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Direitocoosixacionsl — Brasil 1, Tio, cop-342.81 Pride roprodugto (Lak 88773) ‘Impress 0 Brat easel in rll Registros Este livro reine um conjunto de trabalhos elaborados, er sua maior parte, nos diltimos dois anos. Hi textos inéditos ‘outros jd publicados em revistas especializadas. Os artigos cu: dam da temética recorrente de minha producio académica: interpretagio, aplicagéo e efetividade da Constituicao e, espe cialmente, das normas afetas 20s direitos fundamentais. C pareceres, como natural, foram produzidos por solicitagéo de interessados, mas séo rigorosamente fiéis minha convicgd doutrinéria. Os escritas, publicados ao final, so uma homene gem a0s meus alunos da UERI, cujo convivio carinhoso e est mulante a0 longo dos anos me traz realizacio e felicidade. Algumas pessoas encontram-se intensamente presentes né paginas que se seguem, embora sem culpa no resultado. Nelso Nascimento Diz, meu irmio mais velho por eleigo, vem part Ihando comigo, de longa data e generosamente, suas idéias est capacidade de encontrar solugées para os problemas jurfdico Gastavo Binenbojm foi uma proveitosa parceria académica profissional nos viltimos anos. Desfrutei de sua inestimdve colaboragio, desde quando o identifiquei como aluno brithant até sia recente aprovago como mestre em diteito, E Ana Pau, de Barcellos, cujo talento, maturidade e dedicagiio a0 estudo 10 trabalho viabilizarn minhas.méliiplas atividades.¢:tomain Direito e paixdo! SUMARIO: 1.A Paixdo. II. Paixao pelo Direito. Limites ¢ possibilidades. 1) A Cténeia do Direito; 2) O Direito Positivo; 3) O Direito Subjetivo. III. A Paixdo pela Pa- lavra. IV. Conelusao. L A paixio O pensamento intelectual ¢, mais notadamente, o pensa- mento juridico, por longo tempo, guardou-se isolado numa auto-suficiéncia excludente, que limitava o seu objetivo e, de certo modo, amesquinhava o conhecimento que produzia. O formalismo e o positivismo juridicos, sem embargo de sua jus- tificagéo histérica, contribufram para este quadro, que talvez pudéssemos chamar de narcisismo cientifico. certo que a Ciéncia do Direito sempre utilizou, aqui e ali, elementos da Hist6ria, da Filosofia, da Politica, da Econo- mia. Mas estas sempre foram relagSes inevitéveis ou de convi- véncia, aproxintagées racionais entre afins. RelacSes tensas, de desconfianga. O golpe militar de 1964, por exemplo, foi'a vi- 1. Conferéncia proferide aos estudantes da Faculdade de Direito da Uni- versidade Federal do Parané em 5.4.94. Texto revisto pelo autor. 603 t6ria da Economia sobre o Direito, do discurso da eficiéncia pobre o discurso da legalidade, dos economistas sobre os ba- charéis, Uns e outros, hoje, irmanados na solidariedade do fra- «, Os fatos demonstram, contudo, que é mais ficil recons- tituir a ordem juridica que a ordem econémica. Mas, retoma-se 0 raciocinio, este narcisismo supostamente cientifico do mundo do Direito, exceisivamente apegado a 1é- ica formal e ao racionalismo, jamais se considera espaco para rellexdes que incorporassem valores, principios ¢ conceitos de dominios menos ortodoxos. Como a psicanilise e os limites insondveis do inconsciente. Como o dominio das paixées. Gostaria de trazer, assim, para a discusséo juridica — ou, antes, para incorporé-la como um dos elementos do discurso juridico— a paixdo, deslocando para o espago publico um tema ‘que até pouco tempo estava “circunscrito ao dominio priyado"? A paixdo, que € a expressio de um sentimento ou de uma ‘cmogii, sempre intensos, movida pelo inconstiente, é, quando nie a pidce de resistance, a0 menos o tempero necessério & raziio cientifica. © dominio das paixSes € muito vasto, Para jléin da paixio amorosa e da paixdo sexual, os sentidos passam uldria, pelo medo, pela inveja, pelo ciéme, pela cobica, peli amizade, pela liberdade. A paixio, em sie por si, nio é ética, néo é politicamente correta, vio & engajada. Mas € posstvel canalizé-la, dar-lhe um. sentido valorativo e explorar-Ihes as potencialidades, A paixio bem direcionada 6 uma energia poderosa a servigo da causa da humanidade. & impossivel, aqui, abstrair do sentido mais corrente da pa- « lavra paixio, que identifica o envelvimento entre pessoas, um envolvimento sexual, convencionalmente entre homem e mu- her, mas que comporta, também, um amplo espago alternativo. Notem que falo de paixao, ¢ néo de amor. Com isto nao «iucro endossar a oposigio ideol6gica que se faz entre amor 2 Adauto Novaes. Apresentacio io livro Os santidas da piaixdo, coletinea, Vunarte / Companhia das Letras, 1987. 04 paixdo, captada com maestria por Maria Rita Kehl, “em que a paixao é representada como 0 momento fulgurante — mas im- possivel — do encontro entre duas pessoas, enquanto o amor 6 visto como a dgua morna do dia-a-dia cinzento, com 0 qual somos obrigados a nas conformar”> Ao contririo, creio no amor apaixonado e cimplice, que supera a paixio narcfsica de cada um. O amor sublime, que do exige o rebaixamento do erotismo e nem 0 conformismo impostd — e néo eleito espontaneamente — a certos deveres sociais e legais. Ainda nas palavras de Maria Rita Kehl, “o amor sublime & amor de escolha.e, portanto, amor de liberdade. E unido com base em afinidades eletivas e, portanto, uma alianga A FAVOR, endo CONTRA, 0 véo de cada um pela vida’.