabelecidas para o nível de atenção
“sistema de saúde” de uma forma fechada e primária, na perspectiva da construção de uma
acabada, mas iluminar certas dificuldades vivi- verdadeira “porta de entrada” para os níveis su-
das, no cotidiano, por quem procura os servi- periores de maior complexidade tecnológica
ços do SUS. Nesta medida, o autor coloca-se do sistema de saúde. Na parte intermediária da
“no interior” do objeto trabalhado, abando- pirâmide estariam localizados os serviços ditos
nando qualquer intenção de distanciamento e de atenção secundária, basicamente os servi-
compromisso com idéias racionalizadoras de ços ambulatoriais com suas especialidades clí-
caráter globalizante. Mais especificamente, nicas e cirúrgicas, o conjunto de serviços de
olha-se o hospital como espaço privilegiado apoio diagnóstico e terapêutico, alguns servi-
para entender fluxos e demandas do “cidadão ços de atendimento de urgência e emergência e
comum”, com seus desejos e necessidades; um os hospitais gerais, normalmente pensados co-
olhar compartilhado com trabalhadores de mo sendo hospitais distritais. O topo da pirâ-
saúde, gerentes de nível intermediário e supe- mide, finalmente, estaria ocupado pelos servi-
rior e usuários, valendo-se de práticas institu- ços hospitalares de maior complexidade, tendo
cionais desenvolvidas nos últimos anos como no seu vértice os hospitais terciários ou quater-
relatado por Cecilio (1994). nários, de caráter regional, estadual ou, até
Há, então, no texto, uma intenção explícita mesmo, nacional. O que a pirâmide quereria
de abandonar qualquer concepção apriorística afinal representar seria a possibilidade de uma
do hospital, com base em uma certa racionali- racionalização do atendimento, de forma que
dade que o coloque no topo de uma pirâmide haveria um fluxo ordenado de pacientes tanto
hierarquizada de serviços e tentar, sim, explo- de baixo para cima como de cima para baixo,
rar novas alternativas, novos circuitos de inte- realizado através dos mecanismos de referên-
gração entre os serviços, sem nunca perder de cia e contra-referência, de forma que as neces-
vista os “usuários” reais. A referência passa a sidades de assistência das pessoas fossem tra-
ser as pessoas e suas necessidades e não qual- balhadas nos espaços tecnológicos adequados.
quer tipo de “modelo assistencial” que possa
ser previamente definido, conforme já aponta-
do anteriormente por Campos (1994). As vantagens de se pensar o sistema
Sem desconhecer a discussão colocada por de saúde como uma pirâmide
autores como Mendes (1996), no sentido da
necessidade de uma crítica mais “estrutural” à A proposta de “regionalização e hierarquização
própria concepção de modelos de assistência à dos serviços”, traduzida na pirâmide descrita
saúde, o artigo tem como objetivo apenas no item anterior, foi incorporada ao ideário
apontar algumas possibilidades de intervenção dos que lutam pela construção do SUS no nos-
no movimento real da assistência à saúde, nos so país e tornou-se uma espécie de “bandeira
moldes em que a mesma se dá nos dias que de luta” consensual do movimento sanitário
correm em nosso país, quem sabe testando, na pelas seguintes razões:

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• está indissociavelmente ligada à idéia de O que tem acontecido, na prática,


