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3 Cristo E O REINO DE Deus Oreino de Deus foi uma caracteristica central do ministério de Jesus. Mesmo uma andlise superficial dos evangelhos seria suficiente para de- monstrar isso, Obviamente, 0 reino é de importancia tZo suprema para o entendimento de Jesus acerca do que ele veio fazer, que é essencial ten- tarmos descobrir o que ele quis dizer com isso e depois coloc4-lo no contexto da sua obra mais ampla, Essa tarefa hoje é duplamente urgente. Esse t6pico tem sido objeto do mais vivido debate, Na Teologia da Li- bertago da América Latina, o tema assume proporgées dominantes. As conclusdes resultantes dessa énfase apresentam um sério desafio para a teologiae prética da igreja. JESUS E O REINO Logo no inicio, notamos que 0 uso que Mateus faz. da expressio “o reino dos céus” é alternativo da referéncia feita por Marcos e Lucas a0 “reino de Deus”. A expressio “reino dos céus” € peculiar a Mateus, mas ele também faz uso de “o reino de Deus” em algumas ocasi6es apropriadas (Mt 12.28; 19.24; 21.31,43). Uma comparagiio da utilizagdo dos dois ter- ‘mos, todavia, nfo revela nenhuma distingo sutil entre ambas. O que a A Obra de Cristo frase de Mateus sugere é que o foco nio se dirige a um lugar espectfico onde um regime 6 colocado em pritica, mas ao reinado do Senhor sobre ‘omundo.' Em segundo lugar, a maioria das referéncias é do reino per tencendo ao Pai ou simplesmente a Deus. Jesus parece distanciar a si ‘mesmo do reino exercido por Deus. Seu ensino, dessa forma, focaliza outra pessoa que ndo ele mesmo. Na verdade, a primeira proclamagio de seu ministério, de acordo com Marcos, foi: “O tempo esté cumprido, co reino de Deus esté préximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.15). Qualquer que venha a ser o seu significado, o reino de Deus eraum tema muito importante para Jesus. Esse foi o coragao da instru- ‘go pos-ressurreicZo que ele deu aos seus apdstolos (At 1.3). Ndo que isso fosse algo extraordinariamente novo. Além do mais, quando Jesus ‘comegou seu ministério, ele o fez.com a simples declaracdo da proximi- dade do reino de Deus. Tal mensagem pressupés um entendimento do reino de Deuse de sua natureza. A coisa mais surpreendente sobre isso foi que o reino estava préximo e isso exigia arrependimento imediato de Israel. Esse tema esta- va presente, em certo sentido, no entendimento de Israel a época de Jesus. O contexto desse entendimento, muito provavelmente, encontra- va-se no proprio Antigo Testamento. Lembramo-nos da visdo de Daniel sobre a sucessiva derrota dos reinos humanos causadas por uma pedra cortada sem o auxilio de mios e que por sua vez.tornou-se um reino que permanece para sempre (Dn 2.31-45). Outra visio de Daniel é sobre o dominio eterno dado ao Filho do Homem (Dn 7.9-14). Ambas as s referiam-se a circunstncias futuras em relagio aos dias de Daniel. No- vamente, uma expectativa vibrante desenvolveu-se no Antigo Testamen- to de que o préprio Yahweh viria para libertar 0 seu povo.? Jesus estava, de fato, dizendo a Israel que esse tempo havia chegado. (O que Jesus pretendia ao dizer: “o reino de Deus esta proximo”? Ha um imenso debate envolvendo essa questo. Ele ensinou que o reino de Deus estava presente na sua plenitude? Ou ele simplesmente quis dizer que o reino estava préximo, mas que ainda nao havia chegado? Em ou- tras palavras, seria o reino algo completamente presente ou totalmente futuro? Hé uma crescente unanimidade nos anos mais recentes de que nenhuma dessas alternativas encaixa-se no quadro. Na verdade, para sermos precisos em relago ao ensino de Jesus, devemos reconhecer aspectos nos quais o reino de Deus jé esté presente ¢ outros modos nos 56 Cristo e o Reino de Deus quais ele ainda é uma realidade a ser consumada no futuro. Resumindo, hé uma tensfo entre 0 “ja” e o “ainda nao”. Seré itil, por sua vez, analisar brevemente ambos os elementos do ensino de Jesus.” Primeiramente, ha modos pelos quais Jesus vé 0 reino de Deus como uma realidade jé presente. Seu comentario em Marcos 1.15 € prefaciado por sua declaragio de que “o tempo esté cumprido”, Em esséncia, Jesus reivindica que todo o perfodo de preparagao havia agora chegado 2 reali zacio. Os dias de expectativa haviam passado, O reino nao estava apenas préximo: ele era uma realidade presente. Além do mais, Jesus relaciona a derrota dos poderes demontacos, vista nos exorcismos por ele realizados, coma presenga do reino (Mt 12.28; Le 11.20): Se, porém, eu expulso deménios pelo Espftito de Deus, certamen- te € chegado 0 reino de Deus sobre vés (Mt 12.28). Ele conta pardbolas que enfatizam o aspecto oculto, embora presente, do crescimento dinamico do reino (Mt 13. 1-46). O reino é de valor in- calculdvel (Mt 13.44-46; Le 17.20-21; 15.4-32). Os profetas e pessoas retas do antigo pacto haviam ansiado por ver o que os discipulos de Jesus estavam vendo, Eles anelaram pelo cumprimento da promessa. Os discfpulos viram a realidade do reino em primeira mao: Bem-aventurados, porém, os vossos olhos, porque véem; ¢ 0s vos- sos ouvidos, porque ouvern, Pois em verdade vos digo que muitos profetas e justos desejaram ver 0 que vedes e niio viram; ¢ ouvir ‘o que ouvis e nao ouviram (Mt 13.16-17). Mesmo Joo Batista ocupa uma posigao inferior, Aqueles que ago- ra vivern em uma época na qual o proprio Deus veio livrar 0 seu povo ocupam, assim, uma posigdo de maior privilégio (Mt 11.11-13). As- sim sendo, Jesus é aquele em quem o reino de Deus é focalizado. Como Beaslei-Murray indica, ele € visto como o iniciador, o instru- mento, o representante, o condutor, o revelador e o Mediador do reino de Deus.