Você está na página 1de 14
José Gil MOVIMENTO TOTAL O CORPO E A DANCA RELOGIO D’AGUA ‘Lda. Rua Sylvio Rebelo, n.° 15 1000-282 Lisboa Telef.: 21 847 44 50 Fax: 21 847 07 75 Internet: http://www.relogiodagua.pt e-mail: relogiodagua@relogiodagua.pt Titulo: Movimento Total — O Corpo e a Danca Autor: José Gil Tradugiio: Miguel Serras Pereira Capa: Fernando Mateus sobre desenho de Matisse © Relégio D’Agua Editores, Novembro de 2001 Composigiio e paginacao: Relégio D'Agua Editores Impressiio: Rainho & Neves, Lda. / Sta. Maria da Feira Depésito Legal n.°: 172221/01 José Gil Movimento Total O Corpo e a Danga Tradugio de Miguel Serras Pereira Antropos 2 O corpo paradoxal Sabe-se que 0 bailarino evolui num espago préprio, diferente do espago objectivo. Nao se desloca nu espago, segrega, criao / espa¢o com o seu movimento. O que pouco difere do que se passa no teatro ou noutros palcos. O actor transforma também 0 espago da cena; o desportista pro- longa o espago que rodeia a sua pele, tece com as barras, os tape- tes, ou simplesmente com o solo que pisa relagdes de conivéncia tao intimas como as que tem com o seu corpo. Do mesmo modo, © atirador de tiro ao arco € 0 seu alvo zen sfio um s6. Em todos os casos surge um novo espago: chamar-lhe-emos espago do corpo. Espago a varios titulos paradoxal: diferente do espago objec- tivo, nao esta separado dele. Pelo contrario, imbrica-se nele to- talmente, a ponto de ja nao ser possfvel distingui-lo desse espa- go: a cena transfigurada do actor nao é espago objectivo? E to- davia, € investida de afectos e de forgas novas, os objectos que a ocupam ganham valores emocionais diferentes seguindo os vurpos dos actores, etc. Embora invisfveis, 0 espaco, o ar adquirem texturas diversas. Tornam-se densos ou ténues, tonificantes ou irrespiraveis. Como se recobrissem as coisas com um invélucro semelhante & pele: o i 358 José Gil espago do corpo é a pele que se prolonga no espago, a pele torna- da espago. De onde a extrema proximidade das coisas e do corpo. Podemos fazer a experiéncia seguinte: completamente nus, mergulhados numa banheira funda, s6 com a cabega de fora, fa- gamos cair na superficie da 4gua, aos nossos pés, uma aranha. Sentiremos o seu contacto sobre toda a nossa pele. A gua criou um espaco do corpo delimitado pela pele-pelicula da 4gua da banheira. Podemos ja extrair daqui duas consequéncias quanto as propriedades do espago do corpo: prolonga os limites do cor- po proprio para além dos seus contornos visiveis; € um espago intensificado, por comparagao com o tacto habitual da pele. O espago do corpo nao é apenas produzido pelos desportistas ou 0s artistas que utilizam o seu corpo. E uma realidade muito geral, presente por toda a parte, que nasce a partir do momento em que ha investimento afectivo do corpo. Aparenta-se ao «territdrio» dos etélogos. De facto, é a primei- ra protese natural do corpo: da-se a si préprio prolongamentos no espaco, de tal modo que se forma um novo corpo — virtual, mas pronto a actualizar-se e a deixar que gestos nele se actualizem. Consideremos o simples facto de conduzir um automdvel: se po- demos passar entre dois muros sem 0s tocar, ou virar & esquerda sem rogar 0 passeio, € porque 0 nosso corpo desposa 0 espaco & os contornos do carro. E assim que calculamos as distancias co- mo se elas se referissem ao nosso corpo (na parte da frente do carro, € 0 meu corpo que corre 0 risco de tocar no passeio). De um modo geral, qualquer ferramenta e a sua manipula¢aio precisa supoem o espaco do corpo!. ' Ironia do destino da tecnologia: 0 universo tecnolégico nfo sé se funda nessa propriedade paradoxal ou «mégica» que 0 corpo tem de segregar um espaco prd- prio, mas também encontra af o seu limite ~ porque aquilo precisamente que 0 es- Pago do corpo permite, 0 conhecimento imediato do espago sem necessidade de recurso ao calculo, representa um limite talvez absoluto da inteligéncia artificial Cf. Hubert Dreyfus, What Computers Still Can't Do, a Critic of Artificial Reason. The MIT Press, Cambridge, Massachussets. - Movimento Total — O Corpo e a Danga 59 O bailarino apresenta o trago particular de parecer nao ter ne- cessidade de objecto algum, de corpo algum para forjar o seu es- pago