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O simbolo dé que pensar Gostaria antes de mais de falar sobre a preocupacéo que anima este ensaio, Uma meditagio, sobre os simbolos, seja ela a de Eliade, a de Jung, a de Freud ou a de Bachelard, acontece num certo momento da reflexéo, responde a uma certa situagSo da filosofia e talvez mesmo da cultura moderna que é preciso tentar compreender. Direi em primeiro lugar que este recurso ao arcaico, 20 nocturno e ao onirico que & igualmente, como diz Bachelard na Poétique de I'espace, um acesso ao local de origem da linguagem, representa uma tentativa de escapar as dificuldades do problema da origem em filosofia. Conhecemos a fatigante tentativa do pensamento na sua procura da primelra verdade, e mais radicalmente ainda, na procura de um ponto de partida radical que poderia rndo ser inteiramente uma primeira verdade. € preciso talvez ter experimentado a decepcio ligeda & ideia de uma filosofia sem pressupostos, para aceder 2 problemética que vamos evocar. Ao contrétio das filosofias da origem, uma meditagdo sobre os simbolos parte da plenitude da tinguagem e do sentido Ja sempre presente nela; ela parte do melo da linguagem que j4 ocorreu e onde tudo jé foi dito de uma certa forma; ela quer ser o pensamento com todos os seus pressupostos. Para ela a primeira tarefa no é comegar, é relembrar-se a partir do meio da palavr Mas, a0 opor a problematica do simbolo a procura cartesiana e husserliana da origem, ligamos de forma muito estreita esta meditagao a uma etapa precisa do discurso filos6fico. E, preciso, talver, ver mais longe: se suscitamos 0 problema do simbolo, agora, neste periodo da histéria € em ligagdo com certos tragos da nossa amodernidade» e como resposta a esta mesma «modernidaden, 0 momento histérico da filosofia do simbolo € o do esquecimento ¢ também © da restauragio: esquecimento das hierofanlas, esquecimento dos signos do Sagrado; perda da pertenca do homem ao Sagrado. Este esquecimento, sabemo-lo, a contrapartida da grandiosa tarefa de alimentar os homens, de satisfazer as necessidades, dominando a natureza por melo de uma técnica planetéria, E 0 obscuro reconhecimento deste esquecimento que nos move € nos incita a restaurar a linguagem integral. € na propria época em que a nossa linguagem se torna mais precisa, mals untvoca, mais técnica, numa patavra, mals apta a essas formalizagées integrals que se apelidam precisamente de légica simbélica (voltaremos mais adiante a este surpreendente equivoco do termo simbolo), € nesta mesma época do discurso ‘que queremos recarregar a nossa linguagem, isto € que queremos retomar a sua plenitude, ra, também isso é um presente da «modernidadeo; porque nbs modernos, somos os homens da filologia, da exegese, da fenomenologia da religiso, da psicanslise da linguagem. Como tal, 6 a mesma época que desenvolve a possibilidade de esvaziar a linguagem e a de a preencher de novo. Nao é pois a mégoa das atlintidas perdidas que nos anima, mas a esperanga de uma recriagSo da linguagem; para além do deserto da critica, desejamos ser novamente interpelados. "Texto publicado na revista Esprit, 27/7-8 (959) 40 smbolo dé que pensar»: esta afirmagio que me fascina diz duas colsas, 0 simbolo dé, nto sou eu que coloco o sentido, & ele que dé o sentido; mas aqullo que ele da é que pensar, sobre ‘© que pensar. A partir da doagio, a posigio. A sentenca sugere ento, 20 mesmo tempo, que tudo Jé esté dito em enigma e, contudo, que é sempre preciso, tudo comecar e recomegar na dimensiio.do pensar. £ esta articulagdo do pensamento doado a ele préprio no reino dos simbolos @ do pensamento que se afirma e pensa que eu gostarla de surpreendér e de ‘compreender. Mas antes de mais desejaria propor uma répida criteriolagia do simbolo, primeiro sob a forma de uma enumeragio, depots com os recursos de uma anélise essencial das estruturas simbélicas. O IMPERIO VARIADO DO SiMBOLO Para delimitar um dominio, € preciso comecar por uma enumeragéo. Albert Béguin, no prefaicio de U'Ame romantique et le réve, evoca do principio ao fim «as fabulas das diversas imitologias, os contos de todos os paises e de todos os tempos, os sonhos que continuam em 1n6s na inconseiéncia da noite, tal como na distraccao dos nossos dias». Esse texto diz bem as trés zonas de emergéncia dos simbolos. Ligados aos ritos e aos mitos, 05 simbolos constituem antes de mais a linguagem dita Sagrada, © verbo das «hierofanias», pata falar como Eliade. Evoquemos apenas o primero exemplo, 0 do céu, sobre 6 qual Eliade medita no seu Tratado de histéria das religi’es: simbolo do altissimo, do elevado e do imenso, do poderoso e do ordenado, do ciarividente e do sébio, do soberano, do imutével, esse simbolo é especialmente inesgotével e ramifica-se nas trés ordens. césmica, ética e polltica. 