* Na verdade, nio falo do amor porque ele é um ponto de chegada, um porto. de repouso. Quem ama encontrou e se en- controu. Falo da paixio, que €a procura. Quem est4 apaixonado esta em busca do ponto de equilfbrio. O desejo é a falta, Por isto mesmo, a paixio ¢ o exercicio de uma busca. Encontrar € ter de partir para outro lugar. A paixdo nio € feita de realidade, senio que de imaginagio. E a paixdo, ou sio as paixdes, mais que o amor, a energia essencial que move o mundo. Hé as paixSes menores, como a cobica, a vaidade, a ambigdo de poder. Mas hé paixdes reden- toras, como a da liberdade ¢ da justica. A paixéo que nos move aqui na academia, no mundo uni- versitério, € a paixdo intelectual, a paixio do conhecimento. Nés vivernos do pensamento. E a tarefa do pensamento, como observou Roberto Mangabeira Unger, "é a de confortar os aflitas ¢ afligir os confortados”S 3. Maria Rita Kehl, A psicandlise e o dominio das paixoes, in Os sentidos da paixdo, cit, p. 479. 4. Idem, p. 484. 5. © contetido. posse de uma alternative democratizada pura © pals, Uma observagio final, ainda uma vez tomada por emprés- timo a Maria Rita Kehl: “A paixdo intelectual tem uma carac- teristica oposta a paixdo sexual: enquanto esta quer exclusivi- dade, aquela quer adesoes. Quer ser compartilhada pelo maior nitmero posstvel de pessoas.”® f, 0 que se pretende conseguir aqui. Il. Paixio pelo Direito. Limites e possibilidades O Direito, como forma de expressio humana, envolve'eria-- io, sentimento, estilo. Ao lado de sua vocagéo pragmiética,” voltado para a realidade e a soludo de problemas, o Direito existe, também, para satisfazer ao espirito, para ser bonito, para acenar a0 dia seguinte. Por trés das ortodoxias sisudas e dos formalismos caricatos, Direito também € arte. Em passagem bem inspirada, citada por Ferrara, constatou Thering que “com um saber moderado pode-se ser um jurista distinto; e munca chegar a sé-lo, tendo-se, embora, wm conheci- mento vastissimo”?. E que por trés do seber objetivo, existe uma’ dimensio subjetiva: quem professa 0 conhecimento, em nome de quem, para atender que designios? Também Direito — ti, sobretudo 0 Direito — esté no dominio dos sentimentos € das paixses. Remarque-se que nio se vai proceder 4 anélise da paixo no Direito, ou seja, as hip6teses em que a norma jurfdica acolhe 6. Ob. cit, p. 472. 7, Von Ihering, Interpretagdo e Aplicago das Leis, 1987, p. 182. E disse mais: “Se nfo quer perder-se numa logica de conceitos, tfo asperamente fustigada por Uhering (Schere und Ernst in der Jurisprudenz, p. 357), a cithcia nio deve encerrar-se mim magnifico e soli:ério castelo de marfirn, distante dos rumores do dis, mas tem de entrar na vida, seguirthe os Imovimentos e as aspiragSes, perscrutar as necessidides que «fazer pulsar, sempre consciente da ménita que nfo ¢ 4 vida que deve adaptarse 20 ircito, mas sim o direito a vida” (p. 184). ‘606 elemento paixio, Seja para neutralizé-la, estimulé-la ou incri- miné-la. A paixdo esti dentro da norma, por exemplo, quando 2 lei penal permite a reducio da pena em um tergo quando 0 crime de homicidio € cometido “sob o dominio de violenta emogdo, togo em seguida a injusta provocacéo da vitima" (c. Penal, art. 21, § 1°), Ou quando permite ao cénjuge impugnar a doagio feita pelo outro a0 amante (C. Civil, arts. 1.177 € 248, IV}. Ou quando considera adiantamento da legitima a doagao dos pais a um dos filhos (art. 1.171), A paixio aqui considerada € a que move 0 cientista, 0 intérprete ou os operadores do Direito, seja na sua elaboragéo doutringria, seja na compreenséo da norma, seja na atuagio em casos concretos. Para os fins aqui propostos, é digno de registro que a palavra Direito assume, dentre outros, trés contetidos: 0 de Ciéncia do Direito, 0 de Direito Positivo e o Direito Sub- Jetivo. Cada um desses dominios mobiliza diversamente 0 pro- fessor, 0 advogado, o cidadao, E suas paixdes. I) A citneia do Direito Em uma primeira acepcio, 0 termo Direito designa um dominio cientifico, um conjunto ordenado de conhecimentos acerca de determinado objeto. £ a Ciéncia do Direito. O objeto da ciéncia juridica séo as normas juridicas, seus elementos, seus atributos, sua interpretacio e aplicacio. Ao trafegar pelo’ Direito, em plano cientifico, & preciso atentar para duas dimensées distintas: de um lado, € preciso conhecer-Ihe o'instrumental teérico, os princfpios, os conceitos © os mecanismos de atuagio. A ignordncia nio é boa conselheira einduz antes ao preconceito que a participacio transformadora. De outra parte, € preciso perceber o papel politico-ideol6gico do Direito, questionar a quem ele serve e que interesses pro- move, Sem essa percepcao critica, 0 conhecimiento se burocra- tiza'e 8¢ amesquinha. 07 Hi, assim, uma fusio indissolivel, e aparentemente esqui- zofrénica, que impée ao jurista verdadeiro fazer ciéncia e fazer politica. De um lado, 0 discurso cientifico, dogmitico, positivo. De outro, a compreensio do papel ideolégico e institucional do Direito. Aqui como em tantas coisas na vida, é preciso combinar razdo e emogdo. Como averbei em outro estudo: “E mesmo quando fago politica, procuro ser racional e razodvel. E quando fago ciéncia, fago-o emocionadamente. Nao sou neutro, nem imparcial. Parodiando Cortazar, sei onde tenho o coragéo e por quem ele bate."® Pura paixio. O mundo, tal como apreendido pela cincia, aspira a ob- jetividade. As conclusées a que se chegam, mediante a obser- vacéo € a experimentacio, podem ser verificadas por qualquer outro membro competente da comunidade cientifica. £ que a racionalidade desse conhecimento procura despojar-se do emo- tivo, tornando-se impessoal na medida do possivel.? Ascigncias naturais (v.g. fisica, biologia) estudam a realidade sob uma postura metodolégica descritiva, ordenando principios que sio constatados. Seu objetivo consiste em revelay algo que jé existe, vale dizer: elas atuam ao nivel'dos sistemas reais, do ser. As ciéncias sociais, nas quais se inclui o Direito, sem desprezo a0 estudo descritivo dos sistemas reais, ocupam-se, também, do estudo ¢ elaboracdo dos sistemas ideais, ou seja, da prescricio de um dever-ser. Desse modo, néo se limita a ciéncia juridica 3 explicagio dos fendmenos sociais, mas, antes, investe-se de um caréter normativo, ordenando principios concebidos abstrata- mente na suposigdo de que, uma vez impostos & realidade, pro- duzirdo efeito benéfico e aperfeicoador.!