Você está na página 1de 4
Capitulo 2 Objetivos e Etapas do Processo Psicodiagnostico O psicodiagnéstico ¢ um estudo profundo da personalidade, do ponto de vista fundamentalmente clinico. Quando 0 objetivo do estudo é outro (trabalhista, educacional, forense, etc.) 0 psicodiagnéstico clinico é anterior e serve de base para as conclusdes necessarias, nessas outras areas. A concepgao usada da personalidade parte da base de que a personalidade possui um aspecto consciente ¢ outro inconsciente; que tem uma dinamica interna que foi descrita muito bem pela psicanilise; que existem ansiedades basicas que mobilizam defesas mais primitivas ¢ outras mais evoluidas (como colocaram Melanie Klein e Anna Freud, respectivamente); que cada individuo possui uma configuragao de personalidade tinica e inconfundivel, algo assim como uma gestalt pessoal; que tem um nivel e um tipo de inteligéncia que pode manifestar-se ou nao segundo existam ou nao interferéncias emocionais, que ha emogées e impulsos mais inten- s0s ou mais moderados que o individuo pode controlar adequada ou inadequada- mente; que existem desejos, inveja e citimes entrelagados constantemente com todo 0 resto da personalidade; que os impulsos libidinosos e tanaticos Iutam para ganhar primazia ao longo da vida; que o sadismo e 0 masoquismo esto sempre presentes em maior ou menor escala; que o nivel de narcisismo pode ser baixo demais, ade- quado ou alto demais ¢ isto incide no grau de submissao, maturidade ou onipotén- cia que demonstre; que as qualidades depressivas ou esquizdides que predominarem como base da personalidade podem ser razoaveis ou sofrer um aumento até trans- formarem-se em um conflito que atrapalha ou altera 0 desenvolvimento do indivi- duo; que as defesas que 0 mesmo tem usado ao longo da vida podem ou nao ser benéficas dependendo do contexto, sem que o sejam em si mesmas; que sobre a estrutura de base de predominio esquizdide ou depressivo instalam-se outras estru- turas defensivas de tipo obsessivo, fobico ou histérico; que os fatores hereditarios ¢ constitutives desempenham um papel muito importante, razdo pela qual nao é re- comendavel trabalhar exclusivamente com a histéria do individuo e o fato desencadeante da consulta, mas estar aberto a possibilidade de incluir outros estu- dos complementares (médico-clinicos, neurolégicos, endocrinolégicos, etc.). Isto sig- nifica levar em consideracao a hipétese das séries complementares de Freud. ‘Além do mais, conforme as tltimas pesquisas, 0 contexto sécio-cultural e familiar deve ocupar um lugar importante no estudo da personalidade de um ini viduo, ja que é de onde ele provém. Portanto, o estudo da personalidade é, na reali- 13 14 Garcia Arzeno dade, um estudo de pelo menos trés geracdes, que se desenvolveram em um deter- minado contexto étnico-sdécio-cultural. Até pouco tempo atras este enfoque era dado quase exclusivamente ao estu- do da psicose. Atualmente € usado para o estudo de todas as patologias, pois sendo estariamos fazendo um recorte artificial da historia do individuo. E muito importante saber claramente qual é 0 objetivo do psicodiagnastico que vamos realizar. Quando o consultante chega dizendo: “Me mandaram...” “Minha noiva diz que vai me fazer bem...” “E por curiosidade, para ver 0 que aparece...” sabemos em primeiro lugar que 0 que esta sendo dito nao é verdade, pois ninguém consulta exclusivamente por estes motivos. Em algum recanto de si mesmo existe o desejo de fazer a consulta. Em segundo lugar, a motivagao é muito inconsciente e nao a per- cebe, por isso a colocagao soa muito superficial. De forma que, antes de iniciar a tarefa, 0 psicélogo deve esclarecer com 0 consultante qual ¢ 0 motivo manifesto e mais consciente do estudo e intuir qual seria 0 motivo latente! e inconsciente do mesmo. E importante dedicar a isto todo 0 tempo que for necessario ¢ nao iniciar a tarefa se 0 consultante insistir na idéia de que o faz por mera curiosidade, j4 que isso se refletira negativamente no momento da devolucao de informacao. Vejamos agora algo sobre as etapas do processo psicodiagnéstico’. O primeiro passo ocorre