Você está na página 1de 13
Kant: 0 ser humano entre natureza e liberdade Valerio Rohden* Teria sentido estudar Kant? uuase todo mundo pode ir hoje a Kénigsberg ~ a cidade onde Immanuel Kant (1724-1804) nasceu — em avides brasileiros da Embraer, que voam de Berlim a Varsévia ¢ de li & cidade de Kant. Também pode ir de trem, a partir de Berlim, se optar por uma mais sofrida aventura. Diz~ se que Kanitinunea saiu de sua cidade ¢ que, alias, a maior distinc durante toda a vida limitou-se a um breve passeio de barco pelas margens do Mar que percorreu Biltico, a 20km de sua cidade. A provincia constitui um enclave isolado entre a Poldnia e a Lituania, as margens do Baltico. Apés ser ocupada pelas tropas soviéticas durante a I] Guerra Mundial ¢ de ver destruida praticamente toda a sua vasta e antiga area central pelos bombardeios ingleses de agosto de 1944, a cidade de Kaliningrad. Seguiu-se o afastamento forgado dos alemies da provincia: para nao sobrar vestigio deles, Brejnev mandou bombardear o Pali se erguia aos fundos da casa de Kant. E, nao obstante, provavel que o nome atual da cidade seja brevemente substituido pela sua denominacio original: a atual popula~ cdo russa nutre crescente simpatia pela figura lendéria de Kant. ob dominio da Rui ia, com 0 novo nome cio Imperial que ainda * Filosofo, pés-doultor em filosotia, professor da Universidade Luterana do Brasil Antes de a cidade ser pela primeira vez bombardeada, as tropas soviéticas esvaziaram as bibliotecas, transportando seus pertences para lugares desconhecidos. Em vista disso, muitos livros e manuscritos de autoria, propriedade ¢ uso pessoal de Kant encontram-se até hoje desaparecidos, investindo-se por isso intensas buscas em sua localiza Gao. Um professor russo, da ai localizada e agora chamada Universidade Imma nuel Kant, declarou-me que considera exético que Kant seja estudado no Brasil. No entanto, a Sociedade Kant Brasileira é uma das maiores sociedades mundo, e em setembro de 2005 promoveu na Universidade de Sio Paulo, por de- legacao da Sociedade Kant da Alemanha (Kant-Gesellschafi), 0 X Congreso Kant Internacional (/0¢h International Kant Congress), que pela primeira vez foi realizado fora do circuito Alemanha/Estados Unidos. Até uma Moto Tour desde Vilna, capital da Lituinia, até Sao Paulo foi organizada e efetuada em homenagem a Kant, por motivo do Congresso Kant no Brasil, pasando antes pelo timulo de Kant junto a Catedral de Kénigsberg e, uma vez na América, descendo por terra desde 0 Méxi- co até o Brasil, numa extensio aproximada de dez mil quilometros rodados neste Ailtimo trecho, Isso faz supor que o estudo do pensamento de Kant, no Brasil, néo seja nada exdtico, mas que Kant tenha, antes, uma mensagem a transmitir a toda a humanidade, a filosofia, & ciéncia, ao dircito, & politi vindouros, como a tiveram e continuam tendo privilegiadamente Platito e os Gre gos. A propésito, o fildsofo norte-americano Richard Rorty escreveu recentemente que o estudo da filosofia tem de se fazer hoje a partir de Platio ¢ Kant antianas do i, 40 nosso tempo e aos século Entao, limitando a sua existéncia & sua prdpria cidade natal, Kant foi pelas suas contribuigdes tedricas ¢ pelo seu espirito um filésofo cosmopolita, no sentido estrito do termo. Ele viveu o século XVII, época do Huminismo, chamada em ale- mio de Aufklarung (Esclarecimento). Essa foi uma época racionalista, de crenga no triunfo da ciéncia e de crenga em um ainda mai dade, presumidamente proveniente do progresso da ciéncia. $6 que a ciéncia nunca bastou para tornar os homens melhores. Ela é em mais de duas ter servigo da guerra. Kant ~ que propos como | pel (ou: ousa servir-te autonomamente de teu préprio entendimento, sem necessidade do auxilio de outrem!), e que viu como causas da falta de pensar proprio a covardia e a preguiga — foi um critico de seu tempo. A pergunta, se vivemos numa época e: recida, ele respondeu: “Nao! Mas vivemos numa época em vias de esclarecimento”. ilusério futuro feliz da humani- partes posta a P ma do Esclarecimento: Ous et O seu senso