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MAURICE BLANCHOT O ESPACO LITERARIO ‘Tradugfo de ALVARO CABRAL Vtn0- Rio de Janeiro — 1987 ilo original ESPACE LITTERAIRE © Baions Galimar, 1955 SUMARIO Dirioe pee toga pores raervado, STESITORA ROCCO LTDA,’ 1. A SOLIDAO ESSENCIAL ° on ds fi, 18, Gr 315 1. ABORDAGEM DO ESPACO LITERARIO -... 27 CEP 20011 P| Rio de Janeiro — RY ‘A Experiéncia de Mallarmé . ee Tels 511608 Ill. O ESPAGO E A EXIGENCIA, DA COBRA 45 io ‘A Obra ea Fala Erane D8 se _ Kafka e a Exigéncia da Obra .... ae 50 Pride « vende em Pot! IV. AOBRA E 0 ESPAGO DA MORTE «sss a1 4 More Posse ON 88 1A Esperia de “igi?” SINT 108 Rilke © «Exige do Morte 2000000000000002 te i 1. Bun de uma mort juste us ASA MARIN. DUARTE 2. Oveipupo da morte ev. 0 3. Tranematarso da morte 1 serio rawr cart pos savros V. A INSPIRAGKO sesecressssscsses tot weNDeL ScTOnat © Lado de Fora, a Noe 2000000000020 tes ENRIQUE TARNAPOLSKY © Othar de Oveu ss Ct at 2 Insprato, a Fla de Tnspirasso Lor Vt A O8RA' A COMUNICAGAO ary Ler . meas 191 A commicagéo 198 sinseslRSez, Gustto gy VIL. A LITERATURA EA EXPERIENCIA ORIG NAL 209 Ts © Faro e's Queibo da Ane 000 On one Sania / Mane Sashl, ao de ‘As Carceritsas da Obra de Avis 000000200. 22 sivas Ci. RS MES sae ioe nt rie Bl “dito de: epee en 1 time Dieu, emiae confai. ANEXOS cai Ri tl 1. A SOLIDAO ESSENCIAL E A SOLIDAO Do 870268 OO — mi MUNDO 253 BoB : I. AS DUAS VERSOES DO IMAGINARIO. | a38 MI. 0 SONO, A NOITE 26 IV. 0 ITINERARIO DE HOLDERLIN - 210 Um livro, mesmo fragmentério, possul um centro que © rai: centro esse que no € fixo mas se desloca pela pressio do livro e pelascircunstincias de sua composicéo. Centr fixo também, que se desloca, € verdade, sem deixar de sero mesmo € tornando-se sempre mais central, mais esquivo, mais incerto, © mais imperioso. Aquele que escreve o livro, escreveo por desejo, por ignorincia desse centro. O sentiment de o ter to- ado pode nada mais ser do que 2 iluséo de 0 ter stngido; quando se trata de um livro de esclarecimentos, hi uma espé- ie de lealdade metédica a declarar na diego. daquele ponto ‘para o qual parece que o livro se divige: aqui, na diregdo das épinas intituladss O Othar de Orfeu ‘TWIONaSSH OYATTOS V I PARECE que aprenderiamos algo acerca da arte s¢ intufssemos 1a-que a pals “Tense abusado ‘muito dessa palavra, Entretanto, o que € qué significa “estar 136° Quando € que se estd 56? Formular estas interrojasbes fo deve somente levar-ncs a opiniSes pattcas. A solidio, 20 ivel do mundo, é uma feida sobre a qual nfo eabe aqui tecer comontiios, ‘Nio visamos em particular a solidio_do-antsts, “aquele aque, segundo se diz, serihe-ia necessria para exereer a sua frte, Quando Rilke exereve & condessa de SolmsLavbach (5 {de agosto de 1907): “Hi semanas que, salvo duas breves interrupsses, no pronvncio uma s6 palavra; a minha solidio fechas, enfim, e estou no meu trabalho como 0 earo50 no ide que cle fala nfo & essencalmente solidio: A solidio da. obra [A solidio da obra — a obra de arte, a obra lterdria — des vendainos uma solidio mais essencal. Exclui o isolamento complecente do individuatismo, ignora a busca da diferenga; nfo ve dissipa o fato de sustentar urna relago viel numa tarefa que cobre toda a extensio dominada do dis, Aquele que fxcreve a obra é apartado, aquele que a escreveu & dispensado. ‘Aqusle que & dispensado, por outro lado, ignore. Essa igno- incia preservao, diverteo, na medida em que 0 autoriza a pereeverar. © excitor nunca sabe que a obra esté realzada (© que ele terminow num livo, recomerélo-6 ow destratiod ‘num outro, Valry, celebrando na obra esse privilégio do infi- ito, ainda vé nela © lado mais féel: que a obra seja Dee ‘isso significa (para ele) que o artists, nio sendo capex de the Pr fim, € capaz, no entant, de fazer dela o lugar fechedo de lum texbalho sem fim, cujo inacabamento desenvelve © dominio do espitito, exprime esse dominio, exprimeo descavelvendo-o sob a forma de poder. Num certo momento, a8 eircunstineas, ‘ou seja, a histéria, sob a figura do editor, das experitncias finan % socisis, pronunciam esse fim que falta, € 0 artista, bertado por um desenlace, por um desfecko- que the Cimposte, pus ca a e simplesmente, val dar prosseguimento em” ‘outra parte ap inacabedo, ~O infinito di ohra, numa tal perspctva, 6 toe o jnfe oie St gee tr se bre, em Yer de realizar se no infinite day Dyas Ho navimen, 10 da histra. Mas Valéry nfo foi, em absclut, im herd Gostava de falar de tudo, de escrever sobre tudo: todo dispersa do.munda distrateo do todo dnc ual ele se deixava desvier amaveimente.O et. tks da dverddade dn pnt dasa Entretanto, a obra — s obra de ate,» obra itentia nfo € scabeda nem inacahada: ola gO que ela nos diz exclusivamente isso: que € —e nada rns. Fora dis, nfo € sade, Quem quer fea exprinir algo Tals, nada encore, descobre que cla nada exprime. Aguele que vive na depen acid sr, je ae reba pra Il, pers — A solidio do que 9 2 palavra scr exprime; palavra que a lin cd da obra, da of Susaam sitendissimulando-a ou faz aparecer quando se oeulta encioso da obra. 1 lidfo da obra tem por primeito limit de exigtncia que jamais permite afirméta acabada ou insca- Dada. Ela € desprovida de provs, do mesmo modo que & ce rente de uso. NSo se verifica nem se corrobora, a verdade pode apoderarse dla, a fama esclarece.a ¢ ilumine-a: essa existncla no The diz respeito essa evid2nca nfo a torna segura nem real, spenas a toma manifesta, ‘A obra é solitéria: isso nfo slnifca que ela seja\inco~. ‘municével, que the falte 0 letor. Mas quem a 18 entra Hea ‘afirmagéo da solidi da obrs, tal como aquele que # eicre pertence a0 riseo desse sofdio,—~—— Too 2 A obra, 0 livro Se qusemes ver mais de perto 20 aie tis afimagies nos Sadun ler see neces spurat onde els tn sua far 0 ester exrve um lio mas 0 io ainda no & 8 ‘uso bra ab obra qundo sreés dla se pomuela m2= ‘viléncia de um comeso que Ibe & préprio, pe oe concn qunso = obra SE Suen e de lglm que #1 Podese ent pepunt ‘Madi, se eau € 9 Hen do rio, nlo exriiiao fo Sea de ual [a = Saree fusio wba forma do livro? O cscrtor pertnce 2 ‘Sas mas o qu he patence& coment un io, um anonon- {2 toad de plea nto, que ho mat iin mundo. O'ieor que sete eve vio area apenas qe tobea end Ineabada, eit que un pouco mais de tablho, 1 hance de alguns instante favordveis.prmilitheto, 0. themes lcm, Porno, vole» pr ioe 3 ca Mas fo que quer terminar continus senda o intarminével, associeo Qn trabalho ilusério. E-2 obra, em ditima instincia, fmora-o, peers sche a i ete inaaao da mas. © que se poe trae na ober ‘ordo de que o alsa cS terminando sun obra n0 momento em Te more, fms t‘conhere. Obervagio ue ter 30 Jeva ffrener porguanto o escror no ertarin moro 4 part do ‘omen ew que a gba exite, cna ce proprio tm, por ve eso presentment, ne impreslo de tm oceidade das mals ‘Stones Tw sso no 6a do fen gue tba ie xa mt tutte Gam’ ta ngs © tumors md © Secs is tenement to memdn e9 homem rece ert eund, ple, plo ewes, earn vet cweo {ita lo ton om velo 8 isn mas promt 1M Scanlato'do indo elo cto, © oe 0 tem em Maen‘ ogo cares mio. © tre, ome toe Shree tomers ne mind (to cet, emre ‘Swale ine), oso 0 ao tm em mie Tiree ew fn do Ine 0 sites hn bs pre fmt {kW Suu © hen decane nem Sede sere do nd Seoul tne Se 15 Noli me legere ‘A’ mesma sitsfo