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vee, Far eata-(2. Luterd 1 74 SOBRE A | Q AUTORIDADE SECULAR SOBRE A AUTORIDADE SECULAR de Martinho Later SOBRE 0 GOVERNO CIVIL de Joao Calvino i HEUO DE MARCO LETTE DE HARKOS. CARLOS EDIAIIDO SIEVEIRA MATOS Martins Fontes Séo Paulo 1995 8 SORE A ALTORIDADE SOLAR Segunda Parte Até onde se estende a autoridade secular Chegamos agora 4 parte principal deste ser- mio, Aprendemos que nesta terra deve haver autoridade secular € como se pode fazer dela tum uso benéfico e cristdo. Agora, devemos es- tabelecer quio longo € 0 alcance dessa autori- dade, até onde pode estender seu brigo sem uluapassar seus limites e invadit © governo € © reino* de Deus. Trata-se de algo acerca do que devemos ter muita clareza. Quando € dada ex cessiva liberdade de agao [80 governo secular), © dano que disso resulta € insuportivel e revol- tante, mas (@:la confinada em limites demasiado estreitos também se mostra prejudicial. No, pri- meiro caso hd punigio excessiva, € no oUuxo, insuficiente, £ mais toleravel, porém, enrar no segundo caso: & sempre melhor um putife con- servar a vida do que um homem justo* ser mor- to, Existem sempre patifes no mundo, € sempre existifio, mas ha poucos homens justos. 1377: O primeico ponto a ser notado € que as duas partes em que se dividem os filhos de ‘Adio (como dissemos acima), uma 0 reino de Deust sob Cristo, a outra 0 teino do mundo* sob a autoridade* [secular], tém cada uma sua propria espécie de lei*, A experiéncia cotidiana mostr-nos suficientemente que cada reino de- ve ter suas proprias leis © que nenbum seino ou govemo pode sobreviver sem set, O gover- OCA PUI mods ne we. Cours FEUCE mMibese UTR. SUE A ACTORIDADE SELLA 9 no secular tem leis que no se estendem s'ém do corpo, dos bens € das questdes exteriores terrenas*. Todavia, no que diz respeito a alma, Deus ndo pode e nao quer permitir que qual. quer outro governe além dele mesmo. £ assim, onde a autoridade secular toma a seu cargo gislar em relagdo a alma, ela invade [0 que pertence a} 0 governo de Deus e simplesmente seduz e faz perder as almas. Pretendo tornar esse ponto tao claro, tio sem ambigiidade, que ninguém poss deixar de apreendé-lo, p: Fa que nossos senhores os principes ¢ bispos possam perceber a loucura de tentar compelir 4 crenga nisto ou naquilo por meio de leis e ordens. Se alguém impuser as almas uma lei feita pelo homem, obrigando a crenga no que esse alguém quer que se acredite, provavelmente nio haverd palavra de Deus pari justifici-lo™ Se ndo existir nada na Palavex de Deus quanto 4 i880, serd duvidoso se é isso 6 que Deus quer, $e ele mesmo no ordenou alguma coi- si, no ha meio de estabelecer que esta lhe seja agradavel. Ou, antes, podemos estar cer- tos de que ndo Ihe € agradavel, pois ele quer que nossa fé se baseie exclusivamente em sua divina Palavra; como ele afiema em Mateus 18 Ina verdade, 16,18): “Sobre esta pedra edifica- fei minha igreja.”* E também em Joie 10 (27]: “Minhas ovelhas escutam minha voz © me co- nhecem, mas nao escutam a voz dos estrunhos € fogem deles.” Segue-se disso que, com suas ‘ordens blasfemas, » autoridade secular ling SOBRE 4 AITORIDADE SECT LAR as almas na danagao eterna. Pois isso significa obrigar as pessoas a acreditar que algo com certeza agradari a Deus, quando isso nao € absolutamente certo; 20 contririo, € certo que desagrada a Deus, uma vez que nio existe lrexto no} Verbo de Deus para sancioné-lo. Pois quem quer que acredite que algo seja correto quando de fato é errado ou duvidoso nega a verdade, que € 0 proprio Deus, € cr@ em mentiras € erros..