0 céu no é senido um exemplo entre aqueles que Eliade interpreta: todos tém como funcio afixar os modelos exemplares de todos os ritos e de todas as accbes hhumanas significativas» (Tratado, 351); longe de serem a projeccao fantéstica, a alegoria tardlia de uma acgo humana, eles instituem-na e tornam-na possivel ao sacralizarem-na. Segunda zona de emergéncia: 0 nocturo, o onirico. Sabemos que para o préprio Freud o simbolo no designa toda a representagéo, que vale por outra coisa que esconde e dissimula, ‘mas apenas este sector de representagdes onfricas que ultrapassam a histéria individual, a arqueologia particular de um sujeito © que mergulham no fundo Imaginiérlo comum a toda ‘uma cultura, isto 6, no folclore da humanidade inteira. C.G. Jung ensinou-nos a distinguir nesses simbolos néo tanto as projeccées da parte infantile instintiva do psiquismo mas antes 1s temas que antecipam algo sobre as nossas possibilidades de evolugio e de maturagio; a sua descoberta néo se deve tanto a um método de reducdo de obstéculos mas a uma explorag’o das nossas potencialidades; a Interpretagio filoséfica de Jung, que al ve sucessivamente a auto-representago da energia psiquica ou dos arquétipos, € aqui menos 2 importante do que a prépria descoberta; 0 platonismo psicolégico de Jung ndo deve embaracar-nos mais do que a meta psicologia freudiana. O essenciat & que, na terapia junguiana — que sem divida se dirige a um outro tipo de Individuos diferentes da terapla freudiana - 0 simbolo fornece temas de meditagao capazes de demarcar e de guiar «o tornar- se si mesmo» do homem, o Selbswerden, E esta fungiio de prospecco que retenho ¢ ligo & fungdo cosmo teolégica dos simbolos, na linha de Eliade, pela qual também o homem era reintegrado na totalidade do sagrado anterior. Terceira zona de emergéncla: a imaginago poética; M. Bachelard mostrou-nos bem que o problema da imaginacio no é 0 problema da imagem, inclusivé da imagem como funcéo da auséncia e da aniquilago do real; esta imagem-representacio depende ainda da coisa que ela torna irreal; ela € ainda segundo palevras do préprio Sartre, um processo de tornar presentes 6 objectos de uma certa manelra. «A imagem postica, diz Bachelard na Introduction & fa poétique de lespace, coloca-nos ma origem do ser que fala», & mais adiante: «ela transforma- se num ser novo da nossa linguager, ela expressa-nos tornando-nos naquilo que ela expressan, Esta imagem-verbo que por conseguinte nfo & mais a imagem-representacéo, & 0 que chamo aqui simbolo. A tinica diferenca relativamente as duas situagSes precedentes, € ue 0 simbolo poético ~ por exemplo, o da casa que M.Bachelard explora em todos os sentidos nos poetas ~ é surpreendido ne momento em que ele é uma emergéncia da linguagem, em que ele coloca a linguagem em estado de emergéncia, em vez de ser restituido na sua estabilidade hierética sob a guarda do rito e do mito, como clas da histéria das religibes. No fundo, seria preciso compreender que o que nasce e renasce, na imagem postica, a mesma estrutura simbélica que habita os sonhos mals proféticos do nosso devir intimo e que sustenta a linguagem do sagrado sob as suas formas mais arcaicas e mais estaveis. ESTRUTURA 00 SIMBOLO Esta enumeragio, primeiro, desordenada, de exemplos tomados de empréstimo a histéria das religives, & psicandlise do sonho e & investigagdo da imaginaggo poética, parece manifestar apesar de tudo uma certa convergéncia: & que ela prepara uma anélise intencional que pode, 86 ela, fornecer 0 elxo de todo este estudo. Proporei entio uma anélise essencial que finalmente.iré consistir na distinc do simboto de uma série de estruturas vizinhas e que nesta medida nos orientaré no sentido da compreensso mals ou menos intuitiva de um nucleo Idéntico do sentido; desta forma, distinguirei sucessivamente 0 simbolo do signo, depots da alegoria em seguida do préprio simbolo no sentido da légica simbilicae por fim do mito. 1) € certo que os simbolos so signos: so expresstes que comunicam um sentido, que é declarado pela intengao de significar, veiculada pela patavra: mesmo quando os simbolos ~ como 0 diz, algumas vezes, Eliade ~ s80 elementos do universo (0 c&u, a dgua, a lua) ou das, coisas (a érvore, 0 ment), é ainda no universo do discurso que essas realidades ganham a dimenséo simbética (palavia de consagragio, de invoca¢o, comentario mitico}; como diz 3 muito bem Dumézil: «é sob 0 signo do logos e ndo sob 0 do mané que se situa hoje a investigagéo (em histéria das religibes)»’. O mesmo se passa com o sonho: embora espectéculo nocturno, ele esta originariamente préximo da palavra, na medida em que pode ser narrado e comunicado. Mas dizer que 0 simbolo 6 signo, 6 tragar um circulo demasiado grande que é preciso agora estreltar. Todo o signo visa qualquer coisa para além dele mesmo, vale por essa mesma coisa, mas nem todo o signo é simbolo. Direi que o simbolo encerra, na sua referéncia, uma dupla intencionalidade: tomemos 0 exemplo do puro e do impuro de que se ocupa M. Moulinier com os gregos; ha uma intencionalidade primeira ou literal que, como toda a intencionalidade significante, supoe 0 triunfo do signo convencisinal sobre o signo natural: assim seré, se quisermos, a mancha e a sujidade; palavras que mo se assemelham & coisa significada. Mas, sobre esta primeira intencionalidade, ergue-se uma segunda que, através da sujidade fisica, visa uma determinada posigio do homem relativamente ao sagrado; esta situagio, visada através do sentido de primeiro grau, € precisamente o ser maculado, 0 impuro. 