pode ainda ser assim desrta: © ecritor Jamas 1 « sun obra. Este ¢, para ce, o legivel, um sepreo, em face do qual ndo permanece. Um seredo, porque ents parado dele. Esta imposiblidade de ler nfo'€, porém, Um ‘movimento puramente negaiv; 6, antes, a nica abordagem real que o autor poderétct do que chamains 8 obra, © abrap. to Noll me legore fz suri, onde lo este inde senda ua livto, jo horizonte de uma outta poténcia, de"uma forge divers, Expergnca fugidia, ainda que medias. Nio €« frga de uma intrdigfo, €— através do jogo e do vendo das pal ‘ras — a afirmasio insistent, rade © pungent, de que ¢ ave fest, na presenga global de um texto definitivo, todavia se recut, 6-0 vzio rude © mordente da rest; ou eno ext, com a auloridade da indiferenca, aguele que, tendoo escrito, «ver sind reavélo de novo pela letra. A imposibilidads de Jer € essa descoberta de_que agora, no espayo aberto pla ring, jf no hi mais lugar pea @ eriagio — c, para oe etter, neshuma outa posbidadesendo ade ecrover sempre sa obra. Ninguém que tenba exrito a cbra pode viver, pet ranecer junto dela. Esta é a propia dcisio que o dispens, ‘que 0 exonera, que 0 sepers, que faz dele o sobrevivente, 6 vos, 0 desocopedo, 0 ineie'de quem a arte nlp depends © escrito nfo pode pemanecer junto da obre: 36 excevtia, pote, quando clr ed tala, foment, ducoat rela 0 aceramento do abrupto Noli me legere que 0 distancia de si mesmo, que afasta ou que o obrga a reqresar dquela Simao de “afwamenio™ em gue ve ncotoy iniiinent, 4 fim de se converter no enendimento do que Ihe cumpia es crever. De mod que se encontra agora de novo como no inicio da sus tarefa e se encontra de novo na vizinhonga, na int dade errante do lado de fora, do. qual mio péde fer uma permanénci, Essa experitnciataler nos oriete no sentido do que fics pin a de eet, en cealeto que 6-0 st iso, provria enlio do” que Perens, na obra ao Que eld ene ed ale, « obra cea, Ea Tera do comme, tas ele préprio petence a um tempo em que rina 12 indecisiio do recomego. A obsessSo que o vincula cum tema Privilepiado, que o obrgs a redier 0 que jt dis, por vous om 0 poder de um talento enriqueida mas ouras vezes com “ 4 prlinidade do um rete extrartinaiamente empobreceor, tempre com menos fora, emp cm als menoons, ese tie nceiafe em que aprttnete ve encontrar ‘eo ot lu» ppt ema aio var to recomeyo do gue para ee jamais comeca, de Fericocet 2 sonbra dot acontecneno, fo bs realidad, Fam, ono ait, so qo fr com qo a pois pala rar pom torres imagens, aparacas — © m0 signe Noles, per de verdad ‘A proensdo persceutéria ‘Aconte:e_que_wn_homem que segura_um_lépis, mesmo $n (ques Tortemenie sollélo, sua mio, enirelanto, nbo_o roclamam anulandose, do que eteramente executam desir indose, ato de autodestruigio vem fim, em tudo semelhante a0 to estranho evento do suiciio, o qual confere precisamente toda a sua verdade 60 instante supremo do Igitur* TTRemeicnos o Heitor un ote solo dete io, “A Obra € 0 Ee aco dn Mort que € 0 etado apropsndo da expertnia de Tur, Expenca se 26 pode St Inerroguda se se ver aleangado um pot frat central do etpayo edo. Em seu ens to important, La Distance Inieiure Georges Piet mestrence qo Iginr € "um ex ple perelto do mio flafico". Supe, deste modo, que © porma, Dara Malla, depende de uma rlafo prfunda com a morte 96 Pulse a norte Tor posal se, pelo scifi e tno w gue 0 Pcs se expe ela te converte no porta em Foder, powblidade, 3 Bir for un to a por exelénca, "Amare 6 0 dlc ato pomtve, ‘Aeosado. que emer cote um mondo. material verdadero colst ‘Sobinages oritar rodszeme em 208 seat ne, awn mundo Weal {alo cje mena nex paralsa © nos ents, 2 dspomos de um meio urs cy mit srmor enrguts ao nade hem 0 st. Ese meio (bic. ese alo dao, €« mort, A morte vlan. Por ela noe abo- limos ma por ela tame nor fundamor Foe alo. do mort Yo Tuma que Malle someea. Comst 20 Teter asaeoteso, porém, prokongst ee comontro de Grorgee Poulet Igtr um tlio abandonado qv tetemunha wma cee © foe © por np pide terse. Pols nfo € ceo que a more sea um fo, que podern corer # imposubiade de uit. Pano darme ‘more? Teno 9 poder ds marer? Un coup do désjanals wabolre Te'hasard [Um lance de dado jas aolre‘ sts, lo d0 poems de Mallar conierado 0 precursor da poesia concrete ea es pojeto fo ivo “eboluto™” N- do 7.) @ como que a resposta em que ea fernnis w delim. Em “repora™ detance Preene que © Bete Fen que, na ob, expereca,abordagem © wo ds mort, nfo (da pouilidade nds que fst 4 poi do nada’ mas 4,Serhom dic pote em gue ors ext ove Ge impute 7 (© onto centrat Tal 6 0 ponto central, que Mallarmé volta sempre como din midade do risco a que nos expe © experitncia lteéria, Ese ponto & aqucle em que a relizagio da linguagem coincide com © teu dessparecimento, em que tudo se fala (como ele disse, “nada subsistia sem ser proferido"), tudo 6 fala, mas em que ‘fala jé nfo é mais do que a aparéncia do que desapareceu, & (© imagindto, o incessant ¢ intermindvel Esse ponto é « propria ambighidade. De um lado, na obra, cle € 0 que a obra realiza, é aquilo fem que ela se afima, onde ¢ preciso que ela “ao admiteoutra cevidéncia luminosa sendo de exis, Nesse sentido esse pon- to € presenca da obra e somente a obra o toma presente. Mas, a0 mesmo tempo, & “presenga da MoixNoite”, o aguém, aquild & partir do qual nada jamais comeca, » profundidade vazia da cociosdade do ser, esa rego sem saida ¢ sem reserva na qual f obra, por meio do artista, tomase a preccupayio, a busca fem fim do sua origem. Sim, centro, concentracdo da ambigtidade. & bem verdade ‘que s4 obra, se caminhamos para esse ponto pelo movimento © 0 poder da obra, s6 a plena realizasdo da obra o tora possi- vel, em dltima insincia, Atentemes de novo para o poema: 0 que de mais eal, de mais evidentee a prépra linguagem nele “evidéncia luminosa”. Esse evidénca, entretanto, nada mostra, em nada asents, & © inapreensivel em movimento. Néo & ter- ‘mos nem momentos. Onde acreditamos ter palavras, traspassa- nos uma “virtual rajada de ogee”, uma prontidéo, uma exal- tsi cintlane, reciprocidade por ende o que nfo & se elucida nessa passagem, refletese nossa pura agiidade de reflexos onde nada se reflet, Entio, “tdo fica em suspenso, disposi frag- mentria com alternfnciae face a face”. Entio, a0 mesmo tem ‘po que britha pare extinguirse o frémito do irzeal convertido fem Hinguagem, afirma-e a presenga insta das coisas reais ‘onvertidas em pura ficeS0, em pura austacla, lugar de gléria ‘onde resplandecem “festas 2 vontade e solitiras”. Gostarseia 4e dizer que 0 poema, como o pndulo que marca o ritmo, pelo tempo, da aboligio do tempo em fgitur, osila maraviThosa- mente entre a sua presenga como Tinguagem e a auséncia das coisas do mundo, mas essa mesma presence &, por seu tumo, Perpetuidade oscilante, osilagio entre irealidade sucessiva 38 de termes que ndo terminam nada e a realizagio total desse mo vimento, a linguagem convertida no todo da linguagem, af onde fe concretiza, como todo, o poder de rejeltar ¢ de retorar a0 nada que se afiema em cada palavra e se aniqulla em todas, “vtmo total”, Yeom @ qué o silencio”. 