expansão da cobertura e democratização do com o nosso desejo de construir
acesso aos serviços de saúde para todos os bra- a pirâmide do SUS
sileiros. A formulação de uma “porta de entra-
da” para garantir acesso universal ao sistema Todos aqueles que têm atuado no setor saúde
pode ser vista como a expressão semiótica des- ou precisado se utilizar dele nos últimos anos
ta diretiva política do movimento sanitário; podem afirmar, sem muitas dúvidas, que anda
• o espaço propiciado por uma ampla rede bastante difícil visualizar qualquer coisa que,
básica de serviços de saúde, com responsabili- de fato, se aproxime da imagem projetada da
dade pela atenção a grupos populacionais bem pirâmide. Vamos aos fatos que demonstram es-
definidos (população adscrita), sempre nos pa- ta afirmação:
receu como o ideal para o exercício de práticas • A rede básica de serviços de saúde não tem
e saberes alternativos ao modelo hegemônico conseguido se tornar a “porta de entrada” mais
vigente, sabidamente centrado no atendimen- importante para o sistema de saúde. A “porta
to médico, medicamentalizante, com pouca ou de entrada” principal continua sendo os hospi-
nenhuma prática de prevenção das doenças e tais, públicos ou privados, através dos seus ser-
promoção da saúde. O espaço da rede básica viços de urgência/emergência e dos seus am-
seria então o locus privilegiado para a testagem bulatórios. Atesta isto o fato de os atendimen-
e construção de um modelo contra-hegemôni- tos hospitalares serem expressivamente maio-
co de atenção à saúde; res do que o atendimento total feito nas unida-
• a hierarquização dos serviços seria a prin- des básicas de saúde, na maioria dos municí-
cipal estratégia para a racionalização no uso pios nos quais exista a alternativa de acesso ao
dos parcos recursos existentes no setor saúde. hospital. Os pronto-socorros sempre lotados
Representaria a utilização do recurso tecnoló- são a imagem mais expressiva desta situação.
gico certo, no espaço certo, de acordo com ne- • Todos os levantamentos realizados a respei-
cessidades bem estabelecidas dos usuários. A to do perfil de morbidade da clientela atendida
hierarquização garantiria o acesso, para o pa- nos pronto-socorros mostram que a maioria
ciente que entrou pela “porta de entrada”, a to- dos atendimentos é de patologias consideradas
das as possibilidades tecnológicas que o siste- mais “simples”, que poderiam ser resolvidas no
ma de saúde dispusesse para enfrentar a dor, a nível das unidades básicas de saúde. Por exem-
doença e o risco da morte. A pirâmide, nessa plo, pesquisa realizada pela equipe do Hospital
medida, tem o valor quase de um símbolo da Municipal de Volta Redonda (RJ), no primeiro
luta em defesa da vida; semestre de 1996, revelou que, no mês de feve-
• a proximidade do serviço de saúde da resi- reiro/96, 66,5% das consultas em Pediatria e
dência do usuário seria um facilitador tanto do 52,5% daquelas em Clínica Médica realizadas
acesso, como possibilitaria a criação de víncu- no Pronto-Socorro não podiam ser considera-
los entre a equipe e a clientela; das como de urgência/emergência. Ou seja, há
• a pirâmide seria um orientador seguro para uma “distorção” no atendimento tanto quanti-
a priorização de investimentos tanto em recur- tativo, como qualitativo. Tal “distorção” tam-
sos humanos, como na construção de novos bém é detectada nos ambulatórios hospitalares
equipamentos, na medida em que seria mais e nos ambulatórios de clínicas especializadas.
fácil perceber onde estariam localizadas as • O acesso aos serviços especializados é bas-
reais necessidades da população. tante difícil, mesmo quando são implantadas
Podemos dizer que a representação do sis- medidas mais rigorosas de exigência da refe-
tema de saúde por uma pirâmide adquiriu tan- rência (marcação de consulta) pelas unidades
ta legitimidade entre todos os que têm lutado básicas. Em geral, as esperas são tão demora-
pela construção do SUS porque conseguiu re- das, que resultam em desistência da consulta
presentar, de forma densa e acabada, todo um agendada. O número de consultas em especia-
ideário de justiça social no que ele tem de es- lidades é insuficiente perante as necessidades
pecífico para o setor saúde. da população usuária do sistema. Os serviços
ambulatoriais especializados mantêm certas
“clientelas cativas”, que poderiam muito bem
estar sendo acompanhadas em nível de rede
básica. A contrapartida disto é que os médicos
da rede freqüentemente se “livram”dos pacien-
tes, encaminhando-os para os especialistas,
quando poderiam fazer o seguimento no cen-
tro de saúde mesmo.