préprio. Todos os bailarinos, coredgrafos, pensadores que se referiram ao espaco do corpo, descreveram-no sempre como. emanando de um corpo s6 que ele rodeia e autonomiza. Rudolf von Laban concebeu um espago do corpo em forma de icosaedro, ou seja um poliedro invisivel com vinte faces, cujas intersecgdes marcam as direcgdes possiveis dos movi- mentos do bailarino que se mantém no centro. As intersecgdes de trés faces definem os pontos energéticos do espago. As di- recgGes espaciais sao figuradas por planos, e os nticleos de ener- gia por pontos: a danga produz um espago do corpo que impli- ca forgas e se alimenta de tensdes. O icosaedro de von Laban encerra o bailarino num volume que este ultimo transporta de um ponto para outro do espago; ao mesmo tempo, 0 movimen- to irrompe no icosaedro, transforma-o e conserva-o através das suas mutagées. Outros concebem 0 espago do corpo em forma de ovo ou de esfera. Todos 0 descrevem como uma experiéncia vivida do bai- larino que se sente evoluir dentro de uma espécie de invélucro que suporta 0 movimento. Podemos atribuir duas fungdes, pelo menos, ao espago do corpo: a) aumentar a fluéncia do movimento, criando um meio préprio, com o menos de viscosidade possivel; b) tornar possi- vel a posigao de corpos virtuais que multiplicam o ponto de vis- ta do bailarino. De facto, 0 espago do corpo resulta de uma espécie de secre- ¢4o ou reversio (cujo processo teremos de precisar) do espago interior do corpo em direcgao ao exterior. Reversdo que trans- forma 0 espaco objectivo proporcionando-lhe uma textura pr6- xima da do espago interno. O corpo do bailarino j4 nao tem de se deslocar como um objecto num espago exterior, mas desdo- bra doravante os seus movimentos como se estes atravessassem um corpo (0 seu meio natural). 60 José Gil Uma imagem ajudar-nos-é a apreender esta espécie de corpo- reizagao do espago de onde surge 0 espago do corpo. Podemos ver 0 corpo como um receptaculo do movimento: nas danas de possessao, na tarantela, nas «dangas de S. Vito», etc., o préprio corpo se torna a cena ou 0 espaco da danga, como se alguém — um outro corpo — dangasse no interior do possesso. O corpo do bailarino desdobra-se no corpo-agente que danga e no corpo- -espago onde se danga ou antes, que 0 movimento atravessa e ocupa. Para que a danga — e ja nao a possessao — comece, é necessario que jd no haja espago interior disponfvel para o mo- vimento; € necessdrio que o espago interior despose tao estrei- tamente © espago exterior que 0 movimento visto de fora coin- cida com 0 movimento vivido ou visto do interior. E, com efei- to, © que acontece no transe dangado, onde nenhum espago é deixado livre fora da consciéncia do corpo. Por outras palavras, o movimento da possessao visa dangar. Mas depara com uma resisténcia ou uma viscosidade interna que se manifesta em movimentos desordenados, como se s6 a transferéncia plena da desordem interior para a superficie do corpo e dos gestos pudesse canalizar a energia para uma fluén- cia sem entraves. Ora, sé um espago exterior sem viscosidade permite uma tal transferéncia. Um espacgo como o espago do corpo, onde o interior e 0 exterior sao um s6. Tudo isto mostra que 0 movimento dangado se aprende: € ne- cessario adaptar 0 corpo ao ritmo e aos imperativos da danga. Os misculos, os tend6es, os Srgaos devem tornar-se vias para 0 escoamento desimpedido da energia; 0 que, em termos de espa- 0, significa a imbricagao estreita do espago interno e do espa- go externo, do interior do corpo que a energia investe, e do ex- terior onde se desdobram os gestos da danga. O espaco interior € coextensivo ao espago exterior. A aprendizagem da técnica do bailado cléssico mostra-o cla- ramente: diante do espelho, o aluno aprende a fazer correspon- der certa posigio dos membros a certa tensdo cinestésica, cons- Movimento Total — O Corpo e a Danga 6l truindo assim um mapa interior dos movimentos que lhe permi- tird evoluir de modo preciso sem ter j4 de recorrer a uma ima- gem exterior do seu corpo. Mas o que é um mapa energético dos movimentos sendo um dispositivo que torna interior 0 espago exterior, e reciprocamente? O corpo tem de se abrir ao espago, tem de se tornar de certo modo espago; € o