'No pocma, «linguagem nunca € real em nenhum dos mo- ‘mentas por onde passa, porquanto no poema a linguagem afi- mase como todo ¢ sua esfncia, no tendo realidade sendo nes- te todo, Mas, nese todo em que ela € a sua propria esséncia, frm que 6 essncial,¢ também soberanamente ireal,€ a realiza- ‘Ho total dese irelidade, flogho absolua que diz o ser, quan- o, tendo “usado", “roido” todas as coisas exstentes, suspen- ido todos os serespossiveis,colide com esse residuo ineliming- ve, irtedutivel. O que esta? “Apenas essa palava: 6”. Palavra ‘ue sustenta todas as palavras, que as susenta deixando-se dis simular por elas, que, dissimulada, 6 a presenga dels, a reserva elas, mas que, quando cessam, se apresenta (°o instante em sme morrem numa flor ripida sobre alguma transpa jomento de raio”, “reldmpago fulgu rane”. ‘Esse momento de rai jrea da abra como o impetuoso jor ro da obra, sua presenga total, sua "iso simultines”. Esse mo ‘mento 6, a0 mesmo tempo, aquele em que a obra, a fim de dar esse “engodo” de que “a literatura existe pronuncia a exclisdo de tudo mes, por esse meio, exclulse a si Inesma, de sorte que esse momenio em que “toda # realidade se dissolve” pela forsa do poema & também aquele em que 0 poema se ditolve ¢, instantancamente feito, instantaneamente se destaz. 1550, sem divida, jf € ambiguo ao extremo. Mas a ‘mbigiidade toca no mais esvencial. Pois esse momento, que & come a obra da obra, que, A margem de toda a significasso, de toda a afirmagdo estéica¢ histériea,exprime que & obra é, esse momento 26 sera tl sea obra, ele, enfreniar a experiéncia do ‘que sempre aruina de antemio 2 obra e sempre restaure nela a superabundincia va de eciosidade, A profundidade da ociosdade ls o momento mais esondido da experitncia. Que a obra deva ser & clatidade nice do que se extingue e pola qual tudo se ex- tingve, que ela Se apresente Wosé onde o extreme da afiemacio 9 6 verificado pelo extremo da negacéo, ainda compreendemos tis exigincias, embora sejam contriias & nossa necessidade de paz, de simplicdade, de sono; compreendemos intimamente, ‘como a inlimidade dessa decisio que somos nés préprios e que ros dé o ser, somente quando, correndo os nosss rscos peri- 20s, rejeltamos, pelo fogo, plo ferro, pela recusa silencio, sua permanincia e favor. Sim, compreendemes que a obre, nesse aspecte, seja puro comego, o momento primeiro ¢ ciimo em (que o ser se apresenta pela liberdade arriscada que nos faz ex- clutlo soberanamente, sem incluflo ainda, porém, na spartncia do sores, Mas essa exigdncia que faz da obra 0 que decla ‘ser no momento nico da ruptura, “essa mesma palavra: &°, ‘ese ponto que ela faz bilhar enquanto recebe o claro relam- pejante que a coniome, devemos também compreender e sentir ‘que torna a obra impossive, porquanto & o que jamais permite que acontcza & obra, o aquém onde, do ser, nada € feito, nada se realiza, a profundidade da ociosidade, da Inacio do ser. Parece, pois, que o ponto onde obra nos condur no & somente aquele onde ela se realiza na apoteose de seu desapare- cimento, onde ela diz 0 comeg0, dizendo o ser na liberdade que © exclui — mas 6 também © ponto onde ela jamais poderd con- Surts, porge 3 € sempre nile «par do cul nines ‘Talver extejamos tornanda as cosas féceis demsis quando, ‘a0 reconstituir 0 movimento que &0 de nossa vida atv, 40 con- tentarmenos em invert, aereditamos dominar assim © movie mento do que chamamos arte. Fa mesma faciidade que nos faz encontrar a imagem ao falar do objeto, que nos faz dizer: fem primero lugar, temos 0 objeto, depois vem a imagem, gem fosse apenss 0 distanciamento, a recusa, & transposigio do objeto. Do mesmo modo, gostamos de dizer que ‘arte nfo reproduz as coisas do mundo, néo imita 0 “real”, € {que a arte se encontta onde, a partir do mundo comum, 0 artis ta afastou pouco a pouco o que & uilizévl,imitéve, 0 que in- teressa 8 vida ativa. A arte parece entdo sléncio do mundo, 0 siléncio ou a neutralizago do que hé de usual e de atual no ‘mundo, ta como a imagem € a austncia do objet. ‘Assim deserito, esse movimento concede-nos as failidades 4 anilise comm. Essus faciidades permitem-nos erer que do- rminamos a arte, porgue nos fornecem um meio de nos represen- tarmos o panto de partida do trabalho ardstico. Representacio ‘ue, aliés, nfo responde & peicalogia da criagéo. Jamis um ar- 0 tista serd capaz de clevarse, através do uso que faz de um obje- to no mundo, 20 nivel do quadro onde esse objeto tornowse pin tura, jamais ‘poderd bastarthe colocar esse uso entre parénte- ses, neutrlizar © objeto pare entrar na lberdede do quadro. Pelo contrisio, é porgue, por uma inversbo radical, ele Jé per- tence & exigéncia da obra que, ao olhar tal objeto, ele nfo se contenta, em absolute, em vélo tl como podera ser se estves- fe fora de uso, mas faz do objeto © ponto por onde passa a exi- sincia da obra c, por conseguinte, o momento em que o possvel atenua-se, as nogées de valor, de utlidade, ve apagam, e 0 mun- do “disolve-sc". E porque 0 artista pertence jé a um outro tem 1,0 outro do tempo, ¢ salu do trabalho do tempo, para expor- fe b expergncia da solidio esencia, onde o fscinio ameaga, € espondendo 2 xi ‘essa pertenga original, ele parece olhar de ma- neira diferente os objets do mundo usual, netralizar neles 0 10, tomélos pures, elevélos por uma esilizgfo sucessiva 20 cequilrio intantineo onde se convertem em quaéro. Por ou- teas palavras, nunca ozorte uma elevatio do “mundo” para a arte, nem mesmo pelo movimento de recusa que deserevemos, mas vaise sempre da arte para o que parece serem as aparén- cas noutralizadas do mundo — e que, na realidade, sé se epre- fentam como tts sob o olhar domesticado que é geralmente 0 nosso, eee olbar do espectador insuficiente, pregado 20 mundo dos fins e eapnz, no méximo, de ir do mundo ao quadto. ‘Quem no pertence & obra como origem, quem nlo perten- «sso outro tempo em que a obra se preocupa com sus e= smaisfaré obra. Mas quem pertencee esse outro tempo, pertence também & profundidade vazia da ociosidade onde do fer ele nunca logrot fazer nada. Para exprimirmos ainda de outra manera: quando uma fala conhecida demas parece reconhecer a0 poeta o poder de “ar um sentido mais puro as palavras da tibo", isso quer di- 2er que o poeta & aquele que, por um dom au por um savirfaire do, contentarseia em fazer passer a linguagem “ruta ou imediata” para a linguagem essence, elevaria a nulidade silen- cos da fla corente para osiléncio consumado do poema onde, pela apoteose do desaperecimento, tudo esté presente na ausén- cla de tudo? Isso no poderia ser. Teria tanto sentido quanto Jmaginar que excrever consiste somente em utilizar es palaveas sma meméria mai rca ou um enten- jamais consste em aperfeigar a linguagem correne, em tornée Ia mais pura, Eseever somente comega quando escrever € abor- ‘dar aquole ponto em que nada se reve, em que, no veio da dis simulagio, falar ainda no é mais do que a sombre da fala, Tinguagem que ainda no é mais do que a sua imagem, lingua. ja clinguagem do imaginétio, aguela que ninguém fala, murmerio do incessantee do intermindvel a que & preciso impor siléncio, se se quiser,enfim, que se faga ouvir. Quando contemplames as esculturas de Giacomeut, hé ‘um determinado ponto onde elas deixam de estar submetidas as flutuagées da aparéncia ou ao movimento da. perspectiva, Vemolas de um modo absoluto. énéo reduzidas mas subiat- das 8 redusio, irreduives e, no espaso, senhoras do espaco pe- lo poder que tém de substtuéto pela profundidade