Você está na página 1de 88
: ow MANUELA CARNEIRO DA CUNHA © ; P £0s Mortos e os Outros ‘Uma andlie do sistema feneréio © da nogio de pessoa entre of fadios Krahs ‘ eos BB cc mm sero CAME ) EDITORA HUCITEC ‘fo Paulo, 1978 em isn, 1078, de Masia Manuel Ligti Clemo do Capa Byotor te ‘plc, nerdoy pel Elta etme, Cena Tes Alateds Js ibd 01150 Str Ploy 9s. Caps de Lily Dr. Fone An Maia Neyer {alg Wanna Caro Cia (ede Se dagen). Sei Ge sited Sto Poulos nono Shee Ne CHAMADA Hoes eee toma 088 Ser + cra aes tt BBOOOLS FIFE i P, — ual a diesenga fundamental entre uma coletiva de fmprensa e uma Comissio de Inguerto? RE que ume peocura evil as perguntes © 9 outa tents extrait teiposts, P. — Como asin? R. — Na prinita tinea 6 uma cca implisncis com “os que guefem saber demi’: na segunda ima. om ‘oe ave quetem dast de senor”. Na primeiry hi tm j cucoto. de" perpunas; na segunda une ease ‘de resposs, (| Mute Fernandes, Veja, 6 de abril de 1977 Sumirio wesc di ‘po Agadsomertos Definite etre de mate Rr ctu da sete RS se es gs 2 pennidade ds wore © GsNenhos do monde Onto a eigom dee ie caper fo wom 9 pie Wsaie A eee i. sora acl Qe em MY, REPARTIGNO DAS TAREFAS FUNERAKIAS 0 LUT. Sn Tstogs de siteny de pertagies maton og ¢geortade Epi cre i poh (Oe cade temp dia 2 pias do A Rimtiae nein dow pps Cai 1: 08 nITOS DE uty fins © pte faut Gage rte fala! 6 clon be LuTo eet ai cia vB ree Si ies Ea aks EES Atel ol nant cs senile nome ie ot fac SSE alt i i ps Cpls Vis © ENTERKO SECUNDABIO ede ae Fes nts» face val Copii Vit:"BSCATOLOCIS, Rees « rflesio Aetoes So 4 memes dy 8 Spe nla! Tenor o's cinintincic 1X clined dais 2c 3p A ipooona de siea doy menos Bintmier pesmi in YI, MERANGA B CULTO DOS ANCESTRANS: SUS ™iNentaneia 1 bene 6 do ‘aati ni iain Concise: O8 MORTOS SiO OUTHOS REFERENCIAS BIBLIOGRAPICAS wn Introdugao Objetvas € estatéias ho € doplo: tentar evidenciar as oS Telatvas 20s mores, tar eselarecer aspecios di a = - estou entre os indios Kea © Estes dois proptiitos exigem estrtégias de abordagem 9 primero podera ser apreenddo através de uma andlise ala do claboredo coajunto ritual ¢ jutieo que Go. as tigbesfunerias, das descrigdes exeatlozias, dos pression, “de una einoisologia, enim do conjunto de representagbes: que ‘ica Hie de mote. © segundo porém, s6 pode ser indietamente buscado. nas parecem recair nos avarentos, nos gananciosos. Nesse sentido, ticeiro é a antitese do chefe enquanto fundo de redistribuigéo: chefe adquire prestigio pela generosidade, 0 feiticeiro adquire pela tentativa de acumulagio, E suas reivindicagdes sio ez a primeira instancia da extorsao do “tributo” que caracteriza ‘poder (P. Clastres 1973). O feiticeiro ocuparia entéio a Gnica psicfo de poder na sociedade Krahé, mas sendo 0 poder incom- tivel com a sociedade primitiva, tio logo proclamado, ele é olido (7): 0 feiticeiro vai, ¢ esta é a sua vertigem, de encontro gua morte, Assim 0 feiticeiro seria ele proprio um quisto irredutivel a0 gxo das trocas € seu feitigo, substincia estranha no corpo da fima, é sua limpida metdfora inscrita no corpo humano: 0 0 & © proprio feiticeiro, EB como este, cle & extirpado e simado. *' Respondemos, mediante a premissa de que o discurso do corpo ‘algo sobre a sociedade, & nossa questo inicial, do porqué da enga ser tida como um rapto do kard pela parentela e 0 feitigo mo uma invasio do corpo por uma substincia estranha. Mas ita uma segunda pergunta: por que levam a morte? Se no corpo se imprime o simbolismo da sociedade, entio a de um homem “significa” a morte da sociedade, ou pelo os de uma sociedade igual a si mesma. Ora, 0 que diz a teoria 6, sendo que a conjungao excessiva com o circulo familiar detrimento da vida piblica assim como a negagio da tiprocidade comprometem irremediavelmente a sobrevivéncia da Bmunidade. Na morte de um homem enquanto discurso simbilico ora a inquictacio do grupo. (6) Note-se a este respeito que niio hi porters mégicos inatos ou entes. O feiticeiro 6 um curador pervertido, isto é que usa os dons Ihe foram conferides em beneficio préprio. (7) Ou nfo ser ‘edade primitiva, confo i oer, ria uma sociedade primitiva, conforme diria P. Clas B88 (1973), que define esta como sendo"uma sociedade “contra o estado", 17 A proximidade da morte wa amy ma pa tek te eu teflexivo eu (enfatico) morto + nominalizador yakrainare prever + negacio amy ma pa téktxd amkré —_akrepeinare reflexivo eu morte dia_—_saber + negaglo geha ra tapi aetéhtx—geha—amkré6 ama quando jé ——perto sua-morte quando dia a vocé depois huyarénare contar + negagio “Eu, eu nao adivinho a minha morte; eu nao sei o dia da morte; quando jd esté préxima sua morte, o dia ndo the conta”, No entanto, sio varios os pressdgios da morte: nunca porém a propria morte, mas sempre a alheia, ou mais precisamente a morte de um consangiifneo ou de um membro da casa. E ainda nfo qualquer morte, mas apenas morte por “doenca”. Novamente esto aqui ligadas as nocdes de parentela e de doenga, Assim, quando se avista um peixe morto dentro de Agua, entristece-se pois ha de morrer um parente, O mesmo prenuncia a visio de uma jibéia viva (hokati). Se se ouvir o txaktxakti (descrito como “ima mucura que ndo fede”) atrés da propria casa, alguém ha de morrer nesta casa; se uma coruja (panré) entrar ou gritar atrés da casa, estaré chupando o miolo de um dos moradores que ha de ficar doente, definhar e morrer; se alguém, sem estar dormindo, vir o kard de um parente vivo, 0 dono do karé vagabundo nao sobreviveré mais de um ano... Desprezando aparentemente os pressdgios do txaktxakti ¢ da coruja, que podem anunciar a morte de consangiiineos ou de afins, os Krahé afirmam que sO se prevé a morte dos parentes consangiifneos. A veracidade do prességio 6 aliés reconhecida a posteriori mediante por vezes verdadeiras acrobacias genealdgicas {que permite reconhecer consangiiineos em pessoas normalmente tidas como nio parentes. Pudemos seguir assim a malabaristica 18 HE redefinigéo de um sogro em termos de consangiiinidade, ao * perguntarmos a um informante que nos queria responder afirmati- Famente se o pressdgio do peixe morto na 4gua era aplicdvel a ©. Nota-se portanto que a mantica, ao contrério das técnicas > gerapéuticas, ndo requer especialistas: cada qual é qualificado para a perda de seus proprios parentes, ‘A oniromancia, por sua vez, também pode indicar a proximidade da morte, Assim, segundo o estilo de Pend, que ‘golocava a apédose antes da prétase, se um homem fosse morrer, ggutro sonharia com toras pequenas de buriti; se uma crianga fivesse para morrer, sonhar-se-ia com tora grande de buriti, parece ser uma alusio ao ritual de fim de luto, mas nio bemos infelizmente se realmente o tamanho das toras varia, te-se que os pressigios contidos nos sonhos podem se referir a quer pessoa da aldeia, Sem entrarmos aqui numa anilise dos contetidos dos ssdgios, que nos levaria demasiado longe (mas que teria um yresse evidente), notemos simplesmente a oposigéo do prességio fdo diagndstico. Enquanto o primeiro nfo requer especialistas e & Ambito doméstico e consangiiineo (pelo menos em teoria), 0 ndo é da competéncia exclusiva dos curadores e situa-se amente fora deste Ambito, j4 que se afirma que 0 curador Teconhece o feitigo quando a vitima the é aparentada, Os conselhos do moribundo » A iminéncia da morte é manifesta quando 0 félego fica curto ho “vira” e fica branco. Ao pressentir a morte, o Krahé ha ispensar seus uiltimos conselhos e decisdes que deverdo ser indos. Kotoi, na véspera de morrer, enquanto ainda podia falar, tou seus genros a tratarem bem suas mulheres, a no baterem filhos, quando ela j4 14 nao estivesse para impedi-lo. Neste momento, 0 moribundo tem poder de dispensar o ige do perfodo de luto que, como veremos, especialmente O80 para o vitivo, Se nada disser, a duragdo da viuvez ficard a tio dos parentes do defunto. Ao morrer, Poyoy pediu ao marido nfo tornasse logo a casar, que cuidasse do filho pequeno. O jo submeteu-se a uma longa viuvez. que s6 findou quando a prvera the pediu que casasse com a irma da morta. Ft Quando Estévéo, que nao tinha filhos, estava morrendo, dito A mulher que suas quatro reses deveriam ficar para ela. 19 Infelizmente para ela, s6 a mulher ouviu. Entdo os consangiiineos do morto pegaram trés reses e deixaram s6 uma para a vitva ¢ a filha de criago. Os problemas sucess6rios séo relativamente recentes (vide capitulo VIII) e constitui uma extenso dos conse- Thos tradicionais do moribundo o dispor-se da propriedade ao chegar a morte. O mito de origem da morte ‘A origem da morte, como de todos os males que afligem a humanidade, remonta a Pédleré, Lua, que forma com seu amigo formal, Péd, o Sol, 0 par de demiurgos, cujas andangas siio longa- mente contadas em um ciclo de episédios miticos. Recolhemos, do episédio da morte, duas versGes, ambas com curiosas ressondncias malthusianas: “Porque foi Pédleré que resolveu de morrer. Péd nfio queria, ‘Ai Pédleré morreu. Se nfo morrer, a terra nfo agiienta todo o mundo. E pra ir morrendo e desocupando a terra para os mais novos ficarem no lugar dos mais velhos” (Zé Aurélio). “Se fosse 6 0 Péd, néio tinha esse negécio de morrer gente. Morria um, punha na sombra do pau (4rvore), de tarde acordava. Pédleré morreu. Péd pos na sombra do pau e de tarde ele voltou. Péd morreu. Pédleré fez cova, enterrou. Assim néo volta mais. Pédleré no quer que 0 povo aumenta senfio a terra nao agiienta, fica muito pesado” (Pascoal). Uma versio mais completa é a de H. Schultz (1950:63). Quanto & versio provavelmente Ramkokamekra-Canela de Nimu- endaju (1946:244), 6 singularmente pobre ¢ s6 contém o episédio da morte transitoria de Pédleré, no explicando portanto a origem de uma morte irreversivel. O mito de origem da morte no poderia ser aqui analisado in extenso, pois as anélises estruturais, para serem exaustivas, tendem a transbordar perigosamente quaisquer limites que se Ihes queira impor. Restringir-nos-emos aqui a levantar alguns pontos. Sio dois titos funerérios que, no mito, dio conta do cardter diverso da morte: uma morte seguida de ressurreicio e uma morte irremedidvel, para que as geragGes se slicedam ¢ nao mais coexistam. De certa forma, poderiamos dizer que através da morte definitiva, um tempo linear se instaura. A oposigéo nfo reside tanto no par vida-morte, quanto no tema do “eterno retorno” 20 .do-se ao tema do “nunca-mais”, ou seja numa forma atenuada erdeslocada da oposicao primeira. Paralelamente, as oposigdes em jogo nos dois tipos de funerais so também oposigdes em que um dos termos parece figurar de modo atenuado: sombra (da rvore) vs. trevas (e nfo, por exemplo, luz/trevas). eoberto de folhas vs. fechado (no buraco) (e néo descoberto/ fechado). superficie da terra vs. subterraneo (e nfo céu/subterrineo). Jé se poderia alids suspeitar disso pela presenga nfo de um demiurgo tnico, mas de um par, Sol e Lua, com aspectos \. dioscdricos ¢ no qual um dos personagens, Lua, tem componentes “), de um “trickster”. Lévi-Strauss sugeriu, com efeito, na “Gesta de Asdiwal” ¢ na “Estrutura dos Mitos” (1958 [1955] e 1970), que , Mtricksters” © diéscuros sao tipos de mediadores que unem ou _justapdem opostos por vezes inconcilidveis: se 0 mito jé se inicia f com diéscuros ou “tricksters” € que, por assim dizer, j4 nao estamos “no inicio”, na oposigdo maior vida-morte, mas sim “no meio”, faum par transformado, ; Uma palavra para precisar em que sentido Lua pode ser fatento do ciclo de Sol e Lua ressalta que Sol merece mais o epiteto 0 que Lua, que é antes o eterno enganado. Mas se entendermos “trickster” aquele que altera uma ordem pelas suas trapalhices, epiteto convém a Lua que, de modo bastante maniqueista, tor de todos os inconvenientes na criagdo. O plano de Sol teria o um mundo edénico, sem trabalho humano e sem morte didvel. Lua, por seus “faux-pas” ou seus contra-argumentos, abortar esse projeto. A criagio da ordem, neste mito, € pois a dialética entre Péd e Pédleré, mas onde é sempre o primeiro em sanciona a nova ordem querida ou involuntariamente ovocada por Lua. Dois episddios tém porém status especial: , Lua toma a iniciativa dos dois Gnicos ritos mencionados Bifeste ciclo mitico: 0 do resguardo pelos recém-nascidos © 0 dos ‘titos funerérios. Sol propde um resguardo curto, para que “nossos filhos nfo emagrecam”, mas Lua argumenta que a populacéo ‘fumentaria depressa demais, 0 que poderia ser paliado pela F Proibigio temporaria de relagdes sexuais. Lua pratica o resguardo Prolongado e acaba vencendo a oposigio de Sol (H. Schultz 1950:62). O mesmo argumento de controle populacional esté 21 presente, como vimos, nas duas verses que recolhemos de origem dos ritos funerérios, e aqui também Lua inaugura uma modalidade do rito. Talvez esta autoria nao seja fortuita: se é verdade que o “trickster” € um princfpio individualizador (vide mais adiante, : capitulo V), sua presenga nestes dois rituais de separagdo que so os funerais e 0 resguardo de parto poderia atestar os limites que i} | se colocam dentro de uma unidade familiar para que emerja ou desaparega um individuo (vide capitulo VI). Mas por estes | caminhos nfo nos aventuraremos mais adiante. CAPITULO 1 O Desenrolar do Enterro O lugar da morte e a posse do morto | Ha uma sintaxe no espago krahé: Jugar da morte é lugar ‘ofigem, vimo-lo no capitulo I; as saidas e entradas devem ~O Krahé procura assim morrer na casa materna, e nesse fiuito poder4 se submeter, j4 agonizante, a penosos transportes. to inclui os homens casados que, quando adoccem sio levados s consangilineos para sua casa de origem. “No se deixa r pa casa da esposa nfo, a ndo ser que nfo tenha mais ihflia...” Se sua mie estiver viva, um homem jé maduro, ¢ até fe do grupo doméstico em que vive, voltara para junto dela, fis evidentemente o problema acaba se ligando ao estégio do m velho nao tenha mais parentes suficientemente proximos fia por demais enraizado na sua familia de procriago, em ‘casa da qual ele j4 se tornou o chefe, para voltar morrer em y casa de origem. Neste caso, contrariamente a0 que Nimuendaju (1946:126) dos Canela (1), ndo ser também 0 corpo velado na casa pterna (2). Mas a partir dai todas as manifestagées ulteriores, entual refeictio péstuma e o fim do Iuto, serio encabecadas consangilineas de sua casa de origem, mesmo que estas n relativamente afastadas. Claramente, o morto Ihes pertence, ti mais precisamente, pertence 4 casa materna onde seu nome Méré perpetuado, ¢ onde, antigamente repousavam seus restos. Pois ‘Somo dizia Mauss em um artigo sobre ritos funerdrios australianos: fio sio de modo algum os parentescos de fato, por mais préximos Re (1) “Mais ainda,,.., um homem que cai seriamente doente volta ‘BE go mile, normalmente com sox mulher, para Ii lear até seu resti- Ho belecimento. Se houver a menor possibilidade, tum Timbira morzeré na casa " aaterna, onde 0 caddver & invariavelmente exposto” (grifos nossos)”. (2) Mas alguém que, como Kuhok, morre na casa da roga seré transportado para sua casa na aldeia e 6 se comecard o funeral a partir dai. 2 23 que os concebamos, (...) so os parentescos de direito que governam as manifestagdes do luto” (1921:429). Ora o “parentesco de direito” por exceléncia parece ser 0 parentesco consangiifneo na familia de origem ¢ € esta que reivindica 0 morto para si. A presenca da comunidade Ao saber que alguém esté prestes a morrer, acodem & casa dele as mulheres da aldeia, Invadem a casa, silenciosas, e sentadas ou de pé, fitam o moribundo. Embora essa presenca na casa seja comum a todas as mulheres da aldeia, a distincia em que se colocam é reveladora de seu envolvimento enquanto parentes do morto ou estranhas, Os funerais, neste ponto, consistem em uma verdadeira coreografia, onde sio afirmados ostensivamente os agos de parentesco, independentemente dos sentimentos que se possa ter ou dos sentimentos atribuidos pela comunidade (3). Olhar 0 morto e mais tarde “ajudar a choré-lo” concemne a todas as mulheres da aldeia. Os homens virdo mais tarde, e nem todos, s6 aqueles que ld sio chamados.por lagos de parentesco, por suas fungdes piblicas — 0 prefeito e 0 padré (4) virio cxortar a familia — ou pela coparticipacdo em atividades rituais. Portanto, enquanto a participagio feminina parece assegurada, a participagéo masculina @ primeira parte do funeral, que vai da morte ao sepultamento, ser proporcional 2 importncia do morto na vida piblica. Eis porque as mulheres associadas a qualquer grupo de homens ho de contar com a presenca de muitos homens em suas exéquias, Eis porque também os homens presentes aos funerais de uma crianga séo praticamente circunscritos 4 esfera doméstica, e porque, caso limite, 0 atendimento dos homens as lamentagSes é nulo quando se tratar dos funerais de um cachorro. Este seré chorado pelas mulheres da casa “ajudadas” pelas mulheres da aldeia, e enterrado atras da casa de seu dono, dentro de um (8) No caso da morte de Teresn, um de seus gentos — Aleio — era designado pela opiniio piblica como tendo sido seu enfeiticador. No obstante, ole foi requerido para as tarefas que The incumbiam (4) “Prefeito”, termo portugués usado pelos Krahé, & um dos dois homens designados para, durante uma estacto do ano (estagio seca ou estagio das chuvas), coordenarem a3 atividades cotidianas ¢ repartirem a propriedade coletiva (J. C. Melatti 1970:808 ss, 815). Padré, por sua vez, 6 uma corruptela de padre e designa o chefe dos rituais. 