realista € critico proveio tweoricamente do fato de ele ter pro- curado superar as parcialidades ¢ reunificar as virtualidades comuns das filosofias 112 racionalista e empirista — dizendo que 0 conhecimento se constitui a partir da expe- rigncia, entendida como uma conexao de percepgdes produzida pelo entendimento, cuja objetividade, necessidade e validade assentam em categorias aprisricas, isto é, racionais; € que, portanto, a razdio humana é ativa, gerando conceitos; tendo, de ou- tro Indo, a sensibilidade e seus dados que, mediante conceitos ¢ juizos, sio por sua ver transformados em objetos. Kant expés ¢ justificou essa concepe: mentos do conhecimento em sua Critica da Razo Pura (1781, 2 ed. 1787). fio dos funda- Na sua segunda Critica, a Critica da Raziio Pritica (1788), ele estabeleceu um filosofia moral formal fandada em prineipios, identificados com o conceito de auto- nomia como forma universal da vontade € como razio pritis cipios heterénomos ou materiais, identificados com a doutrina da felicidade, porque esta é buscada naturalmente, varia de pessoa a pessoa ¢ ¢ incapaz de universalizagio estrita, Além disso, fundou a existéncia da liberdade, como fundamento da lei moral, num chamado “factum da razio", como consciéncia de que, se devo fazer algo, tam- bém efetivamente © posso, ou seja, sei praticamente que sou livre e responsivel por meus atos, Isto Kant estabeleceu ao reapresentar a formula do imperative segundo a qual eu devo reflexivamente examinar 0 que aconteceria se cada um tomas se como universalmente vilida a sua maxima (o seu principio pessoal de ago). Tal imperativo poderia expressar-se de forma acessivel do seguinte modo: age de modo tal que nifo fagas aos outros aquilo que no queres que eles fagam a ti. Com bas conclui-se que o dever é a simples tradugio de uma forma racional de querer € excluiu dela os prin- regorico, nisso, O ser humano entre natureza e liberdade Os textos de Kant, reproduzidos no presente livro, pertencem aos §§ 83 ¢ 84 da terceira Critica de Kant, a Critica da Faculdade do Juizo, de 1790 [os mimeros que aparecem 4 margem do texto correspondem as priginas da segunda edigao ori- ginal, de 1793] io desenvolvi 208 Nessa Critica da Faculdade do Jutzo s teflexivos: os juizos de gosto (estéticos) e os juizos teleolégicos voltados principal mente para organismos bioldgicos. Os juizos reflexivos contrapdem-se aos ju determinantes, que partem de um conceito universal e procuram subsumir € deter- minar o particular. Ja os juizos reflexivos partem, opostamente, do dado particular ¢ movem-se em direcio a um univer: versal é uma idéia da razao, constitutiva dos juizos de gosto, m: Jas duas espécies de jul al nfio determinavel cognitivamente. Este uni~ apenas regulativa 113 (de aproximagao e guia de investigagio) nos juizos teleolégicos ou finalisticos. E+ sao juizos animados por uma apenas vislumbrada idéia. [A sensibilidade produ tuigdes sensoriais, o entendimento produz conceitos, ¢ a razao produz idéias]. Idéias sdo representagoes de totalidade, presidem um sistema, uma ciéncia, uma obra de arte, que se comunicam simbolicamente mediante a sua forma plistica ou sonora sensorial, Elas também, e principalmente, presidem a idéia de organismo, como um lado mediante a idéia de vida. todo arti Mas no 6 0 organismo natural, também o juizo de gosto ¢ animado pelo sentimento de vida: nele, em vez de a representacio ser referida cognitivamente ao objeto, ela é “referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao sentimento de vida, sob +r ou desprazer” (trad. bras. p.48, B 4). O juizo de gosto articula a representacio dada com o todo da faculdade de representagdes, “da qual 0 {nimo torna-se consciente no sentimento de seu estado” (trad. bras. p.49, BS). o nome de sentimento de pr A faculdade geral de representagdes chama-se “animo” (Gemiif). O. prefixo ale- mio Ge denota um conjunto, no caso um conjunto articulado de faculdad mo modo que Gestirn [Siern = estrela] denota um conjunto de estrelas chamado de “constelagao”. O finimo (como Gemiif) reine o