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6. A Expressao Obrigatoria dos Sentimentos (Rituais Orais Funerarios Australianos) (1921)* Esta comunicagio se prende ao trabalho de G. Dumas sobre as Légrimas* ¢ & nota que lhe enviei a este propdsito. Fazia-lhe observar a extrema generalidade desse emprego obrigatério ¢ moral das lagrimas. Servem, em particular, co- mo meio de saudacio, Efetivamente, este uso acha-se muito difundido dentre aqueles que se convencionou chamar as populacgdes primitivas, sobretudo na Australia, na Polinésia; foi estudado na América do Norte e do Sul por Friedetici, que propés fosse chamado Thranengruss, a saudacio pelas ldgrimas *, [1. Cf. infra, p. 332.] Proponho-me mostrar-lhes pelo estudo do ritual oral dos cultos funerdrios australianos que, num grupo considerdvel de populagdes, suficientemente homogéneas e¢ suficiente- mente primitivas, no sentido préprio do termo, as indica- gSes que Dumas e eu demos para as ldgrimas, valem para numerosas outras expressdes de sentimentos. Nao sao so- mente os choros, mas todos os tipos de expressdes orais dos sentimentos que sao essencialmente, nao fenémenos exclusi- vamente psicolégicos, ou fisiolégicos, mas fenémenos sociais, marcados eminentemente pelo signo da nao-espontaneidade, e da obrigaggo mais perfeita. Ficaremos, se aésim o dese- jarem, bem no terreno do ritual oral funerdrio, que com- preende gritos, discursos, cAnticos. Mas poderiamos estender nossa pesquisa a todos os tipos de outros ritos, em parti- cular manuais, nos mesmos cultos funerdrios ¢ entre os mes- mos australianos. Algumas indicagdes, para terminar, serio, = Extraido do Journal de psychologic, 18, [Gewvres, v. TIT, pp. 269-282.) 1. Journal de psychologic, 1920; cf, “Le rire". Journal de psy- chologie, 1921, p. 47. “Le langage du rire.” 2. Der Trimengruss der Indianer, Leipzig, 1907, Cf. Durkheim in Année sociologique, 11, p, 469, 326, ENSAIOS DE SOCIOLOGIA alids, suficientes para que se possa seguir a questao num domi- nio mais amplo. Ela ja foi estudada por nossos saudosos Robert Hertz e Emile Durkheim* a propésito dos mesmos cultos funerarios que um tentou explicar e de que o outro se servia para mostrar o caréter coletivo do ritual piacular. Durkheim chegou mesmo a estabelecer, em oposigfo a F.-B. Jevons', a regra segundo a qual o luto nao é a expressiio espontdnea de emogées individuais. Retomaremos esta demonstragio com alguns pormenores, e a propésito dos ritos orais. Qs ritos orais funerérios na Austrélia compéem-se: 1.° de gritos e uivos, freqiientemente melédicos e ritmados; 2.° de voceros" freqiientemente cantados; 3.° de verdadeiras sessées de espiritismo; 4.° de conversagdes com © morto. Deixemos de lado por um instante as duas tltimas categorias, Esta negligéncia nfo tem inconvenientes. Estes comegos do culto dos mortos propriamente dito sao fatos bastante evoluidos e bem pouco tipicos. De outro lado, seu cardter coletivo € extraordinariamente marcado; séo cerimé- nias publicas, bem regulamentadas, que fazem parte do ri- tual da vendeta e da determinagéo das responsabilidades *. Assim, entre as tribos do Rio Tully’, todo esse ritual se realiza em meio a dangas funerdrias cantadas de longo de- senvolyimento. © morto assiste a elas, em pessoa, por seu cadaver dessecado, que é objeto de uma espécie de primi- tiva necrépsia. E ¢ toda uma audiéncia considerdvel, todo © acampamento, até mesmo toda a parte da tribo reunida que canta indefinidamente, para ritmar as dangas: Yakai! ngga wingir, Winge ngenu na chaimban, Kunapanditi warre marigo. (Trad.) “Pergunto-me onde ele [o koi, o mau espirito] te encontrou, nés vamos