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AZEOTA, Jorge Tremors, Bele WaAzonk: Pvtenker, Zoly Uma lingua para a conversacao' Traducio de Cristina Antunes A cada frase que passe por tua cabega. pergunta-te: esta & realmente minka lingua? Peter Handke ‘A seco universitaria do assim chamado “espaco educa~ tivo curopeu” (inseparével de um espaco universitirio quase totalmente mundializado) esti se configurando como uma cnorme rede de comunicagao entre pesquisadores, experts, profissionais, especialistas, estudantes e professores. Constan- temente so formados grupos de trabalho, redes temiticas, niicleos nacionais ¢ internacionais de pesquisa ¢ de docéncia. ‘Ainformagio circula, as pessoas viajam, o dinheiro abunda, as publicages se multiplicam. Proliferam os encontros de todos 0s tipos e, com eles, as oportunidades para o intercimbio, para a discussio, para o debate, para o didlogo. Por todas as partes se fomenta a comunicagio. As atividades universitirias de produgio c de transmissio de conhecimento se planificam, se homologam ¢ se coordenam massivamente. E todos os dias " Publicado em: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Eds). Ente Pedagogia 7 literatura. Buenos Aires. Mio y Divila, 2007. 37 Coco “Excacic: Bova € Smo somos convidados a falar ¢ a escutar, a ler € a escrever, a par- ticipar ativamente nesse gigantesco maquinirio de fabricacio ¢ de circulagio de informes, de projetos, de textos. A pergunta é: em que lingua? E também: pode ser essa Tingua a nossa lingua? Nota: ‘Ao perguntar em que lingua? no me refiro 30 espanhol, 20 francés, 20 inglés ou ao esperanto. Com essa pergunta 36 trato de chamar sua atencio sobre a importincia da linguagem e apelar 3 sua capacidade para distinguir as diferentes linguas que podem existir em uma lingua, em qualquer lingua. Lembro a voce, entdo, 0 que certamente jé sabe, isso que, se nao sabe, ainda que seja de modo obscuro, dificilmente poderei Ihe explicar: que a kinguagem nio € apenas algo que temos e sim que € quase tudo o que somos, que determina a forma ¢ a substincia nio s6 do mundo mas também de nés mesmos, de nosso pensamento e de nossa experiéncia, que no pensamos a partir de nossa genialidade e sim a partir de nossas palavras, que vivemos segundo a lingua que nos faz, da qual estamos feitos. Eai o problema nio é s6 0 que é aquilo que dizemos ¢ 0 que € que podemos dizer, mas também, e sobretudo, como dizemes: 0 ‘modo como diferentes maneiras de dizer nos colocam em diferentes relagdes com o mundo, com nds mesmos e com os outros. ‘Aprendi isso de alguns amigos especialmente sensiveis 20 que poderiamos chamar de a forma da verdade. Eles me ensinaram a let prestando atencio nio tanto a0 contetido doutrinario dos diferentes fil6sofos ¢ das diferentes filosofias, mas a suas opdes formais. E a ver nessas opgdes profundas consequéncias éticas ¢ politicas. Poderia Ihe falar de Platio, de sua opcio pelo dilogo ow de sua critica da escrita, de Montaigne e da invencio do ensaio, de Nietzsche ¢ de sua opcio pelas formas dogmiticas, jornalisticas profissionais da filosofia, de Kierkegaard respondendo ao pensar sistematico de Hegel, de Foucault e de sua concepgio da critica como um trabalho permanente de insubordinagio da rede que a verdade e 0 poder tecem, tanto pelo lado da verdade do poder quanto pelo lado do poder da verdade. Mas no quero dar a vocé uma bibliografia (vada seria mais imbecil do que lhe dizer © que vocé deveria ler) nem muito menos colocar minhas palavras sob 38 Uma ingua para a conversosso alguma autoridade. A tinica coisa que pretendo € contar a vocé que, para mim, todos cles me ensinaram muitas coisas e muito importantes, mas me ensinaram, sobretudo, a afinar 0 ouvido. Algo que me ensinaram também virios poetas e alguns narradores. E muitas pessoas de meu proprio oficio para as quais o falar ¢ 0 escutar, ler ¢ 0 escrever, nio sio uma ferramenta que se domina ‘com maior ou menor habilidade e sim um problema no qual se jogam coisas muito mais graves do que a eficacia da comunicagio. A partir dai, a