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Beneficio inusitado da amamentacao O intestino humano é habitado por centenas de espécies diferentes de bactérias, que, além de nos ajudar a obter energia dos alimentos, nos protegem de infeccdes e estimulam nosso sistema imunol6gico. Por outro lado, quando essa microbiota esta em desequilibrio, graves doengas podem surgir. Apesar da importdncia desses micro-organismos, nao sabemos ainda de onde vém, como so adquiridos e selecionados. A descoberta recente da presenca de bactérias no leite materno indica que a colonizacao do nosso intestino nao ¢ aleatéria acontece desde o nascimento, diretamente pela amamentacao, Leandro Araujo Lobo Juliana Soares de $4 Almeida Regina Maria Cavalcanti Pilotto Domingues Laboratorio de Biologia de Anaerdbios, Instituto de Microbiologia Paulo de Gée Universidade Fedleral do Rio de Janeiro ara o recém-nascido, os beneficios da amamentacio sio reconhecidamente rosos. O leite materno & um ali- ‘mento balanceado, nutritivo e seguro, que contém vitaminas e gorduras saudaveis, além de proteinas como anticorpas maternas € Citocinas (moléculas envolvidas no desencadea- mento da resposta imune) ~ que protegem o bebé ‘e estimulam seu sistema imunolégico, preparan- do-o para combater infeccées, Estudos tém de- monstrado que recém-nascidos alimentados com leite materno tém menor propensio a desenvol- ver doencas respiratérias, alergias, diabetes e obesidade. Parece perfeito? O que mais poderi- amos esperar de um alimento para nossos pe- ‘quenos filhos? A resposta para essa pergunta & surpreendente e insdlita: bactéras. Um leitor desavisado pode estar se peg tando por que, afinal, uma mie gostaria do sew precioso leite materno contaminado com bacté- Fias, Vamos esclarecer: micro-organismos fazem parte da nossa vida e estio presentes em varios Tocais do nosso corpo. A pele, a boca e o trato ‘gastrointestinal sio pesadamente colonizados por bactérias, fungos e virus. Esses micto-orga- nismos compdem a chamada microbiota huma~ na normal e sio essenciais para o funcionamen- to perfeito do nosso corpo, ou sea, sem eles nos- sa satide nio seria completa. Estima-se que apenas no nosso intestno grosso exista um mii- >>> HNC 385 ABR 201621 ‘mero de bactérias duas vezes maior do que 0 total de células humanas que formam todos os tecidos e érgics do corpo. Além de colonizar rosso trato gastrointestinal, essas bactérias es- tio trabalhando ativamente em prol da nossa satide e nos trazem diversos beneicios, como prodlugdo de vitaminas, auxiio digestao de car- bboidratos complexos, estimulo ao sistema imu- nolégico e protecao contra bactérias causado- ras de doences. Apesar de nossa microbiota nos acompanhar urante nossa vida, ela nao esté definida quando nascemos. Ficamos livres de bactérias no itero materno, No parto, somos imediatamente colo- nizados por milhares de micro-organismos e, sem isso, provavelmente no sobreviveriamos. Estudos em animais de laboratério indicam ‘que a auséncia da microbiota normal causa gra- ves problemas nutricionais e imunoligicos, tor- nando-os mais suscetiveis a infecgées. Em hu- manos, diversas doencas tém sido associadas ao desequilibrio nas populages de micto-organis- ‘mos presentes no nosso corpo, entre elas, infec- «Ges e doengas do trato gastrointestinal (como a sindrome do intestino irritado). Além disso, au- tismo, depressio, diabetes tipo 2 ¢ alergias po- «dem estar associados @ uma microbiota defeitu- (sa. Muitos autores acreditam que a importancia a microbiota intestinal no surgimento dessas doencas & maior nos primeiros anos de vida, ‘quando o organismo humano ainda esta em for- ‘macio. Desvendar a composi¢io da nossa micro- Dota e definir o que carae saudvel é uma das questoes mais relevantes na iéncia médica humana atual, etalve7 a respos- ta esteja precisamente no valioso leite materno. Inumeraveis bactérias do leite ‘bemos hé muitas décadas que mulheres saudé- vis tém em média de 1 mil a 10 mil eélulas Dacterianas por mililiso (ml) de lite. A maioria das bactéras identificadas no leite materno por :métodos convencionais de laboratério, baseados na observagio do rescimentodos micro-organis- ‘mos em meios artificiais, pertence aos géneros Staphyloccocus, Streptoccocus, Lactobacillus e Bi- Jidobacterium, Apesar de importantes, esses re- sultados mostram uma imagem distorcida da realidade, jé que nds, pesquisadores, nao sa- ‘bemes como cultivar em laboratério todos os t- pos de bacterias existentes Para contornar esse problema ¢ tentar iden- tificar todas as bactérias do leite materno, tém sido empregadas andlises sofsticadas baseadas na leitura de sequéncias de DNA. Essas anélises nos fornecem uma representagio qualitativa © eriza uma microbiota 22 hENCAOE| 385 VOL. 55 quantitativa das espécies bacterianas presentes m uma amostra, sem a