° & Luis Roberto Berroso, Direito constitucional ¢ democracia, 1993, mi- meo, %. Maria Liicia de Arruda Aranha'e Maris Helena Martins, Filosofando, Introducto a filosofia, 1986, p: 120. 10. V. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Andlise sistemdtica do conceito de ordem econdmica e social nas Constituigées: dos Estadas Democraticos, 608 O conhecimento convencional, formulado no modelo li- beral, divulga caber ao Direito reger a vida coletiva, nela intro- duzindo a ordem e a justiga. O direito é a positivacdo dos valores mais elevados da civilizacZo, para sua assimilao por uma dada sociedade, Assim colocado, o Direito €, por certo, alguma coisa apai- xonante e apaixonivel, Ordem, justica e valores da civilizacéo. Quem nio sentiria vivo entusiasmo pela possibilidade, emocio- nante, de assim servir & humanidade? Esta visio idealizada confronta-se com a circunstincia de que o Direito, enquanto ciéncia, nao lida:com fendmenos que se ordenem independentemente da atividade do cientista. Con- seqiiéncia natural € que em seu estudo se projetem a visio subjetiva, as crencas e os valores dos que a ele se dedicam. Surge, assim, a teoria critica do Direito, fundada no pres- “suposto assentado pela filosofia marxista de que a sociedade 6 dividida em classes: a dos proprietérios dos meios de producéo @ a dos detentores da forga de trabalho. Numa sociedade assim dividida, a ordem jurfdica espelha a vontade da classe domi- nante — i.e., dos proprietérios dos meios de produgdo — e tende a proteger 0s valores que lhe atenda aos anseios. Nesta linha critica, Direito, embora procure se apresen- tar de forma neutra e imparcial — tornando seu aplicador, 0 Estado, um érbitro dos conflitos sociais — é, na verdade, um sistema de dominacio. Assim compreendido, o Direito ¢ uma ciéncia menor, desprezivel. Se alguma paixéo puder mobilizar, € a da repulsa, da rejeicéo. 6 No fundo, o Direito se presta a um e outro papéis. Ea positivacio dos valores da ordem e da justica, e é instrumento dos interesses da classe dominante. Tudo depende do papel que o cientista e 0 intérprete pretendam desempenhar. De que tese apresentada no VII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, Porto Alegre, 1987, p. 4 €'5; José Joaquim Gomes Canotlho, Dire consttucional, 1986, p. 28 e 29. 509 lado ele vai estar, e com que olhos examinard as questdes que surjam. Depende, as vezes, da situagio concreta; depende, ou- ‘ras tantas, do ponto de observagio, Como na constatacko de. Ram6n de Campomar: v “En este mundo, sefior, ‘ No hay verdad ni mentira: nog Pues todo tiene el color Del cristal con que se mira" Bim concluso, o Direito, mesmo 0 Direito da classe do- sninante, tem nuarices, tem brechas que permitem que dentro dele se desbrave um espago importante de luta. Luta pelas liberdades individuais, pela aproximago das pessoas, pela de- mocratizaglo das oportunidades. Se assim no fosse, se 0 Di- reito no pudesse ser, em alguma medida, instrumento de li- bertagio © de humanizagio, no haveria sentido em estarmos aqui. O Dircito € ciéncia. O Direito € técnica. E preciso conhe- 3 cer-lhe o instrumental teérico e pratico. Mas é preciso ter con- egées Iimpidas e colocar 0 conhecimento a servico das causas em que se acredita. E preciso ter paixio e compaixio. Pois, como enssina a cangio, "lo que puede el sentimiento, no lo hay porlido el saber” 2) O Direito positivo Consoante se desenvolveti no t6pico procedente, a defini- ‘s40, a.cada tempo, de quais sio os valores a serem protegidos 08 fins a serem buscados nfio 6 uma questo jurfdica, mas sim politica. Todavia, consumada a decisio pelo érgio proprio, cla 8¢ exterioriza, se formaliza pela via do Direito, que iré entio conformar a realidade social. Por este mecanismo, o poder ‘transforma-se de politico em jurfdico. 11, Cltado de mieméria, sem acessa 2 Fonte, 610 A organizaco, desse poder ¢ 0 delineamento dos esquemas de conduta a serem seguidos sfo levados a efeito por meio de normas juridicas, que, no seu conjunto, compéem o que se denomina direito positivo!2. As normas juridicas, assentamos anteriormente, constituem o objeto da ciéncia do direito, Sem pretender deflagrar polémica que nao cabe nesta ins- tincia, a idéia de normas juridicas que aqui se vai utilizar iden- tifica-se com 0 conceito material de lei, independentemente de hierarquia. Consiste ela no ato juridico emanado do Estado, com caréter de regra geral, abstrata e obrigatéria, tendo como finalidade o ordenamento da vida coletiva.!? Trata-se, pois, de uma forma de conduta imposta aos homens por um poder so- berano e cuja observincia € por este garantida e tutelada.!# A doutrina liberal tradicional vé a norma juridica, a lei, ‘como expresso da vontade geral institucionalizada. £ cla o fundamento do Estado de Direito: “Governo de leis ¢ nao de homens.” A legalidade foi a superacao do estigio do poder ab- soluto, autoritério, enfeixado nas maos do monarcs. Além de instrumento de produgio das liberdades individuais, € possivel identificar na lei um contetido de relevo na busca de justica social. Foi a constatacio de Laccordaire, em passage célebre: "Na luta entre‘a forte e 0 fraco, entre 0 servo ¢ 0 senhor, 6 a lei que liberta e a liberdade que oprime.” ‘A paixio pela norma deita tatzes no formalismo juridico, foi desenvolvida com especial talento e devocio por Hans Kel- sen, principal formulador do positivismo juridico. De acordo com as idéias expostas em sua obra-prima Teoria Pura do Di- 12, Também os costumes constituem o direito positive. Para nfo se per- correrem sutilezasinopoctunas nesta instincis, equiparam-se, aqui, as idéias de direito positive ¢ de direito objetivo. 