Ginica coisa que tento Ihe dizer é que ao per- guntar pela lingua na qual se constitui essa gigantesca rede de comunicagio em que, segundo dizem, todos deveriamos partici- par, estou convidando vocé a pér em jogo 0 seu proprio ouvido linguistico, sua propria sensibilidade 20 modo como algumas, formas de escrever ¢ de ler, de falar e de escutar, ampliam a sub- missio, o conformismo, a estupidez, a arrogincia ea brutalidade. Por outro lado, a0 perguntar se essa lingua pode sera nossa no estou falando da minha lingua nem da sua, nem tampouco de al- guma lingua que poderia ser comum para vocé ¢ para mim. Nao sei quem voce é, e muito menos qual é a sua lingua. No que diz respeito a minha, a dinica coisa que sei é que a estou procurando cada vez que falo ou que escrevo ou que escuto ou que leio ¢ que, ‘em qualquer caso, nunca serei eu quem iri encontri-la. Além do smais, aprendi a desconfiar de qualquer “nds” emunciado com a pretensio de me incluir em qualquer identidade posicional do tipo 1nés os professores, nés as mulheres, n6s 0s fildsofos, nds os europeus, 1nGs 0s intelectuais, nds os eriticos, nds os jovens, nés os que temos, algo em comum. Quando ouco algum desses “nds” me da vontade de levantar a mio e de dizer que no tenho nada a ver com isso. © que quero dizer é que, quando leio 0 que circula por essas redes de comunicacio ou ougo que se diz nesses encontros de especialistas, a maioria das vezes tenho a impressio de que ai funciona uma espécie de Kingua de ninguém, uma lingua neutra e neutralizada da qual se apagou qualquer marca subjetiva. Entio ‘0 que me acontece & que me di vontade de levantar a mio e de perguntar hé alguém af? Além disso, sinto também que essa lingua nio se dirige a ninguém, que constréi um leitor ov um ouvinte totalmente abstrato ¢ impessoal. Uma lingua sem sujeito s6 pode ser a lingua de uns sujeitos sem lingua. Por isso tenho a sensago de que essa lingua nio tem nada a ver com ninguém, nao s6 59 Cour "Eoxacto: Baron € Sno" com vocé ou comigo e sim com ninguém, que € uma lingua que ninguém fala e que ninguém escuta, uma lingua sem ninguém dentro. Por isso no pode ser nossa, no s6 porque no pode ser nem a sua nem a minha, mas também, e sobretudo, porque no pode estar entre vocé e eu, porque nao pode estar entre nis. Hé uma tentativa em andamento para livrar a Tinguagem de sua incémoda espessura, uma tentativa de apagar das palavras todo o sabor e toda a ressondncia, a tentativa de impor pela violéncia uma linguagem lisa, sem manchas, sem sombras, sem rugas, sem corpo, a lingua dos deslin- _guados, uma lingua sem outro na qual ninguém escuta a si mesmo quando fala, uma lingua despovoada. José Luis Pardo Nio ha politicas da verdade que nfo sejam, ao mesmo tempo, politicas da lingua. Os aparatos de produgio, legitima- io e controle do conhecimento sio, indistintamente, aparatos de producio, legitimagio ¢ controle de certas linguagens. Iniciar-se numa area do saber é, fundamentalmente, apren- deer suas regras linguisticas: aprender a falar, a escutar, a ler € a escrever como est4 determinado. Pertencera uma comunidade cientifica ou a uma comunidade de especialistas (se € que esas. montagens institucionais merecem o nome de comunidades) supée haver interiorizado seus vocabulirios ¢ suas gramiticas, manejar corretamente suas regras de construgio ¢ de interpre- taco de enunciados, saber usar as linguagens da tribo. ‘Mas se uma lingua € um dispositive de acolhida ¢ de pertinéncia, também é um dispositive de repiidio e de ex- clusio: daqueles que nio a dominam, que nio a aceitam, que nela nfo se sentem 4 vontade, que nio a usam, que nao se submetem a suas regras, que no obedecem a seus imperativos. 