0 sentido literal e manifesto visa por isso, para além dele mesmo, qualquer coisa que como uma mancha. Assim, a0 contrério dos sighos técnicos perfeitamente transparentes que no dizem sendo o que querem dizer, dando o significado, os signos simbélicos so opacos, porque 0 sentido primeiro, literal, patente, visa ele préprio, de modo analégico, um segundo sentido que s6 & dado nele préprio € no de outro modo (voltaremos a este assunto para distinguir 0 simbolo da alegoria). Esta opacidade, ¢ a propria profundidade do simbolo, inesgotével como se dird, Mas compreendamos bem essa liga¢do analégica do sentido literal e do sentido simbélico: fenquanto a analogia € um raciocinio no conclusivo que procede através da quarta proporcional (A esté pata B assim como C esté para D}, no simbolo ndo posso objectivar a Telacdo analégica que liga o segundo sentido ao primeiro sentido; € vivendo no sentido primeiro que sou levado, por ele e para além dele mesmo —o sentido simbélico & constitufdo em e pelo sentido literal, o qual opera @ anelogia ao dar o andlogo. Maurice Blondel dizia: «As analogias baseiam-se menos nas semelhancas de nogies [similitudines) e mals sobre uma estimulagdo interior, sobre uma solictagao assimilativa [intentio ad assimilationem|». Com feito, a0 contrério de uma comparagao, que consideramos a partir do exterior, o simbolo & 0 proprio movimento do sentido primério que nos faz participar no sentido latente e desta forma nos assimila ao simbolizado, sem que possamos dominar intelectualmente a similitude. E neste sentido que o simbolo é doador; ele é doador porque é uma intenclonalidade primaria que nos dé 0 segundo sentido, Estamos assim na vizinhanga do segundo critério relativo a relago da analogia com o simbolo, ‘mas talvez néo seja inti! insistir uma tltima vez sobre o primeiro critério. NBo & preciso dizer, portanto, que 0 simbolo é um regresso aos signos naturais; néo, ele supe uma linguagem convencional que rompeu com a semelhanga sonora; & na intencionalidade segunda do significado que reside a correspondéncia analdgica que néo esté, por isso, entre 0 termo significante e a coisa significada, mas entre primeiro sentido e segundo sentido. * prefcio a Eliade, op. cit, p.5. 2) 0 nosso segundo critério, que diz respeito a distingSo do simbolo e da alegoria, prolonga as, nossas anotagées sobre a analogia operada pelo préprio sentido literal. M.Pépin ilustrou bem este problema: na alegoria o significado primério ~ isto & o sentido literal ~ 6 contingente e 0 significado segundo, 0 sentido simbélico, & suficientemente exterior para ser directamente acessivel, Hé entdo entre 0s dois sentidos uma relagdo de trodugdio; uma vez realizada a tradugio, podemos deixar cair a alegoria, a partir de entio indtil € preciso afirmar que a dimenso do simboto foi lenta e duramente conquistada sobre a alegoria: historicamente @ alegoria consistiu menos num procedimento literério e retérico de construgao artificial de falsos simbolos, do que numa forma de tratar os mitos como alegorias; 6 0 caso da Interpretagdo estéica dos mitos de Homero e de Hesfodo que consiste em tratar os mitos como uma filosofia disfarcada, interpretar, é portanto por a descoberto o disfarce e tornd-lo por isso mesmo indtll, Dito de outra forma, a alegoria foi muito mais uma modalidade de hermenéutica (ou exegese dos signos, simbolos, alegorias e mitos) do que uma criagéo espontinea de signos. Valeria mals por isso falar de uma interpretagéo alegorizante do que de alegoria. Logo, simbolo © alegoria no estéo a0 mesmo nivel: o simbolo precede a hhermenéutica; a alegoria ¢ jé hermenéutica; e isto porque o simbolo dé o seu sentido de forma transparente © de uma maneira diferente da tradugo; diremos mais tarde que ele evoca, que ele «sugeres (no sentido do verbo grego que quer dizer sugerir e que nos deu a palavra «cenigman): ele dé-o em enigma e néo por tradug0, Oporel entio a doagio em transparéncia do simbolo & doacio por traducdo da alegoria, 3) € necessério afirmar que o simbolo, de que vamos tratar aqui, néo tem nada @ ver com o que a légica simbética invoca com esse nome. Mas néo é sufi é-l0, & preciso saber porqué. £ mesmo o seu inverso: para a t6gica simbélica 0 simbolismo 6 0 auge do formalismo; a légica formal ja tinha substituido os termos do silogismo, por exemplo, por signos que valem qualquer coisa (todo 0 B é C, ora AB, logo A C), mas os termos «todo», «algumy, «implica» Go tinham sido separados das expresses lingulsticas ordinérias; na légica simbélica essas expresses sto elas propria substituidas pelas letras, por signos escritos que jé néo precisam de ser ditos e com os quails & posstvel calcular, sem perguntarmos como & que eles se Incorporam, a titulo deontolégico, no raciocinio. 