conjunto das faculdades de conhecer (faculdade tedrica) e de apetecer (ou desejar, faculdade pritica). E como faculdade re~ flex vo articula entre si as duas faculdades, tedrica e pritica, dentro es, do mes sa estética que o ju do todo do animo, Por isso 0 animo pode ser pensado nao s6 como um orga ligado ao corpo, mas € pensado como principio de vida por exceléncia: “O animo é por si s6 inteiramente vida (o proprio principio da vida)” [p.124, B 130; a express “(o proprio principio da vida)” foi por um lapso omitida na tradugao]. nismo, do ssim toda essa terceira Critica de Kant esta centrada no principio de vida como idéia articuladora de um organismo, por exemplo, também no caso do ser hu- mano pensado como animal-racional. Convém ressaltar que a experiéncia estética tanto articula mediante 0 juizo ~ que é um talento que se desenvolve na pritica ¢ nao na escola ~ a teoria ¢ a pritica, quanto integra o homem a0 mundo. Mediante tal espécie de juizo 0 homem sente-se em casa na Terra, Pelo desenvolvimento do sentido de gosto, ele aprende a amar a natureza ¢ a vida ¢, portanto, a cuidar dela. Vejamos entao outros aspectos em jogo no texto relativo aos §§ 83-84. Me- diante a idéia de stimo fim, o texto pensa primeiramente o ser humano enquanto ser da natureza ¢ enquanto seu fim, Mediante a idéia de fim representada pela ra- Ao, todos os demais fins atribuidos pelo homem & natureza passam a constituir um sistema de fins. Os fins nao sio entidades naturais, ¢ sim representagdes de como (0 todo do mundo ¢ o homem visa e realiza a natureza em conjunto, como idéi 114 da natureza é sempre s6 uma idéia). A representagio de fins é propria da faculdade pritica de apetigiio (desejar, querer), nao podendo os fins ser jamais impostos desde fora. Eles sio representagdes livres do que 0 homem quer. Assim fins da naturez constituem uma espécie de projecio da vontade humana sobre ela O tiltimo fim natural do homem subdivide-se em felicidade e cultura. A fe- licidade é a idéia de uma satisfacao completa da natureza humana. Ela nao é tirada dos instintos e de sua animalidade, mas é a idéia de um tal estado, que ele procura realizar. homem mediante a natureza”. ant define a felicidade como “a globalidade de todos os eis do Ja a cultura é um tltimo fim da natureza como habilidade a toda espécie de fins. Por ela o ser humano torna-se capaz de desenvolver os germes de vida até seu pleno desabrochamento, ou seja, em seu caso, até o aleance de uma maiorida- de que a natureza preparou cuidadosamente, natureza que 0 homem termina de algum modo superando, para entio passar também ele a cuidar dela, por exemplo, na perspectiva ecolégica. O homem torna-se senhor da natureza, na medida em que pelo entendimento se coloca fins. Ele, entretanto, s6 se relacionari finalis- ticamente com a natureza enquanto conceber-se como fim para si préprio (fim terminal), portanto, como livre. Esta é uma concep¢io ja esbogada no § 83, mas tematizada especificamente no § 84 da Critica da Faculdade do Jufzo. Como fim para si mesmo € nao mais como um elemento da torna-se ser moral. Como seres livres, os homens ji no podem reduzir nenhum outro a simples meio, mas devem consideri-lo sempre também como fim ou como sujeito moral. $6 enquanto os seres humanos se reconhecem mutuamente como igualmente livres, isto é, auténomos como co-legisladores de um reino de fins, eles tampouco a adeia natural, o ser humano busario da natureza, que é como o seu préprio corpo: a matéria € a forma de expressio da sua vida. ¥O prazer que 0 ser humano sente pelos outros ¢ pela natureza é sempre um prazer na vida, Por esse prazer, principalmente pelo prazer estético, 0 ser humane sente-se bem no mundo; ¢ ja por tudo, como consciéncia moral de de abusar da natureza, ou devera fazer dela um uso que corresponda a vontade de todos os demais. Do contririo a usar em beneficio proprio ¢ em detrimento da liberdade de outros. 