extrair tuas visceras e yer.” Em Particular, é€ com esta cangéo e num passo de danga que quatro maégicos levam um ancifo para que reconhega — e 3. “Representagho coletiva da morte.” Année penmereent x, p. 18 ss, 4. Formes élémentatres de la vie religteuse, p, 5. Introduction to the History of Religion, p. i a — Bir 3. a. Frazer, The Belief in Immortality and the Worship of the ites, 1503, Pp. 147, percebe muito bem que tals ritos sio reguiamentados pel time, mas di-Ihes uma explicagio puramente animista, invelpetuaiste em suma. * Vocero, tering corso, ¢ o canto fiinebre executado por uma car- pideira pera ‘um defunto,' (Nota do Tradutor, 6. Of, Fauconnet, La responsabilité, 1920, p. 236 ss, 7. W. Roth, Bulletin (Queensland Ethnography) 9, p. 390, 391. Of, “Superstition, Msgic and Medicine”. Bulletin 3, p, 26, n° 90 cs. A EXPRESSAO OBRIGATORIA DOS SENTIMENTOS 327 extraia do cadéver — o objeto encantado que causou a morte. Estes rituais indefinidamente repetidos, até a adivi- nhagao, terminam em outras séries de dangas, dentre as quais uma da vitiva que, dando um passo a direita e um & esquerda, ¢ agitando ramagens, afugenta o Koi do cadiiver de seu ma- tido®, Entretanto o resto da audiéncia garante ao morto que a vinganga serd executada. Este é apenas um exemplo, Que ele nos baste, para concluir sobre estes ritos extremamente desenvolvidos, para indicar que eles desembocam em pré- ticas extremamente interessantes para o socidlogo como para o psicélogo. Num grande numero de tribos do Centro e do Sul, do Norte e do Nordeste australiano, o morto nfo se contenta em dar uma resposta ilusdria a esse conclave tribal que o interroga: é fisica e realmente que esta coletividade que o evyoca o ouve responder ®; outras vezes, é uma ver- dadeira experiéncia que de bom grado chamamos em nosso ensino de péndulo coletivo: o cadaver carregado sobre os ombros dos adivinhos ou dos futuros vingadores do sangue, responde a suas perguntas, conduzindo-os na diregao do ho- micida ™. Vé-se isto suficientemente por estes exemplos; estes ritos orais complicados e evoluidos sé nos mostram em jogo sentimentos, idéias coletivas, e¢ tém até a extrema vantagem de nos fazer compreender o grupo, a coletividade em agiio, em interagdo se quisermos. Os ritos mais simples sobre os quais vamos estender-nos um pouco mais, gritos e cAnticos, ndo ttm um cardter tio publico e social, entretanto carecem no mais alto grau de todo carater de expressio individual de um sentimento sen- tido de maneira puramente individual. A prdépria questfio de sua espontaneidade estd, desde ha muito, resolvida pelos observadores; e a tal ponto mesmo que quase se tornou um 8. Sobre o Kol, v, Roth, Uit, loc, p. 17, n° 5, p. 27, n° 150, ete; o termo Kol ‘designs quer um ‘eapirito, quer o conjunto dos espiritos maléficos, inclusive os mégtcos homens ¢ 08 deménios. Cf. ib, p. 33, n° 161, a Koi, Kol, the Kot. 9. Exemplo de uma bela descrigho de uma dessas sessfes no oeste de Victoria, Dawson, Aborigenes of South Austr, p. 663; Yuin (Nova Gales do Budoeste). Howitt. South Eastern Tribes, 422, parm citar een antigos fatos antigamente atestador, Exemplos deste ritual encontram~ lesde o Cabo Bedford (N. quctatandy entre os ‘Kokovimidir (V. Both, Bulletin 9, p. 185, p. 378, 383, “being dragged by the corpse's spirit". Of. Grammar of the Kokoyimiatr Language, p. 33, relato de uma “mulher que nfo acredita ane ‘que consigna”) até o sul da Australia Wyatt, “Bneounter in Woods, Tribes of Southern Australia, p. 65, cf. Bp. 1 Pa wunna wanna; passands pelo Centro: Gason, "Dieyerl in Gurr. Australian Race, I, p. 62, etc. E igualmento atestado em ‘Mov Gales