Você está na página 1de 62
O HOMEM, O ESTADO E A GUERRA Uma anilise te6rica Man, the State and War A theoretical analysis Kenneth N. Waltz Traducio ADAIL UBIRAJARA SOBRAL Revisio da tradugao MARINA APPENZELLER Martins Fontes Sao Paulo 2004 CAPITULO DOTS A primeira imagem Conflito internacional ¢ comportamento bumano Existem a fraude © a asticia, e delas advém as guerras. Coxrticio De acordo com a primeira imagem das relacées internacionais, o local das causas importantes da guer- ra resicle na natureza e no comportamento do homem As guerras resultam do egoismo, de impulsos agressi- vos mal canalizados, da estupidez. As outras causas 580 secundarias e devem ser interpretadas 4 luz desses fa- tores. Se essas sio as causas fundamentais da guerra, a eliminagao desta tem de vir da elevacao e do escla- tecimento dos homens ou de medidas que assegurem ‘seu reajustamento psicossocial, Essa avaliagao das cau- ‘sas € dos remédios tem dominado os esctitos de muitos estudiosos sérios dos assuntos humanos, de Confiicio ‘0s pacifistas de nossa época. Este também € 0 tema is do comportamento’, Principal de muitos cients As prescric&es associadas as andlises da primeira imagem nao tém de exibir um contedido idéntico, como |. Ha uma extensa discussio sobre cles no cap. tes, adiante ey uns poucos exemplos vio indicar. Henry Wadsworth Longfellow, movido 4 expressdo poética por uma visi- ta ao arsenal de Springfield, registrou os seguintes pen- samentos: ‘Were half the power that fills the world with terro ‘Were half the wealth bestowed on camps and courts, Given to redeem the human mind from error, There were no need of arsenals and forts. Ise metade do poder que enche o mundo de terror, Se metade das despesas da caserna & das cones, Servisse para livrar a mente humana do e170, cervisse para livrar a mente Nao seriam necessérios arsenais e fortes.) Est implicita nesses versos a idéia de que as pes- soas insistiriam na adogao das politicas corretas caso soubessem quais sao. O instinto das pessoas € bom, embora sua atual credulidade as possa levar a seguir falsos lideres. Quando se atribuem as dificuldades avuais a uma deficiéncia de conhecimento, a educacao se tor na o remédio para a guerra, Trata-se de uma idéia dis- seminada. Beverly Nichols, pacfista que escreveu nos anos 1930, julgava que, se Norman Angell “pudesse ser nomeado ditador educacional do mundo, a guerra se dissiparia como a névoa matutina numa so geraclo” Em 1920, uma conferéncia dos Amigos, que nao dese javam confiar apenas no desenvolvimento inelectual . conclamou os povos do mundo a substituir a busca dos interesses pessoais pelo espirito de sactificio, de coope- ragio e de confianca. Mais ou menos na mesma €poce € com o mesmo estado de espirito, Bertrand Russell via TNs Gry Hawnet p16 5S fit The Quater i Peace and Warp, S21 25 © declinio dos instintos de posse como condigao para @ paz’. Para outros, o aumento das chances de paz exi ge no tanto uma mudanga dos “instintos’ quanto uma canalizacao de energias que no momento sao despen- didas na loucura destrutiva da guerra. Se houvesse algo @ que os homens dessem preferéncia em lugar de guer- rear, suas batalhas cessariam inteiramente. Aristofanes era dessa opiniao, Se as mulheres de Atenas se recusas, sem aos seus maridos € amantes, seus homens teriam de escolher entre os prazeres da alcova e as experién- Chas revigorantes do campo de batalha. Arist6fanes jul- gava conhecer bastante bem os homens e as mulhe- 's de Atenas para fazer do resultado uma conclusao inevitavel. William James seguia essa mesma tradicao. A guerra, na sua opiniao, se acha arraigada na natureza belicosa do homem, que € 0 produto de uma tradicao secular. Sua natureza nao pode ser alterada, nem seus impulsos suprimidos, mas podem ser desviaclos. Como alternativas ao servigo militar, James sugere recrutar os jovens do mundo para minerar carvao e tripular navios, Para construir arranha-céus e estradas, para lavar louca € roupas. Embora sua avaliagao de quais canalizacdes bastariam seja a um 86 tempo menos realista € com in- tencdes mais sérias do que a de Aristofanes, sua solu (io € claramente do mesmo tipo* As prescricées variam, mas todas tém em comum a idéia de que, para se conquistar um mundo mais pa cifico, os homens tém de ser transformados em sua Perspectiva moral ¢ intelectual ou em seu comporta Russell, Political ideals. p. 42, De uma maneira ov de outa, ‘ese pensimento se repete nos muitos escitos de lorde Russell sobre as relagdes internacional 5. James, “The Moral Equivalent of War", In: Memories cn St dies, pp. 262-72, 290, 26 mento psicossocial. Pode-se no entanto concortlar com a andlise das causas da primeira imagem sem admitir a possibilidade de prescrigoes praticdveis para sua eli- minacdo. Entre os que aceitam uma explicacio da guer- ra da primeira imagem, ha tanto otimistas como