13, M. Seabra Fagundes, O controle dos atos administratives pelo Poder Judigiario, 1979, p. 20. 14, Roberto: de Ruggiero, Instituigdes de-direito civil, vol. 1, p. 26, A ese ‘rutura légica aqui referida aplica-se, especificadamente, as normas desti- nadas a reger comportamentos sociais. an reito's, Direito é w norma. Nie € papel do jurista questionarlhe ‘a leyitimidade, nem incorporard sua andlige elementos tomados , por.empréstimo a outras ciéncias, como'a Polfticn, a Economi: 0a Sociologi ae : __-Nio.se pretende aqui minimizar 0 papel relevante do po- sitivismo juridico no-desenvolvimento da moderna ‘ciéncia do dlgeito, Mas € ut6pica, para no dizer falsa, a crenca de que possa haver um dominio ideologicamente neutro ou cientifica. ‘mente puro O Fetiche da legalidade, a. pabxio cega pela norma é poli- ticamente devastadora...Ninguém pode julgar-se imparcial ou Slegar suposta indiferenca ante as conseqincias priticas que Suid atuagso como intérprete da norma possa favorecer ou mes- ‘mo engendrar. O conhecimento humano'nio tem por objetivo ‘apenas a interpretagio do mundo, mas-também a sua transfor. ‘nugio.'7 Nao hé neutralidades, nem a vida’ feita de abstracées ou Femotas projegées para o futuro. No verso inspirado de Drummond: “O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.” 's.A 1 adigho € de 1934. A.2* edicéo, com ampla reclaboracéo, mas Imuservact cla substincia da idéia de uma “pureza mevodolpiea do con ‘ubweimento juridica” (Prefécio), € de 1961. V. Teoria pura do Dieita, Ed ‘Arnenio Amado, Coimbra, 1979. ¢ 4 Ein palavras do préprio Kelsen, no capitulo inical de sua obra (ob. ci Fe a at ea ‘rocura responder a ests questi: © que & ¢ como & o Dircita? Mas lh tio Iniporta a questio. de saber como deve ser o-Direta (..) coneis € iGo politica do Direito . Quanido a si propria se designa como ‘pura’ teqfia do Dircito, isto wails que ela se propée garantir um conhecimento aperias 20 Diteio 'uir dese conhecimento tudo quanto née pertenga a6 sel objeto, tale quanto se née posta, rigorosamente, determinar como direlto: Quer iste thr que ela retende liberar a citciajusidica de todos os elementos que Ihe sio-estranhos. Este € o seu principio metodlogico fundamental” 11, Michel Muaille, Reflexdo Critica sobre o Ensing Juridica, Possibtlidades fe Limites, in Critica do Direita a do Estado, 1984, p. 42. on * S A paixdo acritica pela norma ¢ a paixdo’neurética pelo dominador. Quem quer qué tena observado como o fascismo se implantou na Itilia e como 0 nazismo empolgou a Alemanha a supostamente grande Alemanha das artes ¢ das letras — terd percebido como a legalidade pode ser manipulada e cor- rompida pelos designios mais vexat6rios 8 espécie humana. Ruy Barbosa — o insuspeito Ruy — ao paraninfar uma turma de bacharéis, nos primérdios da Repablica, verbalizou a advertén- cia de que iriam eles se consagrar & lei "num pais onde a lei absolutamente ndo exprime o consentimento da maioria, onde sdo as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopu- lares e menos respeitdveis as que poem e dispoem, mandam ¢ desmandam em. tudo”. . A paixZo pela lei nao é despreaivel. $6 que nio poderd ser monogamica. £ certo que as leis existem para ser cumpridas. Um dos flagelos deste Pais é, precisamente, o descumprimento constante, reiterado e, sobretudo, impune das leis. As leis exis- tem para ser cumpridas. Mas é preciso pensé-las criticamente. E preciso ter a curiosidade de investigar a quem elas aprovei- tam, que objetivos visam, e buscar, quando seja 0 caso, por tris “da leia justiga. Alguns dos grandes passos da histéria da huma- nidade resultaram de algum tipo de transgressio 8 ordem ins- tituida. E, por isso mesmo, algumas vezes, € preciso ousar para além da lei. A este propésito, eu tenho um bom exemplo, da época em que militaya no movimento estudantil, Foi em 1977, no campus da PUC, no Rio. Era o primeiro grande ato-pablico contra a ditadura militar, desde que o Ato Institucional n° 5 e , 0 Decreto-Lei n® 477, ambos de 1968, proscreveram aatividade politica na Universidade: Eramos sete mil pessoas. Lé fora havia um cerco de policiais e soldados, e um helicéptero fazia vos, rasantes. Todo mundo administrava © préprio medo de estar ali, e 0 ar estava tio pesado e denso que dava para pegar ¢ cortar a faca, ata De repente, lé no fundo dos pilotis, alguém desfraldou ums faixa impensivel, radical, utépica, onde se lia: “Pela Anis- tia Ampla, Geral o Irrestrita". Isto.em-pleno Governo Geisel, que chegott a balancar por tentar abolir'a tortura, Ainda era tempo de censura ¢ de cassagées. Pois bem: nfo se passarany dois anos ¢ veio a anistia ampla, geral e irrestrita, E nds apren- demos ali, na uta, na prética, na vida, que certos estavam os rebeldes franceses do chienlit, naqueles dias atOnitos do final ity décacla de 60, com seu slogan desafiador: “Seja realista, ‘paca o impossivel!” A vida é feita de conservagio e de transformacio, Discernir entre o que se deve ser conservado e o que deve ser transfor- mado pode impedir paixdes desenganadas, trégicas, fatais. As veves € preciso prudéncia, as vezes € preciso ousadia. Veje-se, a seguir, um bom exemplo de cada qual. © Canto XII da Odisséia relate que Ulisses, ao voltar da ‘Guerra de Tréia, teria de passar por um ponto do mar repleto de recifes, de onde sereias, com um canto belo e sedutor, atraiam os navegaclores para 0 choque contra as pedras ¢ 6 naulrigio inevitSvel. Advertido do perigo, Ulisses obrigou seus companheiros de viagem a remar com os owvidos tapados de ‘cera € se fez amarrar por cordas ad mastro do navio. (Note-se ‘que ele nto