24 buraco forrado piedosamente de folhas de pati da chapada (5). As ceriménias mortudrias para um cachorro se restringem & famentag&o ao enterro. Este atendimento relativo dos homens é perfeitamente coerente com a divisio sexual de papéis, segundo a qual se espera que o homem seja antes de tudo um membro do pitio, interessado principalmente na esfera politica e cerimonial. ‘Se 0 moto foi personagem importante e, ao mesmo tempo, especialmente ligado a vida ritual, a comunidade pode manifestar-se ainda de outro modo, Se ele tiver morrido de tarde, e portanto 86 deva ser enterrado no dia seguinte, leva-se 0 corpo para 0 phtio, por iniciativa do chefe dos rituais — 0 padré —e durante ‘uma noite inteira cantam-se para alegré-lo cantos do ritual ao Mgual ele era associado ou de que era devoto. A partir deste mento, sabe-se que a parte final deste ritual sera encenada no m do Into (vide capitulo TV). Ao amanhecer, leva-se 0 morto a sua casa e as ceriménias propriamente domésticas continuam nde haviam parado: novamente os consangiiineos retomam as as, Também pode o padré entoar na propria casa do morto ns cantos de um ritual ao qual ele era associado. Se 0 morto nao tiver ligago com ritual algum, um especialista Pérgahok podera, a seu critério, vir cantar com o txé trumento que consiste num cinto ao qual sio suspensas fimeras pontas de cabaca) cantigas deste ritual & cabeceira do fiver. Neste caso, o Porgahok seré celebrado no fim do luto. O corpo € colocado com a cabeca para leste e deitado de fostas. Esta ¢ também a orientagio ideal de quem est4 dormindo, Pos jiraus (camas de varas) estardo assim dispostos. Tolerar-se-A fa eles uma orientacio diversa mas em nenhum caso a cabeca eve ficar para oeste. “A cabeca deve ficar para leste, pro Péd 1) ensinar direito, pra alma (kard) fica sabida, pra saber bir e atravessar na Agua. Se dormir com cabega para oeste, ica doente e morte”, disse-nos Raul, padré da aldeia Pedra Branca, €nquanto outro informante afirmava que quem fica deitado com (5) eachorro parece ser o ‘inico animal doméstico a ser enterrado © & sempre). Os animais domésticos, como em outras_ sociedades Soemam uma categoria de transigéo entre o selvagem e 0 — eS adqui- sm nomes cachorros, araras, papagaios e porcos ou outros bichos que se 2 serem eriados, nlg comides. Galina nfo ganha nome, As re- tas de nominagio, embora desprezem 0 sexo do animal, e se restrinjam @ um 56 nome, ¢ ngo a uma série, sio as mesmas da nomeagGo humana: o dono nunca pode dar nome: 0 nomeador deverd ser pessoa da casa e de Seracdo igual ou superior a do dono. Este nome & de posse do nomeador © até certo ponto, da casa, como um todo. 25 cabeca para oeste fica “ruim do juizo”. Lembremos que o leste é comumente designado como a parte de cima (“pra riba”), sendo © oeste a parte de baixo. A oposigao do dia e da noite, da luz ¢ das trevas, é a primeira experiéncia, segundo Cassirer (1965, vol. 11:96) que imprime orientagdo ao espago e que assim o qualifica. Exigir, para um ‘‘juizo certo”, que o que é de cima (cabega) fique voltado para cima (oriente) é fazer coincidir a espacialidade do corpo, protétipo, “sistema de referéncia ao qual todas as outras distingdes espaciais so indiretamente transferidas” (E. Cassirer ibidem: 90), com 0 macrocosmo; é requerer, em termos espaciais, que o pensamento esteja “bem orientado”, e nesta metéfora perce- bemos a nossa propria intuigdo espacial subjacente. ‘A orientagiio do corpo, para voltarmos a etnografia, nada tem portanto a ver com a orientagao da casa, refere-se diretamente aos dois pontos cardeais krah6, o leste ¢ 0 oeste. Também o corpo seré enterrado nesta posi¢ao. Chorar antes de muitas horas € repreensfvel, pois é condenar © morto a nfo mais poder reviver, é mandé-lo embora para a aldeia dos mekard, vedar-lhe o caminho de volta, consagrar a ruptura, Pois nesse periodo, conta-se, j4 muitos voltaram a vida, quando ainda existiam curadores eficientes, ou gragas & protegio de um keti (6) e & propria continéncia, recusando compartilhar os alimentos ou a vida dos mekard: O irmao da mie de Hoktxi morreu. Quando ia morrendo disse para a mae: ‘Nao chorem. Eu volto ainda”. Morreu. Chegou na aldeia dos mekar®. Ofereceram banana, dgua, correr com tora, Khwérgupu (bolo de mandioca e carne ou peixe, assado no forno de pedras e comida “por exceléncia” dos Timbiras). Foi irma que ofereceu. Ele nao aceitou. “Nao estou com fome. S6 vim ver vocés. Nao gosto de vocés nao”. Chegou keti morto dele e disse: “Ndo oferecam nao, Os arentes dele estéo com saudade”. Levou de volta, Iam parando e ndo escutavam os parentes chorar, Se tivessem escutado, voltavam para tras. Se quer bem ao filho, nao chora logo. Quando chora esté mandando embora...” (7) Kotoi morreu de madrugada e o choro ritual, comegado algumas horas depois, se prolongou, com alguns intervalos, até de tarde ou seja até a saida do corpo. (8) Keti, categoria na qual 6 escolhido o nomeador para ego masculine € que inclui’ entre outras as posicées genealégicas de Im, Pm, PP. (7) O resto desta estéria, contada de noite por Hoktxi a seu genro, serd analisado mais adiante, Vide desenho feito por este, foto 1. 26 bi Depois disto, cada parente que tenha estado ausente no momento das exéquias, dirige-se, ao ser inteirado das més noticias, para a casa do luto onde é recebido com as mesmas lamentagdes € onde ele prdprio chora abundantemente. Espera-se que toda a aldeia participe desse choro através de 4: suas mulheres. E importante notar que enquanto os consangiifneos, homens e mulheres, interpelam 0 morto, as outras carpideiras se oe enderecam, elas, aos sobreviventes enlutados. Isto é consistente ks: com o papel da comunidade (que ser detalhado mais adiante) de & ajudar os enlutados a romper seus lagos com o morto ¢ de ontrabalancar a atragdo que este exerce sobre eles. Chora-se em atitude convencional, sentado sobre o pé querdo, joelho direito fletido apoiando o brago direito dobrado, ye por sua vez sustenta a testa, enquanto escorrem livremente as grimas © 0 ranho (vide foto 2), F) Estas lamentagGes cantadas desenvolvem dois temas: dizem ‘morto quio grande era o afeto que se The tinha quando era vivo fuio pungente é a saudade dele; e pedem-lhe sem transigo que Fesqueca de seus parentes pois estes ndo estiio prontos para fui-lo. Tlustrando o primeiro destes temas, eis um trecho que amos ¢ depois traduzimos do choro fiinebre de Kotoi. Nele se pam os solos dos parentes préximos e 0 coro de carpideiras, B que na palavra coro se implique unissono, mas sim choros Berentes cantados simultaneamente, pelas mulheres tidas como mates longinquas” € que se enderegam ou 20 morto ou aos tes préximos a quem estio “ajudando a chorar”. Eu tenho pena; Tua finada mae jaz, bem morta, Eu estou com pena Por que quando vocé ainda estava viva, ndo me dew seus conselhos? Minha irma cacula jaz Eu estou chorando apesar de nova(8) Eu estou chorando bem. (8) Os jovens tém vergonha (pahain) de chorar. Os velhos sio (no tém vergonha). Veremos mais adiante os diferentes sen- Fanermare {nfo tem vergonba). Vercinos mais adiante os diferentes sa 27 Eu estou chorando bem (porque jd estou velho) Eu estou chorando com muita saudade, Tua finada 18 (9) jaz Tua irma cacula jaz Vocé esté chorando com muita pena Coro: Voce & nova mas jé esté estendida (morta) Hoje eu estou chorando Hoje vai ser coberta de terra Pd Minha finada mae jaz filha E a primeira vez que estou chorando | “Agora eu estou chorando, eu, sua filha, { estendida (ao seu lado) (10) Solo da { Minha irma cacula jaz, deitada, ela vai embora irma Eu vou me lembrar dela Minha mae vocé é nova, mas vocé me deixou Minha finada mae é uma sb, mas vocé me deixa Minha finada mde, desejosa de viver, vocé me Solo da ; deixou filha Eu choro sozinha caminhando, eu vou chorar, chorar Eu me sento, eu sua filha, chorando deitada Eu the quero bem. Eu sou sua mae, eu choro Eu estou estendida (ao seu lado) Solo da Ja eu choro bem mie | Eu choro caminhando saudosa classificatéria | Suq finada mae é uma sé E vocé esté deitada (ao seu lado) A posigo espacial das carpideiras 6 sujeita a uma etiqueta estrita: o primeiro circulo & volta do morto serd constituido pelos consangiiineos ¢ pelo cOnjuge, no caso de um adulto casado. O lugar de honra neste grupo parece ser o lado direito do cadaver. Em segundo, o lado esquerdo, e depois a cabeceira e os pés. Este Te) eat — categoria em que se reeruta a nomeadora para ego fer nino e que recobre entre outras as posigées geneal6gicas seguintes: mm, mP. (10) Como veremos, as consangiiineas se deitam e enlagam 0 corpo. 28 Jado direito, no caso da velha Kotoi foi reivindicado pela irmf, ‘émbora nas auséncias desta fosse ocupado sucessivamente pelas trés filhas; as cabeceiras ficaram duas netas. Uma atitude reservada as consangiiineas mais proximas é a de se deitar enlagando com as pernas as pemas do cadéver © alisando-lhe © cabelo; ou entio sentar-se passando as pernas por cima do ‘eaddver. As mulheres grévidas ou com filhos pequenos devem abster-se de tal proximidade com o cadaver. O segundo circulo A Volta de Kotoi era constituido de algumas parentes patrilaterais ‘mais afastadas. Enfim as outras carpideiras, que ocasionalmente y. "estarao dormindo ou conversando, se repartem pelo resto da casa. ire os nao parentes, as mulheres ¢ criangas constituem um grupo arado do dos homens, E a partir deste ponto que comega uma divisio do trabalho f funerrio, Analisaremos mais adiante os critérios de atribuicao das Etarefas que, dentro do nosso enfoque, constituem o nivel relevante, s cabe aqui uma breve descrigao dos costumes fiinebres krah6, seada, em grande parte, no entero de Kotoi a que assistimos fin jutho de 1972, Estes podem ser distinguidos em dois conjuntos, cada um tribuido a um grupo de pessoas diferentes, e que dizem respeito espectivamente ornamentagiio ¢ & remogiio do cadaver. A omamentagio A ornamentagéo subentende a lavagem do corpo, o corte de belo, a insergGo de batoques auriculares nos homens, a Empenacdo ou a simples tintura com urucu. A lavagem pode ser feita dentro de casa, perto da porta, ou frente desta. Como a gua usada para tal fim torna-se rigosa (11), costuma-se levar a areia molhada para longe ¢ palhar terra nova no local. Colocou-se Kotoi sobre uma folha bananeira, sentou-se-a e amparando-lhe os ombros, jogou-se a de uma bacia sobre 0 corpo e a cabeca, esfregando-os scienciosamente. O cabelo foi em seguida aparado e a risca Ftaracteristica que corre de témpora a témpora cuidadosamente | desbastada, O cabelo do morto guardado para ser colocado por ima do témulo. (11) Depois do corpo de Kotoi ter sido retirado do ly Segttendido no undo da casa, uma gala vei beber « dgua do banho. rapidamente enxotada ¢ yuna crianca espalhou afeia seca no local, Ti- vesse a galinha bebido dessa dgua, seria St de mors de quem a comese, da lavagem 29 Enfim procede-se A pintura ou A empenagdo (12) do corpo. Teoricamente, tém direito 4 empenagio todos os personagens de destaque na vida ptiblica e cerimonial: os informantes enumeram em geral os cantadores, 0 chefe da aldeia, os chefes honorérios representantes de outras tribos, os “governadores” que seriam algo como uns “prefeitos perpétuos”, os wif (meninas associadas aos homens e meninos associados as mulheres ¢ as meninas), as mogas associadas aos rituais de iniciagdo (Ketuaye-gahai, krokrok-gahai ete.), 08 chefes de grupos de iniciandos (krarigaté), abrangendo estas trés ‘iltimas categorias todos os que desempenharam alguma vez. tais fungdes ¢ que delas se tenham desligado. Além disto a empenagio parece ser também prerrogativa dos poucos Krah6 legitimos, os “donos da aldeia”, que nao tém ascendentes de outras tribos, Seria esta a tnica ocasido em que se faz uma distingio entre estes e 08 alienigenos. Enfim, se um menino morrer antes de ter completado um ritual de iniciago (Pembkahok ou Ketuaye), seu nomeador empené-lo-4 como teria feito durante sua iniciagdo. ‘A empenacao parece ser, em todos os contextos em que aparece (investiduras ¢ iniciages) uma honraria suplementar, uma marca distintiva dos personagens centrais envolvidos (inician- dos, mocas associadas, chefes, wiff). Nos funerais, segundo diversos informantes, € permitido aos parentes distinguirem desse modo o defunto perante a aldeia se assim o desejarem. Isto acarretaré normalmente, a menos de conflito com a aldeia, a realizagéo de uma festa oferecida 4 comunidade para celebrar o fim do luto. ‘A empenago como a festa “alegram o kar6”, acumulando prestigio sobre ele € portanto sobre sua famflia. ‘Se néo for empenado, 0 morto seré tingido com urucu da cabega aos pés, com excegio do rosto (mas néo da risca do cabelo) (foto 3) ¢ eventualmente vestido com alguma roupa, A pintura de urucu dos pés A cabeca parece ser usada no fim de perfodos de resguardo, por exemplo no de parto. Infelizmente no colhemos 0s dados necessérios para poder concluir com firmeza, ‘mas avangamos a hipétese que afinal nao € muito temeréria, de tao batida que é, de que a ornamentagio do morto com urucu carac- terfstica dos ritos de passagem enquanto a empenago eventual é um modo de distingui-lo ¢ elevé-lo aos olhos da comunidade. Se se tratar de um homem, colocar-se-lhe-io batoques auriculares novos. Seus proprios batoques, juntamente com seus (12) A empenagio consiste em aplicar peninhas de juriti, periquito ou gaviéo por cima da selva de pau de leite que age como cola, Cobre-se de urucu 0 colo, a risca do cabelo e parte dos antebragos e das pemas que nunca sio empenados. 30 | ‘outros pertences, arcos, instrumentos musicais ou enfeites serdo ou reservados para uma distribuicio no momento do fim do luto, ‘ou se 0S parentes no Ihes suportarem mais a vista, destrufdos durante a vigilia fiinebre (13). Neste caso, ao ver os objetos comecarem a ser quebrados, qualquer pessoa, desde que seja “de fora", poderd se apoderar deles. Estes objetos, cujo kard acompanhou o do defunto, so tidos por pouco resistentes, por se quebrarem rapidamente: 6 absolutamente vedado aos parentes se apoderarem de tais objetos, sob pena do morto se zangar ¢ vir bater-Ihes nas costas, quando deambularem pelo mato. A remogao do cadaver Sob esta apelagio genérica incluimos o envolvimento em esteira (freqtientemente substituida agora por um caixio de talos de buriti), a transladagao do defunto, a escavacdo da sepultura ¢ seu preparo, e enfim a inumagdo propriamente dita. ‘Se englobamos todas estas etapas sob 0 titulo de ‘“remogiio do ‘cadéver” & porque este se afigura ser o ponto culminante da ceriménia, 0 n6 da tragédia: em nenhum outro momento serio os grupos eo conflito entre eles t4o claramente definidos © tio exacerbadas as expresses de dor. A inumagio propriamente dita néo despertard depois sendo um interesse limitado. ‘Ao aproximar-se o momento da remogio, umas doze a dezesseis horas depois da morte, os afins rednem-se no centro da casa. Ao vé-los, os consangiiineos se agrupam redobrando as JamentagGes A volta do morto. Transcrevemos aqui a descrigao desse momento nas exéquias de Kotoi: “as duas netas (ff) deitaram-se a0 lado da morta, abracadas ao cadaver, Outros parentes considerados mais préximos, a filha, o irmZo vinham desalojé-las, Todos choravam e punham as mios sobre o corpo. $6 havia consangilineos. Os gentos nio choravam, estavam mais afastados, junto ao caixio que haviam trazido e cotocado no lugar exato em que Kotoi morrera, orientado leste-oeste. Kotoi havia sido removida para o lado apés a lavagem do corpo. Um itamtxué (FI) Zé Comprido (Ayehi) entrou na roda mais proxima e comegou a chorar. Um filho classificat6rio (Fi), Ropkure (Zé Nogueira) chorava de pé, mais afastado. Hopekwui, filha da morta, que estava abragada com a mie, levantou-se para pegar a filhinha que estava chorando. (18) Os batoques podem ainda ser colocados sobre 0 timulo. 31 Foi quando os genros que, nestes funerais, desempenhavam as fungdes de coveiros, se aproximaram para pegar 0 corpo. Os consangiineos ndo querlam largar o cadaver ¢ esbogou-se uma batalha. Mas Pedro Pereira, filo da morta, acabou por ajudar a levar 0 corpo para o caixdo e a feché-lo (14). Neste momento, a irma e duas filhas da morta se langaram ao chio, dando cambalhotas (t6konk) e batendo os punhos no peito, sendo seguras por mulheres que chorayam com elas. A emogao estava no auge. irmio, 0 filho, o marido da irm&, os netos choravam. Os parentes mais afastados choravam cantando. A maioria dos estranhos se calavam: essencialmente, a cena pertencia aos parentes. Irmo e irma afirmam-se agora como os mais préximos: enquanto o filho e as filhas poem o brago sobre o caixio, cles choram sentados na posigio dos carpideiros e no se aproximam do féretro. Este foi coberto com 0 pano que Kotoi estava usando quando doente, além do pano branco oferecido por Paulo Cadete (Ett). Ao sair o caixio Akékro, uma das filhas, teve de ser contida; 14 fora estouravam foguetes langados pelos coveiros (15). O caixao atravessou 0 patio, e ao vé-lo passar, as mulheres acocoravam-se nas casas e entoavam um choro cantado”. Tais descrigdes abundam na literatura etnogréfica tim- bira (16): em todas elas 0 momento mais dramético é aquele em que 0 cadaver transpée a porta da casa, que é exclufdo do (14) Tradicionalmente, os cadéveres eram envoltos em esteiras cujas pontas eram amarradas num pau (J. C. Melatti 1970:202). (13) Os foguetes constituem novidade nas exéquias, Mas parecem ser usados também em outros contextos, como o da volta de um Krahé, apés uma longa viagem: 0 viajante estoura-os a0 chegar mas proximidades EE alicia o opera que s0 0 vi buscar, Apsrectenents, portant, 0 uso de foguetes parece conotar ritos de passagem, © sio taml Final dos ritos de iniciagio, (18) Veiese por exemplo Zacarits Campelo (1057.54): “o cover, que era o valente ‘Waiacé-Chico Craé’ entrow répido, com ar ameagador @, numa firia de lefo, arrebatou o cadaver. Dewse 0 pinico... As fndias, numa espécio de danca macabra, loucas atiravam os pés para © ax, dando saltos mortais”, E Nimuendaja (1948:183) escreve: “A vitiva consangiiineas do defunto podem chorar ¢ atingir um paroxismo de desespero e tentar suicidio, especialmente quando o cadiver esti sendo le- vado embora”. As mulheres apinayé (cf, Nimuendaju 1939:151) e canela (Nimuendaju 1946:138) praticam nao somente os saltos mortais mas tam- ‘bém ferem a cabega e as costas com o que encontrem, ferramenta ou brasa, Segundo Malatti (1970:40) este mesmo costume imperava entre os Krahé, As mulheres kayapé ¢ bororo, por sua ver também costumam ferir © couro cabeludo, mas & belra do timulo, (T. Tumer 1966:391). usados no 32 ‘grupo doméstico. F este o momento da verdadeira separagio, e 6 quando certas mies, privadas de seus filhos, tentam se suicidar. Deixé-las perpetrar seu intento é sinal de vergonhoso descuido da aldeia: mais do que nunca, a aldeia deve ficar solicita para que 0s mortos nfo seduzam os enlutados, Contrariamente ao que Nimuendaju (1946:133) afirma dos Ramkokamekra, também os homens podem executar saltos mortais (tokonk) nesta ocasiao: assim os trés fillios de Kuhok atiraram-se 0 chéio, quando o cadaver da mie transpés a porta da casa. Note-se que Kuhdk morrera na toga e tivera de ser transportada para sua casa. Esta primeira remogio nao suscitou nenhuma manifestacio dos filhos: visivelmente, 0 momento adequado 6 0 que marca a remocao da casa. Uma