0 ele passara a cuidar da natureza. $6, con- ou deveria s si ele sentir-s ntir-se impedido Entio o fim terminal é um fim em que o ser humano se coloca a si, ¢ logo racionalmente também a todos 08 outros, como proprio fim. 115 Sobre homem (assim como qualquer ser racional no mundo) enquanto ser moral nao é possivel continuar a perguntar: para que existe ele? A sua existéncia possui nele préprio o fim mais elevado, a0 qual ~ tanto quanto Ihe for possivel ~ pode subme- ter toda a natureza.” A novidade, aqui, é que a relagao moral do homem com a natureza transfor- ma nfo sé essa relagao de modo geral, mas também deveria transformar as atuais relagdes vigentes com ela, que tio bem conhecemos. A relagio moral do homem com a natureza é uma relagio em vista da humanidade atual e futura, Ela é para os homens de boa vontade, uma garantia de que so a esse nivel a natureza poder ser ao geral da vida. universalmente assegurada e preservada como condig 116 § 83. Do ultimo fim da natureza como sistema teolégico” ‘Mostramos acima que temos razes suficientes para ajuizar o homem, nao simples mente enquanto ser da natureza como todos os seres organizados, mas também, aqui na terra, como o ultimo fim da natureza, em relag%o ao qual todas as restantes coisas naturais constituem um sistema de fins, segundo prineipios da raz4o ¢, na realidade, ndo para a faculdade de juizo determinante, mas para a reflexiva. Ora, se temos que encontrar no proprio homem aquilo que, como fim, deve ser estabelecido através da sua conexdo com , ent ou o fim tem que ser de tal modo que ele proprio pode ser através da natureza na sua beneficéncia , ou é a aptidio e habilidade para toda a espécie de fins, para 0 que @ natureza (tanto externa, como interna) pode ser por ele utilizada. O primeiro fim da natureza seria a felicidade ¢ 0 segundo a cultura do homem. a natures tisfcito conceito de felicidade nao é tal que o homem possa abstrai-lo dos seus instintos € desse modo o retire da sua animalidade nele mesmo; pelo contririo, € a mera idéia de um estado, a qual ele quer adequar este tltimo sob condigées simplesmente empiricas (0 que ¢ impossivel). © homem projeta para si proprio esta idéia e na vei de, sob as mais variadas formas, através do seu entendimento envolvido com a imaginagio ¢ sentidos; cle muda até esse conceito to freqiientemente que a natureza, se estivesse submetida inteiramente ao seu livre-arbitrio, nfo poderia admitir até nenhuma lei universal deter~ minada ¢ segura, para concordar com este vacilante conceito ¢ desse modo com o fim que, de modo arbitrario, cada um a si mesmo prop3e. Mas mesmo se, ou reduzimos este conceito a verdadeira necessidade natural, na qual a nossa espécie concorda pl namente com ela prépria, ou, por outro lado, pretendemos dar um alto apreso & habilidade p: ctiar fins por si imaginados, nesse caso nunca seria por ele aleangado aquilo que 0 ho- mem entende por felicidade e o que na verdade (nao fim da liberdade). E que a sua natureza no é de modo a satisfazer-se e acabar na o seu iiltimo e proprio fim da natureza posse © no goz0, Por outro lado, é muito errdnco pensar que a natureza o tomou como seu preferido € 0 favor acontece 6 que ela tampouco o poupou nos seus efeitos destrutivos como a peste, a fom: as inundagdes, 0 gelo, o ataque de outros animais grandes ¢ pequenos; mas mais ainda, © carter contraditério das disposisées naturais nele condu-lo™” ainda a uma tal miséria, isto é,a tormentos que ele mesmo inventa ¢ a outros produzidos pela sua propria espécie, mediante a opressio do dominio, a bar! su em detrimento de todos os outros animais. Sobretudo 0 que ‘rie da guerra etc. E ele mesmo, enquanto pode, * Os textos aqui reproduzidos correspondem as paginas 988-399 da 2* edi¢ao original de 1799, que na edi- (0 brasileira correspondem as paginas 270-276. 