se privow do prazet, s6-do tisco.) E, assim, passou ineélume pela tentagdo do canto das sereias Vezes, no entanto, a despeito dos perigos, € preciso usar ¢ entregar-se 3 seducéo da paixio. Mesmo sob 0 risco de fartemeter contra os recifes ¢ nauftagar. Quem ndo se lembrard da imagem contundente, comovente mesmo, do solitfrio estu- dante chinés, de braco erguido a frente do tangte, paralisando, por breve tempo, mas com infinita coragem, a marcha das tro. pas sobre a Praca da Paz Celestial em Pequim? I. preciso, de regra, respeitar a lei ea actoridade. Mas quanclo uma © outra nao forem respeitiveis, é preciso valer-se do direito de resisténcia; que € a paixio que se ergue, acima di lei, pela justiga © pela liberdade, la 3) O Direito mbjétive Na terceira e Gltima acepgio que vamos aqui considera, © vocébulo direito designa a posicéo que as pessoas desfrutam. em face do ordenamento juridico. As leis, a0 consagrarem de- terminados valores ¢ 20 protegerem certos bens juridicos, fa- zem-no, em tiltime anélise, para satisfazer interesses dos indi- viduos. Esta situacdo de proveito, de vantagem, titularizada por aquele a quem a norma deseja satisfazer, € 0 direito subjetivo. Direito subjetivo, assim, é 0 poder de acio, assente no direito objetivo destinado a satisfacio de certo interesse.!® A norma jurfdica de conduta caracteriza-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade'® de exigir da outra determinado comportamento. Forma-se, des- se modo, um vinculo, uma relagio juridica que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever juridico, a obrigacio de cumprir° Quando a exigibilidade de uma conduta se veri- 18 M, Seabra Fagundes, ob. cit., p. 169. Embora néo haja referéncia do autor, esta definicio identifica-se, em seus clementos essencisis, com as de Ruggiero ¢ Maroi, Michoud ¢ Trotabas e Ferrara (v. Csio Mario da Silva Pereira, Instituigdes de direito civil, vol. 1, 1974, p. 42). Ela tem contetido ‘eclético, no sentido de que utiliza, conjugadamente, elementos da teoria da vontade, de Windscheid, pela qual o direito subjetivo é o poder de ago assegurado pela ordem jurfdica, ¢ da teoria do interesse, de Ihering, pars quem ele € um interesse juridicamente protegido (v. José Carlos Moreira Alves, Direito romano, vol. 1, 1987, p.104, e Caio Mario da Silva Percira, ob. cit, p. 40-3). 19, & pertinente, aqui, © emprego da palavra faculdade, como fezem ind- eros autores, porque, em verdade, o titular do direite pode fazer ou no uuso da norma pare exigir a efetivagéo da conduta prevista. Faculdade designs, precisamente, a possibilidade de praticar ou nfo determinado ato, fem um correspectivo dever juridico de eutrem (v. Arnold Wald, Curso de direito civil,vol. 1, 1962, p. 136). 20. V. José Carlos’ Moreira Alvés, ob, cit p. 108. Uitllzon-se a idéia de direito subjetive por seu carftertiversal eaceitagio relathamente pacfica, 61s iia hs te ai ead ie iiiSacin, fica et favor do purticular'em fags do Estado, dizese existir - ‘um direito subjetivo prblica, 9 Singularizam 0 direito subjetivo, distinguindo-o de outras posigdes juridicas, a presenca, cumulada, das seguintes carac- ‘terfsticas:4? a) a ele corresponde sempre um dever juridico; b) ele € violivel, ou seja, existe a possibilidade de que a parte contriria deixe de cumprir 0 seu dever; ¢) a ordem juridica ‘ealoca & disposicio de seu titular um meio juridico — que éa ago judicial — para exigir-Ihe o cumprimento, deflagrando os imiecanismos coercitivos ¢ sancionatérios do Estado. Os direitos subjetivos — que, no plano constivucional, se- 10 direitos politicos, individuais, sociais e coletives ou difusos -— sio assegurados, como se referi, por agées judiciais, quando no sejam respeitados espontaneamente. Este direito de ado, que é em sium direito subjetivo pablico 20 qual corresponde o dever juridico do Estado de prestar jurisdicao, ver consagra- do no art. 5°, XXXV da Constituicéo da Repéblica: “A lei ndo exeluird da apreciagao do Poder Judicidrio lesio ou ameaga a direito,” mceptualmente, a questo do direito de ado néo sofre i ontoldgica quando transportada para o plano penal. Préprio dos Estados civilizados € o monopélio do uso da forca € do poder de administrar a justiga. Por via da ago penal, o lstado-Administracio exerce, perante 0 Estado-juiz, 0 poder- pase de objegdes respeitéveis, como as de’ Hans Kelsen e Leon Duguit, ‘cujos fundamentos no cabem agui comentar © 20s quait, nfo aderimos. ‘Nceitamos, todavia, que os direites subjetives sejam a espécie principal do _ninero situaglo juridica subjtiva (ativa ou de vantagern), que compreende, também, pelo menos — para néo avangar em terreno polémico — os interesses legitimas e as faculdades. Para aprofundamento dessa questio, ‘om ampla referéncia doutrinéria, veja-se Jost Afonso da Silva, cb. cit, p. 153 e segs TR te 21. San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil (Aulas proferidas na Paculdade Nacional de Direito, 1942 — 1945), s. d., p. 150. 