vez, arrancado & casa e aos consangiiineos, o cadaver pertence aos coveiros. Nenhum consangiiineo deveria idealmente tocar no fardo fénebre, até chegar ao local do enterro: na pratica, se por falta de afins ou de possibilidade de retribuigio, poucos forem os portadores do cadaver, é possivel, mas causa comiseragio, que até uma filha ajude a carregar. Também as inovagdes que constituem, por exemplo, o caixéo, requerem especialistas distorcem as regras. Assim, Pedro Pereira, filho de Kotoi e “fazedor de caixdes” confeccionou o de sua me: porém em hhipétese alguma ajudaria na remogio. A participagéo tanto da comunidade quanto dos consangiiineos mais préximos parece dever se limitar ao espaco da aldeia. Melatti (1970:202) menciona que © chefe dos rituais ¢ algumas parentes s6 acompanharam o corpo de Pedro Colina até ao limite das casas, E C. Nimuendaju afirma que entre os Ramkokamekra (1946:134) © os Apinayé (1939:151/152), os consangiiineos mais chegados a0 defunto nunca acompanhavam 0 corpo até A cova, mas permaneciam chorando a volta do lugar onde repousava o cadaver. Embora 0 prinefpio seja esse, no caso de Kotoi, varios parentes préximos acompanharam o cadaver até & cova, Os consangiiineos so lavados na frente de suas casas por qualquer pessoa “de fora” que se venha oferecer. Por este servigo, © voluntério poderé pedir substanciais presentes. Como para a lavagem do cadaver, renova-se a areia molhada pela 4gua usada nesta purificagao. A cova 6, hoje em dia, de forma retangular, forrada com paus fortes — caxamorro (pékaik6), sucupira preta (kukrayopi) — Por todos os lados, para proteger 0 corpo do autzet, o tatupeba, Sempre referido como “o comedor de caddveres” (foto 4). Se o 33 timulo for perto da aldeia, atrés das casas, far-se-4 uma cerca destinada a protegé-lo dos animais domésticos (foto 8). O corpo 6 deitado com a cabega para leste (17), 08 tegionais sio tidos como “enterrados de cabega para baixo” (lembremos que 0 oeste € associado ao baixo). J. C. Melatti_ (1970:204) menciona uma campanha de Pend, chefe da aldeia de Pedra Branca que recomendava inumarem-se os mortos com a cabega para o oeste, “como os cristéos”, porque assim a populagéo aumentaria (18). fundo da cova é forrado com pati da chapada (hothd) que -consangiifneas mais afastadas trazem em sinal de solicitude (19). Por cima destas folhas costuma-se colocar uma esteira nova fomnecida pelos coveiros, depois o morto, ou eventualmente o caixio de talos de buriti, em seguida troncos longitudinais tapando a cova, recobertos por mais folhas de pati, eventualmente panos e cober- tores do morto, a esteira habitual do morto e por fim a terra que jogada por todos os homens com as mios. No enterro de Kotoi, ‘vimos seu irmao pegar uma pedrinha de outro timulo qualquer (era o de Joo Delfino, ¢ afirmaram-nos que nfo era relevante de quem fosse o téimulo) e pé-la por cima dos panos, antes da terra, para o tatupeba nfo vir cavar. Por cima de tudo poderé ser posto o cabelo do morto e a embira que serviu para trazer a8 folhas de pati ou amarrar as esteiras (fotos 5, 6 ¢ 7). Na volta do enterro, os coveiros tomam um banho no riacho para se purificarem. 17) Entre os Apanyekra-Canela visitados por Snethlage, o buraco seria tniganento ‘edondo’e profundo eo cadéver ficaria sentado, enca- rando 0 sol nascente (H. Snethlage 1990:178), Segundo informagio soal de A. Seeger (julho 1973) os chefes suyé, suas esposas ¢ seus filhos Sfithas sio enterrados sentados sobre um banco, olhando para leste, Os Gemais sio enterrados com a cabega para oeste, para que “quando se lev Vantem olhem jé para o comego do céu (E)”. Os Beigo de Pau (grupo Suyd recuperado para o Parque do Xingu) enterram com cabeca para E. ‘Provavelmente a passagem da posicio sentada para a deitada, entre os ‘Timbira orientais, sob influéncia dos regionais (C. Nimuendaju menciona que em 1984 05 Ramkokamekra jé enterravam seus mortos em covas retan- gulares) deu margem a reinterpretagbes diversas. (18) Talvez se possa associar isto a0 mito de origem da morte, esta- belecida por Péd ¢ Pédleré — Sol e Lua, Mas nfo aprofundaremos aqui este ponto. (19). Em todos os contextos rituals, trazer folhas de pati da chapada & dever das consangiineas, seja para descansar as toras (por exemplo no ritual do Apunré), seja para os iniciandos se sentarem (por exemplo no Ketuaye). 34 O lugar do enterro do que o lugar da morte, sujeito a circunstincias imprevisiveis, o lugar do enterro € carregado de significado. E uma situago bem conhecida dos antropdlogos a da ligagéo do timulo com o que poderfamos chamar o “verdadeiro lugar do homem”, Os Merina de Madagascar, descritos magistralmente por “Maurice Bloch (1971), dispersos por migragdes em territ6rios no tradicionais, desenvolveram esta ligagio a um ponto maximo: para eles, a verdadeira referéncia sécio-espacial nao é onde vivem nem onde nasceram, mas sim onde sero enterrados, na aldeia ancestral. Enraizar-se no lugar de origem, de nascimento, enraizar- -se no lugar dos despojos dos ascendentes sio duas opcdes igualmente plausiveis. Entre os Krahé, a uma mulher apinayé que, apés uma briga, ameagou deixar a aldeia em que vivia ha longos anos, foi objetado: “sua mie ¢ sua irma morreram aqui, estio enterradas aqui”. Nao se lhe falou do filho, nascido entre os Krah6, apenas dos depojos de seus parentes! Temos, atualmente, varios lugares de enterro entre os Krah6, ¢ analisaremos mais adiante suas implicagées simbélicas. O uso de cemitério, apesar de j4 antigo (20) ainda nao se generalizou. Realmente existe, como menciona Melatti (1970:49), um cemitério situado a mais ou menos 1,5km a oeste da aldeia, Mas nem todos so Id enterrados: 6 sinal de afeigao guardar os mottos perto de si, e por isso, apesar das exortagdes dos “governadores”, os pais freqiientemente enterram seus filhos, mesmo adultos, atrés de suas casas (21). Mas niio € s6 isso: existe um cemitério s6 de criangas, na aldeia Pedra Branca, situado também, grosso modo, a oeste, mas perto do circulo das casas; enfim, como entre os Canela (Nimuendaju 1946:235), muitos sio enterrados em aldeias abandonadas, Um fator prético intervém na escolha do Iugar para cada enterro, a saber, o nimero de portadores dos despojos, por sua vez decorrentes, como veremos, da extensio da parentela e da munificéncia dos “donos do luto”: se forem poucos os portadores, (20) Antigo nao sb entre os Krahé: Pohl, que conheceu vérias tribos timbira em 1819, menciona um enterro secundatio no cemitério entre os Poracameeris (J. E. Pohl 1951 (1837):155). Também os Canela {é dis- Punham de cemaitério quando Nimuendaju esteve entre eles (Nimuendaju 1946:195). (21) Lembremos que 6 costume dos regionais isolados em fazendas © de se enterrarem as criangas atrés das casas. 35 adotar-se-4 0 lugar de enterro mais proximo dentre as opgdes possfveis. Se, por uma parte, estas localizagbes diversas se esclarecem mediante a compreensio da linguagem espacial krah6, por outra parte, elas refletem o esforgo de traduzir, de investir em um enterro tinico imposto pelos neobrasileiros, © simbolismo dos dois enterros consecutivos de tradigao anterior. Sabe-se, com efeito, que os Krahé praticavam 0 enterro secundario: algum tempo depois da primeira inumacao, desenter- ravam-se os despojos fiinebres. Os ossos, limpos e lavados, eram pintados de urucu e novamente inumados. Nem todos pareciam ter acesso ao enterro secundétio, reservado provavelmente aos homens iniciados ¢ as mulheres associadas aos ritos de iniciagio ou a grupos masculinos (witi) {Os esforgos missiondrios ¢ a influéncia dos regionais parecem ter-se concentrado em doi cavalos de batalha, o Iugar da inumagio e 0 enterro secundai A importancia que thes foi dada mereceria um estudo em si que esclareceria talvez nossa prépria atitude com os mortos. B dificil, nas informagdes atuais, tragar a fronteira entre a realidade e 0 modelo. Teriam os Krah6, por exemplo, enterrado seus mortos dentro das préprias casas? Diversos informantes no-lo afirmaram, enguanto outros situavam o primeiro enterro atras da casa materna. Embora suscite reservas, a primeira informagao nio deve ser rejeitada sem maiores consideragdes: um informante geralmente fiel declarou que, antigamente, um homem casado se enterrava dentro da casa de sua mae; outro afirmou que se fazia a sepultura dentro da casa, no lugar em que o morto costumava dormir; outro enfim, que néo mencionou o lugar do primeiro enterro, afirmou no entanto que se desenterravam os ossos que, depois de lavados e pintados, eram novamente inumados ao lado do primeiro buraco, Ora o lugar da segunda inumagio, exceto para personagens de destaque, era dentro da casa. Temos ainda o testemunho do pastor batista Zacarias Campelo que esteve entre os Krahé a partir de 1926 e que declara que a crianga é enterrada dentro de casa e que os pais dormem sobre seu sepulcro (Z. Campelo 1957:52). Enfim, um outro grupo Jé, onde nao consta que exista o enterro secundario, os Suy4, pratica um enterro dentro de casa, no Iugar onde o morto dormia ou perto da porta, a ndo ser para os chefes e seus filhos ¢ filhas que séo inumados no patio (informacao pessoal de A. Seeger, junho de 1973). C, Nimuen- daju, no entanto, sé menciona enterros primérios atrés da casa, que 0s Krah6 teriam mantido até 1930, no caso de morte de crianga (C. Nimuendaju 1946:134), 36 a E possivel que, sendo o enterro secundério concebido como enterro no sentido préprio, os informantes se refiram a este, desde que néo sejam interrogados sobre enterros especificos. Talvez a jaumagio priméria fosse atrés das casas e s6 as duplas exéquias permitissem trazer os despojos para dentro de casa. O testemunho de Z. Campelo se explicaria entiio pelo nfo acesso das criangas a0 enterro secundério e sua conseqiiente inumagdo na casa, Ao nivel do modelo, duas ordens de consideragdes atuam na localizagio espacial do cadaver. Enquanto tal, ele é um morto, € como morto opée-se aos vivos como 0 exterior ao interior, Mas © morto tem por sua vez dois aspectos: por um lado ele foi membro de uma casa ou, mais apropriadamente, de um segmento residencial, onde desenvolveu ¢ tramou o que chamarfamos suas atividades privadas (que envolvem, além da produgio agricola e da reproducio, a sua vida faccional); por outro lado, ele foi eventual- mente um personagem piiblico, isto é, investido de valores da sociedade como um todo. Este duplo aspecto de todo Krahé acha-se inscrito no solo da aldeia, cuja forma circular afeta a vida piblica do patio central e a vida privada ao circulo das casas. Ou seja, se jegarmos agora apenas a aldeia como espaco de referencia, famos que a vida piiblica esté para a vida privada como o interior a0 exterior, O circulo das casas ocupa portanto um lugar intermédio no espaco ¢ no pensamento. Por um lado, esta para 0 P&tio central como a vida privada para a vida piblica, como o Particularismo faccional para o universalismo comunitério. Por Outro lado, ele se insere na aldeia, no mundo socializado, por 9posicio ao espaco exterior, ao cerrado envolvente, isto é, 20 ttundo natural. Nesse sentido, a circunferéncia das casas é um Umite, uma zona de transicio, pois embora participe da sociedade, € através dela, através das divisdes faccionais, que seguem geralmente os contornos dos segmentos residenciais, que a comunidade é vulnerdvel, é por ela que se rompe. Potencialmente disruptiva da ordem social mais ampla, essa zona ambigua, perigosa, que é a zona doméstica, também contunde © claro limite, a exclusio miitua, que deveriam existir entre as categorias vivos/mortos: assim os lagos de familia sao vistos como tesistindo A expulsio do morto, Nesse espaco de transi¢ao entre © dentro eo fora da aldeia, cometem-se traigdes & sociedade, cede-se seducaio dos lacos de sangue com os mortos, tenta-se guardar 0 cadaver perto de si. A ligagao da casa ao aspecto mais propriamente individual do homem reflete-se aqui na ligagio da casa com 0 organismo morto, manifesto na tendéncia dos consangiiineos de guardarem os mortos perto de si, em sinal de afeto: talvez 37 convenha, adiantando-nos sobre o que serd laboriosamente discuti- do no capitulo VI, explicar a distingdo que est4 subentendida. Tradicionalmente os cadavares teriam sido passiveis — com 0 perdio do trocadilho — de decomposicao: eles seriam pensados separadamente como sangue, que veicularia algo como uma “forca vital”, © como ossos, que ‘remeteriam & nogio de personagem social, de “persona”; esta tiltima permanecia além da morte, como permanecem os ossos, enquanto a primeira se exauria com 0 sangue. Na pritica do enterro secundério, manipulavam-se 0s 0550, a “persona”, isto 6, de certa forma, algo depurado, perene, do qual se exorcisava a morte. Esses ossos eram portanto assimiléveis, recuperdveis pela sociedade, Ter de resumir em um tinico enterro os dois enterros tradicionais significou provavelmente ter de lidar a0 mesmo tempo com individuo e personagem. Cremos que, tivessem os esforgos missiondrios incidido apenas sobre a interdigo do espaco habitado pelos vivos como lugar de enterro primério, néo teria sido dificil aos Krahé adotarem um outro espago ‘simbolicamente correspondente ao tradicional para enterrarem seus mortos. Mas coibindo ao mesmo tempo a pratica do enterro secundario, isto 6, a possibilidade de dispor separadamente do que remetia ao individuo ¢ do que remetia a “persona”, deve ter colocado problemas mais sérios na escolha de equivalentes I6gicos para o espaco dos despojos, Daf talvez advenha a sensagio que temos de estarmos em presenca de tradugSes parciais, aproximativas, nas escolhas atuais dos locais de inumagio. Tentemos explicé-las. © espago mitico, diz Cassirer, est4 a meio caminho entre 0 ‘espaco da percepgio ¢ 0 espaco geométrico. Como o primeiro ele ignora a homogencidade ¢ desconhece a distingdo, subjacente & construgiio do espaco geométrico, da posi¢ao ¢ do contetido, Como no segundo, no entanto, ele constréi uma linguagem, um sistema “por cuja mediagdo os elementos mais diversos, elementos que & primeira vista parecem irredutivelmente incomensurdveis, podem ser postos em relagio um com o outro... Todas as espécies variedades de coisas tém seu lugar algures no espaco, ¢ sua absoluta estranheza reciproca € deste modo anulada” (E, Cassirer 1967 vol. 11:85, 87). ‘Assim, os sistemas de metades krah6 no se sobrepdem, isto 6, cada par recruta seus membros com seu critério especifico, ¢ no entanto em cada sistema, uma metade esté para a outra como 0 Teste est para o este. © mesmo pode ser dito de cada oposigio, de homens e mulheres, sol e Iua, seco ¢ molhado... que sempre podem ordenar seus termos no eixo espacial leste-oeste. A ligagio 38 r ‘entre cada termo e uma diregdo cardeal ndo € porém intrinseca, conforme veremos quando tratarmos da escatologia: quando se ‘opdem os vivos aos mortos krahé, estes so associados a0 oeste ¢ aqueles ao leste; quando porém se opdem mortos krahé a mortos ‘estrangeiros, os mortos krahé sfo afetados ao outro pélo do eixo, a saber 0 leste (cf, capitulo VII). Dois pélos bastam, no pensamento krahé, para ordenar o espaco e servir de referéncia para as outras oposigses; sfio os dois pontos cardeais, 0 leste © o oeste, enquanto 0 norte 'e o sul nio recebem denominagio diferenciada e so ditos apenas “lados”, sem major relevancia para a orientagdo, Talvez seja esta projegiio sobre um eixo tinico de todas as oposigdes que leve ao paradoxo da cosmologia krah6: como entre os Dogon do Mali também, a terra é tida por “deitada” ¢ no entanto o leste é dito estar para cima, Servindo pois de linguagem universal, ligando dominios diferentes da realidade, o oriente se opde ao ocidente como a as trevas, o sol A lua, o cima ao baixo, o dentro ao fora, 0 patio da aldeia ao circulo das casas, a aldeia ao territ6rio que the & exterior, os vivos aos mortos (22). E em cada situagdo, em cada espaco diminuto, cada par de elementos oponiveis, termo melhor que “opostos” jé que a oposi¢ao é contextual, nao absoluta, cada par, diziamos, toma seu lugar como que “naturalmente” por Teferéncia A oposicao leste-oeste. As mulheres iro se postar a oeste do pitio, quando forem cantar e os homens dangario entio a Teste: pois, como diz ainda Cassirer, “nfo importa o quanto dividirmos, encontraremos em cada parte a forma, a estrutura do todo” (E. Cassirer 1965, 11:88-89). Assim, na aldeia circular, 0 ptio é leste e as casas sto oeste, como se a periferia se abrisse, ‘como sugeriu Lévi-Strauss (1958 [1956]), em um segmento de reta, No entanto, tal imagem seria firmemente recusada pelos Krah6 que nfo véem incongruéncia alguma entre associar uma circunferéncia ao ocidente e seu centro ao oriente. ‘Vimos portanto: os mortos so de fora da aldeia, de sua periferia, do ocidente. O enterro primério colocava-os antigamente atrés ou dentro das casas. Possivelmente aqueles cujas ossadas iriam para o patio fossem inicialmente enterrados na frente das casas, no lado interno do caminho circular, como entre os Canela (C. Nimuendaju 1946:98) ou entiio no lado oeste do patio (J. C. Melatti_1970:48). Pressionados para que abandonassem estas inumagées, os Krahé instalaram seus cemitérios naturalmente a (22) E até, fato que nos pode surpreender, os dois outros pontos cardeaisalinham-se seguatlo em oposicdo: assim, como me lembrou Melati, © norte esté associado ao geste ¢ 0 sul 20 leste. 