46 nao so mesmo abreviagbes de expresses verbais conhecidas, mas «caracteres», no sentido leibneziano do termo, isto é, elementos de céleulo. E certo que o simbolo de que nos ocupamos aqui ¢ exactamente o contrério de um «caracter: no s6 pestence a um pensamento figado a contetidos, logo no formal, mas 0 lago analdgico que liga segundo sentido 20 sentido primério e a impossibilidade de o sentido simbélico aparecer de forma diferente da prépria operagao da analogia, fazem da linguagem simbélica uma linguagem essencialmente ligada, ligada a0 seu contetide e, através do seu contetido primério, ligada ao seu contetido secundério; neste sentido, o simbolo ¢ totalmente contrério a um formalismo absoluto. € por essa razio que eu falava da plenitude da linguegem desde as primeiras palavras deste ensaio. Podemos espantar-nos que 0 simbolo tenha dois Uusos tio rigorosamente inversos; talvez fosse necessério procurar a razio deste facto na estrutura da signficago que é, simultaneamente, uma fungao da auséncia, na medida em que uma significagéo designa as coisas no vazio, na auséncia delas e uma funco da presenca, jé que ele quer tornar presente, representar a auséncia sob estas duas formas. O simbolo leva 20 5 extremo as duas possibilidades; mas este nfo 0 nosso objecto e nao voltaremos a falar mais do simbolo no sentido da légica simbélica. 4) Ultimo critérlo: como distinguir mito e simbolo? M.Pépin ote mito € alegoria, mas nao distingue claramente mito e simbolo. Parece, por vezes, que 0 simbolo é uma forma de pensar os mitos de forma ndo-alegorica; simbolo e alegoria seriam assim atitudes ou disposicées intelectuais préprias & hermen8utica; interpretacéo simbélica e interpretacéo alegérica seriam entio duas direcgbes da interpretagdo que dizem respelto a0 mesmo contetido dos mites Tomarel sempre o simbolo no sentido mais radical de Eliade: sio significagées analégicas, espontaneamente formadas e dadas: assim acontece com o sentido da dgua como ameaga no diluvio ¢ como purificagso no baptismo, assim sucede com todas as hierofanias primitivas, Neste sentido, o sfmbolo & mais radical do que 0 mito. Eu itei considerar 0 mito como uma espécie de simbolo, como um simbolo desenivolvido sob a forma de narrativa, articulado num tempo e num espago nio coordendveis com o da histéria e da geografia criticas; por exemplo, © Exilio 6 um simboto primério da alienacao humana, mas a histéria da expulsso de Adio e Eva do Paraiso 6 uma narrativa mitica de segundo grau que coloca em jogo personagens, lugares, um tempo, episédios fabulosos. Parece-me que esta densidade da narrativa 6 essencial 20 rnito, sem contar com o eshoro de explicago nos mitos etiolégicos que Ihes acentua ainda 0 cardcter secundério. No fundo, estarel completamente de acordo com 0 esquema de Jaspers, ‘quando ele distingue a linguagem primitiva das cifras, a que eu chamo simbolos, - a lingua dos mites, que mediatizam os simbolos primérios - enfim, os simbolos de terceiro grau, mais especulatives, como por exemple, a representacéo do mal como «euerran em Heraclito, como «corpo» no Plato do Fédon e como «pecado original hereditarion em Santo Agostinho. UMA FILOSOFIA DO SIMBOLO Tendo assim caracterizado o simbolo através de um método essencial, entramos no limiar do problema propriamente filoséfico. «0 simbolo dé que pensar». Mas o que & que isto dizer? De ‘uma certa forma, a nossa investigagio da estrutura do simbolo nio facilitow as cotsas: se 0 simbolo sé nos dé 0 seu sentido no préprio impulso e transparéncia da sua visada e no de outra forma, se 0 simbolo néo pode ser traduzido, em suma se o simbolo resiste a toda a exegese alegorizante, entdo ele ndo dé mais nada a penser; ele € sobretudo 0 entorpecimento do pensamento. € com efeito para esta imobilizago do pensamento que a interpretago schellinguiana dos mitos parece conduzir.* (0 meu problema é assim o seguinte: como podemos pensar a partir do simbolo, sem regressar a velha interpretacio alegorizante? Como retirar do simbolo uma alteridade que coloca em movimento o pensamento sem que essa seja a alteridade de um sentido jé existente, escondido, dissimulado, oculto? Gostaria de tentar uma outra via, que seria a de uma interpretagio criadora, de uma interpretacio que respeita o enigma original dos simbolos, que > «A mitologia nBo & alegérical ela 6 toutegérica [alegérica reenvia a um outro; tautegérica reenvia 20 mesmo}, Para ela, 0s deuses s80 seres que exister realmente, que nlo sao nada de diverso, que no slanificam nada de diverso, mas significa apenas aquilo que so.» citado por Pépin, opacit., p59 se deixa ensinar por ele mas que, a partir dai, promove o sentido, forma o sentido, na plena responsabilidade de um pensamento auténomo. Vejamos: trata-se do problema de saber como é que um pensamento pode ser simultaneamente ligado e livre, como & que o cardcter Imediato do simboto e a mediag4o do pensamento formam um todo sélido, Vejo a chave ou pelo menos o nucleo desta dificuldade na relagdo entre simbolo e hermenéutica. Nao hé simbolo que no suscite uma compreensio por meio de uma interpretacdo. Como poderé esta compreensio estar ao mesmo tempo no simbolo e para aléin do simbolo? Considero existirem trés etapas nesse «compreenders. Trés etapas que assinalam o movimento que se langa da vida nos simbolos para um pensamento que seja pensamento @ partir dos simbotos. 