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• É muito difícil conseguir acesso às cirurgias adoção de políticas econômicas de ajuste es-
eletivas, tanto usando o centro de saúde como trutural tem conduzido à restrição do volume
“porta” ou mesmo o atendimento através dos de recursos financeiros para a Saúde na ordem
pronto-socorros. de um terço do montante disponível há cerca
Em resumo e como síntese destas constata- de cinco anos, ao passo em que se elevou de
ções, é possível dizer que a pirâmide, a despei- um terço a demanda pelos serviços públicos;
to da justeza dos princípios que representa, • a atuação do setor privado de forma suple-
tem sido muito mais um desejo dos técnicos e mentar ao setor público, inclusive como pre-
gerentes do sistema, do que uma realidade visto na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica
com a qual a população usuária possa contar. da Saúde de 1990, não tem ocorrido na prática.
Na prática, aqueles que dependem exclusiva- Ao contrário, há um processo de retração pro-
mente do SUS – algo em torno de 80% da po- gressiva da oferta de serviços para o SUS, na
pulação – têm que montar o seu “menu” de medida em que um número crescente de servi-
serviços, por sua conta e risco, buscando onde ços ambulatoriais e hospitalares contratados
for possível o atendimento de que necessita. buscam garantir sua sobrevivência financeira
Daí ser uma prepotência tecnocrática dizer através da criação de planos de saúde próprios,
que o “povão” é deseducado, que vai ao pron- oferecidos a grupos populacionais que podem
to-socorro quando poderia estar indo ao cen- pagar pelos mesmos. A conseqüência disto é a
tro de saúde. As pessoas acessam o sistema por dificuldade, quando não a impossibilidade, de
onde é mais fácil ou possível. Não é à toa que a acesso das amplas massas de brasileiros aos
assistência à saúde ocupa um lugar central nas cuidados mínimos de saúde, mesmo quando
preocupações do “cidadão comum”. O fato há capacidade instalada ociosa no setor priva-
cruel, mas não por isto menos real, é que a do;
grande maioria da nossa população sente-se • o próprio setor público opera uma rede am-
insegura e abandonada quando necessita de bulatorial e hospitalar, que é, paradoxalmente,
atendimento médico-hospitalar. Por isso, é ne- muitas vezes ociosa. No caso, o paradoxo é a
cessário coragem e lucidez para repensar al- coexistência da grande dificuldade de acesso
guns princípios que têm orientado o modelo da população aos serviços com a ociosidade na
assistencial do SUS, por mais que eles nos pa- utilização dos equipamentos e recursos exis-
reçam justos e adequados, por mais que seja tentes. De alguma forma seria possível utilizar-
difícil rever certos pressupostos que, de tanto mos a imagem de alguém morrendo de sede
repetirmos, passamos a tomá-los como verda- tendo um copo de água fresca ao alcance da
deiros e suficientes para a transformação da mão! Portanto, uma parcela importante de res-
realidade sanitária brasileira. ponsabilidade pelas dificuldades de constitui-
ção de uma rede pública de cuidados à saúde
pode ser creditada ao modo como tem sido ge-
Algumas explicações para o fracasso renciado o setor público.
do tão decantado modelo da pirâmide O primeiro bloco de explicações nos diz,
em resumo, que os recursos para a saúde são
Para entendermos as dificuldades listadas no escassos, mas que mesmo os poucos recursos
item anterior é possível trabalharmos com dois são mal utilizados. Contribui para isto tanto a
blocos principais de explicações. O primeiro existência de verdadeiros filtros, no setor pri-
deles diz respeito a causas mais gerais, ligadas vado, baseados em critérios econômicos que
à própria configuração do SUS nos seus aspec- discriminam, de forma perversa, quais os bra-
tos de financiamento, relação público e priva- sileiros que podem e quais os que não podem
do, como é feita sua gestão e como é realizado usar determinados serviços, como a ociosida-
o controle por parte dos usuários. O segundo de dos equipamentos públicos. O que se tenta
aponta, diretamente, para a questão de como demonstrar, na seqüência, é que a forma como
temos pensado o modelo tecno-assistencial, temos pensado o modelo tecno-assistencial
ou seja, coloca-nos a necessidade de questio- tem tido uma responsabilidade muito grande
narmos a idéia da organização do SUS nos para o agravamento dos problemas que são vi-
moldes de uma pirâmide hierarquizada de ser- vidos pela população na sua busca de assistên-
viços. cia à saúde. Vejamos alguns aspectos:
No primeiro bloco de explicações para as • Não temos tido clareza suficiente sobre
dificuldades de construção do SUS, é possível qual é o verdadeiro papel das unidades básicas
apontar, resumidamente, os seguintes pontos: de saúde, por mais que tenhamos discutido o
• os recursos destinados ao setor saúde têm assunto e escrito sobre ele nos últimos anos.
sido insuficientes. Segundo Levcovitz (1995) a Na verdade, temos oscilado de uma certa visão