39 este, Mas a aldeia abandonada era uma altenativa l6gica vidvel: era exterior a0 espaco circunscrito pela nova aldeia, e no entanto era © substituto das casas maternas ou do patio, que nfio mais podiam abrigar os despojos, Outra alternativa enfim era a de substituir a casa pelo espago que fica atrés delas, j4 que as casas se opdem ao patio como o espaco externo se opde a aldcia: conciliavam-se assim um tanto canhestramente a ligago do morto com a casa e sua exterioridade em relagao aos vivos. A refeigao péstuma Como entre os Canela ¢ os Apinayé, se 0 morto morreu com fome, apés ter passado por varios dias de agonia, sem comer, seu karé ba de vit pedir por intermédio de um curador, uma wltima refeigio. Podera, nesta ocasido, encomendar o cardépio de sua preferéncia: berubu (23) de macaxeira, peixe, paca, veado, arroz, sem esquecer 0 fumo tio apreciado, Ou entéo o proprio curador ir propor ao kard uma refeigao tentadora. © preparo desta refeicdo péstuma compete & casa do luto que seré normalmente a das consangiiineas. Novamente torna-se relevante, no caso de um homem, o estégio no ciclo de desenvolvi- mento do grupo doméstico e a proximidade dos consangiiineos de que ainda o morto dispunha, Se sua vitva ainda estiver de luto na casa dos seus afins, ela participaré do preparo da refei¢io. Consangiiineas de outras casas poderdo ajudar, fornecendo carne (vide p. ex. Melatti 1970:208, caso Pedro Colina). A tefeigao nunca € oferecida dentro de casa, mas atrés, no espago exterior que assenta aos mortos. L4 € armado um jirau onde se dispée o berubu, o cigarro, o arroz, 0 copo de dgua. Enquanto a familia temerosamente se agrupa dentro de casa, 0 curador vai convidar o karé para o banquete. Em breve se 0 ouve chegar tocando o périakhé ou o kukhonré (instrumentos musicais) a seu modo caracteristico, e em seguida, abrir as folhas de bananeira selvagem (pacova) que embrulhavam o paparuto: os parentes ento nfo mais contém o choro. Quando o morto se afasta, as pessoas “de fora”, essencialmente as mulheres, vém pegar a comida, pois 0 kard sé consome o (23) Berubu: o mesmo que “paparuto” ou Khwérgupu, designa uma grande. panqueca de massa do! masilioea recheada de carne ou do pelxe e assada, envolta em fotha de banancira selvagem (pacova), em fomo de pedras quentes. & a comida cerimonial por exceléncia, 40 karé dos alimentos e nao altera seu suporte fisico (24). Os da casa nfo tocam nessa comida, nem no cigarro deixado no jirau, Allés o cigarro jé privado de seu kard se consome logo, “nao vale a pena”, A Siltima refeicfo, embora assinale, como acentua J. C. Melati (1970:211), um derradeiro cuidado com o organismo, néio supde entretanto a comensalidade do grupo doméstico. O morto é excluido, relegado ao espaco que Ihe cabe, o exterior. A partir desta tinica refeicdo péstuma que satisfaz uma fome que nio fora saciada em vida, o morto nfo poder fazer outras exigéncias sem extrapolar seus direitos. Note-se que também lhe 6 negado o leito conjugal. Os pés do seu jirau foram possivelmente cortados, seu espago doméstico serd desertado. Nem comensal, nem esposo e pai, 6-Ihe significada, em suma, a sua inexisténcia no grupo doméstico, Seu lugar doravante deverd ser entre os mortos, seus pares, (24) Nossos informantes nfo concordam com o de Melatti (1970: 209) segundo 0 qual o curador consumiria, como recompensa de seus servicos, a comida sem alma deixada pelo morto, Seu convivio com os mekar6 livriclo-ia dos riscos dessa comids. Os dados semelhantes cancla @ apinayé (C, Nimuendaju 1946:195 e 1939:152) em que o paparuto é dethbulda ‘no pit potas infcrmagses. goo soa Tea Seder 4 CAPITULO TIL A Repartigéo dos Papéis Funerdrios e 0 Luto Tendo descrito as exéquias em algum detalhe, cabe agora analisar a reparticgo dos papéis, Max Gluckman’ (1937:119) apontou que 0s costumes mortuérios reconstituem relagées alteradas por uma morte: nfo s6 as dos sobreviventes com o defunto, mas também a dos sobreviventes entre eles, por exemplo a de afins que perdem o elo que os unia, Um funeral é portanto algo diverso para cada parente, ou melhor para cada grupo de parentes envolvidos, e isto fica especialmente claro diante da assimetria que se manifesta entre o enterro de um homem ¢ o de uma mulher, assimetria que decorre do sentido em que transitam as prestagoes matrimoniais. E portanto no quadro geral destas prestagdes que entenderemos a atribuigGo das tarefas fiinebres, ¢ em particular o papel dos afins nas exéquias ¢ no luto. Esbogo do sistema de prestagées matrimoniais Embora nem sempre possam fazer executar o que consideram Ihes ser devido, os Krah6 mantém uma contabilidade minuciosa das prestagées matrimoniais. Ha que distinguir preliminarmente a divida de um homem que casa com moca virgem (1) da do esposo de mulher jé deflorada. A diferenga considerdvel, pois aquele que tomou por mulher uma virgem € de certa forma um eterno devedor: esperam- -se dele prestacdes infindas, a medida que as puder fornecer (2). (1)_A virgindade da jovem esposa é atestada pelo vermelho de ‘urucu com que a sogra a tinge, apés consumado o casamento. (2) Néo entraremos aqui no detalhe destas prestagées, a nfo ser as que concernem as exéquias eo Juto. Para que se tenha apenas idéia de sua {mportincia, mencionaremos 0 caso de Hapéro que, durante os quatro ou cinco anos que esteve casado, deu cinco espingardas a seus afins, das quais 42 Nio existe uma prestacdo inicial estipulada, mas 0 que se considera © “total” da divida é imediatamente exigivel somente em caso de ruptura do casamento e, no caso de morte de um dos cOnjuges, no fim do luto do vitivo (3). Daquele que esposou mulher “j4 mexida”, fosse ela solteira, vitiva ou separada, as prestagdes matrimoniais podem reduzir-se a pouca coisa e ficar latentes até A ruptura ou ao fim do luto, excetuando-se obviamente 0 concurso cotidiano que o genro fomnece, na caca e na agricultura, a casa do sogro, A importincia das prestagdes dependerd de ter tido o casal alguma descendéncia, e nesse caso o marido pagar4 consideravelmente mais, reduzindo-se as prestagdes a bagatelas se o casamento tiver sido estéril. A divida matrimonial, embora recaia sobre 0 esposo em primeiro lugar, exige amitide a contribuicfo de seus parentes bilaterais, tidos como igualmente responsdveis, principalmente em caso de ruptura. Regras e generosidade Quando iniciémos nossa pesquisa, procurémos saber as injungGes te6ricas € reais na determinago dos coveiros e paramen- tadores do cadaver. A partir do conhecimento que tinhamos de certos casos concretos, formulévamos as perguntas em termos de relagdes de parentesco, consangiiineo ou por alianga, ¢ obtivemos © conjunto mais disparatado possivel de respostas. Visivelmente a designagao nio era feita nesses termos, Depois de muito tatear- mos, uma observagao do chefe de Pedra Branca colocou-nos em pista mais fecunda. Ao Ihe perguntarmos quem haveria de pintar © corpo e cortar 0 cabelo de Kotoi, ele declarou: “Se os parentes sovinarem, so as filhas mesmas que pintam ¢ cortam o cabelo, Se alguém quer ganhar alguma coisa, pede para as filhas licenga de fazer a pintura, lavar e cortar 0 cabelo”, A pattir daf, comecamos a fazer a exegese, com um informante, de todos os funerais de que ele e eu t{shamos noticia, detathando a razio da escolha ou da rejeigio de cada ator Juma coube a0 Ime e as outras a0 sogro que as redistribuiu entre seus Parentes, vendeu ou guardou para si. (8) Lembremos que, se morrer o marido, a viva, ao ser “despa- chada” ‘pela familia do marido, tem direito a receber consideriveis pre- sentes, 43 teoricamente possivel, e s6 entdo, finalmente, os princfpios de designacdo se esclareceram. Sabemos que os servicos funerdrios contam entre as prestagdes matrimoniais exigiveis de um afim. O uso deste direito € no entanto alterado pela interferéncia de outro principio, o da generosidade, que constitui uma, seno “a” virtude cardeal krahd. Ser hdtxén, generoso, compete em particular aos chefes ¢ aos Bovernadores, pois a generosidade é fonte de prestigio entre os Krahé como em tantas outras sociedades, como jé ¢ sobejamente conhecido desde Mauss. Seu antdnimo, hdtxé ou hotxékti significa 0 mesmo tempo ser avaro ¢ “ruim” ¢ é um termo injurioso (4). A avareza 6 caracteristica dos feiticeiros que derivam seu poder da intimidagao. Ora, a generosidade manda que se recorra aos estranhos, aos de fora, para as tarefas funerérias, e estes tém o direito de exigir em pagamento qualquer coisa que desejem. E o que leva Provavelmente o pastor batista Zacarias Campelo a escrever com uma indignacio contida: “O coveiro contrata o enterro para realizar a tarefa sozinho, ficando como ‘inico e universal herdeiro do morto, mesmo que se trate de pai de familia que deixe vidva, filhos ¢ um espolio composto de lavoura e criagdo” (Z. Campelo 1957:54), Possivelmente a situagio ideal ramkokamekra, isto é, em termos da generosidade almejada, nfo diferiria muito da que descrevemos, Segundo Nimuendaju, quando morria um homem, 0 chefe perguntava no patio quem se dispunha a cavar o buraco ¢ 0 Voluntério tinha direito de tomar para si um ou dois objetos pertencentes ao morto (C. Nimuendaju 1946:134 e 158) (5). Quanto 4 decoracio do corpo, competia entre os Ramkokamekra aos amigos formais, igualmente recompensados, mas nfo com pertences do morto (Nimuendaju 1946:134 e 102). (4) E hot’ a aldeia que se abstém de convidar outra para uma festa oa que, convidando-a, reserva as mulheres livres ( — sole teiras, separadas ou vitivas) ‘para seus préprios homens. S4o hdteé também a mulher que se recusa a um , 0 homem que nfo cede aos immios de ‘sua esposa tudo o que estes Ihe pedem. De um modo mais geral, recusar tum podido ov solictagio 6 enusar pam, neste contete,“vergonha”, humilhagio a0 solicitante, sendo portanto repreensivel, (5) Nimuendaju menciona que o voluntério néo podia pertencer & metade exogimica do defunto, Esta informacio deve ser considerada com reserva, desde que os pesquisadores que sucederam a Nimuendaju nao parecem ter encontrado tais metades. 44 eae “Sovinar” nos funerais, como em qualquer outro ritual (6) & pois “ficat entre si”. No entanto hé a isso certas limitagdes. Enquanto a lavagem ¢ ornamentagio do corpo podem ser feitas pelos consangiiincos, a estes 6 vedado cavar o timulo e carregar © morto para enterré-lo. Podem para estas tarefas, e se persistirem em sua avateza, recorrer aos seus devedores, ou Seja aos homens casados com as consangiiineas do morto. As exéquias assumem esse caso conotagio familiar: recorre-se aqueles que, por pertencerem ao cfrculo dos consangiifneos ou the serem devedores, nGo exigitio pagamento (fotos 4 e 10). Segue-se do que acabamos de descrever que, se enterrar os parentes de sua esposa faz parte das prestagées matrimoniais do marido, este f4-lo-4 somente quando for solicitado pelos consan- giiineos e dai decorrem algumas das anomalias que registramos no comeco de nossa pesquisa. Outras provém da estrita contabilidade que j4 mencionamos e que registra ciumentamente todas as prestagdes: quando morreu Kairite, menino de seus oito anos, seus pais pediram a Chico Novo que cavasse 0 buraco. Ora, Chico Novo era um afim relativamente distante, marido da filha de uma irma da mie do morto, isto é de uma irma classificat6ria, enquanto havia na casa o recém-casado esposo da irma do menino, Mas a este nada foi pedido porque ele havia casado com uma virgem e iria ter portanto de pagar muito mais: nao queriam os consangiifneos que ele pudesse se valer dessa prestagéo para se eximir de sua divida, se largasse a esposa. Seus temores no eram infundados: Romré, casado com a irma de Yayé, pretextou ter feito a cova do filho deste para no pagar nada ao abandonar a mulher. Verdade era que esta jé andava em seu terceiro casamento. Hé uma diferenga nas exéquias de um homem e de uma mulher pois as prestagées matrimoniais sio num sentido s6: da parentela do marido para a parentela da esposa, Assim, se houver morrido um homem, seus parentes podem pedir a vitiva de o lavar ¢ adomnar e a consangiiineos desta de fazer a cova e enterrar 0 defunto, Neste caso, a divida dos parentes do morto em relago ao grupo que Ihes forneceu mulher aumenta em virtude desta prestagio de servigos funerdrios: em conseqiiéncia, no fim do luto, a ser (6) Em muitos rituais, parto, iniciagSes ete., existe a possibilidade de alguém, estranho a0 circulo familiat, se oferecer para executar um ser- vigo pelo qual exigiré um pagamento substancial que néo lhe poder ser negado. Assim uma mulher idosa pode se oferecer para receber ¢ cortar 9 cordso umbilical do um reoém-nascido. Assim também sio pestoas de fora que vém lavar os parentes do morto depois da safda do corpo. 4S liberta a vidva, ela receberd um considervel acrésclmo de presentes, Do mesmo modo, mas com implicagdes inversas por causa da divida matrimonial anterior, se tiver mortido uma mulher, a familia poderé pedir aos parentes do vitvo de se ocuparem dos funerais, Cuidario estes de todos os detalhes, desde a coleta dos ingredientes para a pintura ou para uma eventual empenagio, tratando de abrir a cova e enterrar 0 defunto, O marido no entanto no participa: considerado por um lado muito proximo da morta para poder enterré-la, também nao Ihe compete a pintura corporal, reservada as mulheres. No entanto, através da participa- a0 de sua parentela nos funerais da esposa, acha-se eximido de boa parte da prestago que, fossem outras as circunstancias, deveria pagar ao ser levantado seu Iuto, Quando a familia do viivo(a) assume assim os encargos dos funerais, deveré também participar do luto, abstendo-se de festas e ornamentagdes, Deve-se lembrar que a observancia do Tuto € outra prestagdo matrimonial que incumbe 20 vivo ou 3 viva e cuja quebra & severamente sancionada, No enterro de uma crianga que ainda no tem seus préprios in laws (7a), outras familias (kindreds) que tenham com a casa do morto um lago de afinidade, e em primeiro lugar os maridos de consangiiineas podem fazer uma presiacio funerdria a pedido ou com o consentimento dos pais do morto (7). E 0 caso por exemplo do enterro do filho de Yayé, Além de Romr6, EiP (do morto) j4 mencionado, Wagapi, casado com uma filha de Yayé nao s6 ajudou Romré a cavar o buraco, mas sua mie ainda pediu para lavar e pintar 0 corpo, “poupando o dinheiro do filho” segundo a expressfio elucidativa de um informante. Pouco depois, Wagapi abandonava a mulher sem outras indenizagdes, pois ela nao havia casado virgem ¢ dela nao tivera filhos. Entendemos assim a posteriori outro erro nas nossas primeiras indagagdes: sempte perguntavamos a ligacdo entre os coveiros paramentadores do corpo com o defunto ¢ ndo consegufamos descobrir qualquer consisténcia nas respostas. Ora, os mecanismos que acabamos de descrever evidenciam que a relagdo pertinente no & necessariamente com o defunto mas com uma familia, (7) A propésito dos funerais de uma crianga, obtivemos dados inte- ressantes. Se se tratar de um menino, pedir-se-4 ao seu nominador de o empenar, como 0 teria feito nos rituais de iniciagfo, Assegurou-nos entéo um informante que, antigamente, era sempre o nominador quem empe- nnava 0 corpo. (Ta) Vide nota (9) & pig. 51. 46 Enfim, como vimos acima, a generosidade maior consiste em se recorrer, para as tarefas funerérias, a completos estranhos que poderio exigir retribuigdes que, em outros contextos, seriam tidas por exorbitantes. O Krahé oscila entre a avareza © a generosidade funerdrias e na mesma familia, cada funeral poderé ser tratado diferentemente. Em geral, os parentes atém-se a uma generosidade sem excessos, mas seu prestigio esté em causa: assim, na familia da esposa do chefe de Pedra Branca, de dois enterros de homens maduros, um foi generosamente e outro parcialmente confiado aos parentes da esposa, enquanto um enterro na casa de um feiticeiro foi assunto puramente doméstico, pois como vimos, 0 prestigio de um feiticeiro independe de sua generosidade, Podemos entender agora porque .a pergunta formulada ericamente da reparticfo das tarefas funerdrias suscita dois ‘os de respostas, ambas paradoxalmente enunciadas como “regras”. Se o informante se colocar na perspectiva das proibigées, ¢ adotar portanto a definicdéo minima, ele hé de afirmar que os consangilineos ornamentam e iwawé, homens que receberam mulheres consangiifneas em casamento, enterram. Se se colocar na perspectiva de aciimulo de prestigio pela generosidade, tal como significativamente 0 fizeram os chefes de Pedra Branca e de Pedra Furada, dira que qualquer um “de fora” pode ornamentar ¢ enterrar o cadaver. Um principio conceptual e problemas para um estudo comparativo entre os Jé Vimos, até agora, como as prestagdes matrimoniais afetam a escolha dos incumbentes dos papéis funerérios, ¢ as manipulagées a que dio ensejo as consideragdes conflituosas do prestigio ¢ da avareza. Porém, a0 nivel ideolégico, hé um certo principio bésico, uma determinagio minima, que poderfamos esperar fosse evidenciada através de um estudo comparativo das tribos Je. Maybury-Lewis descreveu, com efeito, as sociedades Jé centrais ¢ setentrionais como “variagdes sobre um mesmo tema sociolégico” (D. Maybury-Lewis 1967:303) e desprezou as clissicas taxono- mias baseadas nas terminologias de parentesco como sendo irrelevantes (D. Maybury-Lewis 1969). Metodologicamente, esta hipétese bésica tem implicagdes importantes: se a aceitarmos, poderemos considerar que todas as variagdes — € sio muitas — 41 que as tribos Jé tecem sobre a atribuigio das tarefas fdnebres correspondem a um mesmo principio subjacente, diversamente atualizado, As sociedades Jé ofereceriam entfio um campo propicio para os estudos comparativos tal como Lévi-Strauss (1958 [1956]) 0 definiu: ao mesmo tempo suficientemente préximas para tetmos certeza de estarmos tratando de fenémenos compardveis, elas so a0 mesmo tempo suficientemente diversas para que no recaiamos sempre no mesmo fenémeno. Ora, & excecio talvez dos Apinayé (8) e dos Xerente, parece ser uma constante das sociedades Jé sobre os quais possuimos documentagio, a divisio dos servicos fiinebres nas primeiras exéquias em lavagem e ornamentacio do cadaver por uma parte , por outra, escavagdo da cova, remocio do-corpo e enterro. Infelizmente 0s grupos funerérios ¢ os mecanismos de seu recrutaménto foram desigualmente estudados nas tribos Jé. Seria necessirio conhecer, antes de mais nada, as “proibigGes de acesso” as tarefas fiinebres. Assim sabemos que entre os Krahé os consangiiineos tém acesso 2 émamentacZo mas nfo A remocio abertura de cova. Depois destas regras negativas, viriam as , regras prescritivas ou preferenciais, Na realidade, os dados de que dispomos para as sociedades Jé nio distinguem estes niveis, tomando dificil a comparacio. ‘Resumamos esses dados em um quadro (pég. 49). Deparamo-nos, diante destes dados, com uma série de dificuldades: discrepancia nos coveiros entre Xikrin ¢ Gorotire, imprecisio dos dados Xavante e esta outra “anomalia Apinayé” que j4 mencionamos. Se, no entanto, trabalharmos com as proibigdes, excluindo portanto o problema da generosidade, talvez possamos afirmar, desprezando os dados Gorotire, que uma constante € os coveiros € removedores no poderem ser consangiiineos. Os coveiros sio conceptualmente “os outros”, “os de fora”, e os genros tém naturalmente uma posi¢ao privilegiada j4 que, para uma familia, sio dentre os distantes os mais prOximos, estrangeiros’ que se encontram “2 mio”. Com efeito, em todas as sociedades Jé, entre essas duas categorias, consangiiineos ¢ afins, a uxorilocalidade introduz uma assimetria: o homem vai para a casa do seu sogro, posta) do ola do sociado na culino) ¢ Ef defunto narkioa (ase metade 4 E do cli (definigao -Lewis 1967: | minima) (Ego mas- Krahé (nfo séo deta-| soow? -Ei Ihadas quais as| Xavante (Maybury- 281) criangas: (visto) pessoal A. Seeger, who 1973: ‘de fora Suyé (comuni- cago ? 