pessi- mistas, 05 que pensam que as possibilidades de pro- gresso So to grandes que as guerras vao acabar antes do desaparecimento da proxima geragio e os que pen- sam que as guerras vao continuar ainda que levem to- dos nds & morte. “Otimista” & “pessimista” sao palavras enganosas, mas € dificil encontrar melhores. Se os de- finirmos simplesmente de acordo com as expectativas, © que corresponde :1o uso popular, € dificil, senao im- possivel, colocar uma determinada pessoa numa ou na outra categoria. Ha graus de otimismo e de pessimismo, © a mesma pessoa pode ser otimista com relagdo a al gumas coisas © pessimista com respeito a outras. Os significados filosoficos dos termos so mais claros e de maior utilidade. Pessimismo em filosofia é a crenga de que a realidad é imperfeita, pensamento expresso por Milton e Malthus nas afirmag®es citadas no capitulo an: terior, Momentaneamente € possivel conceber restri g6es mais ou menos adequadas as forgas do mal, mas a expectativa de um resultado geral e permanentemen- te bom é impedida pela constante consciéncia dos efei tos viciosos de uma falha essencial". O otimista, por outro lado, acredita que a realidade é boa e 2 socieda- de € basicamente harmoniosa. As dificuldades que tém assediado o homem sao superficiais € momentdness. Essas dificuldades continuam a existir porque a hist6: ria € uma sucessdo de momentos: mas € possivel modi ficar a qualidade da historia, ¢ os mais otimistas acham que isso pode ser conseguido de uma vez por todas 6 CE Morgenthau, Poles among Nations, pp. 2 com grande facilidade. Volta-se as expectativas, mas as expectativas baseiam-se em concepgdes de mundo dlis- tintas. Cumpre assinalar que 0 pessimismo acerca das chances dle um sucesso definitivo, a eliminacao da guer- 1a, por exemplo, ndo equivale a alegar que nada pode ser feito com relacdo ao nosso apuro atual. O pessimis- ta pode ter mais esperancas do que 0 otimista quanto ao adiamento da guerra que ameuga 0 amanha; o oti- mista pode acreditar que ndo vale a pena fazer nada que fique aquém da aplicacio da solucdo que supos- tamente vai levar ao sucesso definitivo e completo. O Pessimista merece 0 epiteto porque considera o suces- so definitivo impossivel, mas ndo é preciso considerar © epiteto como um oprébrio. No ambito de cada imagem, ha otimistas e pes mistas concordando com as definigées das causas ¢ die vergindo sobre o que se pode fazer com relacao a elas, © € que se pode fazer algo. Além disso, a consideracdo critica de uma determinada imagem pode ser uma base insuficiente para formar um conjunto geral de expecta- tivas, jd que a propria imagem pode deixar a desejar. Isso ficard evidente quando buscarmos compreender as sucessivas imagens. Neste capitulo, consideramos pri mordialmente aqueles que aceitam a proposicdo de que, para entender a recorréncia da guerra, é preciso examinar antes de mais nada a natureza € 0 comporta- mento do homem € que, a0 examind-los, identificam 0 defeitos inex:irpiveis por meio dos quais 0s males do mundo, inclusive a guerra, podem ser explicados. No proximo capitulo, consideraremos alguns dos mui- tos que, examinando as mesmas causas, confiam que elas podem ser manipuladas ou controladas a fim de produzir, se ndo uma condigao éefinitiva de paz, ao me- os um notavel decréscimo da incidéncia da guerra 28 Quando escreveu que “tudo 0 que pode ser dito ‘em favor de um equilibrio de poder s6 pode dito por que somos perversos”, Jonathan Dymond, um pacifista do comeco do século XIX, elaborou uma declaracio que tanto otimistas como pessimistas endossam’. Os otimistas véen a possibilidade de transformar os per- versos em bons € de acabar com as guerras resultante: da atual politica de equilibrio de poder. Os pessimistas, ainda que aceitem que a origem do equilibrio de po- der e da guerra é a natureza humana, véem pouca ou nenhuma possibilidade de o homem se comtigir. Ao con- tririo, eles concedem uma posi¢io honrosa ao equili- brio de pode:, porque, para usar a figura de Dymond, ele pode de fato evitar que os “tigres” se despedacem uns aos outres. E, se de vez em quando nao evita, ain- da assim € melhor uma profilaxia deficiente do que nenhuma. ‘Otimistas e pessimistas concordam em sua analise da causa, mas, divergindo quanto a possibilidade de al- Terar essa causa, vém a ser os mais amargos criticos uns dos outros. Reinhold Niebuhr, teGlogo que nos Gltimos vinte ¢ cincc anos tem escrito tantas palavras sabias sobre os problemas de politica internacional quanto os specialistas académicos no assunto, critica os utopis- tas, tanto liberais como marxistas, com fregiténcia € com um efeito revelador. O realismo politico, alega, € im- possivel sem que se tenha uma idéia real da natureza do home’. Todos, naturalmente, julgam suas proprias teorias realistas. E 0 caso dos otimistas, que também julgam que

Você também pode gostar