do Sul: Frazer, Aborigenea, p. 81: Bonney; Customs, ete. R, Darling Journal of the Anthropological Institute, 1882, p. 134; ¢ mesmo sobro @ costa (Fort Stephens): W. Scott in Howitt. South Eusiern Tribes, Pp. 465, 328 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA cliché etnograéfico™. Nao se esgotam as narragdes sobre a maneira pela qual, no meio das ocupagGes triviais, das con- versagoes banais, de repente, em horas, ou datas, ou ocu- pagdes fixas, o grupo, sobretudo o das mulheres, comega a uivar, a gritar, a cantar, a invectivar o inimigo e o maligno, a conjurar a alma do morto; e depois desta explosdo de pesar e de célera, a campo, com excegio talvez de alguns portadores do luto mais especialmente designados, volta ao ramerrao de cada dia. Em primeiro lugar, estes gritos ¢ estes cAnticos sio pronunciados em grupo. Nao sé em geral individuos que os langam isoladamente, mas 0 acampamento todo. O nt- mero de fatos a citar é sem nimero. Tomemos um deles, algo aumentado por sua prépria regularidade. O “grito pelo morto” é um uso muito generalizado em Queensland Est me- ridional. Dura tanto quanto o intervalo entre o primeiro ¢o segundo enterro. Horas e tempos precisos Ihe sao desig- nados, Durante cerca de dez minutos, ao nascer e ao pér do sol, todo o campo com um morto a chorar berrava, cho- raya e se lamentava*. Havia mesmo, nessas tribos, quando se encontravam varios campos, um verdadeiro concurso de gritos ¢ de lagrimas que podia estender-se a congregagdes consideriveis, por ocasiéo das feiras, colheita da noz (ounya), ou iniciagdes. Mas nao siio apenas os tempos e as condigGes da ex- pressao coletiva dos sentimentos que s&o fixos, os agentes des- ta expresséo também o sao. Estes nao uivam e nao berram so- mente para traduzir seu medo ou sua cdlera, ou seu pesar, mas porque sdo encarregados, obrigados a fazé-lo. Em pri- meiro lugar, néo sao de modo nenhum os parentes de fato, tao préximos quanto possamos concebé-los, pai e filho por exemplo, mas séo os parentes de direito que governam a manifestagdo de luto. Se o parentesco for por descendéncia uterina, o pai ou o filho nao participam fortemente do luto um do outro **. Temos até uma prova curiosa do fato: entre os Warramunga, tribo do Centro de descendéncia sobretudo masculina, a familia uterina se reconstitui especialmente pa- ra o ritual funerdrio ™, Outro caso notdvel é que, com fre- qiiéncia, so os prdéprios consangiiineos, os simples aliados que so obrigados, sobretudo por ocasiao de simples trocas de delegados ou por ocasifo de herangas, a manifestar o maior pesar *, 11, Assim Taplin, Narrinyerri, p. 21, 4 quase textualmente repetido por Roth, Bulletin 8, 462, por Spencer e Gillen. Native Tribes of Central . SH, por Eylmann. Eingeborenen, pp. 114, 233. 12. Roth, Buil. 9, p, 15. Tom Petrie. Reminiscences (tribo do ; ef. Roth. Bulletin, p. 400. 13. Petrie, Reminiscences, p. 29; Mathew. Two Represeniative Tribes (abl), p, 142, 14. Bpencer @ Gillen. Northern Tribes of Central Australia, p. 520, Cf. o equivalente entre os Diel, Howitt, South Eastern Tribes, p. 446. 18. Gunbados uivando quando recebem os bens do defunto (Warra- munga), Spencer e Gillen, Northern Tribes, p. 522. Ct. Spencer, Tribes A EXPRESSAO OBRIGATORIA DOS SENTIMENTOS 329 © que demonstra de maneira definitiva esta natureza puramente obrigatéria da expresso de tristeza, da cdlera ¢ do medo, é que ela nfo é comum a todos os parentes. Nao s6 séo individuos determinados que choram, que uivam e cantam, mas na maioria das vezes pertencem, de direito e de fato, a um tinico sexo. Ao contrdrio dos cultos religiosos stricto sensu, reservados, na