*" Portanto, € absoluta loucura eles nos orde- narem que acreditemos na Igreja, nos Padres (da Igreja] € nos Concilios mesmo que no exista Palavra [expressal de Deus [quanto 10 que nos dizem para acreditarl. Si0 Os apdsto- Jos do deménio, ¢ nio a Igreja, que divulgam. essa espécie de ordem. A Igreji nao exige na- du, a excegio do que é certo segundo a Pala- vra de Deus, Como diz Sio Pedro [1Pd 4,11]: “Se alguém fala, fuga-o como se pronunciasse oriculos de Deus.” Mas eles jamais serio capa zes de mostrar que os decretos dos Concilios slo 0 Verbo de Deus. 2 0 que é ainda mais ri- diculo & quando se argumenta que, afinal, rnisso que Os reis. os principes © a5 pessoas ge ralmente créem. Mas, meus :imigos, no somos batizados em nome de reis € principes ¢ das pessoas em gera!, mas em nome de Cristo & do proprio Deus. E nosso titulo no € 0 de reis" ou “principes” ou “pessous em geral’, mas 0 de cristios. (378;] Ninguém pode ou de- ve estubelecer comandos part @ alma, exceto aqueles que podem direciond-la no rumo do Te, SRE AL TORIDADIE SECHLAR al céu, Nenhum ser humano, porém, pode fazé- Jo; apenas Deus. E portanto, nas coisas que di- zem respeito a salvacio das almas, nada deve ser ensinudo ou aceito a nio ser a Palavra de Deus. Outro ponto importante & 0 seguinte, Por mais esttipidos que sejam, eles devem admitir que nao tém poder sobre a alma, pois nenhum ser humano pode aniquilar a alma ou truzé-la 4 vida, ou encaminhi-la ao céu ou ao inferno. E, se eles ndo ucreditarem em nés, entio Cristo Vai mostri-lo com clareza mais que suficiente quando diz em Mateus 10 (28): "Nao temais os que matam 0 corpo e depois disso nada mais podem fazer. Temei antes aquele que, depois de destruir 0 corpo, tem o poder de condenar 420 inferno.” Com certeza isto é suficientemen- te claro: a alma é retirada das maos de todo & qualquer ser humano ¢ colocada exclusiva: mente sob 0 poder* de Deus. Agora me digam (o seguinte: alguém que estivesse lacido daria ordens onde nao tem autoridade"? Voces pode- Fiam igualmente ordenar que a Lua brilhasse por seu comundo. Haveria algum sentido se as pessoas de’ Leipzig devessem estabelecer as leis para nés aqui em Wittenberg, ou vice-ver- sa? Quem quer que tentasse isso receberia em agradecimento uma dose de heléboro, para desanuviar sua cabega € curar seus resfriados Mas € exatamente isso 0 que estio fazendo nosso imperador" © nossos judiciosos princi- pes; eles deixam que 0 Papa, os bispos € os sofistas os liderem, 0 cego conduzinclo 0 cego. 2 SOBRE A AUTORIDADIE SH Lal ordenando que seus siditos tenham a crenga que 08 principes consideram adequads, sem a Palavra de Deus. E entdo eles insistem em conservar o titulo de *Principes Cristios", que Deus proibiu Outra maneira de captar esse ponto é a de que (oda € qualquer autoridade $6 pode agit, € 36 deveria agir, onde possa perceber, saber, julgar, sentenciar € modificar as coisas. Que espécie de juiz seria aquele que julga as cegas, ‘em assuntos sobre os quais no pode escutar nem enxergar? Mas me digam: como pode um ser humano ver, conhecer, julgar e mudar os coragdes? Isso € da competéncia exclusiva de Deus. Como diz 0 Salmo 7 (10): "Deus sonda 0 coragao € os Fins." E também [Sl 7,9}: “O Se- nhor € 0 juiz dos povos" e Atos 10 {na verda- de, 1,24; 15,8: “Deus conhece os coragdes.” E ainda Jeremias 1 [de fato, 17,9]; “Falso € ines crutével € 0 coragio do homem. Quem pode sondé-lo? Eu, 0 Senhor, que sondo 0 coracao € 6s fins.” Um tribunal-deve ter um conhecimen- to exato do que deve julgar, mas os pensa~ mentos € as mentes das pessoas nao podem ser manifestos para ninguém a excega Deus. Portanto, € impossivel e fatil ordenar ou coagir alguém a acreditar nisso ou naquilo. Exige-se aqui uma habilidade diferente; a for- cca" nio vai funcionar. Fico surpreso com esses lundticos [379:), visto que eles préprios tém um ditado: De occultis non iudicat ecclesia, a Igre- ja nao é juiz. em assuntos secretos. Ora, se [até mesmo} 2 Igreja, 0 governo espiritual, apens UOTERY SOURIS AP TORIDADE SCL Lake 4s rege assuntos que sejam piblicos € abertos, com que direito a autoridide secular, em sua loucura, ousa julgar uma coisa tio secrets, es piritual e escondida quanto a fe? Cada um deve decidir por sua conta € risco em que deve acreditar deve cuidar para que acredite corretamente. Qutras pessoas no po- dem ir para 0 céu ou para o inferno em meu nome, ou abrir ou fechar as portas do céu ou do inferno] para mim. Tampouco podem scre- ditar ou deixar de acreditar em meu nome, ou coagir minha crenga ou descrenga. © modo ‘como a pessoa acredita € um assunto de cada ‘consciéncia individual, e isso nao diminui fa autoridade de} os governos seculares. Eles de- veriam, portanto, contentar-se em cuidar de seus proprios assuntos € permitir que as pes- soas acreditem no que podem e no que dese- jam, sem usar de coergio nessa esfera contra ninguém. A fé € livre, e ninguém pode ser compelido a crer. Mais precisamente, longe de ser algo que a autoridade secular deve criar ¢ compelir, a f€ € algo que Deus elabora no es- pirito, Daf afirmagio comum, que também esté presente em Agostinho": ninguém pode ou deve ser forcado a acreditar em alguma coisa contra sua vontade. Essas pessoas cegas ¢ despreziveis nio com- preendem que coisa absurda e impossivel es- Wo tentando. Por mais rigorosas que sejam suas ordens, por maior que seja seu furor, no podem forcar as pessoas a fazer mais do que obedecer por palavras e atos lexteriores|: niio ” SURE A AU TORIDADIE SEAR podem obrigar 0 coragio, ainda que chegues: se dilacerar tentando, Hi muita verdade no diado: 0 pensamento é livre. Qual o resultado de sua tentativa em obrigar as pessous a acre- ditar em seus coragdes’" Tudo 0 que conse- guem é obrigar as pessoas dee conscincias fré- eis 4 mentit, 2 cometer perjario, a dizer uma Coisa enquanto em seus coragdes acreditam fem outra, E desse modo [os governantes} cumu- lam sobre si mesmos os revoltantes pecados cometidos por outros, porque todas as menti- ras € perjirios proferidos por tais (pessoas de] frageis consciéncias, quando ditos sob coereio, recaem sobre aquele que as obriga a fazer is- so, Seria muito mais facil, embora pudesse sig- nificar deixar que seus siditos cometessem er- tos, simplesmente deixi-los errar, em vez de obrigi-los a mentir ea declarar [com suas bo- cas] 0 que nao acreditam em seus coragoes. E 10 € correto impedir um ato mau: cometendo- se outo ainda pior. Vocés querem saber por que Deus determi- nou que 0s principes seculares devam fracas sar dessa horrivel maneira? Eu thes drei. (380:) Deus Ihes dew mentes perversas ¢ pretende acabar com eles, assim como acabard com os principes espirituais deles. Pois meus desgracio- 0s senhores, papa e os bispos, deveriam ser “bispos* (efetivos) e pregar a Palavra de Deus. Bles, porém, cessaram de fazé-lo ¢ tornaram-se principes seculares”, governando por meio de leis que dizem respeito apenas 4 vidit ¢ as possessdes materiais. Eles consewuiram colocar ETEK SURE A AUTURIDADE SECULAR 6 tudo de cabega para baixo: deviam governar as almas com a Palavra de Deus, interiormen- Te, © ih VET Css GOVETTMT CAStELOS, bUTROS, regides € povos, exteriormente, ¢ atormentam as almas com crimes inenarriveis. E 0s senho- res temporais, que deveriam governar exterior mente regides € povos, tampouco o fazem; em vez disso, a tinica coisa que sabem fazer € tosar e tosquiar, empilhar uma taxa sobre outra, dei- ar 4 solta um urso aqui, um lobo mais adian- te, Nao ha entre eles bou-fé ou honestidade; gatunos € patifes comportam-se melhor do que cles: 0 governo secular atolou-se tio pro- fundamente quanto 0 governo dos tiranos es- pirituais. Deus fez com que tivessem mentes perversus © privou-os de suas faculdades, de modo que desejam governar espiritualmente as alms, assim como as autoridades espirituais pretendem governar de modo mundano*. E fo propésito de Deus em tudo isso é] que eles acumulem impensadamente sobre si mesmos (05 pecados dos outros, que recebam 0 odio dele © 0 da humanidade, até que se arruinem juntamente com os bispos, 05 parocos € os ‘monges, todos os velhacos reunidos. E entio eles atribuem toda a culpa ao Evangelho, blas- femando contra Deus em vez de confessar sua propria culpa ¢ dizendo que so nossas prédi cas que fizeram isso*, quando é sua iniqiida- de perversi que thes causou isto, € eles 0 me- receram e continuam a merecé-lo; os romanos disseram exatamente a mesma coisa quando fe 46 SOBRE 4 AUTORIADE SECCLAK mento de Deus sobre esses grandes homens. ‘Mas eles ndo 0 compreendem, para que os gt ves designios de Deus nao sejam frustrados por arrependimento”. Mas voces poderio replicar: em Romanos 13 {1], S40 Paulo nio afirma: “Todo homem se submeta ao poder e a superioridude"? E Pedro, que deveros nos sujeitar x toda a sorte de ins tiwiggo humana? (IPd 2,13] Voces estdo total. mente certos, € com isso trazem gro para meu moinho. Sao Paulo esti falando de supe- flores" e de poder’. Mas acabei de mostrar que inguém tem poder sobre as almas exceto Deus. Sio Paulo nao pode estur falando de obediéneia onde nao existe poder {com direito » obediéncia). Segue-se que ele nio est dis- correndo acerca da fé € nao esta dizendo que 2 autoridade mundana deve ter 0 direito de comandar a fé. Ele esti falando acerca de be- neficios exteriores, acerca de comandar € g0- vernar na terra. E ele torna claro que € disso que esti falando quando traca um limite tanto para 0 poder quanto para a obediéncia: “Dai a €ada um 0 que Ihe € devido: 0 imposto a quem 4 devido; a taxa a quem € devida; a re~ Yeréncia a quem € devida; 0 temor a quem & devido" [Rm 13,7]. Em outras palavras, a obe~ diéncia e 0 poder seculares estendem-se ape- ras 2 impostos, taxas, honras, reveréncias, coi- sas exteriores. No mesmo sentido: “O poder ‘nao incute medo quando se faz 0 bem, mas quando se pratica 0 mal” [Rm 13,3]. Ele esta estabelecendo um limite para 0 poder: este LUTE: SOBRE A AU TORIDADE SECULAR nio deve ter dominio sobre a fé © a Palavea de Deus, mas sobre a pritica do mal Sio Pedro temo mesmo objetivo quando fala da “instituigdo humana". Ora, as instituigdes humanas no podem abranger 0 céu e as al- ‘mas, mus apenas a terra © as agdes exteriores dos homens uns com os outros, assuntos acer- ca dos quais os homens podem ver, conhecer, ponderar, sentenciat, punir € inocentar: © proprio Cristo sintetiza tudo isso com a admirével distingao [que estabelece].em Ma- teus 22 [21]: “Devolve! ao imperador 0 que & do imperador, € Deus 0 que é de Deus."* Se © poder do imperador se estendesse ao reino © 20 poder de Deus, em vez de ser algo dife- rente e separado, nao haveria sentido em dis- tinguir entre os dois. Mas, como se disse, a al- ma nao esti submetida ao poder do impera- dor. Ele nao pode darthe ligd nao pode exterminé-la nem trazé- poce amarri-la ou liber tencié-la, seguré-la ou solté-la. E no entanto cle precisaria [ser competente para fazer tudo isso} caso devesse ter 0 poder de legislar em relagio a alma e dar ordens acerca da alma. Mas, no que diz respeito a bens materials € hontarias, este € seu dominio proprio. Porque tuis coisas esto submetidas a seu poder. Ha muito tempo Davi resumiv tudo isso numa afiemagao breve e precisa do Salmo 113 ina verdade, 