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quase “purista” do centro de saúde como local, dade e “comprimindo” as atividades de preven-
quase exclusivamente, de promoção da saúde ção das doenças e promoção da saúde, já que
e prevenção das doenças, com suas práticas há uma “disputa” pela utilização dos recursos
orientadas pelo saber que nos vem da Epide- no serviço. Como conseqüência, a unidade
miologia e dedicado a fazer “vigilância à saú- acaba não sendo nem um centro de saúde nem
de”, até uma visão mais “realista” de que as uni- um hospital. A população continua buscando
dades básicas têm que se comprometer com a os pronto-socorros e a unidade se deslegitima
necessidade de pronto-atendimento das pes- ainda mais, pois deixa de fazer aquilo que era
soas, “virando-se” para organizar seus proces- seu papel mais reconhecido pelos usuários.
sos de trabalho de forma a “não deixar nin- • Nos hospitais, como não poderia deixar de
guém sem atender”. Nossa experiência institu- ser, também são grandes as distorções em rela-
cional no Laboratório de Administração e Pla- ção ao que se supõe ser sua missão, pelo me-
nejamento (LAPA) da Unicamp, nos últimos 15 nos tomando como referência o modelo da pi-
anos, já nos mostrou quais são os problemas râmide. O grande volume de atendimento feito
oriundos destas duas formas polares de se pen- nos seus pronto-socorros e ambulatórios pode
sar uma unidade básica de saúde. Na primeira, ser considerado como de “nível primário”, para
acabamos organizando centros de saúde bem- ser resolvido nos centros de saúde. Pelo menos
estruturados, que desenvolvem muitas vezes é isto que um modelo pensado como hierar-
um trabalho de ótima qualidade, mas que pa- quizado nos leva a crer. Em geral, afirmamos
decem de ser muito fechados às necessidades que “a população está entrando pela porta er-
mais agudas dos seus usuários. Como estes úl- rada”, ou não seria mais correto afirmarmos,
timos costumam dizer: “Depois que a gente como já lembrado anteriormente, que as pes-
consegue entrar nestes serviços é uma maravi- soas, diante de suas necessidades, acabam
lha. O duro é conseguir entrar”. Por outro lado, acessando o sistema por onde é possível, con-
a orientação de “escancarar” o centro de saú- trariando qualquer delírio racionalista que os
de, no sentido de torná-lo a verdadeira porta técnicos do setor saúde continuam a defender
de entrada do sistema de saúde, por mais que sob a forma de uma pirâmide de serviços?
se amplie e se invista nele, fica sempre aquém • As más conseqüências desta verdadeira “in-
do que desejamos. Seja porque parece não ter vasão” dos serviços de urgência/emergência
fim a demanda por pronto-atendimento por por todo e qualquer tipo de patologia não são
parte da população, seja porque, por mais poucas. Além da tensão sempre presente nos
equipado que esteja o centro de saúde, ele é locais onde é feito o atendimento de urgência e
sempre menos resolutivo do que é necessário emergência, que resulta em grande estresse e
diante das situações que exijam um atendi- desgaste dos trabalhadores de saúde e descon-
mento mais ágil, dito de “urgência”. Pelo me- forto para os usuários que acabam sendo aten-
nos é o que parece estar gravado com muita didos após longas esperas, de forma impessoal
força no imaginário popular, na medida em e corrida, existe um problema que merece ser
que as pessoas não hesitam em buscar, nos especialmente destacado: a inadequação do
serviços de pronto-socorro, a resposta para atendimento prestado. É claro que em algumas
seus “problemas” agudos de saúde. O centro de dituações de sofrimento caracterizadamente
saúde fica reconhecido como um lugar em que de urgência/emergência, em particular aque-
ele deve buscar atendimento em situações les casos de sofrimento agudo (infarto do mio-
bem específicas, com atendimento em geral cárdio, quadros infecciosos agudos, traumas,
agendado, em horários bastante rígidos e sem- entre outros), o atendimento realizado no
pre com o risco de ser encaminhado para con- pronto-socorro é o ideal. É o que se poderia
sulta no pronto-socorro. nomear como a utilização da tecnologia certa,
• Chama nossa atenção, também, o fato de no espaço certo, no momento certo. A questão
que a orientação de aumentar cada vez mais a é que já temos informações suficientes para sa-
resolutividade do centro de saúde para realizar bermos que tais casos acabam constituindo
o “pronto-atendimento”, tanto por uma maior um percentual muito pequeno dentro do volu-
“complexificação tecnológica”, como por mu- me total de atendimentos. “Misturados” com
danças radicais na organização de seus proces- estes casos realmente agudos, é atendida uma
sos de trabalho, acaba como que tendendo a legião de pessoas cujos problemas deveriam
reproduzir um “mini-hospital” ou um pronto- ser abordados com outras tecnologias e em ou-
socorro miniaturizado e simplificado (nem tros espaços. É o caso das queixas relacionadas
sempre muito resolutivo), de forma que a lógi- com as doenças crônico-degenerativas, tais co-
ca assistencialista, muito centrada no trabalho mo diabetes, obesidade, hipertensão arterial,
do médico, acaba “colonizando” a vida da uni- doenças osteo-articulares, doenças pulmona-