8 (Le Vidal ‘mend Kayap6- 1972) consangii categoria -Xikrin ( (nfo irmio) ou| de idade (nunca o amigo| neas afim (p. 390) formal que no| omamenta em vida) n. 2) (T. Tumer 1966) consangiiineas ‘entanto é quem cova: amigo | consangiiineos Nimuendaja | -Gorotire 1989 ¢ R. 1970: 191) formal remoetio: qualquer pessoa (Nimuen- daju) da Matta amigo formal (isto 6 8) C. Nimuendaju (1939) menciona que tanto a omamentagio do cadaver como a cova eram feitag por um amigo formal, mas que qualquer pessoa podia remover o corpo da casa, & possivel que estes dados, como outros dados Apinayé, tenham de ser verificados. /Ramkokame- | Apinayé (C. | Kayapé- pessoa “de mediante retribuicéo) | 1946) amigo formal qualquer translado | pessoa Paramen- ‘tagio cova 48 dos irmios da esposa e suas principais obrigagdes reverterfo, dat por diante, para esse grupo que the é alheio, sendo hostil. Entre os Xavante, onde 0 faccionalismo intenso que opde os clas patrilineares exacerba esta oposi¢ao, o homem que de sua “como um. Maybu Retirado assim do meio do: consangilineos pelos seus in-laws, o marido pode por sua vez arrancar, da casa de proctiagdo, os parentes da esposa quando estes morrerem, € quem assistiu & remogdo de um cadaver krahé © & batalha que ela suscita entre consangiiineos ¢ coveiros percebera como 0 antagonismo dos “de dentro” ¢ dos “de fora” pode se manifestar, Talvez isto aponte também para a ruptura, a cisio total entre mortos e vivos, Os mortos sio “outros”, arrancados aos seus por estranhos, seus semelhantes, ‘Nao, se enterram os proprios mortos, nao se casa com as préprias ‘irmas: foi Goody quem melhor assinalou a analogia funcional que existe entre a alianga e o que ele chamou as “amizades funerérias” (funeral friendships). Como a proibi¢io do incesto: que, pela renéncia ima, instaura a cultura (L.-Strauss 1949), a proibigdéo de enterrar seus prOprios mortos exige 0 estabelecimento de lagos sociais fora do.circulo estreito da parentéla (Goody 1962:64-65). E curioso observar que, dentre as tribos do Brasil Central, 0s Bororo parecem ter explicitado melhor estes dois focos fundamentais da sociedade. Assim J. Chr. Crocker (1967:108) escreve, referindo-se aos atributos que definem “ser Bororo”: “Conta-se que antes. de seu advento (das instituigdes Bororo), os Bororo eram como os bichos ¢ os outros indios, guerreando entre si, “deixando seus mortos apodrecerem na mata” e “sem vergooha” nas suas atividades sexuais, copulando até com as préprias irmis”, Se, funcionalmente, a proibi¢io de enterro é passivel da mesma explicagio que a proibigao do incesto, também o so outras telagdes sociais que Radcliffe-Brown (1952 [1940]:102) chamou de “consociagio” por oposicdo as “relagdes contratuais”, Na tealidade, como Mary Tew (aliés M. Douglas) (1951:122) Tembrou hd duas décadas, trata-se, desde Radcliffe-Brown, de desenvolver uma teoria da amizade entre grupos separados ou pessoas pertencentes a grupos separados. Mas enquanto a anélise funcionalista ou se detém nestas consideragées gerais ou detalha © modo de inserg&o das instituigdes de amizade em cada sistema social, ua incidéncia e modo de atribuigdo especifica, o problema que nos iré interessar mais adiante (capitulo V) é 0 de uma teoria da amizade enquanto modo de se pensar a alteridade ¢ conseqiientemente de se colocar a identidade, 50 , Os enlutados e 0 tempo do luto Iuto difere em natureza segundo os grupos sociais que 0 observam: obrigatério para os consangiifneos, ele é de certa forma contratual para os afins, ou mais precisamente os inlaws do morto (9). Para estes, observar Tuto pode ser uma prova de afeigiio pelo defunto ¢ sua familia, mas nunca deixa de ser concomitantemente um ato de solidariedade emocional e econémica pata com o vitivo, membro do kindred. Observar 0 luto com ele é, conforme vimos acima, reforgar-Ihe uma prestagao matrimonial. © luto tem uma duragio varidvel determinada pelos consangiiineos e finda com uma ceriménia que pode ou nao, em condigdes que detalharemos, ser acompanhada de uma festa, Este ritual marca a reintegragio na vida cerimonial de todos os consangilineos © idealmente, do vitvo(a) que s6 entio é “despachado”, podendo contrair novo casamento. Em nenhum caso, contrariamente 4 informacio dada a Melatti (1970:205) prolongavam os consangiiineos © luto além. deste ritual. Quanto a0 cénjuge sobre o qual pesam as mais soveras restrigdes, € pouco freqiiente que ele o observe até ao fim e terd, por esta infracéo, de oferecer, se for homem, um pagamento suplementar aos consangiineos, e se for mulher, abandonar a pretensdo a qualquer presente por parte destes. © luto € claramente dirigido pelos consangiiineos do defunto ¢ ligado a sua casa natal. Assim a vidva mudar-se-4 com seus filhos para a casa de sua sogra, E esta, juntamente-com os casos de doenga do marido ou sua eventual auséncia da aldeia, a ocasiio de uma virilocalidade provisria. Embora, em cada um destes casos, © propésito explicito seja 0 controle da castidade da esposa pelos consangitineos do marido, na prdtica o tempo que 1a ira ficar varia inversamente com o incémodo que ocasiona. Por outro lado, nao se pode contar com a abstinéncia sexual das mulheres: “elas no agiientam mais luto; pintam-nas e despacham-nas no mesmo dia do enterro”, foi o comentirio desabusado de Pend. Além disso, mais uma vez a generosidade dos consangiifneos € posta & prova, pois uma vitiva que permanece casta até ao fim do Into deveré receber considerdveis presentes. Assim se 0 defunto nio tiver consangiiineas suficientemente proximas dispostas a (9) Na auséncia de termo melhor, chamo de “in-laws” aqueles afins que ego adquire através de seu proprio casamento, & exclusio do de algum Parente seu, 51 a er as acolher a vitiva, esta seré imediatamente liberta do Iuto (10). Um Compromisso que poupa as suscetibilidades dos consangiiineos excluindo 20 mesmo tempo a vitiva do grupo dos enlutados é o levirato, ou mais precisamente 0 casamento com um consangiiineo do defunto (11). Enquanto o Iuto da vitiva é mais um penhor que exige. nova Prestacdo por parte dos seus afins, o Iuto do vivo deve ser entendido como uma prestacdo matrimonial, e como tal varia com 0 tipo de casamento, a existéncia de filhos ¢ 0 saldo das prestagdes anteriores. © vitivo com filhos pequenos, sobretudo se tiver casado com virgem, continuard na casa dos sogros, trabalhando para eles Por longo tempo — teoricamente até os filhos atingirem uns dez anos — sem poder casar nem sequer namorar na vista de consangilineos de sua finada esposa (12). Quando finalmente for edespachado”, no momento do fim de luto, deixaré na casa seus filhos a quem continuaré no entanto a trazer came de caga. EB nessas situag6es que se salienta a vantagem de contrair novo casamento com mulher da casa da falecida, j4 que, ao mesmo tempo prende © jovem vitivo a casa dos sogros onde continua criando os filhos ¢ Ihe permite tomar a casar antes de escoado o longo tempo de luto. Novamente ndo se pode falar aqui em sororato, pois nao se trata de um privilégio do vitvo, que inicia um casamento considerado novo, implicando nova divida. No entanto, feito com 0 consentimento dos.“‘donos do luto”, ele ndo 6 repreensivel © ndo ocasiona indenizagdes, embora o vitivo no acompanhe neste aso o-luto dos consangiiineos até seu término, Um vidvo que houvera casado com mulher néo virgem ¢ da qual no tivera filhos, observard normalmente um luto curt, Assing também fard se jé for chefe do grupo doméstico em que vive ou ven, (10), Bem divide esa, a abreviagéo do Ito, a explicgto da pin- tura e corte de cabelo das mulheres de Pedro Colina, ‘no propio dia Naas exéquias deste, deseritas por Melatt (970.201), (11) _Nio se pode falar em Ievirato propriamente dito j6 que nko trata de um direito matrimonial da Tamil, db defanto, aed de wa are casamento que no difere, quanto as prestagées, de qualquer outro, e cule Prole nio é referida ao esposo fal vong{i2), Para darmos uma idéia do rigor dessa castidade imposta, men- cionaremos 0 caso de Hapéto que se queixava de que, a mando dle sea sogra, Agaprék, Fme, rapazinho de seus dez anos mas “A capaz de conte: tudo", 0 seguia como una sombra quando ia para ow cagar. A irmf de sua defunta esposa chegou a Ihe roubar a” intimidade. deseiavel, fepuindo-o mato adentro, na festa de encerramento. do, Wakiets, quanto hd troca cerimonfal e publicamente anunciada de mulheres entre as wetades Wakmeye e Katamye! 52 se tlio houver consangiiineos da esposa em posigo de exigir dele a prestagtio do luto, Mas, de um modo geral, pelo que acabamos de descrever, as vidvas costumam passat por um luto consideravelmente mais breve que os vitivos. Para clas, além disso, por causa da regra de uxorilocalidade, nfo se coloca o problema dos filhos que continuario morando com elas em suas casas de origem. Lembremos enfim que o moribundo pode dispensar 0 cOnjuge © da observancia go Iuto ¢ sua vontade é usualmente respeitada. As priticas do tuto A castidade € apenas exigida do cénjuge, nunca dos outros enlutados. A forma especial do Iuto do primeito evidencia que a alianga no se dissolve no momento da morte mas por decisio dos consangiifneos do defunto. Com efeito, veremos que o laco matrimonial stricto sensu 6 rompido com a remogao do cad4ver: a partir daf todo contato sexual e a comensalidade com 0 morto devem ser evitados. No entanto, o casamento que consiste para os Krahé, essencialmente no estabelecimento de lagos de afinidade (cf. E. Leach 1955) néo cessa imediatamente com a morte do COnjuge. No se pode portanto falar, como Meyer Fortes afirma para os Tallensi (1969 [1949]:117), que 0 morto retém direitos sexuais sobre sua esposa, Na realidade, estes direitos cabem aos in-laws que os auferem ciumentamente, nfo sob sua forma positiva, de prestagio de servigos sexuais, mas em sua forma negativa, de exigéncia de castidade. Estes direitos, note-se, néo se iniciam & morte do cénjuge, pois durante um casamento, os afins so tidos como especialmente zelosos do comportamento de seu aliado. Nao existe termo préprio para o Iuto mas ele é costumeira- mente descrito pela locugio amily krd kér n6, “privagio de corte de cabelo” (amity = reflexivo, kra = cabega, kir = cabelo, nd = privagio) que o resume, como veremos, com extrema propriedade. Nao cortar 0 cabelo e abster-se de pinturas corporais, estrigGes que so sempre concomitantes, significam, em todos os contextos, nao participar da vida piiblica, Assim, foi-nos dito certa feita, os homens mais velhos ndo pintam o corpo, apenas bragos, Pernas ¢ rosto j4 que ficam sentados as portas das casas, de 1d exortando os corredores de toras ¢ os participantes nos rituais, Pela mesma razfo, asseguraram-nos entio, no se pinta a crianga ae 33 até ela sair ao patio, apenas se a tinge com urucu (13). Renunciar & omamentacao corporal implica teoricamente no corter com toras, nao cantar nem dangar no patio, Na realidade, vimos a irma ¢ a mae de Poyoy, ainda de luto pela morte dela, correrem com toras uma bela tarde, Ao indagarmos a razio desta incongruéncia, fizeram-nos valer que elas niio haviam cortado o cabelo e. que portanto nfo estavam infringindo o luto. Vemos aqui que o abandono do cabelo é um indicador considerado suficiente do estado de luto, quer sejam as préticas que supde seguidas ou nio A risca. Sendo este o critério tltimo de luto, segue-se que, se num ‘grupo jé enlutado ocorrer uma segunda morte, os dois lutos s6 poderao ser encerrados ao mesmo tempo, através do corte de cabelo. , Note-se que 0 luto nfo supde nenhuma restrigio alimentar pois nag é um resguardo de sangue ¢ 0 termo amtxir que designa © encerramento do resguardo de parto, go assassino, do lavador de oss0s etc., nio € aplicdvel ao fim do luto, embora em todos esses casos se reintegre 0 individuo na vida cerimonial, Vemos portanto que sfio de naturezas diversas os ritos de passagem Krahd. Se mencionamos isto é porque o termo “rito de passagem” parece servir hoje amidide como mais uma etiqueta cuja fungdo ¢ prevenir qualquer investigacao subseqiiente. A comunidade e a redefinigao dos papéis Os enlutados so postos A margem da sociedade, ¢ passam por um periodo de reajustamento. As suas manifestagdes de pesar sio socialmente controladas, ¢ se thes 6 dado destruir os pertences do morto ¢ executar saltos mortais ao serem removidos os despojos, eles deverfio no entanto ser refreados pelas pessoas presentes: E _ motivo de escindalo e oprébio para a comunidade uma pessoa conseguir levar a cabo um suicfdio nestas ocasiGes. Os parentes do vidivo (a) ou os cénjuges dos descendentes Jembrar-Ihes-do 0s filhos pequenos que ainda precisam deles. Mas, além disso, durante 0 perfodo de luto, a comunidade, deverd contrabalangar a ago do morto para com os enlutados. O defunto, (13) © urucu, com efeito, nfo & tido como “pintura” mas como ‘intura”, 0s Krahé usam verbos diferentes para “piptar” com jenipapo ou pau de leite, hég, e “‘tingir” com urucu, kukrd. A pintura propriamente dita é 0 desenho preto feito com jenipapo ou pé do carvio aplicado sobre iva do pau do leite, ¢ nos intersticios do qual se espalha o vermelho 1eom efeito, no se esquece de seus parentes ¢ se estes nfo 0 afasfarem de sua Jembranga, correrao sérios riscos de serem arrastados para a aldeia dos mortos. B dever da comunidade exortar entiio os parentes a se esquecerem daquele que perderam e se voltarem para a sociedade dos vivos. Assim, se os enlutados ficarem inconsolaveis, chorando em. suas casas, sem falarem com ninguém, sem sequer sairem para cagar ou ir A rota, a aldeia, depois de alguns dias, deverd cerimonialmente se manifestar: durante uma noite inteira, homens ¢ mulheres hio de cantar no patio. De madrugada, dirigem-se & casa do luto onde choram “para ajudar”. Em seguida, o governador exorta os parentes a se esquecerem do morto e a néo mais o chorarem. Espera-se que a partir desta iniciativa da aldeia, os enlutados voltem ao convivio social e retomem suas ocupagées de subsisténcia (14). Nao se trata de thes abreviar o luto, que se mantém, mas de conté-lo dentro de certos limites. Geoffrey Gorer (1967 [1965]:134), em um ensaio psico- -sociol6gico, afirma que a privagdo da expresso social de Iuto, sentido como incongruente ou obsceno na sociedade inglesa contemporanea, gera respostas neuréticas e inadaptagdes nos cidadaos britfnicos. Ele encontra confirmagio em Melanie Klein que escreve: “se o enlutado tiver pessoas de quem ele gosta e que compartilham seu pesdr, e se ele conseguir aceitar sua simpatia, a restaurago da harmonia em seu mundo interior é promovida, e seus medos ¢ desamparo séo mais rapidamente atenuados” (M. Klein 1940 [1921-25] citado apud G. Gorer). Se aceitamos tais conclus6es com toda a “ingenuidade” requerida por E. Devons e M. Gluckman (1964), a intervengao da comunidade e a expresso social concedida ‘ao luto teriam efeito psicolégico salutar sobre os enlutados. Durante os primeiros tempos depois da morte, estes, © especialmente os parentes matrilaterais estio sujeitos A saudade do morto que tenta arrasté-los consigo. Isto se manifesta através de doenga ou de sonhos reiterados com 0 defunto. Se em sonho se aceitar comida, relagdes sexuais, pinturas corporais ou participar de corridas de tora, o sonhador estard prometido a morte certa. Muitos sio citados que morreram por terem tido intercurso com © cOnjuge defunto. —” Novamente pode-se ver ai a tradug&o de fatos psicolégicos jé descritos por Freud. O ego de luto (no sentido psicolégico) deve (14) Se a aldeia se omitir, 6 motivo de paham (aqui “vergonha, hhumilhagio") para a familia, “ a 55 progressivamente, ¢ confrontando-se com a realidade, retrair seus lagos (a libido) do objeto amado. Isto encontra oposigio eventual recusa,de o levar a cabo pode acarretar uma psicose alucinatéria que mantém o ego preso ao objeto. Este retraimento da libido é um processo que exige tempo pois o teste com a. realidade deve ser feito em detalhe (S. Freud 1917, citado apud G. Gorer) (15). . Dito em termos sociolégicos, isto significa que todos os modos de intetagiio de ego com alter devem ser revistos ao desaparecer este iltimo e que deve haver portanto uma redefinicdo de papéis dos lagos que prendiam cada enlutado ao morto. Para se precaver da sedugio desses sticubos e incubos, costuma © cénjuge mudar o lugar onde dormia: nao basta fazé-lo mais alto, 6 preciso evitar-se aquele espaco. Eventualmente poder-se-4 cavar um burato no cho, preenché-lo de terra nova reconstruir entio um jirau feito de outros troncos de rvorg. Dormir naquele lugar € expor-se a sonhar muito com o morto ¢ artiscar-se portanto a ser por ele levado a aldeia dos mekara. Interessante é notar-se que 0 kard, afligido de vista curta.