espago exterior tem de adquirir uma textura semelhante A do corpo a fim de que os gestos fluam tao facil- mente como o movimento se propaga através dos misculos. O espago do corpo, como espago exterior, satisfaz esta exigén- cia. O corpo move-se nele sem enfrentar os obstaculos do espa- ¢o objectivo estranho, com os seus objectos, a sua densidade, as suas orientagGes j4 fixadas, os seus pontos de referéncia pré- prios. No espago do corpo, este cria os seus referentes aos quais as direcgSes exteriores devem submeter-se (assim 0 icosaedro de von Laban comporta também vectores). Uma outra fungiio parece ligada ao espago do corpo: este as- segura a posi¢io narcisica do bailarino multiplicando as ima- gens virtuais do seu corpo. Porque é que se considera sempre o corpo do bailarino como essencialmente narcfsico? Compare- mo-lo com 0 corpo do actor de teatro: ambos intensificam o nar- cisismo comum que acompanha a exposigao de todo 0 corpo no espaco. Como Merleau-Ponty? descreveu bem, um corpo que vé entra num campo de visdo que Ihe reenvia sempre a sua imagem em espelho: ver € ser visto. O corpo transporta consigo esta re- versibilidade do vidente e do visivel, quer haja efectivamente ou n&o um outro corpo no campo visual. Por isso Merleau-Ponty falava de um «narcisismo de visdo». Porque a cena se constitui como objecto préprio do olhar, os corpos aumentam nela a sua poténcia narcfsica. Encontram-se nela naturalmente para se exibirem. Mas enquanto o narcisismo do actor se reparte por outros elementos além do corpo (0 jogo 2 Sobretudo em Le Visible et |'Invisible e nas Notes de Travail. i José Gil da voz e da palavra), no bailarino concentra-se por inteiro na presenga corporal. Queira-o ou nio o bailarino, o movimento do corpo sem outro fim que no seja mostr4-lo, transporta consigo um poderoso factor de narcisizagdo. Ora, 0 narcisismo do bailarino nao convoca apenas o olhar. E verdade que se «vé» dangar, mas também que se «ouve» e, mais profundamente, que se «sente» dangar (porque «se toca» Ou porque «experimenta» 0 movimento: a reflexividade do cor- po € geral). Nao h4 imagem visual ou cinestésica tinica do cor- po dangante; mas uma multiplicidade de imagens virtuais que 0 movimento produz, e que marcam outros tantos pontos de con- templagdo a partir dos quais 0 corpo se percebe. O bailarino sente-se dangar. Nao se vé como vé um objecto deslocar-se no espago, mas acompanha o movimento do seu corpo (esse mesmo movimento visto do exterior pelos especta- dores) de imagens virtuais que forma segundo o mapa que para si fez da sua coreografia. Trata-se de coisa diferente de um reen- vio em espelho, porque a imagem virtual nunca se constr6i em si propria (os gestos visiveis, sim, s40 a sua actualizagiio). O bai- larino vé-se dangar «como num sonho»: opée-se assim a ima- gem do seu corpo a da realidade. O movimento dangado recolhe 0 corpo sobre si, por um lado; e por outro lado, projecta as suas miltiplas imagens em pontos de contemplacao narcisica, pontos necessariamente fora do corpo préprio, mas que se encontram no espaco. Em que espago, uma vez que no pode ser o espaco ob- jectivo, e também nao o espaco interior? E 0 espago do corpo que fornece os pontos exteriores-interiores de contemplagio. Com efeito, a relaciio narcisica do bailarino com o seu corpo im- plica uma conivéncia que 0 espago objectivo, neutro e homogé- neo, nao pode fornecer; e supde uma distancia — de contempla- ¢ao — que 0 espaco interior recusa. S6 0 espaco do corpo, com © seu exterior intensivo, satisfaz as duas exigéncias. O bailarino contempla as imagens virtuais do seu corpo a pat- tir dos miltiplos pontos de vista do espago do corpo. Parado- Movimento Total — O Corpo e a Danga 63 xalmente, a posigao narcfsica do bailarino nao exige um «eu», mas um outro corpo (pelo menos) que se desprende do corpo vi- sivel e danga com ele. Gragas ao espago do corpo, 0 bailarino, enquanto danga cria duplos ou muiltiplos virtuais do seu corpo que garantem um ponto de vista estével sobre 0 movimento (pa- ra Mary Wigman, dancar é produzir um duplo com o qual 0 bai- Jarino dialoga). Conivéncia e distancia do corpo actual em relago aos corpos virtuais so assim acompanhadas por uma contemplagao do mo- vimento que ao mesmo tempo o desposa e se afasta dele para adquirir uma perspectiva consistente no interior do préprio mo- vimento. 