Australia, aos homens, os cul- tos funerdrios séo ai confiados quase que exclusivamente ds mulheres ©. Todos os autores siio undnimes neste ponto € o fato é atestado por toda a Austrilia. E indtil citar refe- réncias sem ntmero de um fato perfeitamente descrito ¢ atestado ‘7, Mas mesmo entre as mulheres, nao sao todas as que conservam relagdes de fato, filhas, irmiis em descen- déncia masculina, etc., mas sao mulheres determinadas por certas relagdes de direito que desempenham este papel, no sentido pleno da palavra™, Sabemos que comumente sfo as mies }* (nfo esquecer que nos encontramos aqui num pais de parentesco por grupo), as irmas*° ¢, sobretudo, a vitiva do defunto”4, Durante a maior parte do tempo estes cho- of Northern Territory, p. 147, para um caso notdvel de prestagées rituais e econémicas Intertribals por ocasiAo dag mortes, entre os Kakadu da Austria do Norte. © pesar manifestado tornou-se um puro negéclo econdmico @ juridico, 16. & Indtil explicar aqui por que as mulheres sio assim os agentes eseenciais do ritual funerdrio, Essas questées sfo de ordem exclusivs- mente sociolégica © provavelmente essa divisio do trabatho religiosa se deve a multos fatores. Entretanto, para a claresa de nossa exposigho, @ para fazer cOmpreender w importineis inaudita destes santimentos de origem social, indicamos alguns: 1.9 « mulher ¢ um ser minoris fesitentiae, que é encarregads 6 quo se sobrecarregs de rites penosos, eomo o estrangelro (cf. Durkheim, Formes élémentaires, p. 572). além disso, ela 4 normalmente ela mesma uma estrangeira; ela # objeto de trogas que outrora o grupo Infligia a todos os seus membros ( rites cOletivos da agonin, Warramunga, R. Hertz, “Représentation coll. B, 184: of, Strehiow, Aranda Stimme, etc. 1, IV, p. 18, p. 25, onde jh afo # ag mulheres que se amontoam sobre o morto); 2° a mulher ¢ mats especialmente um ser relacionado com os poderes malignos; suas menstruag6es, sua magia, suas faltas tornam-na petigoas. & comsi- derada, até certo ponto, responsive! pela morte do marido. Poder-se-& encontrar o texto de wm curioso relato de mulher sustraiiana em Roth, Structure of the Kokoyimidir Language (Cap Bedford), Bulletin 4, p. 24, ef. Bulletin 9, p, 341, traducho infiel, p. 374, Cf. Spencer e Gillen, Native Tribes, p. 504, 3° na maior parte das tribes, ¢ precisamente prolbido ao homem, ao guerreiro gritar sob pretexto algum, em parti- cular de dor, ¢ gobretudo em caso de torturas rituats, 17. Eis alguns dos mais antigos testemunhos. Pars @ Austrilia meridional o Victoria, B, Smyth, Aborigenes of Victoria, II, 297, I, 101, 104, Oeste de Nova Gales: Bonney, “Tribes of N. S. Wales”, Journal of the Anthropological Institute, II, p. 126, Narrinyerri: Tapl Narrinyerri. Tribe, p. 20, cf. fig. D. 73. Eylmann, Eingeborenen, p. 240. Leste de N. G. do & Kamilarol. Curr. Austr. Race, 1, 318, IL, p. 29. Tribo de Sidney: Colina, Journal, etc., I, 11; Prager. Aborigenes of N, 8. Wy p. 53. 18. Ag listas destas mulheres 96 sin completas nos mais recentes e nos melhores etndégrafos: y, Spencer © Gillen, Native Tribes, p. 306, 507, Northern Tribes, p. 520, Tribes of Northern Territory, p. 255. (Mies, mulheres de uma classe matrimonial determinadas.) Streblow, Aranda Stémme. IV, I, cf. p. 25 (Loritja). 19. Isso flea claro pelos textos da nota precedente, 20. Ex. Grey. Journals of Discovery, TI, p. 316, as velhas cantam “nosso irmfo cagula", ete, (W. Austr.) 21. 4 vidya canta © chor durante meses entre os Tharumba. ‘Matthews, “Ethnological Notes", J. Pr. Roy Soo. N. 8. W., 1900, p. 274; da mesma forma entre os Evahlay!, Mrs. L. Parker, Euahlayi Tribe, p. 93, entre os Bunuroug da Yurra, a famos, tribo de Melbourne, um “dirge” era cantado pela mulher durante os dez dias de luto, Brough Smyth, Aborigenes of Victoria, I, p. 106. 