¢ pouco discernimento, fica preso Aquela terra e Aquele lugar. Isto fica patente com a informagio de que, havendo mudanga da aldeia, mudanga esta que conserva a disposicio relativa das casas, 0 espago correspondente ao antigo jirau do morto péde ser reocupado. Segundo Jean Carter Lave (1972) uma das razdcs invocadas pelos Krikat{ para uma mudanga de aldeia era a quanti- dade de’ mortos que lhe estavain ligados. Ainda para se precaver da afei¢io perigosa do defunto, este € exortado, durante as Iamentagdes fiinebres, a se esquecer~dos seus: Criangas de peito sio sentadas na barriga dos pais quando estes morrem. Se a morta foi mulher, far-se-4 0 mesmo com qual- quer crianca que ela estivesse ajudando a amamentar (16). Isto & feito no duplo jntuito de “alegrar 0 morto” e de the rogar que esqueca as cridngas que amava para que nfo as arraste para o (15) £ espantoso ‘encontrar em R. Hertz (1970 [1928]:76) uma des- crigto psico-sociologica muito préxima da de Freud: “O fato bruto da morte fisica nfo basta para consumir a morte nas consciéncias: a imagem daquele que morreu recentemente faz ainda parte das coisas deste mundo; delas 86 se destaca aos poucos através uma série de dilaceramentos interiores. Nio conseguimos pensar 0 morto como mort desde logo: faz parte de nossa substincia, pusemos nele muito de nés mesmos; a participacio em uma mesma vida social cria lagos que néo se rompem em um s6 dia”. (16) & comum as mulheres de uma mesma casa ajudarem a ama- mentar os filhos umas das outras, 56 timulo, Quando morreu Poyoy, sua mie sentou-lhe o filhinho, Kuheiké, na barriga e em seguida suas préoprias filhas gémeas, que Poyoy amamentava: “Vocé me ajudava a Ihes dar de mamar, néo me deixava bater nelas, mas agora no se lembre mais delas.. .” Se alguém ficar doente e o curador acusar algum finado ) parente de o estar querendo levar, os parentes vivos zangam-se e invectivam o kard: “Se vocé se tivesse lembrado de nés, nao teria morrido. Agora é que vocé quer voltar pegar a gente. Vé-se embora, fique por 14”. Transparece aqui rancor pelo abandono ¢ a insinua. $40 de que o morto poderia ter evitado o desenlace se nio tivesse aceito 0 convivio dos mekard. Se, niip obstante todas estas precaugdes, 0 defunto persistir em aparecef em sonhos a algum enlutado, cortar-se-lhe-4 a este uma mecha de cabelos nas témporas. Se o resultado almejado ainda assim nfo for conseguido, todo o cabelo seré cortado (17) liberando-se pois a vitima do estado de luto. Isto indica que 0 luto € entendido como um estado de transigio no qual 0 morto conserva tm certo mimero de lacos nao de direito mas afetivos. Estes serio definitivamente cortados, em caso de abuso, em favor de uma reintegracio dos enlutados na sociedade. ercebe-se pois, nas priticas do luto e no seu cerceamento, a ‘oposigéo entre a sociedade e os mekaré, ou seja a rivalidade dos lagos com os vivos ¢ dos lagos de consangilinidade com os mortos, jogando para reequilibrar © grupo doméstico afetado. Espacialmente enfim, a mesma nogio 6 veiculada: o patio, locus da socisdade por exceléncia, se opée ao exterior, locus dos mortos ¢ a oposicao € mediatizada pelo espago doméstico. Os vivos se opdem assim aos mortos, mas os lacos de parentesco afetam ignorar, com conseqiiéncias que serfo estudadas quando falarmos da escatologia Krahé, esta distingao fundamental. (17) Este cabelo pode ser guardado ou jogado fora, mas nunca pos- to em cima do timulo, Segundo © principio de que nio’se misturs coisa dos vivos com coisa dos mortos. Por isso permanece inexplicével a afir- tmagio de Kissenberth de quo o vivo cancla, deposttava sen eabelo. como oferenda fimebye, no timulo de sua recém-falecida esposa (W. Kissen- berth 1912:48Yf Note-se no entanto que tal pritica & consistente com os dados xikrin (L. Vidal 1972b:198) e poderia ter sido verdade 20 pas- r + : 37 7 ae : CAPITULO IV Os Ritos de Fim de Luto Parte fixa e parte facultativa 0 fim do Iuto compreende dois ritos distintos, um obrigat6rio e um facultativo. Chamaremos de “parte fixa” ao rito que necessariamente é celebrado certo tempo depois do enterro de um Krahé, seja ele homem, mulher ou crianga. Este rito pode ou nao ser acompanhado de outro, mais elaborado, a que chamariamos de parte facultativa, que compreende o oferecimento de um ritual a aldeia, escolhido entre um certo nimero de rituais possiveis, em fungéo de critérios que veremos a seguir, As encenacdes da “parte fixa” e da “parte facultativa” se realizam simultaneamente mas sio nitidamente distinguidas pelos informantes. Assim definido, o fim de luto esté presente em todos os casos de morte e devemos entender a frase do informante de Melatti de que “nem todos tém direito ao cerimonial no fim do futo” (J.C. Melatti 1970:20) como se referindo a parte facultativa. Se se realizar a parte facultativa, ela consistiré de um “canon” ¢ de uma parte mével. Critérios A realizagio da parte facultativa depende de dois fatores: 19) que 0 morto tenha tido em vida uma ligacdo especial, “afetiva” ou institucional, com um ritual particular; ou entio, que tenha adquirido direitos & festa do Porgahok, mediante intervencao de um especialista durante a vigilia que precede seu enterro. Assim, se um homem foi krdrigaté (chefe, cabeca) de uma turma de i ciandos, ou se ele tiver sido, como Estévao, entusiasta do ritual de Katéti (uma das formas do tito de iniciagio Pempkahok), far-se-4 a “tora de Kaéti” como parte mével do fim do luto dele, Se uma 58 mulher foi associada a algum ritual de iniciagio, ela também teré direito A tora desse ritual. A parte facultativa consiste nesses casos na parte final do ritual com a corrida de tora que a caracteriza. Pode-se assim ter no fim do luto as toras de Porti (da festa da vatata-doce), de uma das formas do ritual de Pempkahok etc. A ligagdo de um morto a um determinado ritual costuma ser ratificada pelo reconhecimento ptblico. Este consiste nos cantos que se h4 de entoar na noite que segue a morte, no pitio da aldeia e que so extrafdos do ritual em questo. Um caso que mostra a flexibilidade desta ligagio é 0 de Wakonkui, Esta havia sido Krokrok-gahdi (associada a0 Pemp- kahok). No entanto, seu irmao, Ituip, 6 especialista no ritual de Porgahok e quis realiza-lo. Em conseqiiéncia, a tora de Wakonkui foi de Porgahok, Outro caso é o de Kuhok que havia sido associada a diversos rituais de iniciagio. Quem decidiu a tora a ser feita — e que finalmente foi a de Katéti — foi o padré da aldeia. 2°) Dada esta condigio preliminar, a iniciativa da festa deve partir dos consangiifneos do morto. E necessirio que estes e, em particular 0 homem que os representa, ou seja o chefe do grupo doméstico dos consangilineos mais proximos, que serd freqiiente- mente um afim — marido de irma ou de filha — consintam em oferecer a festa & aldeia. Isto depende por um lado da generosidade e do interesse dos consangiiineos e, por outro, do comportamento da comunidade em relag&io aos consangiifneos durante o luto, Vimos que a comunidade deve, se a dor dos parentes for muito violenta, exorté-los a se esquecerem do morto, No entanto, os pais ¢ o vitivo de Poyoy foram abandonados & sua dor, sem que a comunidade como um todo se manifestasse, por uma noite inteira de cantos seguida de exortagées. Isto foi causa de paham, de vergonha (1), para a fami- lia de Poyoy e, em represdlia, apesar de Poyoy ter sido Krokrok- -gahdi (moga associada ao Pempkahok) os pais nfo realizaram para cla a parte mével do fim do luto, Também a nio ratificagdo, através dos cantos na noite da morte, da ligagio do morto com um ritual, poderd ser interpretada pelos ‘consangilineos como um descaso e estes recusar-se-fo @ oferecer a festa. Vemos, portanto, que a realizagio da parte facultativa supoe uma reciprocidade entre aldeia e consangiiineos contabilizada por (1) A tal ponto que nos foi escondido 0 fato pelo vitvo durante muito tempo. 59 estes com um rigor suscetivel. Todo deslize da aldeia € interpretado como uma afronta ao morto € aos seus parentes. Parte fixa fim de luto consiste essencialmente no corte de cabelo, depilacdo, e na pintura corporal de todos os enlutados, ritos que marcam a plena participagao na vida piblica Krahé. Se 0 cOnjuge néo tiver sido despachado mais cedo, 6-Ihe cortado 0 cabelo por uma consangiiinea do defunto, Se se tratar de vitiva que tenha observado o luto até seu término, é entio que ela receberd os considerdveis presentes que Ihe hio de dar os parentes do marido. Quanto ao vitvo, talvez ainda Ihe seja exigida alguma prestago. No caso dos parentes do cénjuge terem obser- yado luto por solidariedade, eles também o levantam na mesma ocasido. ‘A decisfio de realizar ou nfo a parte facultativa do fim de luto repercute na pompa dada A parte obrigatoria. Se os parentes se negarem a oferecer a festa, poderdo cortar o cabelo ¢ se pintar por ocasigo do Pérgahok por outro morto ou de outro ritual que ‘congregue toda a aldeia tal como o Pérti, o Pempkahok, o Ketuaye, © Apunré ou o “arremate” de witi (no na intronizagao de wit). Nao se pode fazé-lo nos rituais de mudanga de estacio (Ro’ti, Wakmeti, Katamti), nem nos rituais de “brincadeira” (Txoikré, Portere, Hamaho). No entanto, se decidirem oferecer a festa, esta compreenderé necessariamente a confecgio de um paparuto (kiwérgupu) (2) que é oferecido & aldeia pelos consangitineos do morto. Parte facultativa: 0 cdnon propésito confesso da festa é de “alegrar o karé” do morto adauke i cealiagao de uma cottida dé tora A qual ele assiste mas-da-qual no participa A partir dat nfo mais"deverd voltar a assombrar 08 VIVO, ‘A tora é dita “tora da imagem” ou “tora do morto”, mekardyépor (mekaré = morto, imagem, alma; yd = possessivo; pér = tora), ou metékyépér onde ték significa morto, enquanto 0 chefe do grupo doméstico que a oferece, ¢ que nio € o parente (2) Vide nota (28) p. 40. 60 mais proximo, é dito “dono da festa” (pérydd6n) (3) e pode falar igualmente da “sua tora” (iypér = minha tora). A ele, ajudado pelos consangiiineos do morto, competem as despesas, cortes de pano a serem dados na tora, esteira nova e uma parte da comida, Se os convidados se restringem aldeia, a carne deverd ser fornecida pelos enlutados. Se, no entanto, os convidados so muito numerosos, incluindo membros de outra aldeia, ento os homens da aldeia podem fazer uma_cagada coletiva cujo produto serd entregue ao dono da festa, Este fornecerd arroz ¢ mandioca para o paparuto final, mas também daré comida aos que cantam a noite toda no patio (paparuto, banana, arroz). Todas as mulheres iro ajudar a fazer o paparuto, na casa do dono da festa, enquanto rapazes so designados pelos prefeitos para procurarem folhas de bananeira brava, “pacova”, que servem para embrulhar © paparuto; homens e rapazes armam 0 Ki, forno de pedras, na beira do caminho radial (prékard) que leva da casa do dono da festa ao patio. A iniciativa do convite é do “dono da festa”. Uma bela manha, ou durante a reunido do fim da tarde, ele anuncia sua tora em termos como estes: wa itd khim mé ama amity _—akrepei_ 16 md eu hoje (plural) vocé (reflexive) falar vir ka mé akind — mé — akrepei vocés a todos (plural) falar wa ha itd Khim = 6 iyopor—mé eu (futuro) hoje minha tora_—derrubar né ha tonpd né ha _—hiirdpé—_hhipér e (futuro) terminar e (futuro) avisar outra vez ki Gpé mé ama —_harén kamé ha krepei patio no avocés ha+yarén vocés (futuro) falar futuro/contar (8) por yo dén = dono da tora, ou amiy Khin yo dén = dono da festa; dén’ = corruptela de “dono”; yd = possessivo; por = tora; amily hin = se alegrar, festa. O dono da festa nfo sendo’necessariamente um consangitineo, pode néo estar cle préprio de luto. Assim o fim de luto de Kotoi foi encabecado pelo seu genro Aleixo, que no observou Iuto © que havia sido acusado por muitos de a ter enfeiticado, 61 “Eu venho hoje (para) vés saberdes falar a todos vos eu hoje derrubarei minha tora € terminarei e avisarei outra vez no patio contar-vos-ei, dir-vos-ei” Vai-se entdo cortar um par de toras. So os enlutados que as devem cortar, mas se nao forem habeis, poderiio pedir a outros que Ihas abatam, mediante retribui¢ao. Uma informagio de Pend Para a qual nfo obtivemos confirmagao menciona que se o dono da festa for de uma metade de idade, ¢ nao for capaz de cortar tora, seré um membro da metade oposta que iré fazé-lo por ele. Quando se acaba de cortar tora, 0 dono da festa toma a avisar no patio e pergunta ao chefe se deve convidar outra aldeia, O chefe decide, e sua decisio reflete as relagdes vigentes entre as aldeias e possivelmente, a resposta a convites precedentes. Pois se 0s convidados recusam vir, 0 dono da festa fica com paham (vergonha) e zangado (inkré) ¢ nio se convidaré mais a aldeia que Ihe fez essa afronta. No entanto, se ele nao convidar outra aldeia sem motivos validos, correré o risco de ser considerado sovina (hotxe). Vemos portanto que, enquanto 0 enterro é sobretudo da algada dos consangiifneos e afins, o fim do luto redine pelo menos toda uma aldeia, ~ Quem vai convidar uma outra aldeia € 0 proprio dono da festa ou um governador (ex-prefeito de prestigio) delegado pelo chefe, wa amps nd wa ipén —_ imérnare eu coisa eu sou vir (negativo) wa amity Khin katxu wa mo eu festa chamar eu vir wa por gatxu pit wa mo eu tora chamar sé eu vir i ké y6 pahi té mé minha aldeia (possessive) chefe (passado) _(coletivo) awor ikuyahék wa mo mandar eu vir mé amé ——iuyarén 15 mb (coletivo) (direcional) _contar vir 62 amps 6 mb amity Khim coisa (coletivo) (reflexivo) dentro hapaknére (4) escutar (negativo) kuté —mé ima amkré—hértxd—atan ud ampagaté ele (coletivo) dia marcado (futuro) sair eu nés mé até mé ima amkré—hértxé atin ud (coletivo) (passado) nés — dia_—marcado (fut.) ma mé ‘poi (direc.) (colet.)_chegar ta mé —— kina krt_ kai j4 (estado) (coletivo) todos aldeia dentro me pa yapée nés esperar (colet. + nés dois) hotkét na té mé ——it6—huyakré xd nk cedo (passado) _(coletivo) dizer (2) hotket — kuhd — ampdgaté cedo (futuro) sair “Nao estou vindo por outra coisa Eu venho chamar para a festa Eu s6 venho chamar para a tora O chefe da minha aldeia mandou vir avisar-vos Vir contar-vos, Nao pensai em coisa alguma Ele marcou o dia de nds sairmos Ele marcou o dia de nds chegarmos Ja todos na aldeia nos esperam Ele disse que chegdssemos cedo, Sairemos cedo”. © mensageiro traz, portanto, os convidados da outra aldeia, Que poderio chegar um ou dois dias antes da ceriménia, e passam © tempo entre noites de cantos e corridas de toras divididos nas (4) hapek = escutar; amiy = reflexiv umiiy hapak = pensar (Iite- talmente, se ouvir a si mesmo), 63 LLL metades que competiro na tora do morto. Ea ocasido propicia para as aldeias medirem seus talentos respectivos nas corridas e para cada atleta escolher seu adversdrio para a corrida final (5). Quando o ritual 6 0 Pérgahok, as toras sto introduzidas na casa materna do defunto e nesse caso os presentes sao postos sobre elas enquanto as toras de outro cerimonial de fim de luto so deixa- das no patio da aldeia. Ha entao a alternativa de dispor os presentes pendurados numa cordinha no lugar de partida da corrida onde teoricamente sero apanhados e posteriormente distribufdos na aldeia por um prefeito, ou entio na chegada da tora, igualmente pendurados numa corda por cima do cantador. Os presentes sio destinados, em primeiro lugar, ¢ como em todos os rituais, aos visitantes de outras aldeias que “vierant ajudar” (6), as mulheres sem marido e, de um modo geral, aos no parentes. No entanto, nem sempre € possivel ao prefeito prevenir a sofreguidio feminina que leva as mulheres a se apoderarem dos presentes antes dele, Note-se que € direito de qualquer nZo parente tomar os presentes, € 0 prefeito tem apenas a incumbéncia de os distribuir de acordo com as tradigoes. As insignias ou certos instrumentos sto levados por pessoas que tenham direito de usé-los. Assim 0 maracé do famoso chefe de rituais Anténio Pereira foi tomado por Zé Cabelo, cantador de Pedra Furada, Os presentes so de dois tipos. Uns so alguns poucos enfeites, insignias, instrumentos musicais ou objetos de uso pessoal do morto: maracé, ixé, khui (batoques auriculares), hokhé (longo cocar de penas usado antigamente pelos Iideres guerreiros ¢ pelo governa- dor), harapé (enfeite usado em uma das verses do Pempkahok), faixa decorada da cantadeira, maké (um tipo de bolsa masculina) € teoricamente espingarda e panela (7). No entanto, somente poucos objetos deste primeiro tipo chegam ao fim do luto, Eles so mais freqiientemente destrufdos (5) _Lembremos que a corrida de tora 6 uma corrida de revezamento, Aqueles de metades adversas que. se desaiam postamsae em ‘un meee lugar de percurso da tora, (6) Em particular, se o ritual foi dirigido por umn especialista de outra aldeia, este hd de’ ganhar um grande presente, 0 que nio se di se for da prdptia aldeia. Assim Ambrosinho padré de Cabeceira Grossa, rece. heu de um prefeito de Pedra Branca trés cortes de pano por ter dirigido a tora de katéti no fim do luto de Kuhék, (7) Teoricamente porque a pritica 6 que “os ferros", que consti- tuem inovagio, passem de pa! pars flhos (eopinguada, emadae mschado ete.), ou de mie para filhas (panelas). 