18 etapa: a fenomenologia A primeira etapa é aquela 2 que podemos chamar compreensio do simbolo pelo simbolo; pela totalidade dos simbolos; é jé uma forma de inteligéncia, dado que percorre, une e dé 20 império dos simbolos a consisténcia de um mundo. Mas 6 ainda uma vida entregue 20s simbolos, dedicada aos simbolos. Tomarei um exemple do Tratado de historia dos religiGes de Eliade: para Eliade, compreender um simbolo € recolocé-lo numa totalidade que Ihe é homogénea, mais vasta do que ele e que forma sistema no préprio plano do simbolo. Podemos retirar da propria pritica de Ellade um certo ntimero de figuras da compreensio onde se inicia a passagem da vida nos simbolos para uma forma de pensar aut6nomo; por ‘mais préximo que esteja do seu objecto, Eliade é jé 0 homem da reflexio. Uma primeira figura da compreenséo consistiré em desdobrar as miltiplas valéncias de um mesmo simbolo; tomemos como exemplo o simbolo do céu; compreender esse simbolo, 6 experimentar 0 seu carécter inesgotavel; 0 mesmo simbolo é transcendéncia do Imenso, Indicagao da ordem e de uma ordem em si, simultaneamente, cosmolbgica, ética e politica. Compreender & repetir em si mesmo esta unidade miltipla, esta permutagéo de todas as valéncias no seio do mesmo tema. Daqui surgir uma segunda figura da compreenséo: ela consistird em compreender um simbolo or um outro simbolo; a compreenséo, com efeito, estender-se-s gradualmente, segundo uma lel de analogia intencional, 2 todos os outros simbolos que tém afinidade com o simbolo do céu: a montanha, 0 arranha-céus € todos os lugeres altos; dai passamos facilmente ao simbolismo da ascensdo, da subida dificil, da viagem comum ao poema de Parménides, anabase platénica, a0 arrebatamento pauliniano, ao éxtase plotiniano © agostiniano, até subida a0 Carmeto. Terceira figura da compreenséo: compreenderemos um simbolo por um rito e um mito, sto é, pelas outras manifestagées do sagrado: assim, 0 simbolismo da agua esclarece-se pelos simbolismos gestuais da imersdo onde discernimos, ao mesmo tempo, uma ameaga ~ 0 diltvio 6 um tegresso 20 indiferenciado — e a promessa de um renascimento: a dgua que brota e que fertiliza, Mostraremos ainda ~ ¢ iso seré uma quarta forma de compreender ~ como o mesmo simbolo Lnifica miitiplos nfvets de experiéncia ou de representagbes: 0 exterior e 0 interior, 0 vital e 0 especulativo: os grandes simbolismos da vegetagSo forneceram assim, simultaneamente, uma esquematizagio da experiéncia mals orglaca do morrer e do renascer e uma metafisica como Jimogem da contrariedade origindria, até mesmo da identidade dos contrétios, Destarte, a fenomenologia do simbolo faz aparecer, de miiliplas formas, uma coeréncia propria, qualquer coisa como um sistema simbélico; interpretar, a esse nivel, & fazer aparecer esta coeréncia; cada simbolo nao alcanca, certamente, sendo uma totalidade parcial ~ a agua diz qualquer coisa que no dizem os simbolos vegetativos, que no diz o céu; cada um & 0 centro de gravidade de uma temética inesgotével e contudo limitada; mas, em conjunto, dizem a totalidade. Tal é a primeira etapa, 0 primeiro nivel de um pensamento a partir dos simbolos. Porque no poderemos conservar-nos aqul? Pols bem, porque 2 questo da verdade ndo esté ainda colocada aqui; se acontece 20 fenomendlogo chamar verdade 8 coeréncia propria, & sistematicidade do mundo dos simbolos, trata-se de uma verdade sem crenga, uma verdade & distancia, uma verdade reduzida, da qual foi afastada a questéo: seré que creio nisso? Que {faco, com essas significagées simbélicas, com essas hierofanias? Ora, esta questo no pode ser colocada, enquanto permanecemos no nivel do comparativismo, enquanto passarmos de tum simbolo a0 outro, sem sermos nés préprios em parte alguma. Esta etapa no pode ser sendo uma etapa, a de uma inteligéncia em extenséo, de uma inteligéncia panordmica, curiosa ‘mas niéo interessada. E preciso, neste momento, entrar numa relaco apaixonada e ao mesmo tempo critica com os simbolos: porém, isso nao ¢ possivel a no ser que, ao abandonar 0 ponto de vista comparativista, eu me implique com o exegeta na vida de um simbolo, de um. mito. Tanto menos posso iludir esta segunda etapa quanto o mundo dos simbolos néo ¢ finalmente um mundo tranquilo ¢ reconciliado; como tal, o simbolismo do céu néo deixa de estar em luta com 05 mitos mais calorosos, mais dinémicos, da fertilidade, da fecundidade e da violencia; todo © simbolo € iconoclasta em relagio a um outro, da mesma forma que todo o simbolo abandonado a si mesmo tende a condensar-se, a solidficarse numa idolatria. € preciso participar por isso nesta luta, nesta dinémica, pela qual o simbolismo esta ele mesmo exposto {4 sua prépria ultrapassagem. E apenas ao participar nesta dindmica que @ compreensio pode aceder dimensto propriamente critica da exegese e tornar-se uma hermenéutica, Mas & preciso entdo que desista da posigdo, ou melhor do exilio, do espectador tonginquo desinteressado, deforma a que eu me aproprie, de cada vez, de um simbolismo singular. 