no mane- jive, nio viva, « do Imaginéro. Esse ponto, donde as vemos redutiveis, coloce-nos n0 infinite, 6 © panto onde o infinito ‘coincide com lugar nenhum, Escrever & encontrar esse ponto, Ninguém escreve se nio produzi a linguagem spropriads para ‘manter og suscitar 0 eontato com esse pont. 2 It © ESPACO E A EXIGENCIA DA OBRA ‘A OBRA E A FALA ERRANTE, EM que cons esse ponto? Devemos, em primeiro lugar, tentar reunir alguns dos tra 08 gue @ abordagem do espaco ltedrio permitinos reconhe- fer. Ai, Finguagem nfo 6 um poder, nio € o poder de dizer. [Nio ers disponivel, nfo é o poder de dizer. Nao est dispont vel, de nade dspomos nela, Nunca € 8 Hinguagem que et fal, Nea, jamais falo, jamais me dino @ tie jamais te interpelo ‘Todos esses tragos slo de forma negativa. Mas essa negaglo so- mente mascara 0 fato mais essencial de que, nessa linguagem, tudo retorna 8 afirmacéo, que o que nega nelaafirmese. E que fla fala como euréncia, Onde no fal, j6 fala; quando cess, persevera, Nao é silenciosa porque, precisamente, 0 siéncio falase nela, O proprio da fala habitual € que ouvila fax parte dda sua natureza. Mas, nesse ponto do especo literiro, a lingua fem é sem se ouvir. Dai o risco da fungéo podtica, © posta é aquele que ouve uma Tinguagem sem entendiment. Isso fala, mas sem comego. Isso diz, mas isso nfo remete 4 algo a dizer, a algo de silencio que © garantiria como seu sentido. Quando a neutalidade fala, somente aquele que The ImpSe silencio prepara as condigSes do entendimento e, n0 en tanto, 0 que hé para entender é essa fla neutra,o que sempre Jf foi dito, nio pode deixar de se dizer © nio pode set ouvido, centendido. sa fala € essencialmente errant, estando sempre fora de si mesma, Ela designa o de fora infinitamente distendido que substitui @intimidade da fala. Assemelha-se a0 eco, quando © 20 nfo diz apenas em vor alta o que é primeiramente murmu 4s ‘ado mas confundese com a imensidade sussurrants, & 0 siléo- io convertdo no espago repercutents,o lado de fora de toda 8 fala, $6 que, aqui, 0 lado de fora est vario,e © eco repeteante- cipadamente,“profético na auséncia de tempo" A necessidate de escrever ‘A necessidade de escreverestéligads 8 abordagem desse ponto ‘onde nada pode ser feito das palavras, donde se proeta a iusto de que, se for mantido o contato com esse momento, mas vol- tando 30 mundo da possiblidade, “tudo” poderd ser feito, “tudo” poderd rer dito. Essa necessidade deve ser reprimida ¢ contida. Se nie 0 for, tomase tio ampla que no hi mais ugar nem espago para que se reaiae, S6 se comega a escrever quan- do, momentaneamente, por um ardi, por um salto feliz ov pela Aisragdo da vida, conseguese driblar ese impulso que a con- mondo fora des vidn Sueur ese quaro eau, come se Dre ‘Slane sempre de buscar de ovo a conimacio de mlm prépio, como te exivene plo mens uma ert medida, indisoluvelmente igado ‘tee coma repugnanter ip entravasinda ov meus ps que gst thar de comer ets inda eso metidor no infenmecaldo‘rigial” (Gs de or de 1918) n conde é 16? Nunca esté & vista, 0 deserta € ainda menos seguro 4que 0 mundo, nunce passe de ser tios6 a aproximacio do de- fertoe, nesta terra de erro, nunca se esta "aqui", mas sempre “longe daqui”. Entretanto, nessa regio onde faliam as condi- 50s para uma verdadeiea permandneia, onde tem que se viver ‘uma separacio incompreensivel, numa excluséo da qual, de slguma forma, se esté excluido como se esté excluido de si mesmo, nessa sepido que € a do erro porgue nada mais se faz senio errar sem fim, subsiste uma tensio, a propria posiblida- de de errar, de ir aié ao fim do erro, de se aproximar do seu limite, de trnsformar © que & um caminho sem objetivo na certeza de um objetivo sem camino. ‘A postura fora do verdadeiro: © topdgrajo ‘Sabemos que, dessa postura, a hiséria do topégrafo representa- ros a imager mais impressionante. Desde o comego, esse herd da obstinasio inflenvel & descrto como tendo renunciado para sempre ao seu mundo, 2 sua tera natal, 8 vide onde tem mu ler e filhos. Desde ¢ comego, ele esté, portanto, fora do al: cance da salvagdo, pertence a0 exilio, ise lugar onde nio s6 ro esti em sua casa mas esté fora de si, no lado de fora que € uma regido totalmente privada de intimidade, onde os seres parecem ausenes, onde tudo o que so ct8 aprender se eequiva | apreensdo. A dificuldade trégica da iniclativa € que, nesse ‘mundo da exclusio e da separasio radical, tudo ¢ falso ¢ inau- Antico desde que af se pare, tudo falta desde que af se busque apoio mas que, entretanto, o fundo dessa austncia & sempre ado de novo como uma presenca indubitivel, absoluta, © a pelavea absoluta esti aqui em seu lugar, qu significa separado, ‘como se a separasio, experimenteda em todo © seu rigor, pu esse inverterse no absolutamente separado, o absolutamente absolut, CCumpre ser preciso: Kafka, esirto sempre justo © nada tatifeito com o dilema do tudo ou nada que ele, no entanto, concebe com maior intransigncia do que qualquer outro, deixa pressentir que, nessa pestura fora do verdadeiro existem certs regrs, tlver contraditrias ¢ insustentveis, mas que autor- zam ainda uma espécie de possibilidade. A primeira & dada no préprio erro: € preciso errare ndo ser neligente, como Joseph K. de 0 Proceso, que imagina que as coisas vio continuar © n ‘que ele sinda esté no mundo, quando, desde a primeira frase, foi repelido dele. A culpa de Joseph, como aquela que, sem dlivida, Katka se recriminava na época em que eserevia esse livro, consiste em querer ganhar © scu processo no proprio mundo, ao qual ainde acredtava pertencer, mas onde seu cor racfo fio, vazio, sua exsiénia de celibatério © de burocrata, fon indiferenga pela familia —~ tudo tragos de carter que Kafka reencontra em si mesmo — j6 o impedem de manterse E certo que sua indiferenga cede pouco @ pouco, mas & 0 fruto o processo, do mesmo modo que a beleza que ilumina os acuse- os os toma agradéveis ts mulheres € 0 reflexo de sua pré- ria dissolugéo, da morte que avanga neles, como um luz mai verdadeira. (© proceso, 0 bsnimento, € sem divida um grande infor. ‘nio,talvex seja uma injusiga incompreensivel ou uma pun 0 inexordvel, mas também é— somente numa certa medida, E verdade, cis desculpa do her6i, a armadilha onde se deixa pronder — também é um dado que mio basta recusar invocan- do nos discursos ocos uma justgn mais alta, do qual se deve pelo contrério,trar partido, segundo a regra que Kafka fizera sua: “Cumpre limitermo-nes a0 que ainda ve possi.” O Prov cesso tem, pelo menos, eta vantagem, a de fazer saber # K. 0 due ele realmente é, de dissipar a iluséo, as consolagdes enga- ‘nadoras que, por ter um bom emprego c alguns prazeres indferentes,o levam a erer em sua existincia, em sua existincia 4c homem do mundo. Mas © processo nem por isso & a verda- 4e, & pelo contrério, um procesto de erro, como tudo 0 que est igado 20 lado de fora, a essa trevas “exteriors” onde se & langado pela forga do banimento, processo em que, se resta uma esperana, € aquela que avanga, nfo em contracorente, por uma oposigio estéril, mas no mesmo sentido do erro A culpa essencial © toptgrafo esté quate intelramente desligado dos defeitos de Joseph K. Nao procura retomar 2 terra natal: a vida perdida em Canad: apagida a verdade deste mundo; mal se recorda dela em breves