330 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA tos, gritos e cantos acompanham as maceragdes amitide mui- to cruéis que essas mulheres ou uma, ou algumas dentre elas se infligem, e que sfo infligidas, sabemo-lo, precisa- mente para alimentar a dor e os gritos”. Mas nao sao apenas as mulheres ¢ certas mulheres que berram e¢ cantam assim; ha um certo ndmero de brados dos quais clas devem desencumbir-se. Taplin diz-nos que havia uma “quantidade convencional de choros e de gritos”, entre os Narrinyerri™. Notamos que este convencionalismo ¢ esta regularidade nfo excluem de modo nenhum a sinceri- dade. Nao menos do que em nossos préprios usos funerd- tios. Tudo é, ao mesmo tempo, social, obrigatério e, toda- via, violento ¢ natural; rebuscamento ¢ expressio da dor ¥ao juntas. Veremos logo por que. Antes, outra prova da natureza social destes gritos ¢ destes sentimentos pode ser extraida do estudo de sua na- tureza e de seu contetido. E primeiro lugar, por mais inarticulados que sejam tais berros e uivos, so sempre, até certo ponto, miusicais, na maioria das yezes ritmados, cantados em unissono pelas mu- Iheres *. Estereotipia, ritmo, unissono, todas as coisas ao mes- mo tempo fisiolégicas ¢ socioldgicas. Isto pode permanecer muito primitivo, um uivo melédico, ritmado e modulado 2. E, pois, ao menos no Centro, no Leste e no Oeste austra- liano, uma longa ejaculacao estética e consagrada, social por conseguinte, ao menos por essas caracteristicas. Isto pode também ir muito longe e evoluir: estes gritos ritmicos podem tornar-se refroes™, interjeicdes do género esquiliano, cortan- do e ritmando os cénticos mais desenvolvidos. Qutras ve- zes, formam coros alternados, as vezes com mulheres e ho- mens?" Mas mesmo quando nado sio cantados, pelo fato de serem entoados conjuntamente, estes gritos tém um sig- ficado totalmente outro que o de uma pura interjeigio sem alcance. Tém sua eficdcia. Assim sabemos agora que o grito de bau-bau, emitido em duas notas graves, que as carpideiras dos Aruntas e do Loritja soltam, tem um valor 22. Ex. Tribo de Glenormiton, Roth. Bulletin 9, p. 394: Scott Nind, “Natives of King George Sound", Journal of tie Roy, Geogr, Soc., 1, _p. 46, um dos mais antigos obseryadores do Oeste austrajiano, dix textualmente que elas se cogam e se arranham o narlz pata clorar, 23. Narrinyerri Tribe, p, 21, Roth. Wit. toc.; Eylmann, Fingeborenen, Bp. 114 e 233, diz, talver traduzindo seus antecessores, “pfiichtgemiases Bejammern", 24. Grey, Journal, II, p. 331, dis das tribos da Vase River: “shrill ‘Walling, of the females... dirge... even musical, chauntes really 25. Ex, Brough Smyth, foc. cit. I, p. 101, Langloh Parker di uma descrigéo musical bastante boa, oc. elt., ‘p. 83. 26. Ex. Greville Teulon (Barkinji) in Curr, Austratan Race, U1, D. 204, “NEo se pode ouvir nada de mais plangente © de mals musical”. Mathew (Kobi) in Curr. TIT, p. 165, 0 refriio 6 a im. grito, mals wma frase muito musical: meu Irm&o (pal) “esta ts 27. Prazer, joc, cit. mals atras. A EXPRESSAO OBRIGATORIA DOS SENTIMENTOS 331 de dmotpémavov, de conjuragao traduzir-se-ia inexatamente, de expulsao do maleficio mais precisamente **. Restam os canticos; sio da mesma natureza. F. indtil notar que sao ritmados, cantados, — nao seriam o que sao se nao fossem cantados —, e por conseguinte fortemente moldados numa forma coletiva. Mas seu contetido também oa é. Os australianos, ou melhor as australianas, tém suas “voceratrices”, carpideiras ¢ imprecantes, que