0 Uma lingua para @ conversagdo Nota: Detenhamo-nos um momento no ocultamento sistemati- co dessas politicas da lingua que sio constitutivas de todas as, politicas da verdade. Vocé tera notado que, na Universidade, sobretudo naqueles niveis em que os estudantes se iniciam na pesqutisa e/ou na produgao de conhecimento, ou seja, na fa~ bricacdo de textos legitimos, se problematiza intensamente 0 método, mas nio a leitura e nem a escrita. E talvez para vocé, como para mim, as maiores preocupagSes estejam relacionadas justamente com a leitura e com a escrita. O que de verdade nos preocupa € o que e como ler e 0 que ¢ como escrever. Sabemos que é af o lugar por onde passam as opgdes mais importantes. Mas ninguém fala disso. Como se desse por suposto que, tendo chegado a esse nivel, todo mundo ja soubesse ler ¢ escrever, ¢ que, se no sabe, a dinica coisa que é preciso fazer é melhorar as competéncias instrumentais de expressio ¢ de compreensio. Como se ler nio fosse outra coisa que capturar a informagio (ideias, dados, noticias, etc.) contida em um texto, e como se escrever nio fosse outra coisa que por sobre o papel o que se sabe, a informagio ou o conhecimento que se obteve antes ¢ em ‘outro lugar que no na escrita. Contudo, o fato de que a leitura ea escrita nao se problematizem explicitamente, 0 fato de que, 20 menos aparentemente, nem a leitura nem a escrita sejam um problema, nio significa que nio sejam o lugar de potentissimos mecanismos de controle. Se nio fosse por esses mecanismos seria impossivel a imposigio generalizada e a posterior naturalizagio dessa lingua de ninguém. 2. Primeizo foi se tornando impossivel para mim falar sobre um tema elevado ou geral e pronunciar aquelas palavras, tao faceis de usar, que saem sem esforo da boca de qual- quer homem [...J. As palavras abstratas que a lingua usa para dar d luz, conforme a natureza, qualquer juizo, se decompunkam na minha boca como fungos podres. Hugo Von Hofimannsthal ot ‘Cexscho “Eoucacso: Beto € Sanco" Nas iiltimas décadas se configuraram duas linguagens dominantes no campo educativo: a linguagem da técnica e a linguagem da critica. A pedagogia continua dividida entre 0 assim chamados tecnélogos ¢ 0s assim chamados criticos, entre 0s que constroem a educagio a partir do par ciéncia/ técnica, como uma ciéncia aplicada, e os que a constroem a partir do par teoria/pratica, como uma prixis reflexiva ‘A primeira linguagem é a dos cientistas, dos que se situam no campo educativo a partir da legitimidade da ciéncia e da planificacio técnica, dos que usam esse vocabulirio da efici- cia, da avaliagio, da qualidade, dos resultados, dos objetivos; a linguagem dos didatas, dos psicopedagogos, dos tecnélogos, dos que constroem sua legitimidade a partir de sua qualidade de experts; a linguagem dos que saber, dos que se situam em posigdes de poder por meio de posigées de saber. ‘A segunda linguagem é a dos criticos, dos que se situ- am no campo a partir da legitimidade da critica, dos que usam esse vocabulirio da reflexio sobre a pritica ou na pritica; a inguagem dos que consideram a educagio como uma prxis politica encaminhada para a realizagio de certos ideais como a liberdade, a igualdade ou a cidadania, ¢ dos que criticam a educacio enquanto produz submissio e desi- gualdade, enquanto destréi os vinculos sociais; a linguagem dos que se situam em posigées de poder ao se converterem em porta-vozes desses ideais constantemente desmentidos, repetidamente desenganados. Entre essas duas linguas se configuram todas as doxas que constituem o sentido comum pedagégico. Por um lado, a lingua em que se enuncia o que nos dizem que existe, o que nos dizem que é: essa lingua em que parece que € a realidade aquela que fala... embora ja saibamos que se trata da lingua que falam os fabricantes, os donos ¢ os vendedores de realidade. Por outro lado, a Kingua em que se enuncia o que nos dizem 2 Uma lingua para a conversa que deveria haver, © que nos dizem que deveria ser: essa lingua das possibilidades, das finalidades, das intengdes, dos ideais, das esperangas... embora jé saibamos que se trata da lingua que falam os que produzem e vendem ideais, os proprietirios do faturo. A linguagem da realidade e a linguagem do futuro. Ou, em outras palavras, a linguagem dos que filam em nome da realidade ¢ dos que falam em nome do futuro. E, entre a realidade ¢ 0 futuro, a pritica como ponto de passagem obri- gatério