desde 0 momento em que o consultante faz a solici- taco da corisiilta afé"O encontro pessoal com o profissional. O segundo passo ocorre na ou nas primeiras entrevistas nas quais tenta-se esclarecer S motivo latente e 0 motivo manifesto da consulta, as ansiedades ¢ defe- sas que a pessoa que consulta mostra (e seus pais ou o resto da familia), a fantasia de doenga, cura e analise que cada um traz’ e a construgao da historia do individuo ¢ da familia em questdo, Foi totalmente deixado de lado o tipo de inquérito exaustivo ¢ entediante, tanto para 0 profissional como para os consultantes, e como veremos no desenvolvi- mento detalhado deste passo mais adiante, nos guiamos mais pelo que vai surgindo conforme 0 motivo central da consulta. O terceiro momento é 0 que dedicamos a refletir sobre o material colhido anteriorménté € SObré i168Sas hipdteses iniciais para planejar os passos a serem seguidos e os instrumentos diagnésticos a serem utilizados: hora do jogo individual com criancas e ptiberes, entrevistas familiares diagnésticas, testes graficos, verbais, lidicos, etc. Em alguns casos é imprescindivel incluir entrevistas vinculares com os membros mais implicados na patologia do grupo fainiliar. O quarto momento consiste na realizacao da estratégia diagnéstica planeja- da. Muitas vezes age-sé de acordo com este plano em outras, no entanto, séo neces- sdrias modificagées durante 0 percurso. Por isso, insistimos em que nao pode haver um modelo rigido de psicodiagnéstico que possa ser usado em todos os casos, sendo que a melhor orientacao para cada caso vird da experiéncia clinica e nivel de analise pessoal do profissional. O quinto momento € aquele dedicado ao estudo do material colhido para ob- ter um quadro o mais claro possivel sobre 0 caso em questao. E um trabalho arduo 1. Motivo manifesto ¢ latente é uma terminologia introduzida por Ocampo, Maria S. L. de; Arzeno, Maria E. Garcia; Grassano, E. e col., em 0 proceso psicodiagndstico e as técnicas projetivas, ob.cit.. cap. Il 2. Reformulagdo ¢ atualizacdo do colocaco em: Ocampo, Garcia Arzeno, Grassano e col. ob.cit., cap L. 3. Fantasia de docnga ¢ cura ¢ um term introduzido por A. Aberastury em Teoria y técnica del psicoandlisis de nijos, Buenos Aires, Paidés, e Fantasia de andlisis, por Baranger, M. em Fantasia de enfermedad xy desarrollo del insight en el andlisis de un nino, Revista Uruguaya de psicoandlisis. U1, n° 2. 1956. Psicodiagnéstico Clinico 15 que freqientemente desperta resistencias, mesmo em profissionais de boa forma- co e que trabalham com seriedade. E necessario buscar recorréncias e convergénci- as dentro do material, encontrar o significado de pontos obscuros ou producdes estranhas, correlacionar os diferentes instrumentos utilizados, entre si e com a historia do individuo e da familia. Se foram aplicados testes, eles devem ser tabula- dos corretamente e deve-se interpretar estes resultados para integra-los ao restante do material. Nao se trata de um trabalho mecanico de montar um quebra-cabega, mesmo tendo alguma semelhanca com essa tarefa. E mais uma busca semelhante 4 do antropdlogo e do arquedlogo (como miu'to bem foi comparada a tarefa do psicanalis- ta por Freud) ou a de um intérprete de uma lingua desconhecida pelo paciente e sua familia cuja traducao ajuda a desven lar um mistério e reconstruir uma parte da historia que desconhecem a nivel cons ‘iente, mas que se refere a quando foi gerada a patologia O mais dificil nesse momento «io estudo é compreender o sentido da presen- ca de algumas incongruéncias ou coutradigdes e aceité-las como tais, ou seja, re- nunciar a onipoténcia de poder entender tudo, E justamente a presenca de elementos ininteligiveis que vai nos alertar acerca de algo que sera entendido muito mais adi- ante, no decorrer do tratamento, quando a comunicacdo entre o sistema consciente ¢ inconsciente tenha-se tornado mais porosa e 0 individuo estiver, entao, em melho- res condigdes para suportar os contetidos que vierem a tona. Estes elementos nao deverao ser desprezados, pelo contrario, deverao ser colocados no laudo que enviar- mos a quem