cantam o luto, a morte, que injuriam, maldizem e encantam o inimigo, causa da morte, sempre magico. Temos numerosos textos de seus cantos, Uns sao muito primitivos, apenas ultrapassando a exclamagao, a afirmagio, a interrogagao: “Onde esté meu sobrinho o tinico que tenho”*®. Ai esté um tipo bastante difundido. “Por que me abandonaste ai?” — depois a mu- Iher acrescenta: “Meu esposo [ou meu filho] esta morto! *” Vemos aqui os dois temas: uma espécie de interrogagao e¢ uma afirmagao simples. Esta literatura quase ndo ultrapassou estes dois limites*!, 0 apelo ao morto ou do morto de um lado, e o relato referente ao morto, de outro. Mesmo os mais belos e mais longos voceros cujo texto possuimos so redutiveis @ essa conversagao € a esse tipo de epopéia infantil @. Nada de elegiaco e de lirico; apenas um toque de sentimento, uma vez, na descricio do pais dos mortos. Entretanto em geral so simples injdrias, obscenidades, imprecagdes yul- fares contra os mégicos*, ou maneiras de declinar a res- ponsabilidade * do grupo. Em suma, o sentimento no esté excluido, mas a descri¢io dos fatos e os temas rituais ju- ridicos prevalece, mesmo nos canticos mais desenvolvidos, * * * Duas palavras para concluir, de um ponto de vista psi- coldgico, ou se quisermos, de interpsicologia. Acabamos de demonstrar: uma categoria considerdvel de expresses orais, de sentimentos e emogdes nada tem que nao seja coletivo, num ntimero muito grande de populagées, espa- Ihadas sobre todo um continente. Digamos logo que este cardter coletivo em nada prejudica a intensidade dos senti- 28. Spencer et Gillen, NW. T., p. 506, cf. S04, cf. p, 220-227, onde estd mal ortografado: o sentido ¢ precisado por Streblow, IV, TI, p. 23, ‘Temoa entre o3 Kakadu do Golfo de Carpentiria uni rito preclto de conjuragéo oral da alma do morto. Spencer, Northern Territory, Bp 241, cf. Virgilio. Enéida, II, 67, 68: A jue sepulchro inimanq condimus ¢f magna supremum voce clemus, 29. Lumholts, Among the Cannibals, p. 264, 30. Howitt. South Eastern Trides, p. 180. 31. Ex. Roth, Bulletin 9, p. 385, cf. Bull. 5, p. 15 ss. 2. Net Grey, loo. ett. Th p- 26 20 oa eee de poesia australians. L. Parker, loc. cif, p. 87-68, cf. p, 72, com ‘Atecrigio do pais onde aa “mulheres nfo podem taser fogs". 33. Roth. Bull. 3, p. 26, cantadas por toda # tribo, 34. Entre of Mallanpara. Bull, 3, p. 26, 0.9 26, a2 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA mentos, muito pelo contrério, Lembremos os amontoados sobre o morto que formam os Warramunga, os Kaitish, os Arunta ®, Mas todas estas express6es coletivas, simultdneas, de valor moral e de forga obrigatéria dos sentimentos do in- dividuo ¢ do grupo sio mais do que simples manifestagdes, sao sinais, expressOes compreendidas, em suma, uma lingua- gem™, Estes gritos, sio como frases ¢ palavras. E preciso dizé-las, mas se é preciso dizé-las ¢ porque todo o grupo as compreende. A pessoa, portanto, faz mais do que manifestar os seus sentimentos ela os manifesta a outrem, visto que é mister manifestar-lhos, Ela os manifesta a si mesma exprimindo-os aos outros e por conta dos outros. Trata-se essencialmente de uma simbédlica. Aqui chegamos as mui belas e curiosas teorias que Head, Mourgue e os psicélogos mais avisados nos propdem quanto &s funges naturalmente simbélicas do espirito. E temos um terreno, dos fatos, sobre o qual psicélogos, fisidlogos ¢ socidlogos podem e devem encontrar-se. [1] Sobre “As saudagies pelos risos e pelas ldgrimas’” (1923)", eis a nota citada (Cf. supra p. 325]: A propésito de suas observagdes sobre as “lagrimas” utilizadas como signos, permita-me indicarlhe uma categoria