616 dever de reprimir as infragbes pennis®® Aos acusados, por sua ‘ver, si0 assegurados direitos subjetivos diversos, dentre os quais © do devide processo legal, abrangendo, dentre outros, o direito Gp defesa ¢ 0 contraditério. Pois bem: € no plano dos direitos subjetivos e do exercicio das ages judiciais, cfveis e penais, que o Direito mergulha, sem retorno, no dominio das paixdes. E quando a norma genérica e abstrata se transforma na regra concreta que decide 0 caso levado a juizo, que o Direito se humaniza. E aqui que se decide: quem fard fortuna e quem se arruinaré; que destino teré uma crianga; quem herdard, quem indenizard. Questées de honra ¢ questées de caprichos, nas insondaveis complexidades da alma humana, fazem 0 dis-a-dia da aplicagio do Direito pelos ‘Tri- bunais. Alli convivem agressor e vitima, s6cios e ex-sécios, amigos © ex-amigos, amantes ¢ ex-amantes, cOnjuges € ex-cOnjuges, pais, filhos, irmaos, parentes préximos ¢ remotos. Os senti- mentes so os mais variados, sempre intensos: amor, 6dio, medo, gléria, citime, cobiga, desespero, sede de justica. Os Tribunais séo lugares de paixées revoltas, desencontradas. Além das partes envolvidas no litigio, 0 proceso, este ce- snirio de paixdes, ter ainda dois atores sempre necessirios, ¢ ‘um terceiro eventual: 0 advogado, 0 juiz eo membro do Mi- nistério Pablico. Dos trés, somente o advogado pode legitima- menté se apaixonar pela causa. O Ministério Pablico, e os érgdos e agentes que desempe- nham suas fungdes, destina-se, precipuamente, 2 tutela dos volores fundamentais e indispontveis da sociedade. Em sede penal, cabe-lhe deduzir em jutzo a pretensio punitiva do Estado ¢ postular a repressio aos criminosos. No jufzo civil, os cura- dores se,ocupam de certas instituigSes (registros piblicos, fun- dacées, familia) ou de certas pessoas (ausentes, incapazes, aci- 22, Sobre o tema, v. Fernando da Costa Tourinho Filho, Processo. penal, vol. I, 1979, p. 298 e segs, 617 dentados no trabalho).24 Mais recentemente, a tutela dos di- teitos coletivos e difusos, notadamente por via da aco civil piblica, tornou-se, também, fincio institucional do Ministério Pablico. Ordinariamente, o Ministério Pablico nfo atua em proces- sos estritamente privados. Em grande parte dos feitos em que oficia, age ria condicao de custos legis, devendo opinar impar- cialmente. E mesmo quando atua na posigio tipica de parte — como na aco penal e na aco civil, publica — seu papel ¢ de representante da sociedade, em busca da boa aplicacéo do Di- ieito, e no necessariamente da vitdria. Porque assim é, podém 0s agentes do Ministério Péblico requerer arquivamento de inquérito policial ou pedir a absolvigéo do rév. Cumprimento da lei, nada de paixéo. O juiz € 0 agente da funcio jurisdicional do Estado. Cabe- Ihe, mediante provocacéo da parte interessada, pronunciar 0 direito do caso concreto. A vontade do Estado-juiz tem caréter de definitividade e, apés os recursos cabiveis, reveste-se da autoridade de coisa julgada. Princfpios destacados na ordem constitucional brasileira sio os da independéncia e imparciali- dade dos juizes (CF, arts. 95 e 96). (E bem de ver que o juiz, de-repra, desagradaré a um dos lados. Estaré sempre condenado conviver com 50% de rejei¢so. No minimo, porque As vezes desagradard a todos.) O juiz hé de ser 0 rbitro desapaixonado dos conflitos de interesses. Nio assim 0 advogado. Ao contrério do Miistério Piiblico ¢-da Magistratura, a Advocacia é um exercfcio de paixio. Nos limites da lei e do Cédigo de Etica, o advogado hé de ser parcial, engajaclo e comprometido com os interesses de seu cliente. Nio obstante isto, diz a Constitulcio, o advogado 6 indispen- sive 8 administracio da justica, sendo inviclivel por seus atos ¢ manifestagdes no exercfcio da profisséo (art. 133). E preconceituosa e desifformada a avaliagio do advogado, de certos circuloi-de ignorfincia, como sendo o profissional da mentira. Ele € o profisstonal que, dentre teses juridicas alter- nativas e sustentiveis, defende aquela que aproveita aos inte- resses que Ihe foram confiados. E, do outro lado, defendendo 0s interesses opostos, haveré outro advogado. Cabe a cada ad- vogado enunciar os argumentos que atendem a seu cliente. A jtistiga seré 0 produto dialético do confronto de teses antagé- nicas. Por viver a turbuléncia das paixdes, a advocacia tem dis- ciplina rigida e espectfica. A Lei n° 8.906, de 4.07.94, dispoe sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil — OAB, instituindo direitos e obrigag6es. Logo de inicio, no art. 6°, deixa claro a que “ndo ha hierarquia nem subordi- nagdo entre advogados, magistrados e membros do Ministério Piiblico, devendo todos tratar-se com consideragao e respeito reciprocos”. E, mais & frente, enuncia 0 princfpio que deve nortear 0 advogado ao se confrontar com a paixio alheia, in- clusive a da opinigo publica — que, muitas vezes, forma jutzos impulsivos e apressados: "Art. 31. § 2%. Nenhum receio de desagradar a magistrado ou ‘a. qualquer autoridade, nem de incorrer em impopula- ridade, deve deter o advogado no exerctcio da profis- sdo”. Mas 0 advogado no deve ser instrumento da provocacio injusta’4, impondo-lhe, ainda, & Cédigo.de Etica,.o “dever de urbanidade”, delineado em .capftulo:préprio, explicitado nos seguintes dispositivos: . : 24, Let n® 8,906/24, “Art..34Cofatitl inftagto: dseiplinnr: XV, Pracr, 20. Aratjo Citra, Grinaver e Dinamaréo, Teoria geral do processo, 1975, 2 ‘em nome do,constituinte, sem auorizagie, exerts deat mputagio 8 ter p77. *] ceciro de fato definido como eile." pcs 4 as 3 O19 : “Art.44. Deve o advogado tratar o piblico, os. colegas, ‘as autoridades e as funciondrias do Jutzo com respeito, discrigdo ¢ independéncia exigindo igual tratamento ¢ zelando pelas prerrogativas a que tem direito. Art, 45. Impée-se ao advogado lhaneza, emprego de linguagem escorreita e polida, esmero e disciplina na execugéo dos servigos. Ant. 46. O advogado, na condigdo de defensor nomea- do, conveniado ou dativo, deve comportar-se com zelo, empenhando-se para que o cliente se sinta amparado @ tenha a expectativa de regular desenvolvimento da demanda," A realizacio dos direitos subjetivos, a concretizacdo, no nuundo dos fatos, dos comandos contidos na norma juridica, é 4 finalidade iltima do Direito. B aqui que ele sai do papel e entra na vida, feita de gente, cérebro, nerves, coragio, senti- ‘mentos © enormes paixdes. . MIL. A paixdo pela palavra O officio do Direito € 0 offcio de enfileirar palavras. Sedu- ‘lr, convencer, cooptar, Este