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res crônicas, doenças de fundo emocional, en- • Uma das faces mais prontamente identifi-
tre outras. O que ocorre então é que um núme- cáveis das distorções do atual modelo assisten-
ro muito grande de pessoas acaba tendo um cial, além de todas as já apontadas, diz respeito
atendimento incompleto, descontínuo e, por- à substituição de uma calorosa e humanizada
tanto, insuficiente e inadequado para os seus relação médico-paciente, por uma excessiva e
problemas de saúde. É como se fosse dispensa- desnecessária solicitação de exames comple-
do um grande esforço e realizassem-se gastos mentares.
enormes em atendimentos que poderiam ser Como síntese das observações feitas a res-
considerados, sem exagero, como “atendimen- peito das explicações que podem ser credita-
tos de mentirinha”. Fecha-se um ciclo perver- das à forma como tem sido pensado o modelo
so. Os profissionais de saúde sabem que o seu assistencial, poderia ser dito o seguinte: temos
trabalho é inadequado e esta consciência, de insistido em defender determinadas missões
alguma forma, pesa negativamente em suas para os serviços localizados nos vários níveis
subjetividades. Os usuários, mais do que nin- da pirâmide (centros de saúde, ambulatório e
guém, sabem que o atendimento recebido é hospitais) que não guardam relação com a rea-
paliativo e insatisfatório. Os poucos recursos lidade. Os centros de saúde nem bem fazem vi-
são mal gastos agravando o quadro crônico de gilância à saúde, assumindo efetiva responsa-
insuficiência dos mesmos. bilidade pelos grupos de risco nas sua áreas de
• Cabem agora algumas perguntas neste ro- cobertura, nem conseguem dar resposta para
teiro, que tenta debitar à concepção do modelo as demandas por pronto-atendimento da po-
assistencial parte importante das responsabili- pulação de sua área de cobertura; os ambula-
dades pelas mazelas na assistência à saúde da tórios não conseguem exercer, em toda a sua
população: que outro ator social, que não os plenitude, o seu papel de referência técnica es-
gerentes e trabalhadores do setor saúde, detém pecializada para a rede básica; os hospitais são
recursos de conhecimento e poder para en- espaços profundamente desumanizados, tanto
frentamento dos problemas listados no item para os trabalhadores como para os usuários,
anterior? Por que é que não temos nos mobili- gastando recursos e energias que resultam, na
zado para encarar estas questões, tentando maioria das vezes, em baixo impacto sobre as
viabilizar alternativas mais adequadas de orga- reais condições de saúde da população. Quem
nização dos serviços? mais sofre com isto é a população dependente
• Os serviços ambulatoriais, localizados nos do SUS, que tenta furar os bloqueios de todas
hospitais ou em unidades de referência, ficam as formas, acessando aos cuidados de que ne-
como “peças soltas” dentro do sistema, na me- cessita por múltiplas entradas, tentando garan-
dida em que sua articulação tanto com a rede tir alguma integralidade de atendimento por
de serviços básicos, como com o hospital é conta própria, na medida em que o sistema de
mal-equacionada. A missão destas unidades saúde não se organiza para isto. Nesta medida,
nem sempre é trabalhada com clareza. Ideal- a concepção do sistema como uma pirâmide
mente deveriam funcionar tanto como suporte está muito distante da realidade do usuário
mais especializado, dotadas que são – ou deve- real. A tese que se procura apresentar e discutir
riam ser – de maior complexidade tecnológica no próximo ponto é a seguinte: não adianta
e capacidade resolutiva, para atendimento de mais insistir na idéia de que o modelo da pirâ-
encaminhamentos feitos pela rede básica, co- mide é ótimo e que só nos falta implantá-lo de-
mo deveriam funcionar como espécie de “am- finitivamente para que tudo fique bem para os
bulatório de egressos” para dar cobertura aos usuários. Pelo contrário, é necessário pensar
pacientes em alta hospitalar e que continuas- novos fluxos e circuitos dentro do sistema, re-
sem necessitando de atendimento mais cuida- desenhados a partir dos movimentos reais dos
doso e diferenciado, mas passível de ser reali- usuários, dos seus desejos e necessidades e da
zado fora do ambiente hospitalar. Caberia ain- incorporação de novas tecnologias de trabalho
da às equipes lotadas nos ambulatórios o pa- e de gestão que consigam viabilizar a constru-
pel de capacitação das equipes locais, buscan- ção de um sistema de saúde mais humanizado
do aumentar sua autonomia e capacidade de e comprometido com a vida das pessoas. Daí
resolver problemas em nível de “atenção pri- que se propõe um “arredondamento” da pirâ-
mária”. A exigência formal de que a consulta mide, num movimento sutil, mas determina-
especializada só seja marcada se referenciada do, que, quebrando seus duros ângulos, leve-
pela rede básica, acaba sendo mais um dificul- nos a conceber o sistema de saúde como a
tador da vida do usuário do que uma estratégia mais perfeita forma geométrica conhecida pe-
potente para o redesenho de novos circuitos e los homens: o círculo!
fluxos no interior do sistema.

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MODELOS TECNO-ASSISTENCIAIS EM SAÚDE 475