* Em segundo lugar, notamos também que o reino de Deus descrito em termos que 0 colocam como uma realidade futura. Por exemplo, os discfpulos sao instrufdos a orar; “Venha o teu reino” (Mt 6.10; Le 11.2). 37 A Obra de Cristo Jesus fala sobre o surgimento do reino de Deus em poder como um evento definitivamente futuro (Mc 9.1; Mt 16.28; Le 9.27). Ele 0 des- creve como um banquete no qual Abraao, Isaque e Jacé sentar-se-fio A mesa com muitas pessoas dos diferentes cantos da terra, mas no qual alguns daqueles que esperavam estar presentes serao excluidos (Mt 8.11-12; Le 13.28-29). No Sermiio do monte, Jesus disse que os po- bres (de espfrito) e aqueles que so perseguidos por causa da justica herdardo o reino de Deus. No relato de Lucas, hé uma orientagao futu- raainda mais forte. As béngos do reino de Deus so contrarias & for- ma como as coisas aparecem na presente, Aqueles que agora choram, aqueles que agora so pobres e oprimidos, receberio (no futuro) a béngdo de Deus: Bem-aventurados v6s, os pobres, porque vosso € 0 reino de Deus. Bem-aventurados vés, os que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vés, os que agora chorais, porque haveis de rir... Mas ai de v6s, 08 ricos! Porque tendes a vossa consolagio, Ai de v6s, 0s que estais agora fartos! Porque vireis a ter fome. Ai de v6s, 08 que agora rides! Porque haveis de lamentar e chorar (Le 6.20-21; 24-25). Novamente, muitas das pardbolas de Jesus referem-se 4 vinda do reino como um processo de crescimento longo e imperceptivel (Mt 13.1-9,24- 33, 47-50; Me 4.1-9, 26-32; Le 13.18-21) ou como um evento que ocor- rerd no fim do mundo (Mt 25.1-30; Le 19.11-27).. Parece que Jesus entendeu o reino de Deus como uma poderosa ma- nifestagiio do governo de Deus, em harmonia com a expectativa do An- tigo Testamento sobre sua vinda para libertar o seu povo, Por uma pers- pectiva, o reino jé estava presente com a prépria vinda de Jesus. Em outro sentido, somente no final do mundo ficaria claro tudo o que est implicito na realidade do reino. Isso é trazido & luz no dislogo de Jesus com os discipulos de Joao Batista no momento em que eles retransmitem ‘a pergunta ansiosa do seu mentor (Mt 11.1-14). Joao, na prisio, estava duvidando de Jesus. A resposta de Jesus foi apontar para os milagres de cura e a pregacao do evangelho das boas-novas aos pobres. Ele cita Isafas 35.5-6 e 61.1 em apoio ao seu ministério messidnico, Ele omite, contudo, toda referéncia ao julgamento, 0 “dia da vinganga do nosso 58 Cristo ¢ 0 Reino de Deus Deus”. A prépria pregaco de Joao havia focalizado a necessidade de arrependimento e a iminéncia do julgamento. Jesus mostra sua obra de graga e miserie6rdia ao oprimido. Ele rejeita o julgamento? Dificil- mente, pois seu ensino esté repleto disso. O que se torna aparente é que a visio de Jodo sobre o reino havia encapsulado todo o proceso de graca e julgamento, Jesus deixou claro a ele que o julgamento acontece- r4 mais adiante, no futuro, que havia elementos do reino de Deus que por enquanto nao seriam realizados. Joao estava inibido por sua prépria perspectiva. Ele posicionou-se do lado de fora do reino olhando para dentro. Ele pertencia a uma época de preparagao e, portanto, viu todas as coisas se encaixarem em uma s6 pega, tal qual um observador pode ver uma montanha e os montes ao seu redor como uma proeminéncia maciga, Na realidade, havia dois cumes da montanha (gragae julgamen- to) separados por uma vasta frea intermedisria de terra que Joao estava sendo capaz de ver. A relaco do reino com Israel e com os gentios é proeminente nos ensinos de Jesus, e a mesma é um tema notério particularmente em Mateus. J4 vimos como o pano de fundo é aesperanga vétero-testamen- téria de libertagdo pela vinda de Yahweh. f interessante que Mateus des- creva Jesus como o Messias real em sua genealogia introdutéria, Ele é 0 Filho prometido de Davi que reinaria sobre a casa de Israel para sempre € & também a semente de Abrado por meio de quem todas as nagdes sero abencoadas (Mt 1.1-7). Dessa forma, todas as promessas de Deus no pacto tém o cumprimento nele. E nesse contexto que o anjo anuncia que Jesus salvaré seu povo dos pecados deles (Mt 1.21) e que ele 60 “Deus conosco” (Mt 1.23). Sua experiéncia como crianga mantém uma admir4vel semelhanga com aquela de Moisés. Ele é salvo de um decreto que exigia que todas as criangas do sexo masculino fossem mortas e logo apés ele é enviado para o exilio (Mt 2.13-18); ele é um Moisés maior, liderando o seu povo para a liberdade, e tudo isso é colocado no con- texto do tratamento histérico de Deus com Israel. Todavia, 0 foco avan- ado do evangelho é sobre um reino de Deus que expressamente inclui 08 gentios. Os magos gentios vieram honré-lo (Mt 2.1-12). Na verdade, muitos de Israel sero excluidos, enquanto uma multidio inteira vird do Leste e do Oeste, Norte e Sul, para sentar-se e cear com Abraiio, Isaque e Jacé (Mt 8.11, 12), Haverd