solicitou 0 estudo para deixa-lo de sobreaviso. No entanto, pode ser imprudente inclui-los na devolugao ao paciente, pois isso poder angustid-lo muito € provocar uma crise, um ataque ao psicélogo ou uma desercao. Chegamos assim ao sexto momento do processo psicodiagnéstico: a entre- vista de devolucdo de informacdo. Pode ser somente uma ou varias. Geralmente é feita de forma separada: uma com 0 individuo que foi trazido como protagonista principal da consulta ¢ outra com os pais € o restante da familia. Se a consulta foi iniciada como familiar, a devolugao e nossas conclusées também sera feita a toda a familia. Esta tiltima entrevista esta impregnada pela ansiedade do paciente, da sua familia e, por que nao dizé-lo, muitas vezes também pela nossa, especialmente nos casos mais complexos. Em primeiro lugar, cabe destacar que se mantém em vigor tudo 0 que foi exposto a respeito no livro ja citado de Ocampo, Garcia Arzeno, Grassano e colabo- radores. Mas desejo acrescentar algo, e sublinhar outros pontos. Antes, desejo enfatizar que 0 psicélogo nao deve assumir a posicao do que “sabe” diante dos que “nao sabem’. Primeiro, porque isso nao é verdade. Segundo, porque essa posi¢éo contém muita onipoténcia e da lugar a reagdes que atrapalham o trabalho. E insustentavel afirmar que em umas quantas entrevistas tenhamos esgotado o conhecimento de um individuo e, ainda mais, de um casal ou familia. Mas é possivel dizer que conse- guimos desvendar, com a maior certeza possivel, 0 motivo que provoca o sintoma que da origem a consulta. As vezes 0 proprio individuo ou seus pais podem assumir o papel daquele que pergunta e esperar que todas as suas diividas sejam respondidas, como se 0 profissional tivesse uma “bola de cristal”. Nesse caso é necessario reformular os respectivos papéis, especialmente o do profissional, que nao é propriamente um vidente. O profissional ira gradualmente aventando suas conclusdes e observando as reagdes que estas produzem nele ou nos entrevistados. A dinamica usada deve favo- 16 Garcia Arzeno recer 0 surgimento de novos materiais. Assim como evitamos 0 tédio no inquérito da primeira entrevista, evitaremos também agora transformar a transmiss4o de nos- sas conclusdes em um discurso que nao dé espago para que o interlocutor inclua suas reagdes. Ao contrario, as mesmas serao de grande utilidade para validar ou ndo nossas conclusées diagnésticas sujeito ou seus pais podem nao ter mencionado algo que surge no material registrado, € aproveitaremos essa entrevista para perguntar: um parente falecido, uma operacdo séria em um dos integrantes do grupo, uma mudanca ocorrida em um momento-chave, uma crise depressiva de algum parente significative, um abor- to, etc. Muitas vezes esta informacao pode mudar radicalmente as hipoteses levan- tadas pelo profissional, ¢ sua presengx é um bom sinal porque aumenta o grau de sinceridade € confianca do consultant. ‘Alem do mais, em alguns casos especificos, especialmente em uma familia com criangas, depenendo do que ten! amos percebido na ou nas entrevistas fami- liares diagnésticas, pode ser adequado realizar a entrevista de devolucdo com uma tecnica lddica que se alterne com a verbal, especialmente naqueles casos nos quais 0 individuo ou a familia siio movidos mais por cédigos de agao que de verbalizacao. Em relacdo a isso, lembro a utilidade que mantém o conceito de “interpreta- ¢ao lidica” colocado por Emilio Rodrigué em seu valioso livro “El contexto del proceso psicoanalitico” (0 contexto do processo psicoanalitico). Com algumas modificacdes, foi o capitulo “La interpretacién litdrica: una actitud hacia el juego” (A interpretacao Tadica: uma atitude diante do jogo) que me deu meios para passar a transmitir conclusées, nao somente ao nivel verbal mas fazendo dramatizagoes de forma a serem melhor assimiladas pelos interessados. No capitulo dedicado a essa etapa do processo psicodiagnéstico serao dados mais detalhes. Finalmente, 0 sétimo passo do processo consiste na elaboracao do informe psicolégico, se solicitado, e para isso remcto 0 leitor ao capitulo correspondente.

Você também pode gostar