entre o que €¢ que deveria ser. Visto que a educacio, segundo dizem, deve partir da realidade, o campo pedagégico é um gigantesco dispositivo de producio de realidade, de certa realidade. Como a educacio, segundo dizem, deve transformar o que existe por meio de sua prépria transformagio, o campo pedagégico fabrica incansavelmente projetos para a pritica, para certa pritica. Nossa lingua, nos dizem, tem que ser ao mes- mo tempo realista, pritica progressista. Se falamos alguma variante dessa linguagem que elabora constantemente projetos para a agio tracando pontes entre fatos (verdadeiros) sobre 0 que é ¢ (boas) intengdes sobre 0 que deveria ser teremos um lugar seguro e assegurado no campo. Porém essa linguagem nos parece vazia e esti se tor- nando impronunciivel para nés. Nota: Quando digo que essa linguagem parece varia, refiro-me i sensagio de que se limita a administrar adequadamente 0 que se sabe, o que se pensa, 0 que, de alguma forma, se pensa sozinho, sem ninguém que o pense, quase automaticamente. Refiro-me a essa sensacio de que tanto os técnicos como os criticos jé disseram o que tinham que dizer c ji pensaram o que tinham que pensar. Po- der-se-ia dizer que tanto seus vocabulirios como suas gramiticas ji estio constituides e fixados, embora, obviamente, ainda continuem sendo capazes de enunciados distintos e de ideias inovadoras. Uma gramitica é uma série finita de regras de produgio de enunciados 63 Couscho “Eoucacho: Exrentxci Sext00" suscctivel de uma produtividade infinita. F quando uma gramitica {fiesta constituida, qualquer coisa que se produza em seu interior da ‘uma sensagio de “ja dito”, de “jé pensado”, uma sensagio de que pisamos em terreno conhecido, de que podemos continuar falando ou pensando em seu interior, sem esforco, sem dificuldades, sem sobressaltos, sem surpresas, quase sem nos darmos conta. Quando digo que essa linguagem esta se tornando impronun- cifvel, refiro-me, por exemplo, a seu cariter totalitério, ao modo como converte em obrigatérias tanto certa forma da realidade (junto com a forma da verdade que é seu correlato) quanto certa forma da ago humana, Também a sua arrogincia, o modo como converte em legitima certa posigio enunciativa na qual sempre se fala a partir de cima (ou a partir de lugar nenhum, que, para 0 caso, dno mes- mo) ¢ na qual o sujeito da enunciagZo se constitui na pretensio de definir o mundo e de transformilo. Por tiltimo, a essa sensagio de que sc trata de uma linguagem de aspirantes, se nao a filésofo-rei, a0 menos a alguma de suas verses degeneradas: intelectual, uni- versal, consciéncia critica, porta-voz autorizado ou, simplesmente, fancionario ou burocrata com inclinagdes politico administrativas. 3. Sé posso amar aqueles que possuem uma linguagem insegura; e quero tomar insegura a linguagem dos que me agradam. Peter Handke Dizem-nos que, se voce fala essa linguagem, falari a partir da realidade. Primeiro iré inventé-la, depois ira impé-la ¢ finalmente, poder sc apoiar ncla. Entio, a realidade, com toda a sua forga, seu prestigio, sua solidez e sua autoridade, estaré do seu lado. Porém, para nés, essa realidade nos pro- duz uma estranha sensagio de irrealidade. Como se nio tivesse densidade, corpo, como se ao se apresentar como uma realidade abstrata, transparente e bem ordenada, nos afastasse da experiéncia que ¢ sempre situada, concreta, 64 Uma lingua para a comers confusa, singular. Como se suspeitssemos que essa maneira de ver, de compreender ou de objetivar o que existe tivesse sua prépria cegueira constitutiva, nos impedisse de ver ¢ ouvir, nos tornasse surdos, nos convertesse em incapazes de tocar 0 mundo de outra forma que nio seja produzindo-lhe violencia. Além do mais, nio est claro que 0 que existe seja 9 que nos dizem que existe. Ja no confiamos nos que nos dizem o que € 0 real e como é 0 mundo. Ja no nos fiamos nos que pretendem falar a partir de lugar algum, nos que s6 podem filar em geral, sem ser eles mesmos os que falam. O que necessitamos talvez no seja uma lingua que nos permita objetivar