O modelo assistencial pensado como qualificar todas estas portas de entrada, no


um círculo sentido de serem espaços privilegiados de aco-
lhimento e reconhecimento dos grupos mais
Antes de mais nada, é necessário esclarecer vulneráveis da população, mais sujeitos a fato-
que repensar o modelo assistencial nos moldes res de risco e, portanto, com mais possibilida-
sugeridos no item anterior não significa aban- de de adoecimento e morte, para, a partir deste
donar nenhum dos ideários da reforma sanitá- reconhecimento, organizá-los no sentido de
ria no que diz respeito ao compromisso inego- garantir o acesso de cada pessoa ao tipo de
ciável de lutar por um sistema de saúde públi- atendimento mais adequado para o seu caso.
co, voltado para o atendimento universalizado, Comecemos pela porta de entrada mais im-
com eqüidade, organizado de forma a garantir portante do sistema hoje: os serviços de urgên-
um atendimento integral, de boa qualidade, cia e emergência. Por tudo que já foi dito, tais
colocando à disposição da população brasilei- serviços têm, nas condições concretas da so-
ra tudo o que as ciências de saúde têm de mais ciedade brasileira, uma enorme legitimidade
avançado para defender a vida das pessoas, ga- perante a população. Não ajuda muito dizer
rantindo a participação dos trabalhadores de que isto é uma distorção. Fazer um juízo de va-
saúde e dos usuários, da forma mais radical e lor deste comportamento dos usuários não le-
plena possível, na gestão dos serviços. Pelo va a lugar nenhum. Com o grau de carência de
contrário. É preciso entender as colocações, grandes extratos da nossa população e, princi-
feitas a seguir, como parte de um esforço imen- palmente, em função da ausência concreta de
so de ampliação e reorientação dos gastos em alternativas para acessar aos serviços de que
saúde, pari passu com importantes medidas de necessita, à maioria da população não resta al-
reorganização dos serviços, dotando-os de ternativa que não seja a de utilizar dos serviços
uma racionalidade mais próxima das necessi- de urgência para resolver todo e qualquer pro-
dades dos usuários do sistema. Discutem-se blema de saúde. O mais complicado é que, co-
aqui quais medidas de reorganização do siste- mo já foi referido, tais serviços não estão estru-
ma podem e devem ser implementadas visan- turados para oferecer o atendimento adequado
do implementação do Sistema Único de Saúde ao grosso de sua demanda. O resultado disto é
brasileiro. que os pronto-socorros vivem lotados, com um
Pensar o sistema de saúde como um círculo número crescente de atendimento que podem
é, em primeiro lugar, relativizar a concepção de dar a impressão de que a população está sendo
hierarquização dos serviços, com fluxos verti- atendida em suas necessidades, mas, de fato,
cais, em ambos os sentidos, nos moldes que a não está. O tratamento feito, na maioria das ve-
figura da pirâmide induz. A pirâmide só faz zes, é apenas paliativo, do tipo queixa-conduta
sentido, no senso comum, quando vemos sua ou, para cada sintoma, um medicamento, de
base mais larga voltada para baixo e a mais es- modo que o problema de fundo de quem está
treita para cima. A sua imagem contrária, apre- buscando o atendimento não é enfrentado.
sentada de forma invertida, dá idéia de instabi- Afirmar isto não significa desconsiderar que,
lidade e transmite a sensação de que algo está como também já foi dito, um percentual dos
errado. Assim, associar o modelo assistencial à atendimentos feitos em nível dos serviços de
figura da pirâmide nos coloca em uma armadi- urgência é perfeitamente adequado para a pes-
lha dos sentidos, que fatalmente nos faz pen- soa naquele momento. Citam-se aqui, só a tí-
sar em fluxos hierarquizados de pessoas den- tulo de exemplo e sem querer esgotar todas as
tro do sistema. Com tal concepção há de se possibilidades, as situações de trauma e os epi-
romper com radicalidade. O círculo se associa sódios isolados de doenças infecciosas agudas.
com a idéia de movimento, de múltiplas alter- Nestes casos, o pronto-socorro ou a unidade de
nativas de entrada e saída. Ele não hierarquiza. pronto-atendimento oferecem a tecnologia
Abre possibilidades. E assim deve ser o modelo certa, no lugar certo, no momento certo, con-
assistencial que preside o SUS. Trabalhar com forme já colocado anteriormente. Porém, é
múltiplas possibilidades de entrada. O centro possível oferecer mais para os usuários, no
de saúde é uma boa entrada para o sistema, as- sentido de qualificar o atendimento prestado.
sim como também o são os pronto-socorros Algumas possibilidades que podem ser pensa-
hospitalares, as unidades especializadas de das:
pronto-atendimento e tantos outros serviços. • Trabalhar com protocolos que estabeleçam
A escola pode ser uma boa porta de entrada, quais são as patologias que necessitam ter
assim como a farmácia do bairro, a creche, o acompanhamento mais apropriado que não
quartel e qualquer outro equipamento social. aquele atendimento que está sendo feito no
A primeira estratégia nossa há de ser então a de pronto-socorro. Com base nestes protocolos,