7 : Dangar é produzir duplos dangantes. E sem diivida 0 que oS plica a existéncia dos duos (ou, de um modo geral, de uma sé- Tie de bailarinos que fazem movimentos idénticos ou comple- mentares). O par actual realiza o duplo virtual do bailarino; é muito naturalmente que ocupa esse lugar ao seu lado: revé-se no outro, ajusta por ele os gestos, os ritmos, aumenta 0 mesmo im- pulso, contempla-se a si a partir dele. Ser necessario sobretudo nao identificar a produgao dos du- plos pelo movimento dangado com um fenémeno de mimetis- mo. Os pares de um duo nao entram em relagéo mimética espe- cular, nao «copiam» do outro formas ou gestos; mas entram am- bos no mesmo ritmo, nele marcando as suas diferengas. Ritmo que os ultrapassa, uma vez que a diferenga entrevista no outro reflui e ressoa sobre o movimento do primeiro, e reciprocamen- te: assim se forma um plano de movimento que transborda os movimentos individuais de cada um e age como um nucleo de estimulagao para os dois. Os quais actualizam outros corpos vir- tuais, e assim sucessivamente. Um duo é um dispositivo de construg’o de multiplicidades de corpos dangantes. O movimento do par procura entrar no ritmo ou na forma da energia — de facto, o par torna-se 0 outro, torna-se a sua enet- gia dangante. De onde a constituigao de séries, como se a mes- 64 José Gil ma energia se propagasse de um corpo para outro, atravessando © processo inteiro deste devir todos os corpos comprometidos na série. A danca tem a vocagio de formar grupos ou séries. Neste sentido, um duo ou uma série indefinida de corpos faz mais que dangar a producdo serial de corpos virtuais — duplos todos eles, uma vez que 0 corpo virtual original iniciou um devir-duplo, que se acrescenta & multiplicidade dos duplos. (Foi © que compreendeu muito bem Anne Théresa de Keersmaecker em Rosas Tanz Rosas, por exemplo). Também a danga é uma arte de construgao de séries. (A ana- lise coreogr4fica teria muitas vezes interesse em adoptar este ponto de vista de método). O movimento dangado cria muito naturalmente o espago dos duplos e das multiplicidades dos cor- pos, e dos movimentos corporais. Um corpo isolado que come- gaa dangar povoa progressivamente o espago de uma multipli- cidade de corpos. Narciso é uma multidao. Varios outros aspectos paradoxais do espago do corpo manifestam-se claramente nos movimentos do bailarino: a au- séncia de limites internos enquanto, visto do exterior, € um es- pago finito; 0 facto de a sua dimensio primeira ser a profundi- dade, uma profundidade topoldgica, nao-perspectivista, de tal modo que misturando-se com 0 espago objectivo, € susceptivel de se dilatar, de se encolher, de se torcer, de se dispersar, de se abrir em folheados ou de se reunir num ponto tnico. O primeiro aspecto impressiona desde 0 inicio 0 espectador que olha o bailarino em cena (e sofre ao mesmo tempo um pro- cesso de devit-bailarino): todo o movimento do corpo ou safdo do corpo transporta-o sem entraves através do espago; nenhum obstaculo material, objecto ou parede, impede o seu trajecto que nao termina em ponto real algum do espacgo. Nenhum movi- mento acaba num lugar preciso da cena objectiva, como os li- mites do corpo do bailarino nunca profbem os seus gestos de se prolongarem para além da pele. Ha um infinito proprio do ges- to dangado que sé 0 espaco do corpo pode engendrar. ee Movimento Total — O Corpo e a Danga 65 Lembremos que este tiltimo nao resulta senao da projecgao- -secregao do espaco interior sobre o exterior. O corpo, j4 0 vi- mos, torna-se também ele espago. Os movimentos do espago do corpo nao se detém portanto na fronteira do corpo proprio, mas implicam-no por inteiro: se 0 espago do corpo se dilatar, por exemplo, a dilatagiio atingir4 0 corpo e o seu interior. A dimensao da profundidade distingue radicalmente 0 espago do corpo do espago objectivo. Porque nio se trata de uma pro- fundidade mensuravel, como um comprimento que se movesse 90° para medir a distancia que separa o observador do horizon- te. O que é proprio desta profundidade3 € ligar-se ao lugar, dizendo-se entao