unidade e continuidade com o pasado e ‘20 mesmo tempo o futuro serd mais extensivo, sua extensiio abrangendo 59 A Obra de Cristo todo o mundo, Em harmonia com isso, o centurido romano é selecionado como um exemplo de f& (Mt 8.5-13), como também a mulher cananita (Mt 15.21-28). A confissiio de fé de Pedro ocorre em Cesaréia de Fili- pe, na relagio de Israel com as nagdes (Mt 16.13-18)... e assim por diante. No final do evangelho, o Cristo ressurreto ordena aos seus apés tolos que facam discipulos de todas as nagdes (Mt 28.19,20), batizan- do-os no nome pactual do Pai, Filho e Espirito Santo, 0 novo pacto inaugurado pelo sangue de Jesus, que ¢ extenso a todo 0 mundo, € nao mais restrito apenas a nagdo de Israel A NATUREZA DO REINO Como vimos, 0 reino de Deus é 0 domfnio ou governo de Deus inau- gurado com a vinda de Jesus Cristo, mas nao consumado plenamente até o seu retorno no fim do mundo. Nao consideramos ainda em que esse reino consiste. Sabemos que ele é o cumprimento das expectativas vétero-testamentarias do pacto. Ele é 0 foco do ensino pés-ressurrei- (fio de Jesus aos seus apéstolos, o que o torna virtualmente equivalente A propria mensagem dos apéstolos. Seria til considerar nesse ponto as propostas da Teologia da Libertagdo, pois as mesmas so altamente in- trigantes e podem nos ajudar a desenvolver uma compreensio desse assunto por nés mesmos, A Teologia da Libertagao na América Latina argumenta que o reino de Deus foi inaugurado com a vinda de Jesus. Além do mais, ela reivin- dica que 0 reino consiste em um amor preferencial de Deus pelo po- bre. O contexto desse movimento encontra-se nas extremas desigual- dades sociais e econdmicas presentes em muitas partes da América Latina, Freqlientemente, porgdes significativas da populagio sfo priva- das das necessidades basicas da vida, enquanto as elites ricas e podero- sas preocupam-se apenas em como manter suas posigdes de privilégio. Esse tem sido 0 contexto pastoral no qual os prineipais tedlogos cat6li- cos romanos da Teologia da Libertago tém trabalhado. A necessidade de estruturar um Cristianismo relevante e pritico tem sido evidentemen- te ébvia. Por outro lado, a teologia tradicional tem sido interpretada como uma mantenedora da injustiga social. Isso ocorre devido & sua recusa de abordar criticamente os problemas sociais ¢ econémicos. Essa tendéncia para o dogma intelectual teérico desencoraja a participagao 60 Cristo eo Reino de Deus ativa na luta contra.a opressao. O siléncio diante de tal mal tem apenas fortalecido as elites dominantes. Os tedlogos da libertagao geralmente se sentem forgados a buscar ferramentas anal{ticas em outras fontes a fim de que possam combater esses problemas e, nesses casos, a teoria marxista tem sido freqlentemente usada, Sua atragdo positiva 6 bvia. Ela propde uma mudanga no mundo de maneiras sociais concretas. Para os tedlogos da libertagdo, a conseqléncia natural tem sido inter- pretar o pecado primariamente em termos de injustica social ¢ corporativa e, por sua vez, interpretar a redengio como uma liberta- go de tal injustiga. As bem-aventurangas sao muito populares entre os tedlogos da li- bertagdo. Nelas, Jesus pronunciou a béngio sobre “os pobres de espi- rito” (Mt 5.3) e 0 “pobre” (Le 6.20), pois “deles” (Mateus)/ “vosso” (Lucas) € 0 reino de Deus. A diferenga nas palavras empregadas pode ser importante. A referéncia de Lucas ao “pobre” parece suportar uma preferéncia de Deus pelo pobre. A referéncia de Mateus ao “pobre de espirito” parece focalizar a necessidade priméria da pobreza de espitito, tal qual a humildade. Teria Mateus espiritualizado um texto original de Lucas? Teria Jesus usado frases diferentes em épocas diferentes, como um pregador usando uma mesma ilustragdo de maneira diferente em con- gregagdes diferentes? O uso que Lucas faz da segunda pessoa do plural nessas bengdios é distanciado do uso normal. Apontaria esse fato para ‘suas fontes refletindo 0 original? Se isso for verdade, teria a fonte nova- ‘mente dado uma prioridade a frase de Lucas “os pobres” sobre a frase de Mateus “os pobres de espirito”? Em ambas as passagens, os prono- mes “deles” (autin - Mateus) ¢ “vosso” (hymetera - Lucas) encontram- se em posigées de énfase, possivelmente refletindo que o reino pertence aos pobres/pobres de espirito e somente a eles. Lucas, todavia, regis- tra que as bem-aventurangas foram entregues aos préprios discfpulos de Jesus (Le 6.19). Isso coloca a béngio sobre os pobres diretamente em um contexto de discipulado. 6 aos discipulos que so pobres, que sentem fome, que choram e que sio perseguidos por causa do Filho do Homem que o reino de Deus pertence.