64 pelos consangiiineos ou entio levados por no parentes durante a vigilia que precede o enterro. A explicacao dada é que os parentes evitam assim deparar com qualquer coisa que Ihes lembre o morto, © segundo tipo de presente é constituido habitualmente por cortes novos de pano, comprados pelo dono da festa e pelos mem- bros de sua casa e de uma esteira nova, que no caso de Porgahok, serve para pousar as toras dentro da casa, Além destes presentes a aldeia, cabe ao dono da festa e aos de sua casa darem presentes diretamente (sem passarem por inter. médio do prefeito) aos amigos formais (hdpin e pintxwoi) do mor- to, Assim Kratpé, amigo formal de Kotoi, recebeu um corte de pano ¢ Emiliano, amigo formal de Antonio Pereira, um sxé (8), instru- mento muito valorizado, confeccionado pela filha deste. Estes presentes retribuem sua presenca na vigilia do enterro e sua parti- cipagao nos cantos na noite que precede a corrida de toras, O mesmo costume se verifica nas varias modalidades do ritual de iniciago Pempkahok em que se pede 20s amigos formais que cantem a noite toda sem sucumbir 20 sono. Na manhi da corrida de tora do morto ¢ logo apés o fim da cortida, a aldeia ¢ os convidados se retinem na casa do luto, onde todos choram abundantemente. © governador entdo exorta pela tiltima vez os parentes a se esquecerem do morto: “Podem cortar 0 cabelo”, diz ele (9). “A morte vem para todos nds”. “Ninguém vai virar pedra (isto 6, ninguém ¢ imortal)”. Depois disso procede-se ao oferecimento do khwérgupu (0 “paparuto”, corruptela regional). Este, como vimos, é posto no forno na véspera da corrida de toras 4 noite. Ele é oferecido & aldeia pelo dono da festa que diz simplesmente: Ndmri khworgupu 1nd, “o paparuto est ai". Se, na mesma ocasiio, os consangiiineos do morto estiverem libertando o vitivo (a), este poder sair na frente do paparuto, pelo caminho radial que sai da casa do luto vai para 0 patio. Ele iré s6 até metade do caminho e voltard, enquanto 0 paparuto é levado, na corrida, até ao patio. Se nao houver vitivo a libertar, seja porque 0 morto néo tivesse mais cOnjuge, seja porque este nio tivesse esperado o fim do luto, © Paparuto poderd ser entregue na frente da casa e levado ao patio (8) Instrumento que consiste em um cinto de algodéo com dezenas de pontas de cabaga penduradas que se entrechocam, B usado nas cor. Tidas como um einto enquanto nos cantos é enrolado na pema diteita que bate 0 ritmo ow agitdo ma mio (vide foto 15) (9) Na realidade o cabelo jé est cortado desde a véspera, 65 onde é repartido. Segundo alguns informantes em todos os casos ele € dividido entre as metades de idade — Hardgateye © Khoigateye, Parte facultativa: 0 rito mével O Pérgahok Pelos mecanismos. que expusemos—acima, o Pérgahok € 0 ritual mais“comumente realizado no fim do luto. A~condigéo preliminar para que ele ‘séja encenado é, como vimos, que um especialista do Pérgahok, antes que 0 corpo seja tirado da casa, cante A sua cabeceira, acompanhando-se com o #xé, alguns cantos do ritual. Os cantos so longos, em estilo alusivo, hermético até para bom niimero de Krahé adultos, e séo entremeados de versos comuns em todas as cangées, que descrevem um detalhe do comportamento ou da aparéncia de um animal, Para ilustragio, daremos aqui a tradugiio aproximada de um desses cantos, com a explicagio de algumas alusOes que foram esclarecidas, Nem todas eram claramente compreendidas pelos informantes. Trata-se aqui de uma alusio ao feiticeiro causador da morte e de uma evocagio da vinganga da aldeia. “O galho da drvore krémré tem leite (10) Eu estou intrigado com o curador Segura bem a folha velha de caité (banana brava) Procura como formiga péturé (11) Nao escondas (curador) na planta téék (malva?) Nao cubras com palha o curador, jé aconselhei Jé apanhei (0 corpo) sujo de terra 0 olho branco de coco (12) maduro e cori (com ele para sepultar) Fumaca de gente Fumaca no canto da chapada(13) (10) Alusio no entendida: pode também ser verso de reftio. (11) Formiga do mato que sempre & encontrada em grande nimero. Isto se refere a procura do curador para mati-lo que deve ser feita por toda a aldeia em conjunto, (12) 0 coco tem manchinhas brancas do lado do cabo, quando esti maduro. Refere-se aos olhos do moribundo que ficam brancos. (13). Refere-se a pritica de queimar o feiticeiro, 66 Refréo: Eu vou ser como morceguinho 0 pelto (dele) pendurado parece pilao @ juntinha do osso da perna da ema esté ‘machucadinha” © Porgahok nio 6 de origem Krahé. Existem cinco especialistas deste ritual na aldeia de Pend dos quais quatro o aprenderam entre os Pékobye (Gavides) © um outro nos Apinayé, havendo uma diferenga que mencionaremos entre as duas formas. Embora recentemente introduzido, 0 Pérgahok encontrou tal aceitacdo (14) que se o pode colocar entre 08 rituais Krahé e analisar dentro do quadro de referéncia desta tribo. © niicleo do ritual pode ser assim descrito (15): se a tora € feita em honra de um homem (ou menino) sio as mulheres que correm com as toras enquanto os seus esposos potenciais (mas nio maridos reais) Ihes oferecem Agua. A cada um que the ofereceu Agua, a mulher deverd retribuir na aldeia, com um presente. Se o morto foi mulher, invertem-se os papéis: os homens correm com as toras e Ihes é oferecida agua pelas esposas potenciais. As toras do Porgahok, quando este ¢ realizado para “alegrar um morto”, sio de buriti e empenadas e tingidas de urucu, uma segundo motivo Katamye (anéis transversais), outra segundo motivo Wakmeye (riscas longitudinais) (vide foto 11). Estas toras so grandes ¢ seu miolo é esvaziado para torné-las mais, leves. Sao levadas para a casa do Iuto, isto é, a casa das consan- giiineas do morto, qualquer que seja em principio a idade ou o sexo deste. “A tora se bota na casa da mae do morto” é a assertiva de um informante, confirmada pelos exemplos e, como veremos, 0 dono da casa (e, portanto, da festa) ¢ as consangiiineas cobrem as (14) © Pérgahok é freqiientemente realizado para divertimento, sem referéncia ao luto. Pudemos assistir assim, por iniciativa das mulheres da aldeia, a um Pérgahok em 1 de agosto de 1972 (vide foto 12). (15) A nossa descrigio do Pérgahok bascia-se, ao mesmo tempo: 4) naquele a que assistimos dia 1 de agosto de 1972, nao ligado a fim de Tuto; b) em descrigio pormenorizada do riteal feito para Koto, dez meses depois de sua morte (descricéo de Pascoal); c) em descrigées sucintas de Porgahok genéricos feitas por quatro informante; d) na descri¢io sue cinta de um Pérgahok nio ligado a luto feita a Melatti (1970:206) que nfo assistin ao ritual e que sé menciona corrida de homens. 67 toras de dédivas & aldeia. Aqui se evidencia nitidamente que o morto é tido como propriedade dos seus consangiiineos (16). A introdugio das toras na casa materna do defunto € caracteristica do Pérgahok e nao se realiza nos outros cerimoniais da parte facultativa do fim do luto. Quando 0 Pérgahok é realizado pelo divertimento, usam-se toras de madeira, grandes e ocas que ndo se tingem nem empenam. Permanecem neste caso 0 oferecimento de agua e a retribuigao, ¢ as toras sto jogadas no patio. As toras sfio pintadas e empenadas por uma consangiiinea do morto, e os partidos que disputam a corrida sio habitualmente as metades de idade — Hardgateye ¢ Khoigateye. As mulheres se filiam a estas metades segundo a metade do pai (se solteiras) ou do marido. Segundo um informante, a diferenca entre as verses Apinayé ¢ Pékobye do Porgahok reside unicamente nas metades que correm para a aldeia. Na primeira, sero as metades sazonais Wakmeye & Katamye, mas mesmo nesta versio a corrida no krikapé (caminho circular que passa diante das casas), que sucede & corrida de toras, serd disputada entre as “metades de idade”, Hardgateye e Khoi- gateye (17). Os Hardgateye associados com o oeste como os Katamye correrio com a tora decorada com motivos Katamye, enquanto os Khoigateye correrdo com a tora decorada com motivos Wakmeye. Em suma, 0 que distingue 0 Pérgahok de uma série de outros rituals é: 19) A inversio: os homens correm com as toras para o cerimonial de fim de luto de uma mulher e vice-versa; (16) Lembremos nesse sentido que o Krahé procura morrer na casa matema mas que a pritica 6 fungfo do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico e que um homem que é chefe da casa onde mora a qual per- tence, a rigor, aos consangiiineos de sua esposa, tende a morrer nessa casa, Qualquer que tenha sido a casa da morte, o luto seré invariavelmente encabecado pelos seus consangiiineos. (17) Esta diferenga registrada em um caso sobre cinco ¢ decorrente do aprendizado do ritual entre os Apinayé talvez. néo seja significativa, tendo em vista que os Apinayé nfo tem classes de idade, apenas categorias (Nimuendaju 1939:36-37). Além disso, nem sempre Ituip o especialista divide os corredores em Wakmeye e Katamye (vide por exemplo o Pérgahok de Kotoi abaixo). As metades de idade krahd, Hardgateye ¢ Khoigateye sio aquelas antigamente constitufdas por classes de idade alternadas, e que atual- mente recrutam membros em qualquer grupo de iniciandos. 68 29) O oferecimento de Agua entre esposos potenciais ¢ sub- sequente retribuigio; 30) A empenagao das toras, que sé ocorre além desta ocasifio, no Apunré (ritual em que cada corredor tem sua tora) e no Txoi- kré; 49) A introdugdo das toras na casa das consangiiineas do morto, onde se chora pela wltima vez; 5%) A divisio (com uma excegio) no par de metades — Hariigaieye ¢ Khoigateye, Eis, a titulo de exemplo, a descrigdo completa do Pérgahok realizado para alegrar o kard de Kotoi, dez meses apés sua morte, em maio de 1973. Na véspera da corrida de tora, de_manha, as mulheres comecam cantando no patio, lideradas por Domingos Lambu com seu maracd. Os homens estdo todos no patio. Poprii, um dos prefeitos da estagtio seca, jd vigente (Poprd é Wakmeye e Khoigateye) vai d casa de Krampéi, cantora muito estimada, pega-a pelo braco e, correndo, leva-a até ao patio. Faz 0 mesmo com Arokwui; este ato significava a escolha de ambos para um papel cerimonial no fim da tarde. Kuhék, mulher entusiasta deste ritual, pega no braco de Waldé Pempkro (Khoigateye) e coloca-o junto de Krampéi. Outras duas mulheres pegam Ipdr (da metade Hardgateye) ¢ 0 deixam junto de Arokwui, Estdo assim igualmente designados os protagonistas masculinos para o canto da noite, Mulheres e homens Harigateye vao para a casa de Raul, casa da witi dos meninos que serve temporariamente também como casa de witi dos homens. Waldé e Domingos Lambu, apesar de serem Khoigateye, vdo também porque precisam ajudar a cantar, Os homens Khoigateye vao um por um desafiar um ou mais homens Hardgateye para a corrida do dia seguinte. O desafio con- siste em uma corrida de uma volta no caminho circular da aldeia (krikapé) a partir da casa de witi. Todos correm, velho com meni- no e as mulheres aos pares, Em seguida todos se dispersam. E: entio que os enlutados vo cortar 0 cabelo e se pintar com jenipapo ou pau de leite na casa dos consangilineos do morto. Durante este dia, todos na aldeia se Pintam também, adornando-se para a corrida do dia seguinte, So néo se passa ainda urucu. De tardezinha, Hokur (Jaime) designado pelo conselho para ser inkréregaté (“o que chama para cantar”), vai pegar o txé e 69 uma esteira na casa da morta e chamar Ituip (o “cabega branca”), cantador do Pérgahok. Ituip sai de sua casa, seguido por Hokur, Ituiip senta-se na esteira e Hokur vai buscar sucessivamente as duas mulheres e os dois homens escothidos de manha. Sentam-se em ordem, de E para W, Waldé, Krampé, Ituiip, Arokwui e Ipiir, todos othando para oeste onde esto as toras. Cantam assim umas tres cantigas € param. Homens e mulheres vdo cantando juntar lenha no mato para fazer fogo no pitio, onde deverdo passar a noite cantando. Cada um vai entdo para casa, comer. De noite, Hokur vai chamar outra vez a todos para cantar. Nessa noite ninguém vai dormir dentro de casa, todos vio dormir no patio, revezando-se nas cantigas, Estas sdo acompanhadas pelo txé,nunca pelo maracd. Os amigos formais do defunto tém a especial obrigacao de cantar sem cessar a noite inteira. Por isso serio recompensados com presentes dos consangiiineos. Assim Kratpé, hdpin (amigo formal) da defunta recebeu um pano, no patio, Quando os cantores se cansam, param para comer o paparuto, banana, arroz que o dono da festa traz ao patio. Em seguida retomam 0 canto que deve se prolongar até de manhi Quando raia o sol, 0 cantador (Ituéip) vai para as toras, que esto a oeste. Nao obtivemos confirmagdo se essa orientagao é necessdria, devido a associagao do morto com o oeste, Homens e mulheres vao tomar 0 banho matinal e em seguida, desde que ndo sejam muito velhos, dirigem-se também para as toras, ou antes espalham-se pelo caminho, aos pares (18). Jd esto desde a véspera pintados de jenipapo ou de pau de leite. O urucu é passado no lugar das toras pelas consangiiineas (19). As toras sido empenadas e tingidas de urucu pela neta da defunta (ff), Prére. Este ritual teve uma particularidade: as mulheres haviam decidido correr também com um par de toras, pelo prazer, pois ndo tinham nenhuma obrigagdo. Em conseqiiéncia (18) Esses pares sio os que se desafiavam na véspera de manha. (19) A obrigagio de pintar um homem recai sobre as consangif neas. Se estas no so lembrarem espontaneamente de o pintar, cle terd paham ‘vergonha). A esposa pode substituir nesta tarefa a consangtifnea negligente, na medida em que pintar o matido em casa, ¢ na realidade, 0 jenipapo, passado na véspera, 6 freqiientemente de autoria da esposa. Mas set pintado de urucu pela esposa em péblico, na hora da tora, & motivo de grande humilhagio pois torna patente o descaso das consangiifneas. X filta do consanguiness, um homem iri poser arueu, em cass tes de ir para as toras. 70 haviam sido cortados dois pares de toras, e, em cada par, uma havia sido decorada com motivos Katam e outra com motives Wakme. Se tal ndo houvesse sido a decisiio das mulheres, seria a hora de elas comecarem a oferecer gua aos esposos potenciais; poderiam continuar ao longo do caminho da corrida e até no patio da aldeia, sem que fosse permitido aos homens recusar 0 oferecimento, por mais que alguns tentassem se esquivar. Iiuiip, com 0 txé enrolado a volta da perna direita, canta as cantigas do Pirgahok. Ele comeca a cabeceira da tora (crowkri; crow = tora de buriti; kta = cabega), othando para o Sol que se levanta, depois de certo tempo rodeia as toras, cantando mas s6 estaciona novamente & cabeceira da tora. Quando terminam os cantos, as mutheres saem primeiro com ‘suas toras, repartidas em Khoigateye ¢ Haragateye, Logo a seguir saem os homens, divididos nas mesmas metades de idade, e no tardam a aleancar as mulheres. Os Haragateye ganharam, tanto homens como mulheres. Largam as toras no patio e um homem de cada metade (Waldé entre os Khoigateye) leva uma tora no ombro, devagar, até a casa da defunta, Uma das filhas, mulher do dono da festa, tinha disposto uma esteira nova, feita por um dos genros da casa. As toras sito colocadas na esteira e cobertas de panos novos. As mulheres (ndo Parentes) logo se apoderam dos panos, que sao presentes a aldeia. Depois qualquer um de fora pode levar a esteira(20). Todos vém entio chorar, os parentes perto da tora, enquanto 0 governador os exorta a se esquecerem do morto: todos vao por esse caminho, lembra ele. O grande paparuto é entao oferecido pelo dono da festa a aldeia e repartido entre as metades de idade, no piitio. Aleixo oferece também arroz cozinhado. Termina assim 0 Pirgahok. As toras podem ser imediatamente retiradas da casa e servir para novas corridas, de puro divertimento, entre as metades. Outro exemplo: a tora de Katéti Daremos uma descrig&o sucinta, a titulo de exemplo, da tora de Katéti (depurada da parte “candnica” de qualquer festa de fim de luto), realizada para Kuhdk, que havia sido, entre outras coisas, Krokrok-gahdi, moga associada 4 metade Krokrok, neste ritual que € uma das variantes do Pempkahok, (20) As toras das mulheres ficam a porta da casa, porque jf 16 néo eabem, ¢, como vimos, sio supérlluas no ritual n Esta variante, que é uma das modalidades do ritual de iniciagao Pempkahok, parece gozar de grande aprego entre os Krahé; um informante chegou a afirmar a V. Chiara que este era o ritual de Iuto tradicional antes da introdugdo do Porgahok, Devemos enten- der esta afirmagio cum grano salis, O Katéti é, na realidade, freqtientemente encenado, mas isso se deve antes aos mecanismos de selecao do ritual do fim de luto. Com efeito, se 0 morto for homem, é possivel que partilhe com o resto da aldeia a inclinacdo pelo ritual de Katéti ¢ isso seré o bastante para que seja realizada a corrida deste rito. Este é, por exemplo, 0 caso de Estévio. Se se tratar de uma mulher, ela poderd ter sido associada a varios grupos rituais. Se entre estes estiver 0 dos Krokrok que atua no Pempkahok, como a escolha da tora sera feita pelo padré, chefe dos rituais, este podera determinar que se faca a tora de katéti. ‘As preferéncias individuais ou coletivas entram deste modo um tanto disfargado na decistio do ritual do fim do luto, A tora de Kuhdk foi convidada a aldeia de Cabeceira Grossa, cujo chefe e padré, Ambrosinho, é especialista deste ritual. O dono da festa era Secundo, cuja ligagio com a morta era a seguinte: Bean A. = homem Q = mulher p- = lago do immdos ‘1 = casamento | iagdio Na véspera da corrida de tora, 0 chamador (hokxérgaté) reuniu 0 povo no patio. Ambrosinho cantou a noite toda com o maracé, substituido por curto tempo por seu filho Txékxék. De todos passaram urucu, na tora ou em casa (a pintura preta jé havia sido feita), As toras haviam sido pintadas com 2 urucu, uma com motivos Wakmeye, outra com motivos Katamye. Estavam ao Norte da aldeia (21). Ambrosinho cantou na tora, sozinho, com o txé enrolado na pera. Dividiram-se os homens em Krokrok e Hok, cada partido pegou numa das toras (qualquer uma) e entraram correndo, indo diretamente a0 pétio, Caracteristica da tora importante, por, é nunca ser levada pelo caminho circular da aldeia (krikapé) mas sempre ir diretamente ao patio (Ad). Largaram as toras no pitio e foram para a casa do witt das mulheres (Ketpei, filho de Kratxét na casa de Aleixo). Esta parte era facultativa, 6 para prolongar o prazer da festa, Nao era também necessério que fossem a casa deste wit especifico. $6 em seguida se reuniram todos, homens mulheres, na casa do luto; para a lamentagdo coletiva, Este exemplo, pelo confronto com a descrigéo de Melatti (1970:392-396), permite verificar quio sumaria € a evocacao de um ritual tio complexo quanto 0 de Pempkahok katéti. Ela se reduz & natureza dos cantos e, grosso modo, a divisio em partidos. Quisemos neste capitulo apresentar uma descri¢io, o mais completa possivel, dos ritos de fim de luto. Quanto 4 anélise do que expusemos, exigiria preliminarmente a decifragio da complexa Yingua ritual krah6. Para tanto, haveria que isolar o que poderfa- mos chamar, por analogia, os “ritemas”, e fazer por exemplo um estudo de tipo lexicolégico para o qual Radcliffe-Brown forneceu os classicos principios, e que supde a consisténcia do corpus de “idioma ritual” (A. R. Radcliffe-Brown 1952:144). A envergadura de tal empresa a exclui evidentemente das possibilidades deste trabalho. Ideologicamente, o fim do luto marca a libertagio dos enlutados ¢ a ruptura definitiva com © morto que, a partir desse momento, toma seu lugar ¢ se fixa entre seus scmelhantes. Até eiitdo, ele ainda rondava a aldeia, mexendo em seus objetos, assombrando os sobreviventes. No fim do luto é-Ihe significada sua Mespedida e ele no mais deverd retornar. O fim do luto, como jé foi sobejamente evidenciado em tantas sociedades, constitui o que Van Gennep chamou de “fase de agregacdo” de um rito de passagem, tanto para 0 morto quanto Para seus parentes, como veremos em mais detalhe ao tratarmos do enterro secundario. (21) © norte, conforme Iembrou Melatti (ef. supra pig. 39, nota 22) 6 0 equivalente do oeste: teriamos aqui mais um indicio de que as toras dos mortos so associados ao ocidente (vide acima pig. 67). 