topolégica: é uma certa ligagaéo do corpo com o lugar que escava nele a sua profundidade. O espago do corpo é esse meio espacial que cria a profundidade dos lugares. Se certo local da cena se torna de stibito ilimitado, se 0 alto em cu- ja direcgao Nijinski se projecta adquire uma dimensio infinita, € porque a profundidade af nasceu. A profundidade constitui a dimensiio primordial do espago do bailarino. Permite-Ihe moldar 0 espago, alargé-lo ou restringi- -lo, fazé-lo tomar as formas mais paradoxais. E até mesmo a partir da profundidade que se podem criar coreografias sem pro- fundidade, com corpos-marionetas. Em suma, é porque 0 espa- go do corpo do bailarino est4 crivado de vactolos virtuais que aquele pode fazer dele uma matéria eminentemente plastica. Assim se formam essas unidades de espago-tempo que carac- terizam 0 movimento do bailarino. Nao evoluindo no espago co- mum, o seu tempo transforma o tempo objectivo dos reldgios. Nao se trata, como no teatro, do surgimento de um aconteci- mento representado e cujo tempo préprio irradia sobre os com- portamentos dos actores. O acontecimento, na danga, quer se tra- te de uma narrativa ou de uma danga abstracta, refere-se as trans- formagdes de regime do escoamento da energia. Porque esta trans- 3 4 que Deleuze chama spatium, em Différence et Répétition. 66 José Gil formagio de energia marca a passagem para um outro nivel de sentido. O acontecimento é real, corporal, modificando a prépria duragao dos gestos do bailarino. Um salto, uma figura podem nao constituir um acontecimento, se vierem na continuidade de um mesmo regime de energia; em contrapartida, um gesto tao simples como virar a cabega ou levantar um cotovelo pode testemunhar a irrupgao de acontecimentos decisivos na marcha da coreografia. A danga compée-se de sucessdes de micro-acontecimentos que transformam sem cessar 0 sentido do movimento. A toda a transformagiio de regime energético corresponde uma modificag&éo do espago do corpo. Ora, esta modificagio consiste sempre em certas formas de contracg%o ou de dobra- gem, de dilatag&o ou de distensao do espago, tornadas possiveis pela profundidade. Sao, por assim dizer, dilatagdes e dobragens no mesmo lugar, e nao numa extensao objectiva. Por exemplo, s6 o desdobrar do espago gragas 4 profundidade pode fazer com que o bailarino adquira uma «lentidao eterna» ao executar 0 mo- vimento: a (mesma) distancia tornou-se demasiado grande, ele nao tem de a atravessar 4 pressa, sob a pressao de uma forga ex- terior. Sabemos que Nijinski sobrearticulava os movimentos, desmultiplicando as distancias por decomposigio microscépica do movimento. Dilatava assim 0 espaco do corpo: dava a im- pressao de ter todo o tempo, deslocando-se no espago com a de- senvoltura soberana de alguém que criava (desdobrava) 0 espa- ¢O ao mover-se. Com técnicas diferentes, 0 mesmo acontece com qualquer grande bailarino. Na realidade, nao ha um espago do corpo fixo e aut6nomo. Este varia segundo as velocidades do seu préprio desdobrar-se, de tal modo que depende do tempo que o movi- mento leva a abri-lo; tempo que, por seu turno, depende da tex- tura — mais ou menos densa, mais ou menos viscosa — do es- pago do corpo que nasce da energia. A energia cria unidades de espago-tempo. O bailarino nao atravessa 0 espago do corpo co- mo atravessaria uma distancia objectiva, num tempo cronoldgi- Movimento Total — O Corpo e a Danga 67 co dado. Produz ao dangar unidades de espago-tempo singula- res € indissoltiveis que transmitem toda a sua forga de verdade a metéforas como: «uma lentidao dilatada» ou «o alargamento brusco do espago» que descrevem certos gestos do bailarino. Para compreendermos como a danga transforma 0 corpo, pre- cisariamos de ter uma ideia precisa desse corpo do qual se fala sempre como se constituisse uma evidéncia inquestiondvel. Ora, a partir do momento em que o questionamos, ele torna-se quase inapreensfvel: encontramo-nos & partida perante miilti- plos pontos de vista tao pertinentes uns como os outros, embo- ra diferentes e muitas vezes inarticuldveis. Ha 0 corpo da Anatomia e da Fisiologia ocidentais, compos- to de sistemas de 6rgios e de fungdes mais ou menos indepen- dentes — imagem de um corpo