* O problema sobre a preferéncia pelo pobre, todavia, deve ser decidi- do em um nivel mais amplo que apenas o ponto de exegese acima, Para 05 tedlogos da libertagio, tais como Gutiérrez, Segundo e Sobrino’ 0 caso baseia-se em um niimero de provas interligadas. Todos eles apon- 61 A Obra de Cristo tam para Jesus afirmando que o reino é uma realidade presente, embora ainda incompleta, Eles mantém que o reino, no ensino de Jesus, ndo foi apenas um t6pico que afetou as pessoas interiormente, mas o mesmo incluiu uma reestruturagio dos relacionamentos sociais vistveis. Jesus Atuou em uma situagdo de conflito. Sua associago com a classe baixa e com os pecadores atraiu 0 6dio da classe dominante de Israel. Essa elite era organizada em torno da educagiio rabinica e do culto no templo. Ela era uma elite religiosa que possuia poderes econ6micos e politicos con- centrados em suas mos e que havia feito uso dos seus privilégios para reduzir totalmente os pobres em sua posigiio, por privé-los da educagio rabfnica, que era a maior indicagao de aceitagio. Diante disso, Jesus identificou-se com o pobre. Ele viveu uma vida de pobreza. Ele atacou a injustica e a opressdo. Seus assaltos ao pecado eram direcionados prin- cipalmente & forma corporativa do mesmo. Ele incitou a oposigHo assas- sina da elite, Do comego ao fim, ele foi solidario com os pobres, reco nhecendo que eles eram mais alvos do pecado do que praticantes do mesmo. Os pobres 0 ouviram com alegria. Os ricos e poderosos, perce- bendo estarem debaixo de uma ameaca politica, entregaram Jesus morte. A igreja, por sua vez, caso queira ser fiel & realidade do reino, deve viver em solidariedade com os pobres e marginalizados, reconhecendo que Deus tem uma preferéncia por eles. A igreja possui a tarefa, entdo, de lutar contra as estruturas que causam a pobreza e a injustiga. Essas es- truturas aumentam o privilégio das classes dominantes. A fim de que o reino de Deus seja consumado na histéria humana, é necessério que © pobre seja libertado. A Teologia da Libertagao enfatiza algumas imperfeigdes visfveis e pe- sarosas na teologia da Europa Ocidental e América do Norte. Devido ao impacto de uma cosmovisio dualista, herdada ultimamente por Kant, 0 mundo intimo da alma foi hermeticamente selado a parte do contato com estrutura material da criago, Conseqilentemente, a igreja tem se con- centrado no “espiritual” as custas do “material”, Como resultado, o evan- gelho (0 conceito do reino de Deus) tem sido compreendido como diri- ‘gindo-se primariamente ao pecado individual e, portanto, 2 piedade pes- soal, negligenciando com isso (chegando freqiientemente ao ponto da excluso) 0 mundo politico e didrio, Uma dicotomia sagrado/secular tem reinado. Conseqtientemente, o foco da Teologia da Libertagdo sobre a praxis e, por sua vez, sobre os problemas relacionados & pobreza e ao 62 Cristo e o Reino de Deus pecado coorporativo sio bem-vindos. O universo é criagiio de Deus eo governo de Deus estende-se sobre todo o mundo. Nossa salvagao pes- soal é parte de uma redengdo que inclui a pessoa integral, o cosmos inte- gral e, portanto, 0 todo de nossos relacionamentos sociais. Portanto, 0 reino de Deus no pode ser resttito arbitrariamente a vida interior. Ele governa o todo da nossa vida, como individuos e como comunidade. ‘Naio é verdade que o oitavo mandamento, “no furtarés”, nos ensina que axploragio econdmica é um pecado ¢, logo, deve ser resistido? Nao hi uma unidade integral na Biblia entre crenga e ago que foi separada pela tradigdo intelectual do Ocidente e a qual a Teologia da Libertagio nos redireciona? Nao é verdade que essa unidade é uma parte da mensagem de Jesus em sua pregagio do reino? Areivindicagio da Teologia da Libertagdo na América Latina é igual- mente truncada, contudo, ainda que em algumas direg6es um tanto quan- to diferentes. Sua mensagem olha para o futuro a partir de uma esperan- ga de que a luta contra a injustiga corporativa um dia obteré a vit6ria, dificil ver isso na énfase neo-testamentéria sobre Cristo como tendo j4 alcangado a salvagiio por sua morte e ressurreig&o. Mesmo que este tipo de injustica fosse removido, iria esse fato por si mesmo eliminar o pro- blema do pecado humano? Além do mais, as instruges do Cristo ressur- reto aos seus apéstolos focalizaram 0 reino de Deus (At 1.3). Oensino dos préprios apéstolos 6, portanto, um desdobramento de tudo o que esté implicito na propria mensagem de Jesus sobre o reino. Os proble- mas sociais e econdmicos, contudo, enquanto presentes ds vezes explici- tamente ¢, frequentemente por implicagdo nos ensinos dos apéstolos, no figuram de forma tio dominante como acontece na Teologia da Liberta- gio. Logo, no se pode afirmar que esses problemas sejam tratados tao macigamente nos ensinos de Jesus como os defensores da Teologia da Libertagdo gostariam que créssemos. Concordamos que eles estejam pre- sentes, ja que eles so uma parte importante da vida e, logo, esto sujei- tos ao governo de Deus. E, como temos notado, a 'Teologia da Liberta- ¢o tem levantado preocupagGes necessdrias, Sua mensagem € uma cor- regio vital ao evangelho truncado que tem sido to evidente no mundo ocidental. O que debatemos é a excossiva predominancia que amesma alribui aos fatores econémicos ¢ politicos. O que 6, entio, o reino de Deus? Ele nio é nada menos do que o ‘governo de Deus nas questdes humanas, Ele foi inaugurado com a vinda 6 A Obra de Cristo de Jesus, Seu ensinoe ministério, sua mensagem do reino, tudo aponta para o evento culminante de sua morte e ressurreigdo, Apés ressuscitar dos mortos, ele ensinou os seus apéstolos sobre o reino de Deus. Con- seqilentemente, o préprio ensino deles foi uma elaboragdo da mensa- gem central do reino como a mesma havia sido ensinada por Jesus € como uma importancia nova. decisiva a mesma pela morte e ressurrei- 40 do Senhor. Para o préprio Jesus, contudo, a plena