249 A: conduz ele proprio, 117 trabalha na destruigao da sua propria espécie, de tal modo que, mesmo com a mais ben- fazeja natureza fora de nés, nao seria atingido o fim daquela, num sistema seu na terra, no caso de tal fim ser colocado como felicidade da nossa espécie. E isso porque, em nés, 4 natureza ndo é para isso receptiva. Ele é por isso sempre ¢ s6 um membro na cadeia dos fins da natureza: na verdade um principio com relagio a muitos fins, para 0 que a na~ tureza parece té-lo dest isso, Mas também é meio para a conservagio da conformidade a fins no mecanismo dos restantes membros. conseguinte uma faculdade de voluntariamente colocar a si mesmo fins, ele é corretamen- te denominado senhor da natureza ¢, se considerarmos esta como um sistema teolégico, nado na sua posigio, ¢ na medida em que ele proprio se faz para nquanto tinico ser na terra que possui entendimento , por © tiltimo fim da natureza segundo a sua destinagio; mas sempre s6 sob a condigio ~ isto é,na medida em que o compreenda ¢ queira ~ de conferir aquela ¢ a si mesmo uma tal relagio a fins que possa ser suficientemente indep. ndente da propri natureza, por conseqiiéncia possa ser fim terminal , 0 qual, contudo, nio pode de modo nenhum ser procurado na natureza. Contudo, para descobrir onde € que ao menos em rela colocar aquele tiltimo fim da natureza, somos obrigados a selecionar aquilo que a na- tureza foi capaz de realizar, para o preparar para aquilo que ele proprio tem que fazer para ser fim terminal ¢ separar isso de todos os fins, cuja possibilidade assenta em condigdes que somente sto de esperar por parte da natur espécie é a felicidade na terra, pela qual se entende a globalidade de todos os fins pos- siveis do homem mediante a natureza, tanto no scu exterior como no seu interior. Esta € a matéria de todos os seus fins na terra, a qual, se ele a fizer seu fim absoluto, t incapaz de colocar um fim terminal sua propria existéncia ¢ entrar em acordo com 0 ao homem temos que za. Desta tiltima le, Por isso, de todos os seus fins na natureza, fica somente a condigio formal, subje- tiva que € a aptidao de se colocar a si mesmo fins em geral e (independentemente da na determinagio que faz de fins) usar a natureza como meio de acordo com as naturez maximas dos sus fins livres em geral. De resto a natureza pode orientar-se em diregio a este fim terminal que Ihe € exterior, ¢ isso pode ser considerado como seu tiltimo fim. A produgao da aptidio de um ser racional para fins desejados em geral (por conseguinte na sua liberdade) € a cultura, Por isso s6 a cultura pode ser o ultimo fim, o qual se tem razio de atribuir & natureza a respeito do género humano (nao a sua propria felicidade na terra ou até simplesmente o instrumento preferido para instituir ordem ¢ concérdia na natureza fora dele desprovida de razao). No entanto, nem toda a cultura se revela suficiente para este tiltimo fim da nature za. Decerto a cultura da babi cial da idade é a condigao subjetiva prefere aptidao para a promogio dos fins em geral, porém nio o suficiente para promover a von- 118 tade?5? nna determinagao e escolha dos seus fins, a qual todavia pertence essencialmente 20 dominio de uma aptidao para fins. A dltima condigio da aptidio, a que se poderia chamar a cultura da disciplina (Diseiplin), é negativa ¢ consiste na libertagio da vontade em relagio ao despotismo dos desejos, pelos quais nds nos prendemos a certas coisas da natureza e somos incapazes de escolher por nds mesmos, enquanto permitimos que os impulsos sirvam para nos prender, os quais @ natureza nos forneceu como fios condutores para no descurarmos em nés a determinagio da animalidade ou nio a fe- rirmos, jé que somos até suficientemente livres para atrair ou abandonar, prolongi-la ou encurté-la, segundo aquilo que exigem os fins da ra7 A habilidade nao pode desenvolver-se bem no género humano, a nfo ser gragas 4 desigualdade entre os homens, pois que a maioria cuida das necessidades da vida, como que de forma mei nccessite de uma arte especial, cultivando estes as partes menos necessirias da cultu- a , para comodidade e dcio dos outros, sem que para isso ra, ciéncia € arte, mantendo aquela maioria num estado de opressa 10, amargo trabalho € pouco goo, Porém nesta classe vai~ da classe mais clevada. No entanto as misérias crescem paralelamente ao progresso da cultura (cujo espalhando muito da cult ponto mais clevado se chama luxo, quando a tendéncia