em vias de mudar com as con- tribuigdes da microbiologia, das neurociéncias e das técnicas avangadas de sondagem do interior. Hé 0 corpo oriental, mul- tiplo, do ioga e a medicina chinesa, que releva de outras carto- grafias de drgios dependentes de uma fisiologia energética. Estes sistemas de saberes referem-se sobretudo ao interior do corpo. Nos diversos corpos das terapias «psi» ou das terapias corpo- Tais, 0 interior e os 6rgdos sio reduzidos a representagdes que assumem valores e significagdes simbélicas em estruturas de signos (como na psicanélise), ou que s4o compreendidos em sis- temas complexos que combinam as posigées relacionais e com- Portamentais com as cargas significantes. Raras sao as tentativas de articulagiio do ponto de vista médi- Co (ocidental) com o ponto de vista da andlise simbélica — ci- temos 0 caso da psicossomatica, cuja inteligibilidade continua a Ser precdria. _ 68 José Gil A fenomenologia teve 0 mérito de considerar 0 corpo no mundo. Nao se trata de uma perspectiva terapéutica (embora te- nha dado origem a toda uma escola psiquidtrica), mas do estu- do do papel do corpo préprio na constituigao do sentido. A no- cao de corpo préprio compreende ao mesmo tempo 0 corpo per- cebido e 0 corpo vivido, em suma o corpo sensivel, a Carne de Husserl, de Merleau-Ponty e de Erwin Strauss. A descrigao do corpo em situagdo prima sobre qualquer outra consideragio de sentido ou de fungao. Podemos medir a import4ncia que uma tal imagem do corpo péde ter para os coreégrafos e a teoria da dan- ga (nomeadamente depois da Segunda Guerra Mundial, nos Estados-Unidos), através de autores como Susanne Langer. No entanto, 0 corpo fenomenoldgico (0 de Husserl, nao tanto o de Susanne Langer) nao compreendia dois elementos essen- ciais do préprio vivido dos bailarinos: aquilo a que estes tiltimos chamam «a energia», € o espago-tempo do corpot. Consideramos aqui 0 corpo jd nao como um «fendmeno», um percebido concreto, visivel, evoluindo no espago cartesiano ob- jectivo, mas como um corpo metafendémeno, visivel e virtual ao mesmo tempo, feixe de forgas e transformador de espago e de tempo, emissor de signos e transsemiético, comportando um in- terior ao mesmo tempo organico e pronto a dissolver-se ao su- bir & superficie. Um corpo habitado por, e habitando outros cor- pos € outros espfritos, e existindo ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo através da linguagem e do contacto sen- sivel, e no recolhimento da sua singularidade, através do silén- cio e da n&o-inscrig&o. Um corpo que se abre e se fecha, que se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma e 4 Estas criticas aplicar-se-iam também a abordagem semiética ~ com a excep¢io. talvez, das andlises to finas de uma autora que dela se reclama, Susan Foster. cf. Susan Foster, Reading Dancing: Bodies and Subjects in Contemporary American Dance, Univ. of California Press, Berkeley, L. A., Londres. 1986. aga aes aeegeaeeeC EEC Movimento Total — O Corpo e a Danga 69 pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo humano porque pode devir animal, devir mineral, vege- tal, devir atmosfera, buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal. Este corpo compée-se de uma matéria especial que tem a pro- priedade de ser no espago e de devir espago, quer dizer de se combinar tao estreitamente com o espago exterior que dai lhe advém texturas variadas: 0 corpo pode tornar-se um espago interior-exterior produzindo entao miltiplas formas de espago, espacos porosos, esponjosos, lisos, estriados, espagos parado- xais de Escher ou de Penrose, ou muito simplesmente de sime- tria assimétrica, como a esquerda e a direita (num mesmo corpo-espago, portanto). E falso dizer que «transportamos 0 nosso corpo» como um pe- so que arrastamos sempre connosco. O peso do corpo constitui um outro paradoxo: se exige um esforgo para o fazermos mexer-se, também ele que nos transporta sem esforgo através do espago. Como no-lo mostram essas Mulheres de Picasso correndo pe- la praia, com pernas e bragos que se alongam como 0 préprio es- pago que a corrida, o horizonte, o mar e o vento induzem, a tex- tura do corpo é espacial; e reciprocamente, a textura do espago € corporal. Este corpo