manifestacdo do reino de Deus situa-se no futuro, no tempo da colheita, quando 0 Filho do homem voltar para julgar as nages. Logo, também com os apésto- 10s, 0 fruto final da morte e ressurreic&o de Cristo ainda reside em um futuro indefinido, quando ele retornar, Ha ainda a perspectiva do “ja” & do “ainda nio”. Orreino de Deus se estende ao longo da completa gama de assuntos da vida humana. A ética do reino certamente impinge sobre a vida inte- rior dos seres humanos. Jesus aplicou o decdlogo 2 em relagio a Deus e a outras pessoas. Em vez de afrouxar suas exigén- Cias, as intensificou. O mandamento “no matards” nao se relaciona ape- nas com assassinato, mas também se refere a uma ira maliciosa e ao 6dio aos semelhantes (Mt 5.21-22). O reino de Deus opera sobre pen- samentos, bem como sobre atos. Ao mesmo tempo, o reino de Deus ossui o seu lugar de direito sobre a vida social e corporativa. Os escribas ¢ fariseus so selecionados por Jesus como um grupo a receber conde- nagSes. Seus pecados caracteristicos so projetados com zelo implacd- vel. A despeito da popularidade geral dos fariseus em Israel (além de tudo, muitos deles eram leigos, e no profissionais religiosos), Jesus fa- Jou francamente. Relacionamentos conjugais, criagio de filhos, ética nos negécios, responsabilidades politicas ¢ assuntos financeiros foram algu- mas das reas que ele indicou como sendo sujeitas ao reino de Deus. A obra de Deus em nossa salvagao se estende ao renovo da sociedade e do cosmos. Dessa forma, o reino de Deus, como foi proclamado por Jesus € elaborado nos ensinos dos apéstolos, é to extenso em suas reivindicagdes como o todo da vida humana. Os MILAGRES DE CURA COMO SINAIS DO REINO De acordo com o Antigo Testamento, o Messias libertaria o oprimido, abritia os olhos do cego, curaria o surdo e restauraria os movimentos do 64 Cristo e 0 Reino de Deus coxo (Is 35.5s; 61.1,2). A chegada do reino de Deus seria uma ocasifo de livramento, libertagao e cumprimento da promessa. O julgamento tam- bém ocorreria. Em Isafas 61.2, 0 ungido seria aquele que proclamaria “o dia da vinganca do nosso Deus”. Em Malaquias 3.1-4, o mensageiro do pacto purificaria os levitas. Sua vinda seria terrfvel em sua justiga, purificando a comunidade do pacto como 0 faz.0 fogo. Quando Jo%o Batista enviou seus discfpulos para questionar Jesus acerca de sua iden- tidade, Jesus respondeu em termos dessa expectativa do Antigo Testa- mento. Ele era realmente aquele que estava para vir, pois ele estava realizando as obras do reino, curando e restabelecendo a visto. Nbs vimos que 0 ponto que Jodo precisava ouvir era que 0 julgamento jaz adiante, em um futuro mais distante, e nfo de imediato, como ele havia pensado. Os registros do evangelho encontram-se cheios de relatos sobre cu- ras dramiticas e, da mesma forma, o Livro de Atos. Na verdade, Lucas descreve seu evangelho como um relato de “todas as coisas que Jesus comecou a fazer e aensinar” (At 1.1), implicando que o ensino e 0 atos dos apéstolos foram continuagiio do ministério terreno de Jesus. E por isso que Pedro e Paulo incluem o testemunho pessoal deles como parte da mensagem do evangelho. Deus incluiu o testemunho deles sobre a morte e ressurreigdo de Cristo como parte da prépria mensagem do evangelho, Os milagres de cura dos apéstolos deveriam ser vistos em relagZo com aqueles realizados por Jesus como testificando a respeito da yinda do reino de Deus. E importante observar o contexto teolégico geral dos milagres na his- t6ria da revelagio, No Antigo Testamento, os milagres no esto espa- Ihados por todos os lados, mas ocorrem incidentalmente. As principais ocasides em que as atividades miraculosas acontecem so durante 0 perfodo entre 0 éxodo e a conquista da terra prometida, bem como no infcio da era profética, no ministério de Elias e Eliseu. Mais significativo ainda é a conjungao entre milagres e explosdes de eventuais revelagdes A parte das Escrituras. A distribuicdo desigual de milagres nao é por ‘acaso. Milagres ocorrem em tempos em que novas revelagdes so con- cedidas por Deus. Além do mais, a nova revelagdo por si mesma encon- tra-se associada com atos do poder redentor de Yahweh. Hé uma cor- relacdio entre um feito redentor e a palavra inteiramente reveladora acom- panhada, por sua vez, de um sinal miraculoso. Essas intervengdes, con- 65 A Obra de Cristo seqiientemente, nao so espetdculos em si mesmas. Elas apontam para algo mais, sao indicadoras da obra redentora do Deus vivo de Israel. Nesse sentido, nao seria surpreendente se no climax das obras e cami- hos de Deus em relacao a salvagao houvesse uma nova, até mesmo ‘mareante, ocorréncia de milagres. A vinda do Filho de Deus foi sua su- prema auto-revelagdo. Ele veio para salvar 0 seu povo. Esse foi o even- to ao qual o todo das Escrituras havia apontado. Os milagres de cura livramento que Jesus realizou, e que os apéstolos fizeram no seu nome, foram o épice do padrao biblico dos sinais testificando a respeito da salvagao de Deus. Se essa relagdo entre atos redentores, palavra reveladora e sinais miraculosos é valida, hd um némero de implicagdes. Primeiro, Cristo (como veremos mais tarde) realizou uma salvagdo completa, Nada adi- cional é necessério, Ele nfo deixou nenhum déficit teolégico para ser completado. Tudo