instates patétices. Néo é mals negligente mas csté sempre em movimento, nunca se detendo, quase nunca se desencorsjando, indo de fracasso em fracsso, por um movi ‘mento incansivel que evoca a inguieapio fria do tempo sem 1 repouso, Sim, ele caminha sempre, com uma obstinagfo inflexi- vel, no sentido do erro extremo, desdenhando a inda possui elguma realidade, mas querendo o Castelo que vez inexista, deligando-se de Frieda, que tem alguns reflexos| vivos, a fim de yoltarse pata Olga irmé de Amélie, ¢ dupla- que voluntaris- deveria, portanto, corre pelo melhor. Mas nlo € o que aconte- fe, porgue 0 topéprafo comete incessantemente a falta que Katka aponta como a mais grave de todas, a da impaciéncis ‘A impacitncia no seio do erro € a culpa essencial porque des- ‘conoce a propria verdade do erro que impée, como uma Tei jamais acteditar que 0 objetivo esté proximo, nem que haja ‘minima possiblidade do accrcar-se dele: cumpre jamais ter ‘minar com o indefinido; cumpre jamais apreender como 0 ime- fiat, como o jé presents, a profundidade da ausenciainson- dive. Cero, isso 6 inevitdvele est af o carter desolador de tal ‘busca. Quem nlo impaciente & nepligente. Quem se entrega 2 inguitagao do erro perde a despreocupagio que 0 tempo cxgotaria, Mal. chegado, nada compreendendo dessa experiéo- ia de exclusio em que se v8 envolvido, K, plese imediata- mente a caminho para chegar depressa 20 fim, Negligenc ‘tapas intermédiase, sem dvida, Isso & um métito, a orga da tenslo voltada para o absolut, mas que apenas serve para res saltar melhor a sua aberragio, a qual consiste em tomar pelo final o que nio passa de uma etapa intermedisria, uma repre- sentagio segundo os seus “melos”. © engano é 0 mesmo do topégrafo, quando cré reconhe- cer na fantasmagoria buroeitica 0 simbolo justo de um mundo superior, Essa figuragio € somente a medida da impaciéncis, {2 forma sensvel do erro, pela qual, para o olhar impaciente, © ‘bsoluto € incesantemente substituldo pela forga inexorével do ‘mau infinite, K, quer sempre alcancar a meta antes de a ter stingido, Essa erigéncia de im desfecho prematuro € 0 prin- 7 “exinem dois peeados capitis amanon doe quls decorem. doh cr cutton a inpedtecia « neglitacla, Por cous de sun impactor, let foram expuboe do Paro. Por cause de se negigtnela, mance ‘tals rcorarto« cle, Talverexsta apenas um pecao capt, imps ‘Sinia. Por cna da Impeciéncin foram expubes, por eaust dt iar ‘aclecin no vltarko”(ATorimes) ” cpio da figuragio: ela engendra a imagem ou, ves quiser, 0 ‘dolo, a maldigéo que se the associa é a que estéligoda 8 ido- Jmagem da unidade, reconsiti Jogo 0 elemento da dispersio conde ele se perde cada ver mais, visto que a imagem, enquanto imagem, jamais pode ser atinglda; além disso, subtrabihe a ‘unidade de que ela é a imagem, tornandoa inacessivel a0 sepa- se dela e tornandose ela mesma inacessivel ‘Klamm nio € invisivel, em absolute; o topdgrafo quer vblo ele 0 v8. O Castelo, cbjetivo supremo, nfo esté fora do fleance da vista. Enguanto imagem, esté sempre & disposigio ele, Neturalmente, olhandoas bem, essas figuras decepeionam, (0 Castelo nada maie & do que um amontoado de cascbres de al- dela, Klamm um homenzarréo sentado diante de wma escrivs- ninha, Tudo ordinério ¢ felo. Esti ai também a chance do ‘opSgrafo, é a verdade, a honestidade enganadora dessas ima- ‘gens: clas nfo so sedutoras em si mesmas, nada tm que jus- ‘iique o interesse fascinado que se lhes dedi, recordam as tim que no constituem 0 verdadeiro objetivo. Mas, ao mesmo tempo, nessa insignificincia deixase esquecer a outra verdade, 4 saber, que séo de toda forma imagens desse objetivo, que partcipam de sus irradissio, de seu valor inefével, © que nio se vincular a elas j6 significa desviarse do essencial Situagdo que te pode resumir assim: 6» impacigncia que toma o objetivo final inacesivel, eubstituindo-o pela proximi- dade de uma figura intermeditria. Ea impacigneia que destréi 1 abordagem do objetivo final, a0 impedir que se reconhega no Intermedigrio a figura do imediato. CCumpre Fimitarmo-nos aqui a algumas indicages. A fan- tasmagoria burocritica, isa ociesidade afobada que a caracteri- a, estes sores dlplices que sto os seus executantes, uardiges, ajudantes, mensageizos, que andam sempre dois a dois, como pra meetrar bem que apenas sfo os reflexos um do outro € 0 reflexo de um todo invisivel, toda essa cadeia de metamorfoses, fesse erescimento metédico da distineia que nunce é dado como infnito mas sprofundase indefinidamente de maneira neces Sra pela tansformacio da meta em obstéculo, mas também dos obstéculor em etapas intermédias que conduzem } meta final, todas esses poderosus imagens nio descrevem figurativa- ‘mente a verdade do mundo superior, nem mesmo a sua trans- cendéncia, elas representam antes a felicdade e a infelicidade 6 dda figuragio, dessa exigincia pela qual o homem do exitio & dbrigado a fazer do erro um mio de verdade, © daquilo que © fengana indefinidamente a possibilidade tltima de aproendcr © infinito. 0 expago da obra Em que medida Kafka teve conscitneia da analogia dessa pos- tura com 0 movimento pelo qual a obra tende para a sua ori+ fom, ess centro onde somente ela poder realize, na busca do qual cla se realza © que, atingido, tome-a impossivel? Em ‘que medida ele aprosimou a cxperincia de seus hersis da ‘manera como ele préprio, através da arte, tentaya abric um taminho para a obra e, pela obra, para algo verdadsiro? Pen- ‘aria ele Freqentemente na sentenga de Goethe, “F postulando ‘© impossivel que o artista alcanca todo o possivel"? Pelo menos, ‘esa evidéncia € impressionant: a eulps que cle pune em K. & também aqucla que o artista se recrimina em si, A impacitncia 6 a culpada, Fla é que gostaria de precipitar a histria para 0 feu desfecho, antes de que esta tenha se dosenvolvido em todas ts direg’es, tena esgotado @ medida do tempo que esté nela, tenha elevado 0 indefinido uma verdadeiratotalidade em que cada movimento inautéatico, cada imagem patcialmente falsa, poderd tranfigurarse rima certeza inabaldvel. Tarefa impos- fivel,taefa que, se se cumpriste até ao fim, destruira essa vendade para a qual tendo, tal como se danifica a obra se toca © ponto que € sua origem, Mita razses impedem Kafka de coneluir a majoria de suas “histrias", levam-no, mal come: feu qualquer uma delas, a sbandonéla para tentar apesiguar fe numa outra, Ele mesmo diz conhecer, com freqliéacia, o tor mento do artista exilado de sua obra, no momento em que esta se afirma ese fecha sobre si mesma. Também diz que abandona falgumas vezes a histévia, na angistia de, nfo a abandonasse, poder retomar ao mundo; mas nio esté certo de que essa ‘reocupacio tenba sido nele a mais forte, Que a sbandone Amiide, porgve todo 0 desealace contém a felicidade de uma verdade definitiva que ele nfo tem o dieto de acetar, qual 1 sua existinela ainda no corresponde, essa rezio parece ter ‘desempenhado também um grande papel, mas todos esses mo- vimentos equivalem ao sequinte: Kafka, talver sem o saber, fentiu que escrever € entregarse ao incessant e, por angiistia, 16 angstia da impacitnei, preacupagio escrupulosa da exigincia de cserever, ele recusowse na maioria das vezes a consumat fesse salto que 86 a plena reaizagio permite, essa confianga ‘despreccupada e feliz pela