115,16): “Ele deu 0 céu para o se- nhor do céu, mas a terra, ele a deu para os fi Ihos de Adio.” Em outras patavras, © homem a8 SOUR AF TORIDADE SEI LA pode ter poder 2 partir de Deus no que diz Tespeito a tudo aquilo que seja da terra © per tenga ao reino* temporal, terreno. Mas tudo aquilo que pertencer 40 céu € a0 reino eterno estard submetido exclusivamente & Lei do céu E Moisés tinha isso em mente quando diz em Génesis 1 (26): “Deus disse: fagamos 0 homem, fe que eles dominem sobre os animais © 0S peixes do mar e as aves do céu.” Tudo isso ao concede aos homens mais do que 0 go Yerno exterior. E, em resumo, o que significa é ‘que, como diz Sao Pedro em Atos 4 [nz verda- de, 5,29]: “Devemos obedecer antes # Deus que aos homens.” E com isso ele esti eviden- temente tragando um limite para a autoridade, Pois, se devéssemos fazer tudo quanto aqueles ‘em posigio de autoridade nos dizem para fa- zer, nio haveria sentido em dizer “Devemos obedecer antes a Deus que aos homens” "Assim, se um principe ou um senhor secu- lar ordenar-thes a adesio 20 papado, a crenga isto ou naquilo € 2 entrega de livros, a sua resposta deveria ser: no € adequado que Lt cifer esteja 20 lado de Deus. Meu bondoso se- hor, devo-Ihe obediéncia com minha vida € ‘meus bens, Ordene-me o que se enquadra nos limites de sua autoridade e obedecerei, Mas se ordenar-me acreditas, ou entregar meus livros, nao obedecerei, Pois entio o senhor torna:se {tera se tornado] um tirano € se excede [se_ex- cedidol, dando ordens num terreno no qual no tem direito ou poder. Se entio ele se poderar de seus bens e puni-lo por sua dese: LIER SORE & AUCTORIDADE SECT LA ” bediéncia, que as béncios recaiam sobre voce, fe agradega a Deus por consideré-lo digno de sofrer por amor a sua Palavra. Deixem que 0 tolo se enfureca; [382] ele ceramente encon- rari seu juiz, Mas eu thes digo: se nao resisti- rem a ele ¢ deixarem que ele thes roube sua fe ¢ seus livros, entdo verdadeiramente voces teri negado a Deus. Deixem-me dar-thes um exemplo. Em Meis- sen, na Baviera e na Marca, ¢ também em ou- tros lugares, 03 tiranos promulgaram um de creto ordenando que [todos] os exemplares do Novo Testumento fossem entregues em suas repartigdes. O que os siiditos (desses gover- nantes) devem fazer € 0 seguinte: sob risco de perderem suas almas, eles nao devem entregar uma Gnica pagina, nem sequer uma letra. ‘Aquele que © fizer estari entregando Cristo a Herodes; seri um assassino de Cristo, como 0 foi Herodes. Devem suportar que suas casas seam invadidas com violéncia® [mit Gewalt] saqueadas, quer sejam tomados seus livros, {quer outros bens, Nao se deve resistir a0 mal, mas suporté-lo. E claro que voces no devem aprovar 0 que € feito, nem levantur um dedo ‘ov dar um 86 passo para ajudi-los e favorecé- los por qualquer modo que sejt, € tumpouco devem obedecer. Esses tiranos agem como os principes mundanos costumam agir. Principes do mundo o que eles sio. © mundo, porém, € inimigo de Deus, ¢ consequentemente eles devem fazer 0 que esté em desacordo com Deus mas de ucordo com @ mundo, de modo wu SOBRE A ALTONIDADE SECLLAR a conservarem suas honrarias € permanecerem principes-mundanos.£, portanto, voces. 