para o supérfluo comeca a prejudicar 0 necessério), em ambos os Iados de um modo igualmente forte: de um lado com uma dominagao por parte de outro estranho, do outro lado uma insatisfaao interior. Mas a brilhante miséria esta ligada todavia ao desenvolvimento das disposi- ges naturais ¢ o fim da propria natureza, mesmo que nao seja 0 nosso fim, € todavia atingido deste modo. A condigao formal, sob a qual somente a natureza pode alcangar esta sua intengao tiltima, é aquela constituigo na relago dos homens entre si, onde a0 prejuizo reciproco da liberdade em conflito se ope um poder, conforme leis, num todo que se chama sociedade civil, pois somente nela pode ter lugar o maior desenvolvimento das disposigoes naturais. Para essa mesma sociedade seria, contudo, ainda certamente necessirio, mesmo que os homens fossem suficientemente inteligentes para a encontrar ¢ voluntariamente se submetessem ao seu mando, um foda cosmopolita , isto & um sistema de todos os Estados que correm risco de atuar entre si de forma prejudicial. Na falta de um tal sistema e por causa do obsticulo que 0 desejo de honrarias, de dominio ¢ de posse, especialmente naqueles que detém poder, coloca & propria possibilidade de um projeto dessa natureza, a guerra aparece como algo inevi~ tivel (quer naquela pela qual os Estados se dividem e se dissolvem em mais pequenos, quer naquela em que um Estado une outros mais pequenos a si ¢ se esforea por formar um todo maior). A guerra, assim como € uma experiéncia nfo intencional dos homens 250 A: a liberdade. 119 (provocada por paixées desenfreadas), é uma experiéncia profundamente oculta ¢ talve intencional da sabedoria suprema, para instituir, se ndo a conformidade as leis com a liberdade dos estados ¢ desse modo a unidade de um a0 menos para prepard-la ¢ apesar dos terriveis género humano ¢ dos talvez. ainda maiores, com que sua constante preparagao o pres sistema moralmente fundado, sofrimentos em que a guerra coloca 0 siona em tempos de paz, ainda assim ela é um impulso a mais (ainda que a esperanga de trangiilidade para felicidade do povo seja cada vex. mais longiqua) para desenvolver todos os talentos que servem @ cultura até o mais alto grau. No que respeita a disciplina das inclinag relativamente A nossa determinagdo como espé a fins, mas que muito dificultam o desenvolvimento da humanidade, ¢ também ma~ S, para as quais a disposigo natural, 4 posi¢: animal € completamente conforme nifesto, no que concerne a esta segunda exigéncia a favor da cultura, uma aspiragao conforme a fins da natureza que nos torna r pode fornecer fins mais elevados do que a propria natures a sobrecarga de males que o refinamento do gosto até luxo nas ciéncias, como um alimento para a vaidade, através da multidio de ten- déncias assim produzidas ¢ insatisfeitas, espalha sobre nés. Pelo contririo, nto & de ignorar o fim da natureza eptivos para uma formacio que nos . Nao é de se contest sua idealizacdo © mesmo o , que consiste em cada vex mais se sobrepor & grosseria ¢ 4 brutalidade daquelas tendéncias que em nés pertencem mais 4 animalidade € mais se opdem & forma para dar lugar ao desenvolvimento da humanidade. As belas art yer universalmente comunicavel € pelas boas manciras ¢ 1 (0 da nossa destinagio mais elevada (as inclinagdes para 0 goz0), ias, que finamento na por um pra sociedade, ainda que nao fagam 0 homem moralmente melhor, tornam-no porém ci- Vilizado, sobrepdem-se em muito A tirania da dependéncia dos sentidos ¢ preparam- no, assim, para um dominio, no qual s6 a razio deve mandar. Entretanto os males, tigam, convocam, fortalecem ¢ temperam simultaneamente as forgas da alma para que estas com os quais quer a natureza, quer o insuportavel egoismo dos homens nos no sucumbam, ¢ assim nos deixem sentir uma aptid: ta, para fins mais elevados.”