qual (momentaneamente) um termo fe insere no inteinsvel (0 que se cham {40 impropriaments o seu realismo ai casa mesma busca instntiva para ésconjurarnela a impaciéneia, [Kafka mostrou com frequéncia que era um génio dovado de cexirema ailidade, eapaz em alguns trgos de atingr o essencal Mas imporse cada ver mais uma mindcia, uma lentidao de abordagem, uma pressGo detalheda (mesmo na descrisio de seus proptios sonhort, sem as quais, exilado na realidade, © hhomem cx rapidamente condenado ‘so desvario da confusio fs incursGes do imaginério, Quanto mais se esté perdido no lado de fora, na estranheza e insoguranca dessa perda, ms se deve recorrer 20 espitto de rig, de eserdpulo, de cxatidio, ‘estar presente na auréncia pela multipicidade das imagens, por sa aparéncia determinada, modesta (divecieda da fascinagio) por sa coetGneia energcamente-mantida, Quem pertence & fealidade néo tom necessidade de tantos devalhes que, como saberos, nfo correspendem, em absoluto, forma de uma visio real. Mas quem pertence & profundidade do imitado e do lon ginquo, a0 infortinio da imaderasio, sim, esse esté condenado fo exceseo da medida 8 busca de uma continuidade sem fa: Tas, sem Tacunas, som disparidades. E condenado & a palavra certa, porguanto, se a paciénca, a exatidio, © dominio fro, slo es qualidadee indispensiveis para evitar perdeese quando nada mais subsste « que se possa apepar, pocitnca, exaidio, dominio fro, também s80 defetos que, dividindo as diffeulds- des ¢ estendendoas indsfinidamente, etardam talver 0 nav frégio, mes retardam certamente 4 Hibertaio, transformam sem ‘exssar oinfiito em indefinido, asim como é também a medida que, na obra, impede que o ilimitado jamais se cumpra, A arte © a idoltria “Nao farés imagem tathada nem figura nenhuma do que esté no alto no bu ou do que exd embaixo na terra ou do que estd ras dguas sob a tera.” Félix Weltch, © amigo de Katks, que falou mito bem da Tuta deste contra a impacignca, penss que cle levou a sétio © mandamento biblico. Se assim é, que s© ” represent um homem sobre quem pesa ess interdio essencal, ‘ue, sob pena de morte, deve excluirse das imagens © que, de Stbit, se descobre exilado no imaginério, sem outra morada ‘nem subsistncia sendo as imagens ¢ 0 espago das imagens. Evo, pois, obrigado « viver de sua morte e pris, em seu desespero ©, para escapar a esse desespero — a execusio imediata ‘cosgido a fazer de sua condenasio a tnica via de salva Foi Kafka, consientemente, ese homem? Nio saberia dio, Tem te por vezcs o tentimento de que a interdicio essencial, quan to mals ele se esforca por lembrarse dela (pois ela €, de toda ‘mancia, esquecida, uma vez que a comunidades onde cla era viva esté quase destruida), quanto mais ele procura, portanto, recordarse do sentido religioso que vive escondido nessa inter: ‘igo, ei80 com um rigor cada vez maior, gerando o vazio nele em torn dele, a fim de que os idols ai ndo sejam acothidos, ‘mais, em contrapartda, Kafka parece disposto a esquecer que essa interdigdo deveria'eplicarse também & sua atte. Dai te- sults um equiltbrio muito instavel. Esse equilbrio, na solidio ilegtima que é a dele, permitelhe ser fiel 8 um monismo espi- ritual cada vee mais rigoroso, mas abandonando-e a uma cera ‘olatiaaristica, depois impeleo a purificar essa idolatriaatra és de todos os rigors de ume ascese que condena as realidedes Iiteririst (nacabamento das obras, repugndncia por toda pu blicagio, recusa em crerse um escitor, etc), que, além disso, ‘0 que é mais grave, quereriasubordinar a arte & sua condigéo ‘expritual, A arte nfo € religio, “nem mesmo conduz a reli- [ido", mas, no tempo de desgraga que é o nosso, este tempo em ‘que faltam os deuses, tempo de austacia e de eailio, a arte sti justifiada, porgue a intimidade dessa desprata, é 0 fsforgo para formar manifesto, pela imagem, © erro. do ima- findrio e, em dltima instincia, a verdade inaleangével, esque- ida, que se dssimula por tis desse erro. Que tenha havido primeiramente em Kefka uma tendén- ia para substituir @exigénciaroligisa pela exigncia literia, depois, sobretudo, mais perto do fim, uma propensio para substituir a sua experigncia teria pela sua experignciareli- ios, para confundi las de maneira bastante turva a0 passat do ‘desert da f€ para a £6 mum mundo que jé néo € 0 deserto mas ‘um outro mundo onde a liberdade the seré concedida, 0 ue as anotagées do difrio nos fazem pressenit. “Ser que habito ‘agora no outro mundo? Ousarei dizélo?” (30 de janeiro de 1922). Na péfina que citamos, Kafka recorda que os homens, n segundo ele, nfo tim outta escolha senio esta: ou buscar ‘Terra Prometida do lado de Canai ou buscéla do lado deste jutro mundo que é 0 deserto, “porquanto, arescenta ele, nio fxiste um terecimo mundo pare os homens”. Nio existe, por certo, mas talvez falte dizer mais, talvez deva dizer fe que o artista, esse homem que Kafka também queria se, em decvelo por sua arte e em busca de sua origem, 0 “poeta” & agucle para quem nio existe sequer um nico mundo, porque para ele s6 existe 0 lado de fora, © fluxo do eterno exterior. Iv A OBRA EO ESPACO DA MORTE A MORTE POSSIVEL A polevra experiincia ‘A obra trai aqucle que se The consagra para 0 ponto em que la € a prova de eva impossibilidade. Nisso, ela € uma experién- cia, mas quem quer dizer essa palavra? Numa passagem de Maite, Rilke diz que “os versos nfo sio sentimentos, slo expe ritncias, Para excrever um Snico verso, é preciso ter visto muitas idades, muitos homens e cosas.-." Rilke ndo quer dizer, fentretamto, que o verso seria a expressfo de uma personalidade rica, capaz de vier e de ter vivido, As Tembrangas so neces Flas, mas para serem esquecides, para que nesse esquesimento, zo silencio de uma profunda metumorfose, nascafinalmente wma palavra, 2 princi palavra de um verso. Experitnia signitic, reste ponto: conto com o set, ronovagio do eu nesse contato — uma prova, mas que permanece indeterminada ‘Quando Valéry ercreve numa cart: “O verdadeiro pintor, toda a sua vida, busca pintura; 0 verdadeiro poeta, a Poesia, cle. Pois nfo se trata, em absolute, de atividades determinadss. Nestas, € preciso eriar a necessidade, 0 objetivo, os meios, ¢ até os obstéculos...", cle fez alusio a uma outta forma de experiéncia, A poesia ndo é dada so poeta como uma vordade © uma esrleza de que ele poderia aproximarse; ele nio sabe fe € poeta, mas tampouco sabe o que é a poesia, nem mesmo ve ela &; ela depende dele, de sua busca, dependéncia que, fentretano, nlo ¢ toma senhor do que busca mas toma in- certo de si mesmo e como que inexistente. Cada obra, cada momento da obra, volta a pir tudo em questio, e aquele que 8 deve apenas aterseihe, nio se atém, portant, a nada, Sejs 0 fque for que ele faga, a obra retira do que cle faz e Jo que pode ‘Aparentemente, esses comentirios consderam na obra tio- ‘6 a atividede tenica. Dizem que a are € difiel, que 0 a no exercicio dessa arte, vive de incertezss. Em sus preocupacio| ‘quase ingénua de proteger poesia dos problemas insliveis, Valery procurou fazer dela uma atividade tanto mis exigente por possuir menos segredos e poder refugiarse menos na vaga de sua profundidade, Ela é, a seus ols, essa convencio que iveja ae mateméticas e que parece nada solicitar sendo um trabatho ov uma atengio de todos os instants. Parece