o que Deus continua a fazer por nés agora é uma ‘efusio daquilo que ele realizou no Cristo encarnado, Nenhum outro ato redentor pode ser adicionado a isso, Da mesma forma, a palavra reveladora de Deus também esté completa, A Escritura Sagrada é sufi- ciente para nossa salvagio (2Tm 3.16-17). O ministério de Cristo, pes- soalmente e por meio de seus apéstolos, é completo, Certamente Deus continua a aplicar o fruto de seu labor a nés continuamente pelo Espirito Santo. Todavia, se isso 6 vilido (¢ 0 Cristianismo histérico tem afirmado que 6), outras exibigdes de milagres no sentido acima so desnecesséri- ase teologicamente supérfluas. Poderia ser dito que nés agora vivemos na “era do Espirito” e que, portanto, milagres deveriam ser esperados em uma base continua, Certamente Deus ¢ livre para fazer o que ele escolher. Seria tolice argumentar que milagres nfo podem mais aconte- cer ou que eles no ocorrem, Nés estamos, ¢ isso é enfaticamente ver- dadeiro, na “era do Espirito”. Ainda assim, a principal obra do Espirito é testemunhar de Cristo. E ele faz isso por meio das Escrituras que ele inspirou ¢ pelo ensino dos apéstolos que ele capacitou e que foram ins- titusdos pelo proprio Cristo como testemunhas de sua ressurrei¢ao. ApOs Cristo, nao hd nenhum déficit teol6gico para ser preenchido. A suprema revelagao de Deus, sua ago incomparavel, ocorreu nele. Alguns aspectos procminentes dos milagres de cura do nosso Senhor sio os seguintes: primeiramente, notamos sua soberania ao curar. Ele no curou todos. Ele livrou apenas um de muitos no tanque de Betesda 66 Cristo e 0 Reino de Deus (Jo 5.18s.) e deixou o restante deficiente. © coxo curado no templo por Pedro e Jodo (At 3.1-10) havia mendigado naquele lugar todos os dias por anos. Jesus havia sido um visitante freqiiente no templo. Evidente- mente, Jesus havia ignorado o mendigo coxo a despeito de suas sapli- cas. Em segundo lugar, hé uma relagio freqiiente entre curas e £6. Isso no 6 uniforme. Dos dez leprosos curados em uma ocasifio, apenas um retornou para agradecer Jesus. Algumas vezes um homem é curado em relagdio com a fé de outros. O paralitico baixado através do eirado é curado ¢ tem os seus pecados perdoados por causa da £6 de seus ami- gos (Me 2.1-12; Le 5.17-26)!* Ha também uma relagao entre cura e perdio dos pecados, como mostra o incidente acima, Em terceiro lugar, 6s milagres sfo primariamente sinais. Na verdade, uma das palavras mais, freqtientes para os milagres no Novo Testamento (sémeion) tem exata- mente esse significado. Como tais, eles apontam ndo para si mesmos, ‘mas para algo mais, como um indicador dirige-nos para um destino dife- rente de si mesmo. Eles so, como Jesus disse a Jodo Batista, sinais do reino de Deus, de suas préprias credenciais messiinicas. Eles apontam para o cumprimento da era da preparagiio: “O tempo esta cumprido, eo reino de Deus esté proximo; arependei-vos e crede no evangelho”. Esse foi um perfodo singular. Jesus foi uma pessoa singular. Os eventos envol- vendo seu ministério e a confirmagiio do mesmo pelos apéstolos foram também Gnicos.? Em quarto lugar, embora seja interessante relacionar os milagres de Jesus a teologia de sua pessoa, devemos tomar 0 cuida- do de analisé-los mais no sentido histérico-redentor, como acabei de descrever. A sugestio de Donald Baillie, de que os milagres foram obras, da natureza humana de Jesus, merece maior consideragio (Mt 9.8 pare- ce apoiar isso), mas tal sugestdo possui algo de um sabor nestoriano, como se as duas naturezas de Cristo pudessem ser separadas e consi- deradas isoladamente. Nao seria verdade que, antes e acima de tudo, os milagres foram obras da pessoa de Cristo, como nos diz.o dogma calcedénio?® Em quinto lugar e, finalmente, deveriamos notar que 8 milagres como sinais do reino de Deus nfo resultaram por si mesmos em um grande surto de fé. Quando Jesus morreu, ele morreu s6. Mesmo. apés sua ressurtei¢ao, seus discipulos consistiam em um ndmero insignifi- cante de 120 pessoas. Jesus expressamente ensinou que, se as pessoas ndo cressem nas Escrituras do Antigo Testamento, nem o maior de todos 6s milagres iria persuadi-los a mudar (Lc 16.27-31; ef 30 5.45-47). Certa- 67 A Obra de Cristo mente, houve alguns que se filiaram aos discipulos porque eles ficaram im- pressionados com os poderes miraculosos de Jesus. Jesus, todavia, niio confiava neles, pois ele sabia o que era a natureza humana e viu que a dedicagao deles era superficial e falsa (Jo 2.23-25). POR QUE 0 TEMA DESAPARECE NO RESTANTE DO Novo TESTAMENTO? Fora dos evangelhos sin6ticos hd admiravelmente poucas referencias ao reino de Deus. Enquanto Jesus concentrou sua pregagdo no reino, os apéstolos atrafram a atengdo para Jesus Cristo. Esse fato é visto algumas vvezes como motivo de um grande conflito. Em resumo, tem sido reivindi- cado que Paulo e os outros deturparam a mensagem central de Jesus so- brea paternidade de Deus e a necessidade do amor em uma religido sobre Jesus." Essa reivindicagdo, contudo, baseia-se grandemente na questo superficial da presenga ou auséncia de uma frase particular. Temos visto como a tensiio escatolégica na apresentagdo sinética do reino encontra-se diretamente associada com a relagdo existente entre a morte e a ressurrei- gao de Cristo por