28 etapa: a hermenéutica € aqui que encontro as notas iniciis interrompidas pela criteriologia do simbolo. Dizlamos entdo que queremos de novo ser interpelados na época do esquecimento dos signos do sagrado. Querers isto dizer que podemos voltar & primeira ingenuidade? De forma alguma. De qualquer modo, alguma coisa fot perdida e irremediavelmente perdida: a imediatidade da renga. Mas se néo podemos viver mais, de acordo com a crenca origindria, os grandes simbolismos do céu, da vegetagio, da dgua, das pedras e da lua, nés moderns, podemos tender na e pela critica para uma segunda ingenuidade. Porque nds somos os filhos da critica — da filologia, da exegese, da psicandlise ~ mas entreveros agora uma critica que seria restauradora e néo redutora. Dito de outro modo, & interpretando que podemos entender de novo. ‘Acedemos deste modo ao segundo nivel de inteligéncia dos simbolos: para {4 da inteligencia em extensio, & maneira da fenomenologia dos comparativistas, abre-se 0 campo da hermenéutica propriamente dita, isto é, da interpretagdo aplicada de cada vez a um texto singular. Com efeito, & na hermendutica moderna que se dé a doacdo de sentido pelo simbolo 2 iniciativa inteligente da decifracéo. Como encontra, de facto, a hermenéutica este problema? O que nés chamémos um niicleo ~0 centro a partir do qual o simbolo d4 © onde o crtico interpreta — a hermenéutica fé-o parecer como um circulo, Podemos enunciar brutalmente esse circulo: uf preciso compreender para crer, mas é preciso crer para compreender». Este circulo néo é um circulo Vicioso, muito menos fatal: € um circulo bem vivo e estimulante. € preciso crer para compreender: nunca, com efeito, 0 intérprete se aproximaria daquilo que diz o seu texto se ele no vivesse na aura do sentido interrogado: como muito bem diz Bultmann, no seu famoso artigo, de Glauben und Verstehen, sobre «O problema da hermenéutican:«Toda a compreensio, como toda a interpretacio é... continuadamente orientada pela maneira de colocar a questéo e pelo que ela visa (pelo seu Woraufhin). Como tal, ela no € sem ressupostos, isto é, & sempre dirigida por uma pré-compreenstio da colsa a respelto da qual ela interroga 0 texto». S6 a partir desta compreensio prévia 6 que ela pode em geral interrogar e interpretar (47), Ou ainda: «o pressuposto de toda a compreensio é a relago vital do intérprete & coisa sobre que directa ou indirectamente fala o texto» (49). Ao insistir sobre esta coincidéncia com 0 Woraufhin, com a coisa de que fala o texto, Bultmann previne- nos contra uma confuso que consistiria em Identificar esta participago no sentido com ‘alguma coincidéncia psicotégica entre o intérprete e «as expressbes singulares da vidan, segundo expresséo de Dilthey. Ora, nfio ¢ uma afinidade da vida com a vida que a hermenéutica requer, mas do pensamento com o que visa a vida, em sume, do pensamento com a prépria coisa mesma que est em questo. E nesse sentido que 6 preciso erer para compreender. E contudo néo é sengo compreendendo que nés podemos crer. Dado que 0 segundo imediato que procuramos, a segunda Ingenuldade que esperamos, niio nos s6 nos & acessivel numa hermengutica e no noutro lugar, no podemos crer senéo interpretando, € a modalidade «moderna» da crenga nos simbolos; expresso da angiistia da modernidade e remédio para esta angistia, E este o circulo: a hermentutica nasce da pré-compreensio daquilo que ao interpretar ela se esforca por compreender. Mas gracas a esse cfrculo da hermenéutica, posso ainda hoje comunicar com o sagrado clarificando a pré-compreenséo que anima a interpretacio. A hermenéutica, aquisigdo da «modemnidaden, & portanto um dos modos pelos quais esta «modernidade» se ultrapassa enquanto esquecmento do sagrado. Eu creio que 0 ser pode ainda falar-me jé no, sem diivida, sob a forma pré-ritica da crenca imediata mas, como 0 segundo imediato visado pela hermenéutica. Esta segunda ingenuidade quer ser 0 equivalente pés-critco da hierofania pré-critca. Esta conjuncio da crenga e da critica fornece consequentemente a segunda interpretacio da sentenca que meditamos: «o simbolo dé que pensar». E esta conjunc é uma relagao circular entre um cter e um compreender. Vemtos assim com poderemos falar de «desmitologizagson com alguma prudéncia; & legitimo falar de «des-mitologizar» se distinguimos justamente des- Imitologizar e «desmistficar», Toda a critica wdesmitologizan enquanto critica: isto 6, leva sempre mais longe separagio do histérico (segundo as regres do método critica) e do falsamente hist6rico; é 0 logos do mythos que a critica mio deixa de exorcizar (como tal a