10 devem se surpreender com o furor © a estupi- dez deles contra o Evangelho. Eles precisam ser leais para com os titulos que ostentam. Vocés precisam saber que, desde 0 inicio dos tempos, um principe cauteloso tem sido ‘uma ave rara no mundo, € um principe justo é ainda mais raro. Em regra, os principes sio os majores tolos ou os piores criminosos sobre a face da terra; devem-se esperar deles poucas coisas boas e sempre 0 pior, especialmente no ‘que diz respeito a Deus e a salvacao das almas. Iss0 porque eles so os carcereiros € carrascos de Deus, e sua célera divina faz uso deles para punir os maus e conservar a paz exterior. Nos- 30 Deus € um senhor poderoso, € & por esse ‘motivo que deve ter tais carrascos € porta-ma- as nobres, ricos € bem-nascidos, € permite que recebam de todos, em medida crescente, riquezas, honrarias € reverente temor. £ sua vontade € gosto que chamemos “graciosos se- mhores” 2 seus carrascos, caiamos a seus pés € ‘nos submetamos a eles com toda a humildade, desde que nio ultrapassem seus limites que- tendo tomar-se pastores em vez. de carrascos. Se um principe tiver a sorte de ser cauteloso, justo ou cristio, este seré um dos maiores mi- lagres e um sinal extremamente precioso do favor divino sobre a terra. Mas} no curso nor- mal das coisas, prevalece 0 qué diz Isaias em 3 dl: “Darlhes-ei criangas por principes, sim- plorios serdo seus senhores.” E também Ostias UcTERL: SURE A aUTOMIDADE SECULAR 31 13 (11); “Eu te dou um rei em minha ira, eu 0 _—-retomo.em.meu. furor O-mundo.é demasiado. — perverso para merecer principes muito mais sibios e mais justos do que isso. As ris preci- sam de cegonhas. Mais uma vez, porém, vocés objetario que a autoridade secular ndo obriga crenca; pelo recurso a meios extemos, ela simplesmente impede que as pessoas sejam desencaminha- das por falsas doutrinas. De que outro modo poderiam ser contidos 05 heréticos’ A resposta & cabe aos bispos fazé-lo. Essa tarefa foi aui- buida a eles € nao aos govemantes. O uso da forca* ndo pode jamais coibir a heresia. Impe- di-la requer um tipo diferente de talento; nio ¢ tata de uma batalha que possa ser travaca com a espada, Nessa batalha, quem deve lutar € 2a Palavra de Deus. E, se esta nio for vitorio- 1, entdo certamente o poder secular tampou- co 0 seri, ainda que devesse inundar 0 mundo com sangue. A heresia é uma coisa espiritual; nio pode ser abatida pelo ago, queimada pelo fogo ou afogada na agua. Unicamente a Pala- vra de Deus pode ftriunfar) aqui; como diz Sao Paulo em 2Corintios 10 [4 ss.) “Nossas armas no sio carnais, mas tém, a servigo de Deus, 0 poder de destruir todos os raciocinios presun- {osos e todo poder altivo que se levanta con- tra 0 conhecimento de Deus, ¢ tomam cativo todo pensamento para leva-lo 4 obedecer a Gristo.” E, com efeito, a fé € a heresia jamais sto tio fortes do que quando a forca* pura e sim- SURE 4 AL TURIDADESECEL IN 1m vez da Paluvra de Devs, € usada con- tra clas. Pois [esse Cas6) #5 pessoas purtem'do pressuposto de que a forga ado esté sendo usi- Gem prol da justiga e que aqueles que a utili gam estio agindo de muaneira injusts, precis mente porque estio agindo sem # Palivra de Deus endo conseguem imaginar outro meio de promover seus objetivos senao pelt forga pura C simples, como se fossem animais desprovi- dos de razio. Mesmo em assuntos seculares forca nao pode ser empregada, a menos que @ culpa tenha sido antes estabelecida com refe- rencia a lei, E é ainda mais impossivel utilizar a forca sem o direito € sem a Palavra de Deus fem tais assuntos elevados € espirituais [como @ heresial. Que espertos sio esses principes! Pre- tendem expulsa: a heresia, mas nao conse- fguem atacé-la sendo com algo que the dé um ovo vigor, colocando a si mesmos sob suspei- tae justificando os hereges. Meu amigo, se qui- ser expulsar 2 heresia, entdo antes serd preciso Gescobrir um bom meio para desenraizi-la dos coragdes € quebrar seu dominio sobre as von- tades, E voce no conseguira fazé-lo pelo uso ida forca; assim 6 a tornara mais forte. Que ‘sentido existe em reforcar a heresia nos cora- goes, ainda que voce a debilite exteriormente Silenciando a voz das pessoas ou obrigando-as a fingi? A Palavra de Deus, por outro