é 0 papel do adyogado, do pro- "vor. Para n6s, escrever, falar, nunca é tm até-de banalidade. N6s vivemos dela, das palavras. Soimos todos ggol6s das pa- lavas E preciso ter paixio pela linguagem. E a paixdo pela lin- 4uagem, escreveu Paulo Leminski, este formidavel poeta ¢ r0- Mancista curitibano, € a poesia. Mesmo escrevendo e falando in prosa, € preciso fazé-lo sob 0 simbolo da poesia. Nao em rimas — que, na prosa, no vai bem — mas em ritmo, em métrica, em sonoridade. Nos anos em que eu vivi fora do Brasil, sent falta de muitas coisas. Atividades, lugares, pessoas. Mas nenhumia saudade era «20. is constante que @ saudade de falar portugués, Escolher eucla palavra, suber-the o sentido, saborear-lhe a sonoridade. Lem- brava-me sempre da declaragao de Camées, nio a Portugal, ‘mas ao portugues: “Deixem os Portugais morrerem & mingua: Minha Patria é minha lingua.” Eca de Queirés, em “A Correspondéncia de Fradique Men- des", escreveu com humor € maestria: “Um: homem s6 deve falar, com impecdvel seguranga pureza, a lingua da sua terra: — todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeira. Na lin- gua verdadeiramente reside a nacionalidade; — ¢ quem for possuindo com crescente perfeigdo os idiomas da Europa vai gradualmente sofrendo uma desnacio- + nalizagao. (..) Nao, minka senkoral Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as-linguas dos outros.” Tenham, de certo, indulgéncia pelo radicalismo de nosso Fradique, inadvertido de que os tempos subseqiientes exigiriam a ampliacdo dos horizontes lingiisticos, Nos dias que correm, nio ha sobrevivéncia intelectual sem acesso ao conhecimento que se produz em outras linguas. E nem sempre di tempo de esperar pelas tradugées. Alis, uma das vantagens do terceiro- mundismo € tornar-nos cosmopolitas. Aqui, ninguém sobrevive intelectualmente se nao tiver os olhos postos no conhecimento que se produz além-mar. Pois bem: no exercicio desta paixio pela palavra; leiam e ‘ougam de tudo um pouco. De fotonovelas a bulas de remédio, sempre hé uma entrelinha surpreendente, uma inspiracio in- suspeita, um momento de humor ou de ridiculo, a ser flagrado numa palavra. No posso evitar algumas sugest6es pessoais. Em meio a tudo, nao deixem de ler Fernando Pessoa. Eo que de ‘mais. lindo j4 se produziu em lingua portuguesa. Nao deixem é 62 de ler Mafalda, do Quino, porque nem tudo na vide € erudicio. ‘Ser cspirituoso 6 fundamental. Nio deixem de ouvir Caetano Weloso-e sua constatacao desconcertante de que “de perto, nin- ‘ttiém é normal". Como poucos, essa gente —em meio a tantos outros — professa, com fascinio ¢ carisma, a paixéo pelas pa- lavras. ‘A paixio pela palavra é um exercftio de estética, som, de pniver, nunca de presuncio. A beleza esté na simplicidade, na trnnsparéncia, na clareza. Nunca na linguagem empolada, per- néstica, arrogante, O livro Introdugao a Ciéncia do Direito que tive de ler no 1° ano de Faculdade ilustra, sob a forma de caricaturs, como indo se deve utilizar a linguagem. Ao final do texto, & guisa de sintese do que se havia acabado de ler, © conceituado autor perpetrou 4 seguinte pérola: “Eis a nossa posig&o — fundamentalmente esséncio- existencialista, como notamos no capttulo XLVI— por- que atribui ao direito uma esséncia (0 contetido) ¢ . uma existencia (0 continente), como condigdo de sua imanifestacdo plendria no convivio, do mesmo passo que 0 enxerga qual fendmeno noético (vivencial), de natureza sicrética e nio meramente eclética, visto como & a sintese eidética que o informa, e ndo a tese ¢, ainda menos, a antitese.” Este texto, desabando sobre alunos do 1° ano, pode pér a perder uma vocacio. A Revista de Direito Civil publicou, recentemente, o texto de aula inaugural proferida em uma das principais Universida- des: do Pais, por Professor da mais elevada reputacdo e vasta obra publicada, Nele se liam passagens como estes: “1. Porticum ‘No instante solene em que se descerram os reposteiros SEN RAIS tata dda ano letivo cla mais antiga das faculdades de Direito do Pats, e as solarengas arcadas mais ainda se arre- dondam para acolher, em maternal amplexo, a alga- raviia dos neofitos que se congraca com a solércia dos veteranos. (..) Nossa lucubragao é assim uma homenagem a toda -d Faculdade, manirrota nas dddivas da diuturna ge- nerosidade (...) gragas a cuja seriedade e devotamento nossa herdildica ciéncia passou a iluminar as eras e a nortear os povos... (...) Mas 6.nosso-testemunho fica manifestado, ndo obstante a semente-corra o risco de arrostar a canicula da preguica mental dominante e o vendaval desagre- sador do imediatismo e da ambicdo.” Fujam de coisas assim. Saibam ter o desprezo essencial pela trudicio exibicionista, pelo hermetismo vazio, A codifica- Gio deénecesséria ou indevida da linguagem € um instrumento de poder. 6 uma forma de excluir a maioria, de negar-lhe acesso a0 conhecimento ea informacio. Mirem-se, neste particular, na passagem inspiradissima de Manuel Bandeira (Itinerdrio de Pasdrgada), que abre o magn{- fico livro de Plauto Faraco de Azevedo (Critica a Dogmdtica ¢ Hermenéutica Juridica) “Aproveito a ocasidéo para jurar que jamais fiz um ‘poema ou verso ininteligtvel para me fingir de profundo sob a especiasa capa de hermetismo. Sé ndo fui claro quando nao pude,” E bem verdade que, a despeito da simplicidade que deve ser buscada, 0 Direito é uma ciéncia. Uma ciéncia € feita de prinefpios, conceitos e terminologia préprios. Jamais minimi- zem @ importincia de empregar as palavras adequadas para identificar as idéias que se quer expressar. Chamar coisas dis- 623 intas pelo mesmo nome, ou coisas iguals| por nomes diversos, inviabiliza a produgio ¢ transmissi¢ do conhecimento. Nio se esquecam que € a palavra,-alinguagem, a