paradoxal abre-se e fecha-se sem cessar ao espago € aos outros corpos. Capacidade que se prende menos com a exis- téncia dos orificios que o marcam de forma visivel do que com a natureza da pele. Porque é mais por toda a superficie da pele que através da boca, do Anus ou da vagina que o corpo se abre ao ex- terior. Esses orificios esto ao servico de fungdes organicas de trocas entre o interior e o exterior. Mas raramente operam a aber- tura global do espago interno (excepto no prazer sexual e na fala). A «abertura» do corpo nao é nem uma metonimia nem uma metafora. Trata-se realmente do espaco interior que se revela ao reverter-se para o exterior, transformando este tiltimo em espa- go do corpo. 70 José Gil Mas porque se quer abrir 0 corpo e projecta-lo para fora.? Sabemo-lo: para construir 0 espaco do corpo e, no limite, para formar o plano de imanéncia da danga, enquanto ultima trans- formagio desse espago. Porqué querer a imanéncia? Para alcan- car as intensidades mais altas, essas a que Cunningham chama «de fusao». Mas enfim, porqué querer dangar? Assim que tentamos responder, somos imediatamente remeti- dos para o desejo, para a propria natureza do desejo. O que se prende com uma sé palavra: agenciar. Palavra de Deleuze e Guattari que nos parece ser a mais apta para exprimir 0 que do desejo se implica no desejo de dangar. O desejo cria agenciamentos; mas o movimento de agenciar abre-se sempre em direceao de novos agenciamentos. Porque 0 desejo nfo se esgota no prazer mas aumenta agenciando-se. Criar novas conexées entre materiais heterogéneos, novos ne- Xos, outras vias de passagem da energia, ligar, pér em contacto, simbiotizar, fazer passar, criar maquinas, mecanismos, articula- cées — tal 6 o que significa agenciar, exigindo sem cessar no- vos agenciamentos. O desejo é portanto infinito, e nunca pararia de produzir no- vos agenciamentos se forgas exteriores nado viessem romper, quebrar, cortar o seu fluxo. O desejo quer acima de tudo desejar, ou agenciar, o que € a mesma coisa. O agenciamento do desejo abre o desejo ¢ prolonga-o. Se o agenciamento abre o desejo e o aumenta, € porque se tor- nou matéria de desejo, nao seu objecto, mas sua textura prépria, participando da sua forga, da sua intensidade, do seu «impulso vital» para falarmos como Bergson. Por outras palavras, 0 dese- jo nao é sé desejo de agenciamento, € agenciamento, transfor- ma aquilo que «produz» ou «constréi» em si proprio. Se o de- sejo de um pintor consiste em agenciar certas cores de certa ma- neira, a forga do quadro que daf resulta é desejo. As cores € os espacos agenciados desejam. Movimento Total — O Corpo e a Danga. 7 Seja qual for o tipo de agenciamento, o desejo procura fluir através dele. Nos movimentos do pensamento como no fazer do artista ou na elaboracao da fala, desejar é agenciar para fluir, agenciar para que a poténcia de desejo préprio aumente. Por is- so o desejo reconduz a si préprio, transforma, metaboliza todos os elementos que toca, atravessa ou devora. Para 0 desejo tudo deve devir desejo. Ora, 0 que € um gesto dangado senao um agenciamento par- ticular do corpo? Todo o gesto é, por si, um agenciamento; mas em geral agencia 0 corpo a um objecto ou a outros corpos. Di- zer «até A vista» oscilando o brago da esquerda para a direita € reconectar um corpo com um outro em iminéncia de ruptura de contacto. O gesto dangado articula a postura anterior do corpo com a nova posi¢ao, sem a ajuda (eventualmente) de um objec- to ou de um outro corpo. O resultado é uma via de passagem da energia e do movimento que, longe de os entravar, aumentard a sua fluéncia e intensidade. Que agenciam portanto os gestos da danga? Podemos dizer: agenciam gestos com outros gestos; ou um corpo actual com os corpos virtuais que actualizam; ou ainda, movimento com ou- tros movimentos. Em todos os casos, a gestualidade dangada ex- perimenta 0 movimento (os seus circuitos, a sua qualidade, a sua forca) a fim de obter as melhores condigGes para que ele execute uma coreografia. Neste sentido, dangar é experimentar, trabalhar os agenciamentos possiveis do corpo. Ora, este traba- lho consiste precisamente em agenciar. Dangar é portanto agen- ciar os agenciamentos do corpo. Enquanto