*7 o, que em nés permanece ocul- 251 E facil de decidir que tipo de valor a vida tem para nds, no caso deste ser avaliado simplesmente segundo aguilo que se goza ? Mostramos acima que valor é que a vida possui, segundo aquilo que ela nela propria contém e em fungao de ela ser conduzida ‘segundo o fim que a natureza partilha conosco, isto 6, segundo aquilo que se faz (e nao simplesmente ‘Se goza), jd que Sempre somos apenas meio para um fim terminal indeterminado. Nada mais resta cer tamente do que o valor que damos a nossa propria vida, mediante nao s6 aquilo que fazemos, mas que fazemos conforme a fins © de um mado to independente da natureza que a sua prépria existéncia sé pode ser fim sob estas condigées. (K) 120 § 84. Sobre o fim terminal da existéncia de um mundo, isto é, sobre a pré- pria criagao. Um fim terminal é aquele que nao necessita de nenhum outro fim como condicio de sua possibilidade Se se admite para a conformidade a fins da natureza o simples mecanismo da mesma como seu fundamento de explicagio, entio nio se pode perguntar: para que exis- tem as coisas no mundo, Na verdade, segundo um tal sistema idealista somente esté em causa a possibilidade fisica das coisas (pensar estas como fins seria um simples sofisma sem objeto). como necessidade cega, em ambos os casos tal questio seria vazi verdade, quer se interprete esta forma das coisas como contingente, quer Mas se admitimos a ligagdo de fins no mundo como real ¢ para ela uma espécie particular de causalidade, nomeadamente a de uma causa atuando intencionalmente, entao nao podemos conten- para que possuem as coisas do mundo (seres organi- zados) esta ou aquela forma, ou para que sio colocadas nestas ow naquelas relagées, por Jo a outras da natureza, Mas, pelo contritio,j que tem que ser encarada como a causa da possibilidade de tais formas, tal como estas se tar-nos com a pergunt: oposi que é pensada af uma inteligéne’ encontram efetivamente nas coisas, entdo se tem que procurar nessa mesma inteligéne’ © fundamento objetivo que poder ter determinado esta inteligéncia produtiva relativa- mente a uma atuagio deste tipo, ¢ que é entio o fim terminal em fungio do qual aquelas coisas existem. JA disse acima que o fim terminal nfo é um fim tal que a natureza bastasse para causé-lo € produzi-lo, segundo a idéia desse fim, porque ele ¢ incondicionado, Pois nio ha nada na natureza (enquanto ser sensivel), em fungio do qual o fundamento de deter- minagao que se encontra nela mesma nao seja sempre por sua vez decerminado; ¢ isto vilido nao apenas em relagio a natureza fora de nés (da material), mas também a que esti em nds (a pensante). Entenda-se que somente em mim considero o que seja a natu- Porém uma coisa que, por causa da sua constituigio objetiva deve nec sariamente existir como fim terminal de uma causa inteligente, tem que ser de uma espécie tal que, na ordem dos fins, cla nao dependa de nenhuma outra cond (0, a nio ser simplesmente da sua idéia, Ora, nds temos somente uma tiniea espécie de ser no mundo, cuja causalidade Girigida teleolo; segundo a qual ela determina a si propria fins, é representada por eles proprios como in- condicionada ¢ independente de condigdes naturais, mas como necessi Esse ser € 0 homem, mas considerado como niimeno; 0 tinico ser da natureza, no qual -amente, isto é, para fins, ¢ todavia de tal modo constituida que a lei, ria cm si mesma, 121 podemos reconhecer, a partir da sua propria constituigao, uma faculdade supra-sensivel (a liberdade) ¢ até mesmo a lei da causalidade com o objeto da mesma, que ele pode propor si mesmo como o fim mais elevado (o bem mais elevado do mundo). Mas sobre o homem (assim como qualquer ser racional no mundo) enquanto ser io € possivel continuar a perguntar: para que (quem in finem) existe ele? A sua existéncia possui nele préprio o fim mais clevado, ao qual ~ tanto quanto Ihe for possivel moral n = pode submeter toda a natureza, perante o qual a0 menos ele nio pode considerar-se submetido a nenhuma influéncia da natureza. Ora, se as coisas do mundo, como seres de- pendentes segundo possui nele préprio o fim mais elevado, a0 qual ~ tanto quanto the for possivel ~ pode submeter toda a natureza, perante 0 qual a0 menos ele nao pode consi- derar-se submetido a nenhuma influéneia da nature |. Ora se as coisas do mundo, como seres dependentes segundo a sua existéncia, necessitam de uma causa suprema, atuando segundo fins, entZo © homem é o fim terminal, da criagio, pois que sem este a cadeia dos fins subordinados entre si ndo seria completamente fundamentada; ¢ s6 no homem ~ mas também neste somente como sujeito da moralidade ~ se encontra a legislagio incondicio- nada relativamente a fins, a qual por isso torna apenas a cle capaz de ser um fim terminal a0 qual toda a natureza esti teleologicamente subordinada.?