o mundo, uma lingua que nos dé a verdade do que sio as coisas, ¢ sim uma lingua que nos permita viver no mundo, fazer a experiéncia do mundo, ¢ elaborar com outros © sentido (ou a auséncia de sentido) do que nos acontece. Dizem-nos que, se vocé fala essa linguagem, teré uma relagio ativa com 0 mundo ou, o que dé na mesma, uma relagdo com o futuro. Porém nés temos problemas com essa forma de entender a a¢io e, sobretudo, com esse futuro. Em primeiro lugar, porque temos a sensa¢io de que 0 modo em que se desenha esse futuro faz parte das convengées do presente, de que essa linguagem das alternativas se ajusta demasiado bem 4 linguagem do planejamento, que € uma linguagem de estado, e & linguagem da inovacio, que é uma linguagem de mercado. Além do mais, sabemos, tal- vez confusamente, que no podemos confiar naqueles que sabem imediatamente 0 que é que € preciso fazer para que as coisas sejam de outra maneira, ¢ muito menos nos que dizem, sem se envergonhar, o que é que 0s demais deveriam fazer. Talvez 0 que necessitamos nio seja uma lingua em que enunciamos nossos poderes ou nossas impoténcias, ou em que damos forma 3 nossa boa vontade, ou em que tranquilizamos nossa boa consciéncia, mas sim uma lingua que nos permita 65 CCourcho "Eoucasho: Benen € Sesnoo” compartilhar com outros a incémoda perplexidade que nos causa a pergunta “o que fazer?” ow as infinitas dividas ¢ cautelas com que fazemos o que fazemos. Dizem que, se voce fala essa linguagem, falaré a partir da autoridade do saber, ser inteligente. Mas nés temos problemas com esse saber € com essa inteligéncia e sentimos, talvez obs- curamente, que mio sio de confianga, Diante dos que filam mobilizando saberes, parecemos, sem diivida, mais tolos, mais ignorantes. Nossa lingua € mais insegura, mais balbuciante. Nao lemos o que todo mundo I, 0 que todo © mundo simula que leu. Nao queremos escrever como todo mundo escreve. Muiitas das palavras sagradas da tribo nos parecem banais, vazias ¢, portanto, impronunciveis. Cada vez apagamos mais palavras, de nosso vocabulirio, como se j4 nfio pudéssemos usi-las. As vezes usamos palavras estranhas, nfo queremos que nos enten- dam de imediato. E s6 somos capazes de escutar aqueles que nio entendemos, aqueles que nio sabemos de imediato 0 que € que dizem e 0 que € que querem dizer. Dizem que, se vocé fala essa linguagem, ser compreen- dido por todos, tera um lugar nessa espécie de comunidade universal de fala na qual as palavras ¢ as ideias circulam legitimamente ¢ sem problemas. Mas nés temos problemas com essa compreensio ¢, sobretudo, com esse todos. Nao queremos que nos compreendam, mas sim que nos escutem, ¢ somos capazes de oferecer, em troca, nossa capacidade para escutar 0 que talvez nio compreendamos. Além disso, nio queremos falar para todos, porque sabemos que esse todos é,na realidade, ninguém. Nao nos fiamos nessa lingua des- subjetivada que no tem ninguém dentro, nessa lingua de ninguém, nessa lingua que falam os que nio tém lingua. No queremos essa lingua dessubjetivante que nao se dirige a ninguém, que parece que s6 fala para si mesma. Sabemos que falar e escrever, escutar e ler, s6 so possiveis pela propria 6 Una lingua para a conversaro pessoa, com outros, mas pela prépria pessoa, em primeira pessoa, em nome proprio; que sempre é alguém 0 que fala, co que escuta, 0 que Ié e escreve, o que pensa. Além do mais, se é verdade que se pode debater ou dialogar com qualquer pessoa, se é verdade, inclusive, que se pode argumentar com qualquer pessoa, somente a cada um concerne com quem quer falar e com quem pode pensar. Nota: Se uso o ““nés” para dizer que temos problemas com essa realidade, com essa forma de agio, ou com esse saber €, de novo, porque quero apelar a essa sensacio de que, nessa linguagem, se produz uma realidade de ninguém, uma acio de ninguém ¢ um saber de ninguém. Ai, nessa linguagem, nio hé ninguém dentro da realidade, nem dentro da a¢io, nem dentro do saber. Por isso nem a realidade, nem a ago, nem o saber podem estar entre nés. Esse “nés” nio pretende