representago do universo como uma série de lugares sobrepostos, com a terra no melo, 0 céu em cima, € 0 inferno em baixo); como caracteristica da «modernidades, a critica no pode deixar de ser uma «desmitologizacSor; isto & um adquirido irreversivel da veracidade, da hhonestidade intelectual e, sob este titulo, da objectividade; porém, & precisamente ao acelerar © movimento de «desmitologizagfon, que a hermenéutica moderna revela a dimensio do simbolo; 6 assim enquanto signo originério do sagrado que ela participa na revivificagso da filosofia em contacto dos simbolos; ela ¢ uma das vias do seu rejuvescimento. Esse paradoxo segundo 0 qual a «desmitologizagéion tem também a seu cargo recarregar de novo o ppensamento a partir dos simbotos, no é sengo um corolério do que temos chamado 0 cfrculo do crere do compreender na hermensutica. 39 etapa: o pensamento a partir do simbolo Desejaria, neste momento, delinear a terceira etapa da compreensiéo dos simbolos; serd a etapa propriamente filoséfica, a de um pensamento a partir do simbolo. 0 filésofo participa no reino dos simbolos por intermédio da fenomenologia da raligiio, dos mitos e da poesia, tal como ela foi evocada na primeira parte e por intermédio da hermenéutica precisa dos textos singulares, tal como acabémos de a caracterizar. Mas a sua tarefa particular est para além disso. Em que consistiré ela entdo, se nfo devemos voltara cair na Interpretacio alegorizante? Se no podemos encontrar uma filosofia escondida nos simbolos, dissimulada sob a veste imaginativa do mito, resta filosofar a partir dos simbolos. Resta segundo uma expresséo proposta no inicio promover o sentido, formar o sentido numa interpretagio criativa. 10 Gostaria de desenvolver um exemplo que, como veremos, se mantém uma filosofia do simbolo, Este exemplo tem a vantagem de fazer surgit, de modo claro, © papel do conhecimento simbélico na consciéncia de si ou, mais precisamente, numa antropologis filosdfica, numa Teflexo filoséfica sobre 0 ser do homem. Eu tomo de empréstimo este exemplo as investigag8es que irei publicar proximamente sobre as relagées entre limitacéo e mal (ou, em nguagem mais precisa, sobre as relagbes entre finitude e culpabilidade). € de facto notével que apenas exista uma linguagem simbdlica da culpabilidade e néo outa: trata-se, em primeiro lugar, da finguagem bem arcaica da mancha, onde o mal é apreendido como uma écula, um estigma, logo como uma qualquer coisa de positivo que afecta de fora e infecta. Esse simbolismo ¢ absolutamente irredutivel; ele € susceptivel de intimeras transposigées € repeticSes, em concepsies cada vez menos mégicas: assim o profeta Isaias evoca nesses termos a visto do Tempto: «Ai de mim! Porque sou um homem de lébios Impuros e vivo no eto de um povo de Iébios impuros», Um homem moderno fataria ainda de uma reputacao manchada ow de uma inteng&o pura. Existem contudo outros simbolos do mal humano: os simbolos do desvio, da insurreigio, da errdncia e da perdico, que aparecem no contexto hebraico da Alianca mas que se encontram na hybris e na hainartéma dos gregos. Seré ainda o simbolo do cativeiro, que os judeus tiraram da experiéneia histérica da sujeigo no Egipto ¢ em ligagio com o do Exodo que simboliza, por contrapartida, toda a libertacio. Ora é, de facto, notdvel que esse simbolismo, que esses simbolismos, no sejam acrescentados a uma tomada de consciéncia do mal mas que sejam justamente a linguagem originéria € constituinte da confissio dos pecados. Aqui, o simbolismo é verdadeiramente revelador: ele & © proprio logos de um sentimento que permaneceria vago sem ele, isto &, néo explicitado, incomunicével. Estamos pois diante de uma linguagem insubstitutvel. O simbolo abre e descobre verdadeiramente um dominio de experiénci. Este exemplo pode ainda ser levado mais tonge, porque permite surpreencder nestes simbolos primérios ~ mancha, desvio, errancia ~ a articulagio dos simbolos secundétios miticos, no sentido em que se referiu mats acima de narrativa elaborada: mito do caos, mito da mistura, mito da queda; a sua fungio 6, antes de mais: universalizar a experiéncia pela representago de umn Homem exemplar, de um Antropos, de um Ado até de um Tit que representa, como ‘enigma, 0 universal concreto da experiéncia humana; tem também a funcio de introduzir nesta experiéncia uma tense, uma orientagSo, entre um comego e um fim, entre uma decadéncia e uma salvago, entre uma alienagéo e uma reapropriagéo, entre uma separacao uma reconeiliag8o. Ao mesmo tempo, 0 simbolo torna-se no s6 uma cifra do cardcter da experiéncia humana, mas uma cif da profundidade humana, a0 designar a unio do histérico edo ontolégico ou, em linguagem mitica, da queda e da criagio. Eis como 0 fildsofo est exposto aos simbolos, instrufdo pela fenomenotogia da religiéo e pela exegese. Que pode ele fazer a partir dai? Uma coisa essencial, pela qual & responsavel na 11 ‘autonomia do seu pensamento: servir-se do simbolo como de um detector de realidade e, assim guiado por uma mitica, elaborar uma empirica das paixSes que encontra o seu centro de referéncia e de gravidade nos grandes simbolos do mal humano. 