necessidade de cultivé- -las em laboratério. Além dos géneros jé men- cionados, varios outros géneros bacterianos ram seu DNA encontrado, incluindo Pseudomo- nas, Edwardsiella, Akkermansia e Campylobac~ ter, No total, mais de 170 géneros bacterianos ja foram descritos em amostras de leite materno; porém, essa populacao é muito variavel entre diferentes individuos e pode inclusive se alterar a0 longo do periodo de amamentagio, de acordo com a satide da mie. ‘Tradicionalmente, tem sido postulado que as bactérias do leite materno s40 provenientes da contaminacio por bactérias da pele humana ou por refluxo da boca do lactente para a glndula mamiria. Porém, uma explicagio alternativa € muito interessante vem ganhando forga nos tl- timos anos, Estudos recentes demonstraram que células do sistema imunolgico da mae, como rmacréfagos ¢ eélulas dendritieas, podem captu- rar bactérias do intestino materno e transporté- -las diretamente para a glandula maméria, su- plementando o lete e provendoo recém-nascido com a tio cobicada microbiota saudavel, Esses macrofagos e células dendriticas esto presentes na mucosa do nosso intestino, mais especificamente no tecido linfoide associado a0 trato gastrointestinal, que atua como um posto avancado de vigilancia do sistema imune hu mano. Amostras do contetidointestinal, incluin- do bactérias e moléculas originarias da nossa dieta, séo constantemente capturadas por essas células ¢ apresentadas a0 nosso sistema imu- nol6gico no tecido linfoide. Algumas vezes, es- sas bactérias e moléculas so transportadas por nosso sistema linfético para outros érgios do sistema imune, como os ginglios linféticos(lin- fonovdos) presentes no mesentério (dobra mem- branosa que liga varios érgios a parede do cor- po). Esse é um processo normal e importante para desenvolvermos tolerancia as milhares de moléculas que passam pelo nosso trato gastro- Intestinal todos os dias. Infelizmente, apesar de necessério, esse pro- cesso nio é a prova de falhas. Algumas bacté- rias patogénicas conseguem sobreviver dentro dos macrofagos e das células dendriticas e se espalhar para outros tecidos. Essas bactérias uusam nossas células como verdadeiros ‘cavalos de Troia’. Mas sera que esse fendmeno é ex- clusivo de bactérias patogénicas? Afinal, se bac- térias patogénicas conseguem burlar esse sis- tema de vigilancia e pegar ‘carona’ em nossas células, por que o mesmo nao poderia acontecer com bactérias benéficas? Transporte sem barreiras Novos esta- dos mostraram que o transporte endégeno, ou seja, dentro de nosso prprio organism, de bac- térias do trato gastrointestinal para formar a mi- crobiota do leite materno é possivel (igura 1). Em animais de laboratério, por exemplo, um niimero significativamente maior de bactérias é encontrado nos ginglios linfticos mesentéricos dle camundongos fémeas prenhas, em compa- rao com fémeas nao prenhas, indicando um aumento no transporte de bactéras através da barreira intestinal na gestasio. Apés © nasci- mento dos filhotes, essa diferenca desaparece. E, coincidentemente, é nesse momento que 0 nimero de bactérias nas glandulas maméria aumenta. Para confirmar que bactérias do trato gas- trointestinal materno podem ser transmitidas para a prole, pesquisadores alimentaram ca mundongos fémeas prenhas com bactérias mar- cadas geneticamente, que podem ser rastreadas com faciidade por testes de Iaboraori, Essas bactérias foram detectadas nas fezes da prole desses camundongos, mas 86 apés a amamenta- cao. Incrivelmente, em mulheres, horménios produzidos na gravidez também induzem um aumento no transporte de bactrias do trato gas- ointestinal para a corrente sanguinea e as glindulas mamérias. Uma grande dificuldade técnica € coletaroleite materno sem que ocorra contaminacio por bactérias da pele. Por outro lado, esse tipo de contaminagao nao pode ex- plicar a descoberta de que varias bactérias jé identificadas no leite materno nao so encon- tradas na pele, mas so habitantes normais do Intestino humano. De fato, € possivel observar uma diferenca Imarcante na composigio das populagBes bacte- rianas em fezes de criangas alimentadas com formulas artificiais de leite em relacio a de ctiangas alimentadas exclusivamente com leite ‘materno. Criangas que recebem exclusivamen- te formulas tendem a apresentar espécies com potencial patogénico, como Escherichia coli e Clostridium dificie, com maior frequéncia. A microbiota de criancas alimentadas exclusi- vvamente com leite materno é mais estavel e uni- forme em relagio de criangas alimentadas com formulas. Hospedes prestativos As bactérias bene- ficas tém imensa contribuico para a satide dos recém-nascidos. Elas podem, por exemplo, ex- cluir outras bactérias causadoras de doencas por ‘meio da competicio por nutrientes ou pela pro-

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