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as equipes dos serviços de emergência deve- valorizando novos espaços e tecnologias que
riam se responsabilizar pelo encaminhamento permitam, de alguma forma, esvaziar a centra-
do paciente para o espaço tecnológico adequa- lidade da internação hospitalar no tratamento
do dentro do sistema. O paciente hipertenso, dos doentes.
diabético, asmático, ansioso, ou portador de É possível e necessário explorar estratégias
qualquer patologia que necessita de apoio e de desconcentração do atendimento hospita-
acompanhamento mais sistematizado, já sairia lar. Os programas de internação domiciliar, de
do pronto-socorro com consulta com dia e ho- visita domiciliar ou do médico de família, com
ra marcados no serviço apropriado. A respon- suas abordagens diferenciadas, reforçam este
sabilidade de garantir a integralidade do aten- necessário movimento desconcentrador.
dimento é do sistema como um todo e não Poder-se-á argumentar que o tipo de solu-
uma batalha individual e solitária de cada pa- ção pensado para o atendimento de urgên-
ciente. O destino deste cliente poderá ser o cia/emergência não é novo, pelo menos como
centro de saúde mais próximo a sua residência, proposta. A questão é que, raras vezes, conse-
um ambulatório de especialidades ou qualquer gue ser implementado com a radicalidade ne-
outra possibilidade existente dentro do siste- cessária, porque implica, entre outras coisas,
ma. Importa reter que este é, tipicamente, um uma verdadeira revolução tecnológica nos pro-
trabalho de toda a equipe, a fim de proporcio- cessos de trabalho nos serviços de urgência,
nar ao paciente desde o atendimento médico uma “revolução cultural” na cabeça dos técni-
inicial até o documento que lhe garante o aces- cos e, outra vez, uma verdadeira revolução tec-
so ao serviço do qual necessita. nológica aliada à construção de uma nova éti-
• Criar “vínculos provisórios” com médicos ca de trabalho nas unidades que compõem a
ou equipes dos serviços de urgência, no senti- rede básica de serviços. E esta não é uma tarefa
do de tentar aproveitar o atendimento inicial fácil, conquanto não impossível. No próximo
que o paciente está recebendo, para, em deter- ponto exploram-se algumas possibilidades de
minados casos estabelecidos também em pro- reorganização do centro de saúde em função
tocolos, avançar na exploração e elucidação do da lógica circular do sistema.
problema do mesmo, dentro dos limites tecno- • O centro de saúde deve ter, como missão
lógicos e organizacionais do pronto-socorro. principal, o reconhecimento dos grupos mais
Por exemplo, de um paciente hipertenso jo- vulneráveis na sua área de atuação e a respon-
vem, ainda sem vínculo estabelecido com sabilidade de garantir atendimento adequado
qualquer serviço que lhe garanta o atendimen- às pessoas sujeitas a maior risco de adoeci-
to regular necessário, deverão ser solicitados mento e morte que compõem estes grupos. Pa-
os exames complementares considerados co- ra cumprir esta missão, o centro deverá se es-
mo preliminares ou uma outra consulta para truturar para as seguintes atividades princi-
nova avaliação, com agendamento para o mes- pais: delimitar e conhecer em profundidade o
mo dia em que o médico que iniciou a explora- seu território, em todos os aspectos que são
ção esteja de novo de plantão. Espera-se, com pertinentes aos cuidados de saúde; prestar
este “vínculo provisório” ao médico ou à equi- atendimento direto às pessoas que pertençam
pe do pronto-socorro, criar o sentido de res- aos grupos mais vulneráveis e funcionar como
ponsabilidade com o paciente e garantir o seu articulador competente do acesso destas mes-
adequado encaminhamento ao serviço apro- mas pessoas a recursos tecnológicos mais com-
priado, após realizadas as investigações ini- plexos, em outros pontos do sistema. O centro
ciais. de saúde deve se qualificar bem para ser uma
O modelo assistencial que será trabalhado das portas de entrada do sistema de saúde e,
para “dentro” do hospital, mais especificamen- como parte de uma rede básica, não deve mais
te no cuidado ao paciente hospitalizado, deve- ser pensado como a porta de entrada do siste-
rá dar ênfase à constituição de equipes hori- ma (a porta hegemônica). O centro de saúde
zontalizadas, responsáveis por grupos de leitos tem o papel muito importante de articular o
nas enfermarias, de forma a facilitar a criação acesso dos usuários aos outros pontos do siste-
de vínculos entre a equipe e os pacientes. Os ma, devendo, por outro lado, organizar-se para
ambulatórios hospitalares deverão ser reduzi- dar acolhida a todas as pessoas que, tendo en-
dos ao mínimo necessário para dar atendimen- trado em outros pontos do sistema, necessitam
to aos egressos das várias enfermarias, mas que de atendimento regular e qualificado. E, de fa-
ainda estejam necessitando de seguimento to, todos sabemos que a rede básica é o espaço
mais próximo da equipe que iniciou o trata- que dispõe de um grande acúmulo de expe-
mento. Esta é uma estratégia importante para riência e possibilidade para este tipo de aten-
a redução do tempo de internação hospitalar, dimento, denominado, de uma forma geral, de

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MODELOS TECNO-ASSISTENCIAIS EM SAÚDE 477