capacidade de comu- nicagio verbal e escrita que distinguem’o homem dos outros animais ¢ 0 fazem instrumento da civilizacio, Nem a opcio por ser simples, nem a necessidade de ser técnico dispensam a elegancia da linguagem. Fujam da vulgari- dade, da linguagem grosseira, da’ linguagem agressiva. O Con- selho de Etica e Disciplina da OAB examina, presentemente, para o fim de punicao do advogado que subscreveu, peticio do teor seguinte: “A advogada da Autora, uma recalcada, hipécrita, ‘gnorante, tanto fez que’ acabou por despejar o colegd de profissio do prédio em que residia... (...) Essa imbecil causou-me profundos dessaborgs, hue rmilhagses, ¢ vem causando, ainda, por causi de um capricho, mas essa filha da p. terd muito em breve na resposia aos seus desumanos atos profissionais". or fim, tenham 0 orgulho e a resignacdo de falarem em Portugues. Orgulho de uma lingua vasta, rica, sonora, sensual, as vezes ardente, ‘Tenham, todavia, a resignacdo de falarem uma lingua que nio abre portas para 0 mundo, O portugués é um tuimulo. Se escrevessem em outras Iinguas, Pontes de Mirands, Miguel Rea. le, Scabra-Fagundes, Barbosa Moreira teriam sido nomes mun. dlais. Em seu trabalho Poesia: A paixdo de linguagem, Paulo Leminski, com sagacidade e humor, lamentou: “Vocés jd imaginaram a desgraca que é escrever por- ‘ugués? Sometimes T wonder. Quem é que sabe portu- ‘guas nesse planeta, fora Brasil, Angola, Mocambique, Cabo Verde, Macau? (.) A gente jé nasce numa lingua periférica, escrever oz uma coisa em portugues e ficar calado mundialmente ‘ é mais ow menos.a mesma coisa.” Mas hé encantos em nao ser o mais universal, em nao ser © mais conhecido, em nao sero maior de todos. Fernando Pessoa captou a evidéncia, com lirismo, ao constatar que o Tejo © grande Tejo — no era maior do que o rio — 0 pequeno — de sua aldei . “O Tejo é mais belo que 0 rio que corre pela minha aldeia, Mas 0 Tejo ndo é mais belo que 0 rio que corre pela minha aldeia Porque 0 Tejo ndo é 0 rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grandes navies E navega nele ainda, Para aqueles que véem em tudo o que ld ndo esta A meméria das naus, Tejo desce de Espanha E 0 Tejo entra no mar em Portugal. Toda a genie sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai « E de onde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, E mais livre ¢ maior o rio da minka aldeia.” Alguém poderé dizer que estas preocupagées.com a lin- guagem constituem um mero apego 3 forma, 3 embalagem, aos ritos, € ndo a substincia. Pois a vida é feita de contetidos, mas também de ritos. A retérica vazia é perversa ao espitito, Mos sem estilo, sem forma, sem ritos, desperdica-se a’ beleza ¢ a vida se torna érida e penosa, © prize & parte importante da, vida, HA uma bonita passagem em.O Pequeno Principe, um livro simpitico, desmoralizado: por geragdes de misses iletradas. E ‘um didlogo entre a raposa e © principe, que assim corre: “"Teria sido melhor voliares a mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, as quatro da tarde, desde.as trés.eu comecarei a ser feliz. (..) Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coragao ... E preciso ritos. — Que é um rito?, Perguntou o principezinko. — E uma coisa muito esquecida também, disse a ra- posa, E 0 que faz com que wm dia seja diferente dos outros dias: uma hora, das outras horas.” Sobre a falta de ritos — eo primitivismo que daf resulta — escreveu ainda uma vez Eca de Queirés, pela pena de Fra- dlique Mendes: "De resto, ndo se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples hd modo de ser religiosos, inte'ramente despi- dos de liturgia e de exterioridades rituais, Um presen- ‘iei eu, deliciosamente puro e intimo. Foi nas margens do Zambeze, Um chefe negro, por nome Lubenga, que- ria, nas vésperas de entrar em guerra com um chefe vizinho, comunicar com o seu Deus, como seu Mulungu (que era, como sempre, um seu-avd divinizado). O recado ou pedido, porém, que desejava mandar & sua divindade, néo podia transmitir através dos feiticeiros ¢ do seu cerimonial, tao graves e confidenciais maté- riag continha ... Que faz Lubenga? Grita por um es- cravo: dé-the orecado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escrave tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente arrebata um machado, decepa a cabeca do escravo, e brada trangililamente ‘Parte!’ . A alma do escravo lé foi, como uma carta lacrada e selada, direita para 0 Céu, ao Mulungu, ‘Mas dat a instantes o chefe bate uma palmada ajlita na testa, chama a pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido répidas palavras, agarra 0 machado, separa- Ihe a cabega, e berra. ‘Vail’. Esquecera-lhe algum de- talhe no sex pedido ao Mulungu ... O segundo escravo era um pbs-escrito,,,. Esta maneira simples de comu- niicar com Deus deve regozijar 0 sew coracdo." A linguagem do Direito hé de conformar-se aos rigores da técnica juridica, Mas sem desprezo & clareza, 2 transparén 2 elegincia e a0 ritmo melodiogo da poesia. As palavras, para o Professor, para 0 advogado, para os operadores do Direito, em geral, sio feitas para persuadir, demover, incentivar. Nao basta sintaxe. Nao basta ortografia. Nao basta semintica. & preciso paixio. TV. Conchusio Com as dificuldades pfevisiveis, percorreram-se aqui al- guns dos caminhos em que se cruzam o Direito e a Paixio. Uma viagem acidentada, na combinacio implausivel entre 0 inconsciente psicanalitico e a racionalidade jurfdico-cientifica. Um mergulho experimental, que no foi muito além da super- ficie, Concorte, antes em originalidade que em luxo, esta com- binagéo despretensiosa e atemporal de Kelsen, Marx e Freud. Cada qual achando a companhia do outro incémoda. 627

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