lado, jlu- ‘mina os coragdes @ com isso toda heresia € to- do emto desaparecerdo por si mesmos, E sobre esse meio de destruir a heresia que falou o profeta tsaias quando profetizen (Is 11) {11 TPR SUKE 8 ACTORIDADE SECT AR 53 [4k “Ele ferird a terra com © bastio de sua bo- ca, €-com_0-sopro.dos.seus libios_ matari_o__. impio." (384:} Voces podem perceber, a partir disso, que sio as palavras que acarretardo more € u conversto dos iniquos. Em resumo, tais principes € tiranos nao percebem que combater a heresia & como combater 0 demd- rnio que toma conta dos coragdes por meio do engano. Como diz Paulo em Effsios 6 (121: “Nosso combate ndo é contra a carne nem contra 0 sangue, mas contra 05 espiritos do mal, contra os principes que governam este mundo de trevas, etc." E portanto, enquanto 0 diabo nao for rejeitado € expulso do coragao, destruir seus instrumentos pelo fogo e pela es- pada teri tanto efeito sobre ele quanto o de enfrentar um relimpago com ums palha. J6 tratou amplamente de tudo isso quando disse (J6 41 [18): *O ferro para 0 diabo € como pa- Iha e no teme poder sobre a terra.” E a expe- riéncia ensina a mesma coisa. Isso porque, ainda que todos os judeus e heréticos fossem queimados, ninguém é vencido ou convertido ppor esse meio, nem jamais o sera ‘Mas um mundo tal como este deve ter essa espécie de governantes; que 0s céus proibam que algum deles chegue a cumprir seu dever*! 6s bispos devem abandonar a Palavra de Deus e nio fazer qualquer esforco para governar as almas com ela, Em vez disso, eles devem or- denar aos principes seculares que governem as almas por meio da espada. Os principes se- cukires. por sta vez, devem permitir que i 5 SOBRE A AUTORIDADE St LAK usura, 0 roubo, 0 adultério, 0 assassinato € ou- tras espécies de atos perversos campeiem de- senfreadamente ~ e na verdade devem eles mesmos cometer esses atos, deixando aos bis- pos 0 encargo de punt-los por meio de excomunhio. E desse modo tudo se encon- tra de pemnas para 0 ar: a5 almas sao governa- das pela espada e os compos por meio de car tas. Como consequéncia, os principes munda- nos governam espirituulmente, enquanto os principes espirituais governam de maneira mundana. Que mais resta a0 diabo para fazer neste mundo, 2 nao ser pregar pegas a seus siditos € se mascarar como se estivesse num carnaval? Esses, ento, so nossos “principes ceristos", os “defensores da fé" ¢ “martelos dos turcos". Homens capazes, nos quais podemos confiar! E com certeza conseguirlo alguma coisa gragas a sua admirével asticia: quebra- flo os pescogos € reduzirio suas terras € seus vassalos & miséria € & pensiria ‘Tenho um bem conselho para essas pes- soas desorientadas. Acautelem-se com a breve afirmagio do Salmo 106 {na verdade, 107,40} ‘Effundit contemptum super principes (Ele der- rama seu desprezo sobre os principes). Juro perante Deus: se ignorarem esse pequeno tex- to e ele entrar em vigor contra vocés, estarao perdidos, ainda que cada um de vocés seja Bo poderoso quanto © turco; ¢ todo o seu bufar € fugir nao iro ajud-los, Em boa parte, isso jé aconteceu. Existem poucos principes 20s quais (© povo nio veja como loucos ov criminosos, € LUUTERU SORE A AU TORIDADE SECULAR 3 ‘suas agdes confirmam {aquele juizol; o homem comum esta ficando informado, ¢ uma forte epidemia em relacio aos principes (a que Deus chama confemptum) estd se alastrando entre as pessoas simples ¢ 0 homem comum. Meu medo € que nao haja meios de deté-la, @ menos que os principes comecem a se com- portar como principes e a governar judiciosa € pridentemente. As pessoas [385:] ndo vio mais agientar passivamente sva tirania ¢ arbitrarie- dade; elas ndo podem e no querem fazé-lo. Muita atencao, meus bondosos senhores & ‘amos. {O proprio] Deus nao vai mais toleré-o. Este nao € mais o mundo em que voces perse guiam e conduziam as pessoas como se fos- ‘sem caga. Portanto, ponham de lado sua blas- fémia ¢ violencia; cuidem de agir com justiga e deixem a Palavra de Deus ter 0 livre transito que ela deveria ter, deve ter € tera; voces nao conseguirio deté-la. Se houver heresia, deixem Que esta seja subjugada pela Palavra de Deus; @ assim que deve ser. Mas, se vocés comeca- rem a desembainhar a espada em todas as ‘ocasides, cuidado com a vinda de alguém que hes dird para entregarem suas espadas, € nao em nome de Deus". Mas se vocés fossem perguntar: como de- vern os cristdos ser governados exteriormente, Visto que entre eles nao deve existir Espada secular? (Certamente] deve haver superiores* também entre os cristdos? Minha resposta é que nao pode nem deve. {fe 98 cristaos, Antes, ca 3 SOR A AUTORIDAIN, Sec LA mente submetido a todos os demais, como diz So Paulo em Romanos 12 (10): "Cada um de- ve considerar 0 outro como seu superior.” E Pe dro (IPd 5 [5): *Revesti-vos todos de humilda- de nas relagdes mituas de uns para com os auiiron” E lato € que desela Cristo (Le 14 (10): “Quando fores convidado para uma festa de casamento, ocupa o Gltimo lugar.” Nao existe superior entre os cristdos, a excecao de Cristo. E como poderia haver superioridade [ou inferioridadel, quando todos sao iguais € tém o mesmo direito*, poder, beneficios € honratias? Nenhum deles deseja ser superior a outro, pois todos querem ser inferiores aos demsis. Como alguém poderia, ainda que 0 desejusse, estabelecer superiores entre pessoas assim? A natureza nao admitiré superiores quando ninguém quer ser ou pode ser um su- perior. Mas, onde nao houver pessoas desta (altima) espécie, tampouco haveré verdadeiros cristios. E quanto aos sacerdotes ¢ bispos? Seu go- vero nao é de superioridade ou poder, mas antes um servigo eum oficio". 1880 porque eles no estio em posigio mais..clevada ou melhor do que os outros cristios, € conse- qlientemente nado devem impor leis ¢ ordens 40s Outros sem 0 consentimento e a permissio destes. Ao contrario, seu governo nada mais € do que 0 fomento da Palavra de Deus, orien- tando os cristdos € vencendo a heresia por meio dela. Como se disse, os cristios nic po- dem ser governados por nada que nao seit 11TH: SOUR A AUTTORIDADE StctNA 37 Palavra de Deus. Isso porque os cristéos de- vem ser governados na fé e no por ages ex- teriores, mas a fé nao pode vir por meio das palavras dos homens, apenas pela Palavra de Deus. Como diz Si Paulo em Romanos 10 (17): "A fé vem da pregacdo ¢ a pregasdo é pe- la Palavra de Deus.” Aqueles que nao tém fé no sao cristios € ndo pertencem ao reino de Cristo e sim ao reino do mundo, para serem coagidos e regidos pela Espada e [3863 pelo governo exterior. Os cristdos (por outro lado] fazem tudo 0 que € correto, sem qualquer coa- do, € tém tudo de que precisam na Palavra de Deus. Mas sobre isso jé escrevi muito © com freqiéncia em outros lugares. Terceira Parte ‘Agora que sabemos até onde se estende fa competéncia de] a autoridade secular, € hora de considerarmos de que modo um principe deve passar a exercé-la. (Estou escrevendo is- to] em beneficio daqueles que querem ser go- vernantes e senhores cristios,¢ que se preocu- pam com sua propria salvagio; existem muito poucos dessa espécie. © proprio Cristo descre- ve © cariter dos principes seculares quando diz em Lucas 22 (25: “Os principes seculares governam € 0s que 40 superiores usar a for- gat." Pois, quando eles nascem ou sio esco- Ihidos para governar, imaginam-se com direito a serem servidos ¢ a governar por meio dt for-

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