>” Excerto extraido de KANT, L. Critica da faculdade do jutzo. [Trad. Valerio Rohden e Anténio Marques]. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2005, p. 270-277. £252 Seria possivel que a felicidade dos seres racionais no mundo fosse um fim da natureza e entao seria tam- 'bém 0 seu titimo fim. Plo menos nao se pode a priori compreender por que razdo nao deveria a natureza ser desse mado organizada, pois que alravés do sau mecanismo seria perfeitamente possivel este efeito, ao ‘menos tanto quanto nés compreendemos. Mas a moralidade e uma causalidade que Ihe esta subordinada segundo fins 6 pura o simplesmente impossivel mediante causas raturais. Na verdade, o principio da sua Gelerminagdo, em relacao ao agir, 6 supra-sensivel e por isso 0 que 6 unicamente possivel na ordem dos. fins. Tal pringipio @ em relagdo natureza pura @ simplesmente incondicionado @ desse modo o que so ‘mente qualifica 0 sujeito da moralidade como fim terminal da criagao, a0 qual a natureza, no seu conjunto, se encontra subordinada. A felicidade, pelo contrario, tal como mostramos no paragrafo anterior a partir do testemunho da experiéncia, nem 6 mesmo um fim da nalureza em relagao aos homens, com um privilégio face as outras criaturas. Grande erro ser pensar que ela deveria ser um fim terminal da criagéio, Os homens tém sempre a possibiidade de fazer dela o seu fim subjetivo timo. Mas quando pergunto pelo fim terminal {da ctiagao, isto 6, para que tém que existir homens, trata-se entao de um fim objetivo supremo, como © exigiria a suprema razao, no que diz respeito a sua criagao. Ora, se respondermos que é para que cexislam seres, aos quais aquela causa suprema possa ser benfazeja, entao entramos em contradicao com @ condigao a qual a razao do homem subordina mesmo 0 mais intimo desejo de felicidade (nomeadamente @ concordancia com a sua propria legjslaco moral interna). Iso prova que a felicidade s6 pode ser fim con- icionado e que por isso 0 homem s6 pode ser fim terminal da criagao na qualidade de ser moral, Mas no {que concerne & sua situacao, 36 como consequéncia se Ihe liga a felicidade, conforme o acordo com aquele fim, enquanto fim da sua existéncia. (Kant) 122 Referéncias DUARTE, R. Belo ¢ sublime em Kant. Belo Horizonte: UFMF, 1998. DUTRA, D. J. V. Kant ¢ Habermas. Porto Alegre: PUCRS, 2002. HOFF , O. Immanuel Kant. Sao Paulo: Martins Fontes, 2005. KANT, I. Critica da razao pura, (Trad. Valerio Rohden e Udo B. Moosburger]. Sio Paulo: Abril Cultural, 1980. (Colegao Os Pensadores) Duas introdugies a Critica do Jutzo. (TERRA, Ricardo R. (org.)]. Si0 Paulo: Tuminuras, 1995. ica da razato pratica. [Ed. bilingtie, com reprodugio fac-simile da 1* ed, original alema e trad. de Valerio Rohden]. Sao Paulo: Martins Fontes, 2003 (ed. econdmica, s6 tradugao, 2002). . Critica da faculdade do juizo. (Trad. Valerio Rohden ¢ Antonio Marques]. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 2005. LEBRUN, G. Sobre Kant. Sao Paulo: USP, 1993. . Kant ¢ 0 fim da metafisica. (Trad. Carlos A. de Moura]. Sao Paulo: Martins ‘ontes, 1993. MARQUES, A. Organismo e sistema em Kant: ensaio sobre o sistema kantiano. Lis boa: Presenca, 1987. . A razéo judicativa. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 2004. ROHDEN, V. (org.). 200 anes da Critica da faculdade do juizo. Porto Alegre: UFRGS/Goethe-Institut, 1992. - Interesse da razéo ¢ liberdade. Sao Paulo: Atica, 1981. (Colecao Ensaios 71) TORRES FILHO, R. R. Ensaios de filosofia ilustrada, Sao Paulo: Brasiliense, 1987, 123

Você também pode gostar