um lado e, por outro lado, A sua vinda, O reino é uma realidade presente, mas ainda aguarda um cumprimento. Ele é determina- do pelo evento decisivo da cruz.da ressurreigdo. Todavia, resultado com- pleto de sua morte e ressurreigiio nao serd realizado até o seu retorno, ‘Como conseqtiéncia, encontramo-nos em uma situagdo de um cumprimento real e provis6rio, simultaneamente, Nesse sentido, o foco do apéstolo Paulo, por exemplo, pode ser visto como que recaindo sobre uma implicagdo maior do evento crucial da morte ¢ ressurreigho de Cristo, o qual, sob a perspeetiva de Jesus antes da ressurreigdo, era um evento altaneiro que se encontrava no futuro. A diferenca é apenas uma questo de perspectiva. Para o préprio Jesus, sua eminente morte e ressurreicdo seriam 0 ponto decisivo de sua missio, Em Mateus 16.21ss., 0 problema vem luz imediatamente ap6s o relato da confissio de Pedro em Cesaréia de Filipe. Nesse ponto crucial, onde o reconhecimento dos discipulos foi despertado no que diz respeito a identidade de Jesus, ele passa a expli- car-Ihes 0 que aconteceria em Jerusalém. Esse é 0 inicio de um novo estgio de instrugdes. Seguindo sua repreensiio a Pedro por sua bem- intencionada tentativa de prevenir a morte do Senhor, Jesus estabelece 68 Cristo e 0 Reino de Deus algumas diregdes claras e precisas para o discipulado e aponta para sua manifestag4o eminente no seu reino. Em Marcos 9.31, Jesus fala a0s seus disefpulos em particular sobre sua morte ¢ ressurreicao vin- douras, mas eles nao foram eapazes de compreender o significado dis- so, Evidentemente, eles se tornaram cheios de pressdgios e nao quise- ram ou nfio puderam perguntar nada mais nesse sentido. Em Lucas 18.31- 34, eles so vistos mais uma vez como simplesmente falando em com- preender a que os comentarios de Jesus diziam respeito. O significado era oculto para eles: ‘Tomando consigo os doze, disse-Ihes Jesus: Bis que subimos para Jerusalém, ¢ vai cumprir-se ali tudo quanto esté escrito por inter- médio dos profetas, no tocante ao Filho do homem; pois serd ele entregue aos gentios, escarnecido, ultrajado e cuspido; e, depois, de o agoitarem, tirar-the-2o a vida; mas, ao terceiro dia, ressus- citard. Eles, porém, nada compreenderam acerca destas coisas; € © sentido destas palavras era-thes encoberto, de sorte que nao percebiam 0 que ele dizia, Novamente, Jesus Ihes falou secretamente. Isso no era algo como propésito de ser publicamente exposto. Apenas depois de sua ressur- reigdo eles se lembraram do que ele Ihes havia dito, e 0 quadro come- ou aser formado. O anjo no sepulcro relembrou as mulheres das pre~ digdes de Jesus (Le 24.5-7). Naquele ponto as suas palavras retornaram A.sua mente ¢ eles comecaram a encaixé-las na ampla moldura da refe~ réncia, Antes, aquelas palavras haviam parecido enigmiticas e anor- mais, Talvez.a natureza ameagadora das mesmas tivesse levado os dis. cipulos a recusarem-se a acreditar nelas, a banir o pensamento de suas mentes. O Cristo ressurreto, contudo, repreende os dois discipulos em Lucas 24.20-27 devido ao fracasso dos mesmos em compreender 0 que ele Ihes havia dito. Na verdade, ele os dirige as Escrituras, que haviam claramente prefigurado esses eventos. A ignorancia dos disef- pulos pode ter sido uma razao suficiente para Jesus nao ter sido mais explicito sobre o significado da cruz. Sua prética foi condicionar seu ensino A capacidade daqueles que estavam sendo ensinados. Qualquer que seja a explicagdo, para Jesus, sua mortee ressurrei¢ao marcam um estdgio decisivo em seu ministério ¢ 0 ponto no qual o reino de Deus encontra seu infcio no mundo. 69 A Obra de Cristo Apoio para esta posigao é encontrado no ensino dos apéstolos imedi- atamente apés a ressurreigd0. Os serm@es de Pedro ¢ Paulo em Atos focalizam, de maneira central, a ressurreigio de Cristo. A esséncia do cevangelho é interpretada como consistindo no fato de que Deus ressusci- tou ito de entre os mortos em cumprimento as Escrituras (At 2.14~- 36; 3.12-16; 17.1-3). Paulo diz a mesma coisa para os corintios (1Co 15.3,4) ¢ Pedro faz 0 mesmo aos seus leitores (1Pe 1.10-12). Todos eles véem uma mudanga decisiva acontecendo a partir da ressurreicao. Ele 0 centro da hist6ria mundial, estabelecendo uma nova criagao (2Co 5.17), mas ao mesmo tempo nés ainda aguardamos até a segunda vinda para obtermos os plenos resultados da ressurreig4o, Vivemos em uma época de cumprimento, cumprimento esse que ainda é provisério. Hé poucas referéncias especificas nos escritos de Paulo sobre o “reino de Deus”. Aquelas que ocorrem mostram a mesma tensio que ja ob- servamos. Por um lado, Paulo vé 0 reino de Deus como uma realidade presente. Esse reino consiste em justiga, paz.e alegria no Espirito Santo (Rm 14.17), Ele considera todas essas realidades como existentes aqui e agora. A justica de Deus foi revelada (Rm 1.16,17). Cristo estabele- ceu a paz com Deus (Rm 5.1; ef Ef 2.11-22). O Espirito Santo foi derramado nos nossos coragdes (Rm 5.5). Deus j4 nos transportou do império das trevas para o reino de seu Filho (Cl 1.13). Por outro lado, Paulo também focaliza o aspecto futuro do reino de Deus. Pessoas imo- rais serdo impedidas de entrar nesse reino (1Co 6.9,10; G1 5.21; Ef 5.5), 0 que pode ser uma forte sugestiio de que a admissiio como um