73 wa © Amizado Formal, Companheirismo © a Nogio de Pessoa Arte formal enna rig de ese se aa aa cee ie a de aa oven dhs ct eee oe eee mete aes ees Se ‘Sot parr snc ores gs ee aS Iie as seedncy co denier Ge beu amg formal um ” ‘erties cna foal gir Sami pal a sn or ect ‘le er wa am too ‘oun fo pce st de ‘tera pn amin farm op," ar 6 asain, spec at ua canenci gruel tr tal ‘iio mara er fra, ea Mh oases pt Sx nog en it ‘Eres ec alge & pcs Nene nol ead maa i it cr ee pe a & ci Rr epee a ep Slee pa mets pn ec ‘Ratencco Soap get on artnet se Sas nn pera a nt Se teat ge cet aio aban’ OE ae eS {MbsitaD Eve Sanne peo ogo oe “Quay sot rinse orn, ep eae ‘geese mentee eee ores ssn gm teen =e ee ‘Sa. Ewen eit Sea om aterm, Heboeeeiress ie Saher in gh re re eo SS Se ES RSs me Pee Som Se Secs ‘fits ao sey we eu one Size Sn cmaasnr scene Pera eee ae eS 2 alee Steere Feb) fee tse i et ‘ede kell gow ee eon nto tanto 2 cee een se al pone “cu (an Tonle twat Gergen cums per Se porto be ese penne Reese reas cereus erees sant ames dos nomes do sen, pals ex nomes do vive devem Bu iame Shane eyes nomen serene: see Soraheres eee ne rece ime 0 name deus la haem, Ke. Po Bere ES ‘cADERNO. DB TLUSTRAGOES C—O EOE EEE; se te ot pane Se na ‘oti tio Pew rer pia een ‘Osan |0) formal tse de oan se de mae = ot Sem gel ‘einen Se met ai ol, Sh ts ‘sworn be taste pn ms Ini Se rena et ek ae Pa sey hs asm me (or Nog cy ees ral” Ani tue horn Sut eect ms ‘cS a eget ana Cot aay 2S Seer et emsern: Sede dr ani Soma ‘Arete or ani sis mene so cexen we itm busine done pe Caen uta por ne 8 maton, oe gud ve ‘ete atin motos acs nar gg ee ieee rts as inbichends Pde dea o furs ee wesc oe ‘nent pop deta Cer? Si mens Eee. Orson eas ft vn, Sasa pee SRG SoagS pone cate po oc en ute So ot ey 'Seade, gos ty ome ni a ‘ic, pm oo was Pops Sb, Sat ‘Bires socom ep pee So a Gs So zee lo reat eee ina mand tb «cmt pa ns ey “Sine (as asa ‘Sit, compendia meen» ce oat fn rhannocso en nw gee gud os ‘Gp Bol mln o'er ot, sees dene gt eS Me ie a ne i Ded nen comin mi Sia SSA a en sens fore coe eco son we” (te 90) (SRA oe ‘ike Puen pee'meae she peng. omits pom» conten So am pns {Sri eee ro oer i oe "cla seascapes ‘emai ue cae ge desea ot a Psp ite lotus pegs edt ny pops epee » ! neriiets Sie mean S Sata Pare eae ener as ceo pn a ierhea weace ee met Sat ce lt fe Rc ‘Silo coh pout mea ds id ‘dai me a in epg pms + eff Atha rl Sat ‘Sima oT pet tase Soo 8 ab Res tees ae ee | See ime eae Fao wm plement geet Foo so es Caner aee see Sg Sal Roe ein oe (extn cele meh sen fc Ee ey "sti et Keita me ppt coon oa ah Ci 3 a Sigs ease erates oceans cee ee ES Seenn Gurr ot bres tbe to ga a tet ‘Eee usr ya ase une ee eg = [Ne'syunde, o deface seeder tm novo iy io & wo 95 nl Regn pete cae ame ma so Hae tes ‘opi er dso pinoy pret ee wir Eieedomg vey aneeieccns ‘ele etree Ns cae ov le ‘Steptoe i pn tor f= pe a, Eeee ibe cairo See As ae ‘eae ee ne ods aera) on eee ‘Sono cecal ge tee al Bat evecare lo ae ‘Enon ne tumor come: por aa ee ‘Sheath held a dao tes eda [epee wim qc ame eke snr, irae, ‘Sow 2s ef a ‘stn glen se ear any te bgt yd (ira, coun» popitarscesigint dent [gw anton bed Cpa conte ae et iain ds Secrlenaee ngs cle 2 Ea ed cn a oc Je tet, Se, or Solan ots pe eeu sng forma ou jo ogc ‘ec ease &5 teh" Rn TERENAS Boe ine at pa fe eg co la dest ate oboe it 6 ale era Tee tna Soe cnpzs fue sb 90 etry A ee ae geoeecasoeta ae gee eon eam cri, a nnn comecime, © a0 8 Pls em naSessEEeEET SeittEabaTAInitAITIRSTITESOTESaEsECanSet Litt ET SATLICAIET ANTE ANTTDE RITE SATE ESSEC abi, A pee de, sm» poi te do we ot res ten ns Aca CEa ree eB le contapdn unas aes S eamaoe ‘stctanecte do coi fv apie Coast, eter abe prs eS ter 2ah gna bts cs, eo Seige, Ge bt) ermrmio, oer Sr ‘2h sevpeme i es gum en nant cor de ein son as Saeco 1g cnn neat mau ac ica er ere ‘Eh. Seon a pil Grote ppt een cm or, rma ci Chaat gain a eae ‘esi ome ‘cepecte. fl ata th SE rp: Eo cok Smee sen anata EN We Oe dee ale ‘pire gr «eco tole, sa Se Nu niger gor sun tate tw see sce pan, Sta‘ Sk fs ens ‘tea “ern mo ses ar es Simeone tnt Set eae ae ee Bisorettemaeem agin men See ees dT ore ‘Stay “Ohi oma pase ny a fe ‘ne sean de yen es Soameieinwee ost ‘ower ala ag to aap sem is “orm eens ohare (1868) chamoa “de “cgmmumias” 6" 2 iendnse a Ye og ea lima onenanio pels sitame de sti Hcg © susice fey s ntsc nr inns rpc eps ‘Ge vgn lo comin cape ti conn a nae io ser Sa eke, onsen conte Ris (168), Bina (p7si moe Sgets J td ay De 18 Spee Talia pestionnan's pate tt ror opis seu meo ss nines haa rei oe init maa bya ist os sss Senngeiese sean ate ie el aoe Seema te fake ce Se pit nme, oes a Sebel so voter ne Serie ie eat LSet too oats emia: fr cussion Pate cnt mea hey ee ENSNen’Somamente witances (3 Obskaun 6S Seep cae ere tn syn nee 0 ai forme nts stain i ot sed aml ate pene veri oul af ne pele es ‘dado hin sone gr ngs “Nene Sl ‘us amigo omal poensa eto ay “car? a aEEhd, sano tae oma de ea Sos ‘ea 0 rm fe Wt te Sat ‘er inant was sony ta oe Sumi crt» mine mete dat pet mm camie eprom 8 aw de a ae Ime er ess aan Sei ps ‘Semen Pomc Nasr iy seme ‘hese on pt fem hae Ne ane ar inti ns te ptt ot met “Tae ‘AF ae ew ttn lhe vata reno % Pe one ieee hE so Shon J eons Bo on Grow. ara, ind hai, wipes Seo cae ee ins Ae eo rowel pe fae ‘reiniptoi Yon meno ecver ant page onsen pa he agi» mime fra Kt eats, poe gt mtn ei a ne ino Sti ran Sas Eases oe Sit psa et BOE SS ene ft urs wa sauce {Gies prsttr9 mio conpacee ase “meu cpa") ceca sexton ns brat, Cte ree (Sunde 6 18) de a slg, so itn RS RST ey Sona san sponte eters "cure uae canuedagen Score No esd Ge 1 ac qc wo prt Nace as see” am pastes Sue slp B congue, ian erie dietes maces Seca eae Anite oma, compton, + ecg spc Seite ectseiaerescs races ee ones SES as oa a ee oe cope fara ses ‘Bane iets ile), aber meano oe mabe aera Pa a eg Cte oe ‘slo Su tne portor oe pres ana prt toy ‘es Fett times 89 spe por a dr bln at Ee o ae teeta? Ge crc henge se ‘Buss d's pon enna pore ow de Sain ame cues mane opine i tae ai ‘A peson pivligks ¢ mort psa poh penoggem ¢ est. ee ee eS aS Si ene geo ey nce et aie SS wont Se toda a © ea » ree na oo an comin et Eigse tiger so ngs ee eee San Sem pats eae, Gene vo ame ‘Sittin ean Vitus fe ond oS cuir i, ‘et mene de‘Hatuneparcm Junor psn o po dy com ‘Slices uence op pune gor 0 rte {he natu se tata de Ccompeneros wr come ome pc t'e Seeecteatnaee atu. Pee ees Sees ST EIES ie vee aes Gssteieeenene ct seems Se Tess Gee oie) ge sie a Ep nee St eng See een ee Fe fv tn fete Se eo eu gen ‘unde sua ons sls YT ppt O. Loan ee 982" ms acs peat 0 tan ea us np eno a2 entace ct ‘ie O conabeo ple uo wr Cone a pane eeeviantorstnn pee ah nts te omens en" ics 1906 (a0 30 sqamee qe sam oer unger ops de pile Bice sande gt pena (oral “fees a) ence ae ea ae, MPEG eke Dscceing wane © Ba ne lio pees por meme, et a Shar rare es Guck e eeeS ters Roe st sor eee Thamar, 1938 es pnp So Yr. Srmcame sok gues ivy Se bes ee ge © ‘mgr em te depen © St age ‘Scien lg son pe et fa ge tem ut as pat in ppc non, FS na ote Mit dcwtonn eno Bap sis ter ‘sign Hse Pras Seca aun pt ‘got neers yr ge eT ‘tn, ce eae os 2 lS Fema io en ti Andee ‘hepa s ootnereeamne na ae wnsenee ‘im “Ado eon fms cano ns tm poi sn a telmeecathm pos! up prc Sega s ‘ron ae ne me Sa Fogle a pth Sus andr bones ots ae TG ve do meana eg tme araci. ‘ic ow tog reaae 8 nord Biel dna pnts a tape ‘Sopa et code atl ¢ fed ao Sa ae ‘Sat pte age dna" poi eo Steerer a mites BE put 9 See io SGC ie prc er one oe ahd ep smo podem vr coctne sno mt de ek ae ‘tomar posons peas pas opanes © ele ctrne 0 Enterro Secundério SB deel etme id. Mane dt cogil Sibert ects te a a See re ery mas por atop et fr bata seg sees a i mc dn SSeS ee setfetiie's Star iene Pega a pie let Sn estas eet! ey ‘Sn a in Bie cone wt ‘Se it es espe 9 enema SELENE Raa Se ta ~“ rina eta neg gona nor isu cde sg rae i: Shae br me er hen So eon ‘Glana'mtatnon, wt is) po to Sense pe eee sents pao seq dy do ase formas peter ce Sree etme spl ue Cy Sl 1p os moo gm sis a wc 6 eve dy pea, es eminem econ SE on os “Sis pepe greenies © ce Bet ae a SNCs Cae) Nok ms ‘im Se “ie oe, ome = ‘co torn. Ne ie * het ee gi ten, sme jsp 3 Mes (190-48). a occas Tori do eqpee tt ce wa nee 15 Sis Sate ena cei So Bas cheer fe inion ay as ue sepia eye cos 6 openness Fare ee" ego a ee “seen op ge = ‘Eos i eto, ap, ‘Sos ce! ce Niwas (S59) a re leah Ss inc err posielmene « tatu ‘ovantan, sot comple (cl Reivers Ser ‘eri fbr nn re mae Sr sc ed gd SideRinosor tsa sas pe ee Soran ems Ine sg fee G97 (sr pane) ene fe ecm in Ssteese und n ae ay Tes reese oe ee ees ‘ede lint nse pot orto om Bsr eee ots ee ‘eg dv Dap Mere aise Sade Saar gee ee es ee ater eee sheer to areata as Ne cane bo eh oe, eel oma doe “mene inh Ete tet pnd ta (is So tee sn gar Sa pe a ‘cag Te ntormaner stra que doo angie Ripe at toa tinder cen gr Cant a acne ae, ‘ic pine soe mirc ep care gt, © apa) pt an ge no do se, SESE eo ee Miao eee irs vlaor pga, Mes me tio pore con's, mands manure tania ata ‘dr ota mus ple eG ee sual € 9 i Eeadde poteedae come poten as ¢ Sti ene el gan, re tae © he Soe {Sah EME a de a erage pnp spa de {Soe ot et Seo i ‘veto 9 angie de ots let de eae wn shut hdr cr ce Ne vege tenia do ‘tli ik ese case, or, igen) ‘Sisierad hom ca etna do man Acct desea xe ‘brut, Crema th pode pn ct re sagues ee ‘avons perenne. no etn coven cup age 216 Fst mono een shen os moet Rermare, forts fog i aT Per es gen de oe,» sui ain ce tin in wea cs pores om mit cS) abo, ema peters ee, ‘len deen nice, em pt aendan(14). Tert ri cords cm exes oor te Sera Sh Seperate fe eel Panes cate a in pte por m9 sn dee pb ag tems na sept tp ate peice se gue eS eee Tug en Son cnr true © Oe set i gs du mtn (part) pode er ‘orenctifca 13) ua nso, eto ada de Teele sire ene ee een fs ee ae a 2) cm ets span Soe fein hs Sw to woo ee cre ‘os pce tenes tee espvr ghd pefWogay ot earner, ori Genes am eae a pee « pn, gato 49 pt 0 ore, wn SSO ea areas sare fea Sane SBaee's Spr eshte ole psc eee Se opie ee deme aor Be Deron candi er gut eins leo vn ota es tle oo tlt sae ‘Soue i rae. Ake io, og ara © See Foss oi” a ae aia sa pomeras tee de {imp oe sob ca men, A ge sted neg eras ages ne me ‘yg ed Sareea tes eae ‘Ela be 199) an de mundo c poste ease recnecenern eee anole Scr tats Faescemenerenme ome Sitearosr rats tes ec smen tS eee aie Tpit — SERENA Ss te pa Si sei eee tera ‘Raw seg toe a i tee ——— See ESE ITS Se TERS mage Es Rc nA ps Opt ‘ge ats came aby balopas ‘ey ctitptie cu deamon ooo, pore Ser vearn eu fot ech ae a, ‘ong cn ins 2) cmos dap: By i tt sete ts cma Tee eT Ree same ais Sse Dis eae ‘Sti te ar ge “anoron say orang go “quedo esmran” Nie sheen aco eae oe unre aie wn ea qd ete See a satan a re 4 toate air esata f ns arora weer ' | ‘genie ew GSS} er sues pide i oe kee it apne) — f roeestniecrnreftnds goto a wots as. ( RE SE tmnt 64 pi ts, Salo to, eb Ge, Seca rn ei Seater ccieem sot Yee eo casi (are arate acne es "5: Sai Snes mtg Ea Sho EE Siena ets pope (sie inspect ee rine {cchtnisalae Boot chd cat fnnes (siemaG arta tern ¢ pane ‘he ar et ee Ren er ant te sess Sele o's si de leane ake at ST re et mis apie en ue elena ‘Severn ari ee Yio cpl 1 oy ots vec! epentrse do scotia pa a a Fetus oy cet cRieap oats des : SS reer et Se a ag veya gene Sie eer ce ‘ents Senses xno xt eter apg eur na ces LOSS Spee ey aes eo Piste wana) wom mre cits order ane ares proc nar tat se eminence ta gs SESS RRS es lee cen com ser ds Sr ae ae ‘Siem Site mye ety et or tein cate ge Se ups cea Seay eet Sipls mora aaa tae (fem ‘ime ema erp eet Sees astgees cs tn an ppt Aegis is a ea rot Sos fis Rita te ie ovancinama ane renee eae Rha Tea waste ge ne ‘un, a ge © Ha ean ne, Sod te ‘pa csr tag is rv ta ee Esher no cio dees ¢ pom nb se cong TMi socom peur ey coe se pause om eal alt ae oe sett Sire Sn moe" rs ‘io rene gl 30 pole ds so gue mre sain paride tin ty fo, so mone eg (vse ee saci gn rete ee Epa ov isemo 'sS une cl por sine et his ra ie (ay ca agi a nd (ree Sere cape aE limp pt ort Sheena or rosso Rte Shee Stems et Booey nas tee eae ‘eld, Sones sete Sau tres i fg msm ov mn i eds 10 Cn er areca en Ser ‘ps empl mx taco Sam 9 tse oo cam 8 ies Soe EAT, Martie in ee Shas ope Ss pyigmudiea scan eos tat mei egos Pero aon Sie te ate ean por aad pene oe eee iow Sans” tes eeu te pie mains mone nema pace Ce tips, eed be wa, Co {ide oF Pate ein Stet por lee Spent ese TEN Aan ei our ag mee ove «pl ‘Ciao urn com oe tars" (8). Pareceaey que ese “apy om Sune anon ene se eve (TIT) Cone eypento Oe Boos ‘Sipe A Smog com woe tm ker pcs {sea tino rena 9 ca a abacien Sae ace cee pees ier et keaeereneas eran aoe Store. ‘estas. gpa se ster: sugendo © chee Sa Se moe ee ees Faigle reine gry ‘inom se emt kl 3 epuita Rab’ egcine es Ge etic pot mi caption 0 io commit € cane Scapa So mars ine oes Hens Ser In pn a, gr sa a mice wert tae aes Saigieteeten seme Lewis 1967, 2) © baghgecs « exemplres Adamant hE aetna mete fas ont A emis a ate aan pan Sete mn et de ae Be 6 rac rl psa ai i a eae Sa Saas ee ses oe a ee az nu eet cna a cn a =a emcee SS Sees od foe ‘pido San une _ _ Een o: eeains de otc cn aqua, ins mero i ee ca re Se ee ae Pg wage a nce i Se aE {Sn toe peal o rmpenl log Gt papa see as atin ee Stet ‘exis 0 pohon, ois tocar 2 wcloeaate © ta, Ses cr See oe Se eae SLE Sahiecas rae {eee armen Suton sores A rors es dot mor ins ap, € optim che sox se opal © ‘Sri ort re evans fren Se oa ge Bek 7 pina do, pV, Can du xd, sats Sta ete Ue eu de to pad so ER SS ae ee Moen vol lt tsa tn ures Sir ‘ian pm S's ‘A seta eee ey Spe ee se; vs oes emote anni pone ele {Su teu reve ae nen some gan sete sm san, sede dag, ‘ost lpn shat tome fees de pare she {pening npr ace Retest comnae eben ital ©, ot socqe sf prt als pip, couegenecoen, FeaSih oti dn c ne ae {sin aera, ej ole & pando 0 eis cova ‘eh ttt Sevens rps np pe eo ‘Gh “fe tte wpe ee bce Tenia 8 le Be Bw i iso joe eee tal chains ane = nee do ug ao nan tat ogo rb oo eo STR, SEaNES Seaet Seats Gs {RREEE Gates ptehsauigatae tats PE nee Sane Cons pane oe Tl Eee te dtp met st er ees rt gta es mia tars susan mona dna deo 90 eon aa tape a siete fats mn a ‘egiemelt a ‘sds an son ae ea Oring i eds leer “er ne mn e i ae om era fe heon Se es tr ‘oir a oe ate de mie a sr a ea eer ie aE ce cos eer do) en ter me (ts Sm enone ri a (ten de Hap, tier Beene Beas Hieranga e Culto dos Ancostrais: sua Inexisténeia Atenas tema ge in ln rete Smetana ae Cer TEMES ay Weta Sea ate SERS BST chabtisost mw geen wo a notes eer ee earner me sr Sn olen ae) Sees RATT capaetace teens prom ‘lcs eas «taka sito conc nate eee mts anh a te dee (oa eo ape) eo ae Pei on Se lors ee ge RTGiped a ee ee See Sees ie eee ‘Beans. it tomo por Zé Cabo eciadar de Pedra Prada eee ee nae eee ete ed pee pes) ne ge at isc Lenac emote Deo (197) em uteode mode poms Ud en uefa pre ‘ads ae gcse ta Dereon spe ni 9 a sia se i, es i ae, seen eta ten cere strc i ten gu 9am re cx de, aa npr ers Sir ‘laces es ores me es ig os fiber gun, tales a ie te okt Ta? anon Roe as EmStiisten oa Sarai ne oe be a “corte emesis Scie Sots eee See org nach ace ee ‘tc ttre de eas stn ree, ag Seni Sarees ee aia Biase 0 Pr Toon dy pepe gen a ee ge PT tet Sve Saas auc ar Shige Sa Seer tec Vb ore Rarone py cae oa 5S ope todos cone eevee pans rnc sihome, cacao epee ee Sook Savane aes Fok 53 3 wt monte mS ae XE sia ale cans ole Se ae = sche tet i ge pene me DLE et ms oat ‘Glade UeSus dsm? (0 Fone 5GS 2D woearo, ‘orvagonds aon “inane Coes * iat oe, ‘Elva que os deduges do ud un oe apn enliven Epeeeicswacemencme ss ‘Se Stecaie” Gan wasn pe ender sk Se ee ee Sear ates naea 2 te ee enero ea te ie eo ae doe Lecce see ok aaee 2 esto ei seni, ate Sera eee at cee Hepes ten ied tipo Meorm PES eS ealda agate enn Ceaie aces aa ps a ee ts gis a fv be on en Rear see ole In een cn ‘ha feat © cate dor ee Rae Oo Sern ‘Border Woda, gue abo cSohestr Cle Sou ures w ane agate pelo ia (ares 1961-186) Sen tne ode st Goody te exe tp ap Sa HG me ans do rte tome dae Seles Sima. Gi fet Goa pre Fe tn mom a Suite 9 (G."Geoiy 90243). Nx ir rene Soon Pose cle Sreeiso Cenbetaen’) tl ciel saps > ‘Sacendenca (© a contin) so ces pra 0 recs ian de paper ates HS Py 16 Mer yjnes ma pc a cons de Fs sett Se actllt e Hn k ‘Gennes totem e poutom (eb ee 968.5 ‘Scissor ce Hone "ous Tne tase Sees ae caper arenas oxi atau enema le i Rete Cope pets tla con elt écouter on Bepecn Talon © shemeerememee te Sais Sa enesmeonas tae Repel prema ecw Sumerians capes ae eee as FEE ov two's sup Spree uc” ‘Bitlis ou dead, pogue ss expan» eu he Inge ss ps ho en mo o con etry oa pags qceeaci acme rie cee geieiisnccaecoss SS gee deci ee SeeewetnSises ano Seer ee name Soe Eregeranree ee amen a a ee eens ‘Suu anos a hae tam seenemete pend ete gamit um Seca ar pees (Sie i cl ci» sere Sani cnt Screg Ser Sw lao ooo ian i ‘sc en Seta Ste ae San (Sf tp do i poli, oo ee aa ‘poncsca do pnae scarier an ses eee See cw ar in ‘Sen ea tho eS eps Cea NS ‘ue cia ge ae close eeprom ‘eh pole Be bo pada pends cane ape lyfe vine emo te os ptcnaes alos ‘ccs nio gas So twnrdades@ rete, ene ny ‘gear me cape te cbt, Smet ee eat epi a pe eas See tae ee contenant ces si Taticie tasers praise See Bats eee ee ee ee ted a ea Sioacn cera peeremee ee ered Eeing Sates some ee eee PELE ee Shae pe oes : Paes iae sm or upstate ory ¢ os ees Sia et Brae gilio t e ge emar tt Os Mortos so Outros gh poduney inp eee (i te ds pa ‘lie sce pp oh eas fs ‘ie eg pret canis dren nee Spm hn mone te a ae so mat ee — mv Flop se or epee one SM ‘No pian, eo en, mean ar hg, supa oni dyer ed nor fan eR ra ini ae de posan detain cae ‘in Teme tence = Mme Oso isp (lon) tcetag“otomo own es ne ‘Sins code heel we coca Gas a SATE a sth te te Aso ot pte pt nena ene TSS es =— te i tet op cme (ha eel a et rece Cis Sees vee at Ase cnet 3 Semin 2s ines EE eens Peet ee ae Seah cate ee mae saa a aad SSTRIE Sa Got Sane ee foes asf cae tr an rte : saat ea coma iia Gate scm Owe sa, es tena secre Tres arg epenan gens ger mes ‘Stn’ wn snqeto nea s merg cehs SES iy toe ae Senet Fei ean Sc ne eo Ta ei ia er tee Sao a cae deta ers iS” en Sn Sr Wane ds ens sear ni memsecen orain ee Spe ft Sli nee eS Bact he ir ame oes Bee epatart? om ee ‘abet carn ¢ of a gaan cleat sen Sor eee Se Eniearea nha ae ee Ea Sete so l= dy epson cotcs treet Syne cose ool urea ah eaten See ea rea ‘ihr 9 te ce vy se Ka ed aa te eae vols Cxete ero Ba amDige te eo Referencias Bibliogrifcas a gn, Mab "a rm i = eee =x eens 0 Bi Ly La nt ee cl i 0 ls tm a dei, Co he [Sees eee eer ron pp da eaters eae ee Sa A aa deed Seen, Sa we Poaci ot MiP op ete, a i En Sa Pa Salo Dean a Aa AIG etait Lae papa) ny ee Hat fa ih ee a ie Une iy Eg nile ru al ay fee ee atic tal ara ga ee 2p Mw UWit Hlyay gay fia lal fy dit iikh aig 1 reed lady TARE Ga dari 1 (EAMG tad ay hag a Beeld tp cE eee ati de a gt Ae a itunes EU it Heh TR SYR ee hn ty dn Ad EE a i OR eat ada Ssh shpat fin Sst eRe rege eee ‘epee bag Nike "Se. os, Cae” EY SDE resins ‘a sl "as erg EA i M4

Você também pode gostar