aque a ate, essa alividade estranha que deve tudo criar, neces: Sidade, objetivo, mos, erase sobrewdo © que a consirange, © que toma Soberanamente dif, mas também indtil para todo o st vivo e, em primeino luge, para esse ser vivo que & fo artista, Atvidade que nem mesmo & um jogo, embera tenha dele inocénciae a futlidade. E, no entanto, chega um instante fem que ela assume a figura mais necessria: a poesia € apenas tum exerciclo, mas ese excrcicio € 0 esptito, a pureza do espi- ito, © ponte puro onde a canecéncia, ease poder vario de se trocar contra tudo, converie-se mum poder real, encerta em limites estteitoso infnito de suas combinagaes ¢ a extensio de sas manobras, A arte tem agora tm objetivo, que é o domi no do espitito, « Valéry pensa que os seus versos nfo tém pat le outeointeresse sendo 0 de ensinarthe como so feitos, como se faz uma obra do espirto. A arte tem um propésito, ela & esse propésito, nfo constitu um simples meto de exereitar 0 espiito, 6 0 espirto que nada & se nio for obra, eo que é a obra? O momento excepcional em que a possibilidade convertese em der, em que, lei e forma varia que s6 € ria de indetermina (io, o espitte passa a ser a certeza de uma forma realizad tomsse esse corpo que é a forma ¢ essa bela forma que é um belo corpo. A obra é 0 espirto, €o esprit € a passagem, na ‘obra, da suprema indeterminagSo para o extremo determinado. Pessagem impar que #6 € real na obre, a qual jamais ¢ real, jamais consumada, sendo somente a reslizagio do que hé de infnito no exptito, que de novo epenas v8 nela a ocasiéo de reconhecerse e de se exercer infinitamente, Assim revertemos ‘0 ponto de partida, sa abordagem ¢ 2 espécie de terivel imposigéo que @ icular mostram que nio se poderia deixar de Jevar em conta a experincia artstica: reduzida a uma pesquisa pura mente formal, faz entdo da format 0 ponto ambiguo por onde tudo s: toma enigma, um enigma com o qual nio existe com- promisso, porque ele exige que nio se faga e nfo se seja nada ‘que no tena sido atraido para ele. “O verdadeio pintor busca, {oda a sua vida, a pintura; 0 verdadeiro poeta, 2 Poesia.” Toda 4 sua vida, so quatro palaveas exigentes. Isso nio significa que © pintor fase pintura com sus vida nem que busque a pint fem sus vida, mas tampouco quer dizer que a vide permancea intata, quando ela toma-se por intro a busca de uma atvida ‘que no es segura de seus fins nem de seus moos, que esté omente sepura dessa inerteza e da psinio absoluta que exige. ‘Temos até aqui duas respostas. Os versos slo experitncias, Tigadas a uma abordagem viva, a um movimento que se con cretiza na seriedade e no trabatho da vida. Para escrever um ‘nico verso, & necesséro ter esgotado a vida. Depois, 2 outra resposta: para escrever um 36 verso, & preciso tr esgotado @ ane, ter espotado a vida na busca da arte. Essas duas res rostas possuem em comum a idéia de que a arte &experiénca, porque & uma pesguise, nfo indeterminada mas determinada por sus indeterminacdo, © que passa pela totaidade da vide, ‘mesmo que pateyaignorar a vida ‘Uma outa resposta seria a de André Gide: “Quis indica, nesta Tentative Amoureuse, a influéncia do livro sobre aquele aque 0 escreve e durante a sua propria realizssio. Poi, de nés, muda-nos, modifiea a marche de nossa vida TT nltidade de Valery é que dé & obra 0 nome do epi mas ‘be tal modo uso concede Ianeita eqs eum fom Fora ‘gus ora fem © entigo de em poder vale, capciade de subuigho ‘fs proved e psuita uma infindade de objec reall, ora Poe ‘Si relia’ plastica conreta ‘etm forma realzada. No princi ‘io, C0 spiro © senor dat formas, no sepundo,o corpo € que € fama e ptencla despite. A poesia © craio, @ asim s amblglh finde dem e de otro Espino, ea € apenae‘0exesco puro equ fende\a nada conetisar, © movimento vaso, embora admitivl do Tnefiido May i corpo © Mt formado, forma resided de um belo ferpo, ela é como gue fndiferente so “senda”, ao expo: wa Logue. tem como corpo, no fsco da lingugem, la tendo para » peregSo de ‘in cle fin, Punta aos mals tarde, Gide volta a ese ponto © preciso: "Pa: feceie gue cade mds mous Hire fol menor © produto de ome “sponta iteror ova do qe, pelo contro, « sun eauta ¢ 8 pro: ‘ocnio primeira deca ipo de elma © de cepito ne gual devia respocta €, porém, mais Himitade, Escrever mudanos. Nio es- ‘revemos segundo o que somos; somos segundo 0 que escre- ‘vemos. Mar donde vem o que ¢ escrito? ainda de n6s? de va possibilidade de nés préprios que se descobriria e se afirmaria tnicamente pelo trabalho literiro? Todo trabalho nos trans forma, toda agfo realizada por nds 6 agd0 sobre nds: 0 ato aque consiste em fazer um live modificarnosia mais profun- ‘amenie? e & realmente o proprio ato, entéo, o que hé de trabalho, pacigncia e stengio nesse ato? No é uma exigncia mais original, uma mudanga preliminar que talvez se concretize através da obra, & qual nos conduz, mas que, por uma contrar digdo estencal, € no s6 anterior & sua concretzago mas re trovede até 20° ponto onde nada pode ser realizado? “Ja nio tenho outa pertonalidade sendo aquela que convém a esta obra.” Mas o que convém & obra talvezseja 0 “eu” nfo tenho petsonaldade, Clemens Brentano, em seu romance Godiwi fala de manera expressive do “aniqulamento de si mesmo” que se produr na obra. E talver se trate ainda de uma madanea mais radical, @ qual no consiste numa nova disposigdo da alma e do espirita, a qual nem mesmo se contenta em distinciarme de ‘mim, em “aniguilarme”, nem tampouco esté vinculada ao con- teido particular de tal of tal Tivo, mas & exigéncia fundamental a obra A morte contente Kafka, numa nota do teu Dido, faz um comentirio sobre 0 false pode refletr: "Voltando a casa, disse a Max que no meu Teito de morte, na condigio de que os sorimentos no stjam insuportiveis, eu estaria muito contente. Esquecime de acres- ‘centar,e mais tarde omitio delberadamente, que 0 que escrevi de melhor Tundamentese nessa aptidio para poder morrer ‘ontente. Em todas essas boas passogens, deveras convinceates, tratase sempre de alguém que morre e que considera isso mui te crucl, vendo af uma injustiga; tudo isso, pelo menos em ‘Ravterme para lever Bom terme eaborsfo, Gostaria de expinir ft de ume manira mas simpler: que © lo, log que € conebi, ‘Eng inteiramente demi ¢ gue pa el, too em mm, al 00 als ‘proundo oe, 6 aru instramento™ He nip tenho outa pesonaldade ‘Zino agucla que convém a ea obras.” (Dido, julbo de 1922.) minha opinido, € muito comovente para o leitor. Mas, para mim, que ereio poder estar contente em meu leito de morte, lais descrigSes so sccretamente um jogo, regoziiome st por morrer no moribundo, utilize, portanto, de manera calculads ‘ atengio do Teter, assim concentrada sobre a morte, conserve ‘© espitito muito mais claro do que © daquele que suponho que se lamentaré em seu leito de morte; a minha lamentaglo 6, pois, to perfelta quanto possvel, nfo se interompe de ma reira abrupta como uma lamentagdo real, mas segue seu curso belo ¢ puro...” Esta reflexso data de dezembro de 1914. NEo seguro que cla exprima um ponto de vista que Kafka teria sinda admitido mais tarde; ela é, aliés, 0 que ele eala, como se pressentisse 0 lado impertinente. Mas, justamente por causa de sua ligeiteza provocante, € reveladora. Toda essa passagem podria ser assim resumida: nio se