stidito do reino ocorrerd ap6s a complementagao da vida presente do individuo. Um segundo aspecto principal do tratamento paulino sobre o reino é a equagio que ele faz do reino com o evangelho ou, mais espe- cificamente, com o evangelho em sua mais ampla dimensio como a in- teira vontade de Deus expressa em prol de nossa salvagdo. Assim, em seu discurso de despedida aos presbiteros de Efeso, Paulo pode des- crever 0 teor de sua pregagdo como sendo “acerca do reino” e tam- bém, na mesma linha de raciocinio, como sendo “todo o conselho de Deus” (At 20.25,27). Os terttos siio evidentemente permutaveis. Por- tanto, 0 tema do “reino de Deus” nos sinéticos torna-se idéntico A soma total do ensino apost6lico apés a ressurreiga0, Tudo isso esta plena- ‘mente em harmonia com as instrugdes pés-ressurreicdo dadas por Je- sus aos seus apéstolos. 70 Cristo e o Reino de Deus Em um sentido restrito, o foco de Paulo sobre o reino de Deus tor- na-se mais agudo e claro, a despeito do fato de que a fraseologia ca- racteristica dos sindticos encontra-se grandemente ausente. O ponto a observar é que, com sua ressurreigo, Cristo foi assunto & mio direita de Deus ¢ investido com completa autoridade sobre todo 0 cosmos (Mt 28.18). Isso marca o climax do Evangelho de Mateus. O tema do reino, investigado do comego ao fim, é completamente expresso na elevagio de Jesus & suprema autoridade. Logo, para Paulo, Jesus foi designado Filho de Deus com poder desde a ressurreigto (Rm 1.3,4). Ele foi exal- tado a supremacia (Ef 1.18-22; Fp 2.9-11; Cl 1.15-20). O escritor de Hebreus concorda que, com sua ressurreigio, Jesus se tornou “herdei- ro de todas as coisas” (Hb 1.1-4). Portanto, a imagem muda. Nao mais apenas o reino de Deus que ocupa o palco central. Ao contrario, 0 reino mediat6rio de Cristo surge em cena. Assim como 0 novo pacto ¢ uma revelagio da Trindade de Deus, também o reino de Deus néo € visto como um governo por uma mOnade indistinta, mas como um fen6meno trinitario. Em nenhum lugar isso é mais evidente do que em 1 Corintios 15.20-28, Paulo, ao discutir a ressurreigdo de Cristo e a nos- sa, indica que, enquanto a dele j4 ocorreu, a nossa aconteceré em um futuro indefinido, quando Cristo retornar (vs. 20-23). No seu retorno, seremos ressuscitados, a morte serd finalmente abolida e Cristo devol- verd o reino ao Pai (vs. 24-28), Dessa forma, Paulo considera Cristo reinando agora. Na verdade, ele cita o Salmo 110.1 em referéncia a sua presente exaltaciio (vs. 25,27). Seu reino é, portanto, temporariamente circunscrito, Ele comega com a ressurreig&o e o assentar no trono, Seu término serd o seu retorno. Ele seré entio revertido a Deus, 0 Pai. O propésito do reino mediat6rio de Cristo ¢, dessa forma, subjugar os inimigos. A morte € 0 iltimo inimigo, que jé recebeu a sentenga de mor- te na ressurreigdo de Cristo, mas que seré finalmente eliminada no seu retorno. O apéstolo prevé um triunfo progressivo de Cristo sobre todos os seus inimigos. Seu reino é a realidade na qual a igreja atua aqui eagora, Ainda que 0 reino de Deus/Cristo inclua a igreja como um compo- nente central e muito importante, ela nao deve ser identificada como mesmo. O reino se estende sobre todo 0 cosmos. A teologia catdlica romana tem procurado, de forma tipica, fundir os dois, A resposta a isso vem do fato de que a igreja nao 6 0 mundo. Certamente, a fungao a A Obra de Cristo da igreja é crucial. A igreja 6, em certo sentido, a cavalaria de ataque de Cristo, liderando o progresso do reino, Mas esse reino se estende sobre produtores de programas de computadores, governantes, clubes de gol- fe, autoridades educacionais locais, hospitais, produgdo de ovos e pes- quisas cientificas, além das companhias bancérias ¢ de seguro. J4 que Cristo reina e governa sobre todo 0 cosmos como Mediador da criagio, nenhum aspecto da vida, publica ou privada, esté fora de sua autoridade legitima. Por outro lado, o dispensacionalismo radicalmente divorcia igneja ereino. O reino foi interpretado como sendo relacionado com a nagao de Israel, que foi completamente separada da igreja. Assim, Deus tinha um plano para os judeus e outro totalmente diferente para os cristos. Tal dicotomia representa uma visio do reino seriamente truncada. Sua ex- tensfo é baseada na prioridade e hegemonia de uma nagdo. Essa pers- pectiva perde de vista que, no Novo Testamento, 0 reino se estende a todo.o mundo. Além do mais, ela forga um dualismo radical entre Israel e a igreja, com base em um dualismo natureza-graga, pelo qual Israel rece- be as promessas materiais ¢ terrenas, enquanto que a igreja possui as, béngiios espirituais. Exploraremos o tema da relagio entre igrejae cos- mos mais amplamente no capitulo 10, Por enquanto, indicaremos Colossenses 1.15-20 como uma énfase dessa relagdo. Cristo 6 0 criador ¢ sustentador de todas as coisas, Ele ressuscitou dos mortos e é 0 cabe- gade sua igreja. Sua morte reconciliadora na cruz, tem assegurado nossa transferéncia para o seu reino e & o meio da reconciliagao de todas as, coisas, ou seja, “todas as coisas” que ele criou e sustém, Igreja e reino no devem ser confundidas nem separadas. Elas s%0 como dois circulos concéntricos, sobre os quais Cristo reina supremamente. 72

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