0 filésofo nao tem portanto de fazer uma interpretagio alegorizante do simbolo, mas deve decifrar o homem a partir dos simbolos do ca0s, da mistura ¢ da queda. Foi o que fez por exemplo Kant no Ensaio sobre 0 ‘mal radical, em que 0 mito da queda the serve de revelador das palxées e dos males e de instrumentos de radicalizagdo da consciéncia de si. Ele no alegoriza mas forma, enquanto filésofo, a ideia de uma maxima ma de todas as méximas més que consistiria na subversio, definitiva, da hierarquia entre a razdo € a sensibilidade. Nao quero dizer que Kant tenha esgotado com isso as possibilidades de pensar a partir do mito; considero a sua tentativa como modelo metodolégico de uma reflexio incentivada pelo mito e responsdvel por ela mesma, Sem o secreto alinhamento do pensamento pelo mito, 0 tema reflexivo desmorona-se e no entanto ele s6 se insere na filosofia como ideta - apesar de esta idela ser «inescrutével», como diz Kant. E, porque estou num contexto kantiano, ousarei falar aqui de uma espécie de «dedugio transcendental» do simbolo, Se € verdade que @ «deducdo transcendental» consiste em justificar um conceito mostrando que ele tora possivel a constituicéo de um dominio de objectividade, o simbolo empregue como decifrador da realidade humana 6 «deduzido», no sentido técnico do termo, quando 6 aferido pelo sou poder de suscitar, de actarar, de ordenar todo um campo de experiéncia humana; € © caso dos simbolos ¢ dos mitos do mal que sensibilizam o olhar para todo um aspecto da experiéncia, para um dominio que podemos mos reduzido ao erro, 8 emocio, ao habito ou 2 passividade ou finalmente 3 prépria finitude, em suma, a uma dessas dimensoes da cevxisténcia que nao tm necessidade dos simbolos do mal para serem abertas e descobertas. chamar 0 dominio da confissdo e que cedo te! Se essa linguagem parece demasiado marcada por Kant, diria com o Heidegger de Sein und Zeit, que a interpretacio filosdfica dos simbolos consiste em elaborar existenciais que exprimem as possibilidades mals fundamentals do Dasein; com efelto, seria fécll mostrar que 08 «existenciais» de Heidegger safram todos da esfera simbélica. Sao simbolos filosoficamente interpretados; a compreenséo da realidade humana a partir da esfera dos simbolos é aberta. © exemplo que acabo de desenvolver tem a vantagem de desenvolver a hermenéutica filos6fica na regio mais familiar da consciéncia de si. Tem, em contrapartida o inconveniente de disfarcar um outro aspecto do simbolo ou, mais exactamente, 0 outro pélo do simbolo. Todo o simbolo com efeito ¢ finalmente uma hierofania, urna manifestagSo do lago do home 0 Sagrado. Ora, a0 tratar do simbolo como um revelador da conseiéncia de si, como umn index antropotigico, amputémo-lo de um dos seus pétos, fingimos crer que @ maxima «conhece-te a ti mesmo» era puramente reflexiva; enquanto € um apelo, pelo qual cada um de nds & convidado a situar-se melhor no ser; como diz 0 Cérmides de Plato: «© deus de Delfos diz: sejam sdbios; mas ele di-lo na sua qualidade de adivinho sob uma forma enigmtica; porque, 38 sébio ou conhece-te a ti mesmo, s8o a mesma coisan. £ pois finalmente como index da situag8o do homem no coragao do ser, no qual ele se move e existe, que o simbolo nos fala. Desde esse instante, a tarefa do filésofo, guiado pelo simbolo, seria a de romper o cerco 2 cencantado da consciéncia de si, da subjectividede, de quebrar o privilégio da reflexéo, de ultrapassar a antropologia. Todos os simbolos tendem efectivamente para reintegrar o homem numa totalidade, totalidade transcendente do céu, totalidade imanente da vegetacio, da decadéncia e do renascimento. Para ser breve, direi que o simbolo dé que pensar que o Cogito esté no interior do ser, e noo inverso; a segunda ingenuidade seria pois igualmente uma segunda revolugéo coperniciana: 0 ser que se afirma no Cogito descobre que o préprio acto pelo qual ele se afasta da totalidade, participa ainda do ser que o interpela em cada simbolo. Uma filosofia iniciada pelo simboto seria assim totalmente contréria 2 uma apologética que pretenda encaminhar a reflexo para a descoberta de um desconhecido; pelo contrétio, ela instala 0 homem a titulo preliminar no interior do seu fundamento e, a partir dat, encarrega a reflexo de descobrir a racionalidade do seu fundamento. $6 uma filosofia alimentada na plenitude da linguagem pode depois ser indlferente aos acessos @ as suas condigées de possiblidade, e estar constantemente preocupada em tematizar a estrutura racional e Universal da sta adesto. Esta é, 20s meus olhos, @ forga de sugestio do simbolo. Permitam-me, para acabat, que repita a afirmacio inicial de uma outra forma, mais arcaica € mals enigmitica; esta formulagio 6 a de Heraclito, 0 Obscuro. «0 Senhor cujo ordculo esté em Delfos néo fala, no dissimula, faz sinal (sémainel).» (Frag.93). Paul Ricoeur 13

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