pode escrever se nio se ermanece senhor de si perante a morte, se nlo st estabelece- am com cla relagbes de soberania, Se ela for aqulo diante do qual se perde 0 controle, aquilo que nio se pode conte, entéo rotira a8 palavras de sob a canst, corta a fala; 0 escrtor no ‘escreve mais, ele grita, um grito indbil, confuso, que ninguém entende ox no comove ninguém. Kafka senie aqui profun- ddamente que a arte relagdo com a morte. Por que a morte? Porque ela &o extremo. Quem dispoe dela, dispde extremamente de ci, ests ligedo 2 tudo o que pode, integralmente poder. A arte & senhore do momento supremo, & senhora suprema. ‘A frase “O que escrevi de melhor fundamentase nessa ‘aptidio para poder morrer contente", se possi um aspecto atraente que resulta de sua simplicidade, continua, porém, sen do dificil de acolher. Qual é essa eptdio? O que € que dé a Kafka essa seguranga? Serd que ele jf se aproximou suficente- mente da morte para saber como s¢ comportaté diante dela? le parece sugerit que, nas “boas passagens” de seus esritos fem que algusm morre, morre de ‘uma morte injusta, 6 cle prdprio quem ee colaca na pele do moribundo. Tratarseia, pois, ‘de uma espécie do abordagem da morte realizada a coberto do ‘que excreve? Mar o texto no diz exataments isso: indica, sem ‘vida, uma intimidade entre a morte infliz que se produz na obra e 0 escttor que se regorija nela; ele exclu a relacéo fria,distante, que permite uma desricSo objeiva; um narre- ‘dor, se conhece a arte de comover, pode contar de mancira co- ‘movente acontecimentos impressionentes que the sto estranhos; fo problema, nesse caso, €0 da retérica € do direito a recorer- a Ihe, Mas o dominio de que fala Kafka € outro ¢ 0 eileulo a aque se relere & mais profundo. Sim, € preciso morrer no mo bbundo, a verdade exigeo, mas também & nocessrio ser capaz de satisfazerse com a morte, de encontrar na suprema insats- fagéo a suprema satisapio e de mante, no instante de morte, 1 claridade do olhar que provém de tal equilibrio. Contenta- mento que esti, pols, muito préximo da sabedoria hegeliana, se esta consiste em fazer coincidir a satisagdo e a conscitncia o eu, em encontrar no neqativismo extreme, na morte conver tida em pesibilidade, trabalho e tempo, a medida do absoluta- mente posiiv. Resta que Kafka no se coloca diteiamente aqui numa perspectivs to ambicioss. Resta também que, quando ele liga ‘2 sua capacidade de bem eserever ao poder de bem morte, nfo faz qualquer alusio a uma concepgio que dria respeito & mor. te em geral, mas & sua propria experigacia: & porque, por ums razio ou por outra, ele estendese tranqiilamente em seu leito de morte que pode dirigir para os seus herSis um elhar imper turbado, vnirse & morte dees mediante wma intmidade clari- vidente, Em qual de seus escritos pensa? Sem dtvida, no conto In der Sirajkolonie (Coldnia Penal), do qual fizera alguns dias antes a seus amigos uma letura que Ihe insuflou coragem; es- creveu entio O Proceso, virios contos inacabados em que a morte no é seu horizonte imedisto. Devese pensar também ros contos A Metamorfose ¢ A Sentenca. A evocagto dessas cobras mostra que Kafka no penss numa desrigéo realista de cenas de morte. Em todas essas obras, aqueles que morrem, mortem em algumas palaveas répidas e silenciosas. Isso confir- rma 0 pensamento de que no somente quando eles morrem ‘mas, aparentemente, quando vivem, é no espago da morte que os herds de Kafka cumprem suas aitudes, € a0 tempo inde do do “morrer” que eles pertencem. Eles fazem a experitncia dessa estranheza ¢ Kafka também esté, poles, submetendoe 4 tal provacio, Mas parece-the que nio poderf conduzit a ex periéncia “a bom termo”, extraindo dela um conto ou romance, se nio estiver de antemio de scordo com o momento extreme dessa provacto, se nko for igual A morte, (© que nes impressiona em sua reflexdo é que ela parece sutorizar a trapaca da arte. Por que descrever como um evento Injusto 0 que ele mesmo se sente capaz de acolher com con: temtamento? Por que nos descreve a morte assustadora, le que re rente contente com ela? Isso confers ao texto uma ligeteza cruel. Talvez @ arte exja que se bringue com a mort, elvez Jntroduza um jogo, wm pouco de jogo, onde jé no existe mais recurso nem controle. Mat 0 que significa esse jogo? "A arte ‘esvoaca em tomo da verdade, com a intengo decidida de nio se queimar nea." Aqui, ele esvoaga em redor da morte, nio se queima nela mas torna sensivel a queimadura e converiose ‘no que arde © no que comove fria © mentirosament. Perspect va que bastara para condenar a arte. Entretanto, para ser justo com © comentirio de Kafka, cumpre também compreendelo e modo diferente. Morrer contente no é, a seus olhos, uma stitude intrinsecamente boa, porquanto 0 que ela exprime, em primero lugar, € 0 descontentamento da vide, © exclusio da Alegria de vier, ess flicdade que cumpre desejar © amar ach sma de tudo. “A aptidio para poder morrer contents” significa {que a relagdo com © mundo normal est, desde jé, quebrada: Kaka, de certo modo, jéesté mort, isso élhe dado, tal como The € dado 0 exo, e este dom esté vinculado ao de excrever Naturalmente, © fato de estar exilado das posibilidedss nor- mais nio confere por isso mesmo, © dominio sobre a possi- bilidade extrema: 0 fato de ser privado de vida nio ass. aura a posse feliz da morte, nio torna a morte um fator de contentamento, a nlo ser de mancira negativa (fice contente por acabar com o descontentamento da vida). Daf a insufcia cia e 0 cariter superficial do comentirio. Mas precisamente esse mesmo ano. por duss vezes, Kafka escreve em seu Di “Nio me afasto dos homens para viver em paz mas para poder smorrer na paz.” Fsse afastamento, esa exigincia de soidio, The imposta por seu teabatho, "Se a0 me salvo num trabalho, ‘estou perdido. Seré que 0 sei tio dstintamente quanta isso 6? [Nio evito mostrarme diante dos seres porgue queira viver sos- segadamente mas porque quero perceer sossegadamente.” Esse trabalho, & escrever. Ele esquivase ao mundo para escrever, le escrever para morrer em paz. Agora, a morte, a morte contente, Eo saliio da arte, € a meta e a justifieago pata eserever, Esc ver para perecer em sossepo. Sim, mas como escrever? © que € que permite escrever? A resposia & noses conbecida: no se pode escrever se ndo se estiver apto a morrer contente. A con- tradisio recoleca-nos na profundidade da expe © elreulo ‘Toda vez que o pensamento colide com um clreulo, & porque toca em algo original de que aquele € parte e s6 pode ultrapas- ar para logo ai reiomnar. Talvez nos aproximssemos desse mo- vimento original se mudéisemos a iluminasdo das f6rmulas, spagando a8 palavras “sossogadamente” e “contente”. O escri- tor é entdo aquole que escreve para morrer e & aquele que rece- be o seu poder de escrever de uma relagdo antecipada com a morte. A contradigio subsste mas esclarocese de um modo di- ferente, Tal como 0 posta s6 existe em face do poema e como ‘que depois deste, se bem que seja necesirio, em primeico lu- far, a existéncia de um poeta para que haja poems, também se pode pressentir que, se Kafka camina na dirgio do poder de ‘morrer através da obra que escrev, isso significa que a prépria cobra 6 uma experitncia da morte da qual parece ser impresci

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