considerdvel de fatos que as confirmam, aquela que os ale- maes designam em geral com o nome de Triimengrus, sau- dagao pelas légrimas. Um excelente optisculo de Friederici apareceu sobre este tema’; inclui um bom catdlogo de fatos americanos (Norte ¢ Sul) desse género?. Mas o fato é igual- mente atestado para a Austrélia e, em particular, para os australianos de Queensland. Um dos melhores e dos mais antigos observadores das tribos das cercanias de Brisbane 35. ¥. uma excelente descrigio nova, Strehlow, IV, I, p. 4. priate ao 7raitd de Reyohs itd de psychologie de Georges Dumas, 1923, Paris. Carta escrita o G. Dumas logo depois da publicagho, no Journal de paychologie, de um capitulo do Traité. pire 1. Der Tranengruss der Indianer, Letpaig, 1907. 2, Cf. Durkheim, Année sociologique, TI, p. 469. A EXPRESSAO OBRIGATORIA DOS SENTIMENTOS 333 diz textualmente: “As lagrimas, entre os negros, eram um sinal de alegnia assim como de pesar. Quando visitantes chegavam a um campo, assentavam-se e, de ambas as partes, as pessoas se olhavam umas as outras, e, antes de dizer uma palavra, comegavam uma espécie de concurso de uivos em forma de boas vindas”*. Em outras partes da Australia, parece que esta saudagHo pelas lagrimas est4 mais em re- lagfo com o ritual funerdrio4. Sob esta forma encontra-se ai difundida de um modo geral. Seria demasiado longo discutir estes fatos. Mas permita-me manifestar-lhe minha hipdtese de conclusdo: os ritos tem como finalidade demons- trar 4s duas partes que se satidam o unissono de seus senti- mentos, que os faz parentes ou aliados, O cardter cole- tivo e, ao mesmo tempo, obrigatério dos sentimentos e de sua expressao fisiolégica esta aqui bem marcado, sem que haja esforgo ou ficgao como no caso das carpideiras neo-ze- landezas ou romanas. ALOCUGAO A SOCIEDADE DE PSICOLOGIA (1923) * Agradeco & Sociedade de Psicologia pela grande honra que me d4, a mim que sou socidlogo, e relativamente in- competente em psicologia, chamando-me para presidir estes eruditos e especiais debates. Talvez haja, da parte da So- ciedade, uma certa habilidade psicolégica, ao anexar assim como presidentes, sucessivamente, um lingiiista, um bidlogo €, agora, ainda outro estranho 4 sua ciéncia. Felicitarei também o secretério da Sociedade pela atividade que mani- festa extraindo de cada um de nds, profanos, a melhor con tribuigio possivel. E escuso-me, dado o curto espaco de tempo que me foi deixado, por nfo lhes haver trazido hoje mesmo esta contribuigéo. Estava acertado que seria para a reabertura das aulas e neste momento sé posso prometer-vos executar ambos os compromissos que assumi com ele. Nesta primeira contribuigao que, se quiserdes, substi- tuird a mensagem que hes devo, procurarei assinalar quais so as relagdes, em seu estado atual, da sociologia e da psicologia. Nao haverd, neste esforgo, nenhuma dialética e nenhuma metafisica. Trata-se-d apenas de especificar os pon- tos sobre os quais devemos diferir e¢ os pontos sobre os quais devemos, ao contrério, colaborar. Em particular, ten- tarei _mostrar-vos quais os fatos que podemos fornecer & 3. Tom Petric's Reminiscences of Early Queensland, & it — Cf. uma descrigfo por um etndlogo de profissio, “Tribu Marybo- Tough", Roth, Wetin of N. Queensland Ethnography, n° 8, p. 8. 