maquina articulada e flufdica o corpo é feito para se conectar com os objectos e com os outros corpos. A danga opera uma espécie de experimentagio pura desta capacidade do corpo de se agenciar, criando um laboratério onde todos os agenciamentos possiveis sao testados. A danga nao s6 poe 0 cor- po em movimento agenciando os seus membros (que normal- mente se articulam segundo fungGes), mas encadeia esse movi- BEAD peEP ooo ass fososdasdfososdd# fossosddHfosssHiHtfasssdisfasesditttossda® 72 José Gil mento sobre o puro movimento vital que se acoita no corpo. Desenterra-o, fa-lo jorrar e desperta outras poténcias de movi- mento. Agencia o movimento «trivial» com esse movimento vi- tal, descobrindo novas possibilidades de agenciamentos de ges- tos corporais. A fim de procurar uma forma, a sua matéria — 0 movimento — procura anteriormente um agenciamento. Traba- lha no sentido de agenciar nao membros, partes do corpo, 6r- gaos, mas precisamente 0 que os agencia, como certo agencia- mento das pernas e dos bragos se agencia com certo agencia- mento da cabega ou do torso. E assim sucessivamente: Como ¢s- te agenciamento de agenciamentos se combina com certo movi- mento de queda; e como este agenciamento de agenciamentos de agenciamentos... A danga € uma maquina abstracta de agen- ciamentos que se expdem e se recobrem sem fim; quer sempre agenciar agenciamentos, e nao 6rg3os com outros 6rgaos. £ assim que 0 mapa dos movimentos que 0 bailarino constréi incide sobre a energia e nado sobre movimentos concretos: a mo- dulagtio mais abstracta e mais fina da energia basta para actua- lizar os movimentos corporais mais concretos. A energia éoque agencia agenciamentos. A carta energética compde 0 tragado mais abstracto possivel dos movimentos. E neste sentido que podemos falar do corpo como um todo. Nao um todo como um organismo onde uma fungao global se encontraria em cada parte, mas no sentido em que 0 corpo-todo constitui o mapa do agenciamento de todos os agenciamentos possfveis. Produz naturalmente um corpo-sem-érgaos, um pla- no de imanéncia. E por isso que a danga realiza da maneira mais pura a voca- go de agenciar do desejo. O que explica sem diivida a sua pre- senga téo poderosa, mas muitas vezes deserotizada, na maior parte das dangas reais. A dessexualizagao dos corpos acompa- nha o desenvolvimento do movimento de agenciamento, quer dizer muito simplesmente do movimento dangado como movi- mento do desejo. Se a danga deserotiza os corpos, €é porque 0 Movimento Total — O Corpo e a Danga 73 movimento dangado se tornou desejo (desejo de dangar, desejo de desejo, desejo de agenciar). Quando 0 erotismo irrompe € possui Os corpos (nomeadamente nas dangas populares), € por- que o movimento de agenciamento de agenciamentos foi ele proprio tomado num agenciamento concreto erético. Entao tudo se inverte: € 0 movimento dos gestos concretos que mantém 0 continuum do agenciamento abstracto, enquanto toda a coreo- grafia se impregna de erotismo, como uma vaga ou uma atmos- fera. Estas trés realidades: a) 0 desejo deseja agenciar; b) 0 desejo deseja a imanéncia; c) 0 desejo deseja fluir, exigem um espago, um territério para que o desejo possa desejar. Desejar é ja co- megar a construir esse espago ou plano onde ele flui e desdobra a sua poténcia. Um espago de onde as obstrugdes, as mAquinas de romper os fluxos, de os cortar, de os vampirizar sejam varri- das — pela propria intensidade do fluxo. Este plano, como jA sabemos, € 0 plano de imanéncia ou «corpo-sem-6rgaos». Porqué esta expressao de um corpo que nao tem 6rgaos? Porque compée esse corpo um plano de ima- néncia>? Digamos, simplesmente, que 0 corpo habitual, 0 corpo- -organismo € formado de drgaos que impedem a livre circulagao da energia. A energia é investida e fixada nos sistemas de érgaos do organismo (assim se constroem esses «modelos sensorio- -motores interiorizados» de que Cunningham fala, que repre- sentam sempre um obstaculo a inovagaio). Desembaragar-se de- jes, constituir um outro corpo onde as intensidades possam ser levadas ao seu mais alto grau, tal € a tarefa do artista e, em par- ticular, do bailarino. 5 sabe-se que Deleuze foi buscar esta expresstio de

Você também pode gostar