programático. O grande problema da rede é o besse investimentos maciços para que se al-
acesso. Freqüentemente ótimos programas são cançasse um padrão médio de centros de saú-
usufruídos por uma parcela muito pequena da de com área física em torno de 400 m2, equipe
população adscrita. Aqueles que poderiam es- de, no mínimo, 15 médicos (pediatras, clínicos
tar se utilizando da tecnologia de que o centro e toco-ginecologistas), funcionando das 7h às
de saúde dispõe estão “perdidos” no sistema, 22 h, inclusive aos sábados, com gestão de óti-
forçando portas de entrada não organizadas ou ma qualidade, responsável por uma cobertura
“preparados” para fazer o seu acolhimento. As de, no máximo, vinte mil pessoas (70% depen-
pessoas, mesmo aquelas consideradas de risco, dentes do SUS), além de ter toda a sua lógica
entram e saem do sistema repetidas vezes e de trabalho orientada para a integralidade da
não são “capturadas”. O atual modo de funcio- atenção (da vigilância à saúde aos primeiros
namento do sistema não propicia isto. Então, é socorros em situações de urgência/emergên-
necessário tanto introduzir novas lógicas de cia), poderia talvez validar a concepção do sis-
trabalho nos serviços de urgência e nos hospi- tema de saúde como uma pirâmide, em parti-
tais, como pensar o centro de saúde de outra cular a proposta da rede básica, pensada como
maneira. Uma coisa é verdade: se os atuais uma grande “porta de entrada” do sistema (es-
centros de saúde se propusessem a cumprir as tes dados foram obtidos valendo-se da expe-
suas atribuições de fazer vigilância à saúde nas riência concreta do Centro de Saúde da Vila
suas áreas de cobertura e garantir seguimento Ipê, da Secretaria Municipal de Saúde de Cam-
bem qualificado às pessoas que lhe fossem re- pinas/SP, considerado como modelo de um
ferenciadas pelos outros serviços de saúde, não centro de saúde atuando em sua potencialida-
lhes sobraria muitos recursos de espaço e pes- de máxima). Este é, com certeza, um caminho
soal para se organizarem a fim de fazer o pron- possível de construir o SUS e poderá ser expe-
to-atendimento. É claro que o centro de saúde rimentado em determinados contextos muni-
deve trabalhar, na medida de suas possibilida- cipais muito particulares e favoráveis, mas não
des, com o que se denomina de agenda aberta. exclui a necessidade de se repensarem os flu-
Isto implica organizar o seu processo de traba- xos de usuários de forma muito mais flexível,
lho de forma a garantir o máximo de “encaixes” bem como toda uma reorganização do modelo
de pacientes não agendados previamente. Tal de assistência hospitalar e ambulatorial espe-
preocupação deve existir tendo em vista, prin- cializada, hoje hegemônico. A descentralização
cipalmente, os grupos de risco já matriculados da política de saúde propiciada pelo SUS é fa-
no serviço e que já vêm recebendo atendimen- vorecedora da experimentação de mais de um
to regular. Estas pessoas já têm seus prontuá- modelo assistencial em nível municipal. A im-
rios na unidade, já são conhecidas pela equipe plantação do programa de saúde da família é
e precisam ser acolhidas da melhor forma pos- um bom exemplo disto.
sível, pela unidade, nos momentos de suas “in- Repensar o sistema de saúde como círculo
tercorrências”. Esta é, aliás, uma das melhores tira o hospital do “topo”, da posição de “estar
formas de legitimar a unidade perante os olhos em cima”, como a pirâmide induz na nossa
da população que a primeira se propõe a aten- imaginação, e recoloca a relação entre os servi-
der: estar aberta para receber as pessoas quan- ços de forma mais horizontal. E que não se ve-
do elas se sentem doentes e necessitando de ja aqui apenas um jogo de palavras. A lógica
atendimento. Porém, sem dúvida, consideran- horizontal dos vários serviços de saúde coloca-
do-se as atuais áreas físicas e equipamentos dos na superfície plana do círculo é mais coe-
existentes nas nossas unidades básicas, será rente com a idéia de que todo e qualquer servi-
preciso fazer uma clara opção sobre qual mo- ço de saúde é espaço de alta densidade tecno-
delo será priorizado: insistir que o centro de lógica, que deve ser colocada a serviço da vida
saúde deve se responsabilizar por toda a de- dos cidadãos. Por esta concepção, o que im-
manda que bate à sua porta, reproduzindo de porta mais é a garantia de acesso ao serviço
certa forma a missão que está colocada para os adequado, à tecnologia adequada, no momen-
serviços de urgência, ou reorganizá-lo de for- to apropriado e como responsabilidade in-
ma a ser responsável pela vigilância à saúde na transferível do sistema de saúde. Trabalhando
sua área de cobertura e uma boa referência pa- assim, o centro de nossas preocupações é o
ra pacientes que necessitam de atendimento usuário e não a construção de modelos assis-
continuado e vínculo com equipes? tenciais apriorísticos, aparentemente capazes
É necessário, no entanto, dizer que o autor de introduzir uma racionalidade que se supõe
não desconsidera a possibilidade de ser con- ser a melhor para as pessoas. Ter acesso aos
tra-argumentado com a idéia de que, se toda a serviços de um centro de saúde é, em incontá-
rede básica já existente nos municípios rece- veis situações, mais importante do que ter aces-

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so a qualquer serviço oferecido pelos hospitais


hoje. Nestas situações, o centro de saúde é o
“topo” para um número imenso de usuários.
Repensar o sistema de saúde como círculo po-
de ser uma ótima estratégia, afinal, para se
quebrar a dura hegemonia do hospital e reco-
locar a rede ambulatorial de serviços em outro
patamar de reconhecimento pelos usuários.

Referências

CAMPOS, G. W. S., 1994. Considerações sobre a arte e


a ciência da mudança. In: Inventando a Mudança
na Saúde (L. C. O. Cecilio, org.), pp. 61-62, São
Paulo: Hucitec.
CECILIO, L. C. O., 1994. Inventando a Mudança na
Saúde. São Paulo: Hucitec.
LEVCOVITZ, E., 1996. Desafios e perspectivas para a
área de Planejamento e Gestão no SUS. Oficina
de Trabalho “Rearticulação da Área de P&G em
Saúde”. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública,
Universidade de São Paulo.
MENDES, E. M., 1996. Uma Agenda para a Saúde. São
Paulo: Hucitec.
MPAS (Ministério da Previdência e Assistência So-
cial), 1983. Reorientação da Assistência à Saúde
no Âmbito da Previdência Social. Terceira edição.
Brasília: MPAS.

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