4. Ex. Tribo de Melbourne, Rito do mensageira, Brough 5 Aborigenes of Victoria, I, p. 134. Encontro de duas tribos, em Moorundi, J. Byre, Journal of Diseovery, ¢. I, p. 221. * Extraido do Journal de peyohologte, 18, 334 ENSAIOS DE SOCIOLOGIA vossa discussao e a vossos estudos, em que pontos podemos enriquecer 0 cfrculo de yossos conhecimentos, E de outro lado, propor-yos-ei certo ntimero de questées cuja solugio, pelos psicélogos, leva ao desenvolvimento imediato da so. ciologia. Em particular, indicar-vos-ei em que grau é necessario que sejamos melhor informados sobre aquilo que chamarei “o homem total”. Isto é dito sem sombra de um espfrito eritico, mas permiti que eu vos observe que os grandes pro- gressos recentes da psicologia foram realizados de preferéncia em dominios muito precisos, os da psicofisiologia, os das faculdades -nsitivas ou motoras, os de tais ou tais ordens de fats. Ora, nds, socidlogos, quando encontramos o ho- mem, a consciéncia humana, — em nossas estatisticas, em nossas consideracses de histéria social ou de histéria com- parada, em nossos estudos de psicologia ou de morfologia coletivas —, deparamos nao somente com tal ou tal facul- dade da alma, ou com tal fungdo do corpo, mas com homens totais compostos de um corpo, de uma consciéneia indivi- dual, e desta parte da consciéncia que provém da cons- ciéncia coletiva ou, se quisermos, que corresponde 4 exis- téncia da coletividade. O que encontramos é um homem que vive em carne ¢ em espirito num ponto determinado do tempo, do espago, numa sociedade determinada... A maior parte dos fendmenos que 0 socidlogo considera, na medida em que nao é um morfologista, requer precisamente esta consideragao da totalidade psicoldgica do individuo, Nossos trabalhos aqui se juntam. Como bem observou M. Dumas, o riso e as légrimas e, como acrescentei, os gritos, em certos rituals, nao sao so- mente expressGes de sentimentos; so também, ao mesmo tempo, rigorosamente ao mesmo tempo, signos e simbolos coletivos; e enfim, de outro lado, siio manifestagdes e dis- tensGes organicas tanto quanto sentimentos e idéias. So- ciologia, psicologia, fisiologia, tudo aqui deve misturar-se. E a estudos deste género que eu me permitiria convi- dé-los. A fim de contribuir para tanto, comegarei por mos- trar-vos um fato que constituird o objeto de minha segunda contribuigao. NGo € somente tal ou tal expressdo de sentimento, tal ou tal atividade intelectual que supde a coordenagdo destes trés elementos: 0 corpo, a consciéncia individual e a coleti- vidade; é a prépria vida, € 0 homem todo, é sua vontade, seu desejo de viver ele mesmo sua vida, que devem ser considerados do ponto de vista dessa trindade, Trar-vos-ei um nimero bastante grande de fatos reunidos na Polinésia ¢ na Austrélia, referentes aquilo que se chama a tanato- mania. Um individuo que pecou ou que cré ter pecado, que se enfeitigou ou se julga enfeitigado, deixa-se morrer A EXPRESSAO OBRIGATORIA DOS SENTIMENTOS 335 amitide muito depressa, 4s vezes no préprio momento em que havia previsto, Nao ha nisso nada de anormal; tra- ta-se de um caso freqiiente entre australianos ou neo-zelan- deses. E que o desacordo entre o individuo e a sociedade lhe tirou a razio de viver, faz-lhe negar e apaga nele o mais violento dos instintos fundamentais; morte sem doenga aparente; sua mola vital quebrou-se porque foi separado do apoio psicolégico que é para ele a sociedade religiosa de que faz parte. Assim, € todo seu ser que depende da cons ciéncia de ser social; é toda sua vontade e séo todos os seus instintos. E nao falo dos casos de suicidio. Mas tudo s¢ passa num mundo em que a natureza psiquica como na- tureza moral e, mais precisamente, social € soberana do corpo. E assim que um socidlogo pode, espero, contribuir para mostrar toda a importdincia do fato psiquico e todo o in- teresse de seus estudos. Esta seré a maneira de manifes- tar-vos o reconhecimenta que lhes devo e que vos devo.

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