outra coisa que designar uma linguagem na qual possamos nos falar. Uma linguagem que trate de enunciar a experiencia da realidade, a sua ¢ a minha, a de cada um, a de qualquer um, essa experiéncia que é sempre singular e, portanto, confusa, paradoxal, nio identificivel. E 0 mesmo poderiamos dizer da experiéncia da ago, a de cada um, a de qualquer um, a que nio pode ser feita seno apaixonadamente ¢ em meio da perplexidade. E da experiéncia do saber, a de cada um, a de qualquer um, a que no quer ter outra autoridade que a da experimentagao € a incerteza, a que sempre conserva perguntas que nao pressupdem as respostas, a que est4 apaixonada pelas perguntas. 4. A experiéncia & 0 lugar onde tocamos os limites de nossa linguagem. Giorgio Agamben Necessitamos de uma linguagem para a experiéncia, para poder elaborar (com outros) o sentido ow a falta de 0 CCouscho “Eoucacho: Ewenacn € Sevan" sentido de nossa experiéncia, a sua, a minha, a de cada um, a de qualquer um. A experiéncia é o que nos acontece, no 0 que acontece, mas sim 0 que nos acontece. Mesmo que tenha a ver com a ago, mesmo que as vezes aconteca na aco, nio se faz a experiéncia, mas sim se sofre, nao € intencional, nio esta do lado da acio e sim do lado da paixio. Por isso a experiéncia & atencGo, escuta, abertura, disponibilidade, sensibilidade, exposigio. Se a linguagem da critica elabora a reflexio do sujeito sobre si mesmo a partir do ponto de vista da agio, a linguagem da experiéncia elabora a reflexio de cada um sobre si mesmo a partir do ponto de vista da paixio. O que necessitamos, entio, é uma linguagem na qual seja possivel claborar (com outros) 0 sentido ou a auséncia de sentido do que nos acontece ¢ 0 sentido ou a auséncia de sentido das respostas que isso que nos acontece exige de nds. A experiéncia é sempre do singular, nao do individual ou do particular, mas do singular. E 0 singular é precisa~ mente aquilo do que nio pode haver ciéncia, mas sim pai- xio. A paixio é sempre do singular porque ela mesma nio € outra coisa que a afeicio pelo singular. Na experiéncia, entio, o real se apresenta para nés em sua singularidade. Por isso o real nos ¢ dado na experiéncia como no identi- ficivel (ransborda qualquer identidade, qualquer identifi- cago), como irrepresentavel (se apresenta de um modo que transborda qualquer representacio), como incompreensivel (a0 nio aceitar a distingao entre o sensivel e o inteligivel transborda qualquer inteligibilidade) ou, em outras palavras, como incomparivel, nio repetivel, extraordinirio, tinico, insélito, surpreendente. Além do mais, se a experiéncia nos 4 0 real como singular, entao a experiéncia nos singulas za. Na experiéncia nés somos também singulares, dinicos, inidentificaveis ¢ incompreensiveis. 68 Uma lingua para a conversariio A experiéncia nio pode ser antecipada, nao tem a ver com © tempo linear do planejamento, da previsio, da pre- digo, da prescricio, esse tempo em que nada nos acontece, ¢ sim com 0 acontecimento do que nao se pode “pre-ver”, nem “pre-escrever”. Por isso a experiéncia é sempre do que nio se sabe, do que nio se pode, do que nao se quer, do que nio depende de nosso saber nem de nosso poder, nem de nossa vontade. A experiéncia tem a ver com 0 nao-saber, com o limite do que sabemos. Na experiéncia sempre existe algo de “nao sei o que me acontece”, por isso nio pode se resolver em dogmatismo. A experiéncia tem a ver com 0 nio-dizer, com o limite do dizer. Na experiéncia sempre existe algo de “nao sei o que dizer”, por isso no pode se claborar na linguagem disponivel, na linguagem recebida, na linguagem do que ja sabemos dizer. A experiéncia tem a ver com 0 nio-poder, com o limite do poder. Nela sempre existe algo de “nio sei o que posso fazer”, por isso nao pode se resolver em imperativos, em regras para a pritica. A experiéncia exige outra linguagem transpassada de paixdo, capaz de enunciar singularmente o singular, de incorporar a incerteza. Nota: ‘Com esse “necessitamos de uma linguagem para a experién- cia” quero Ihe dizer que gostaria de poder falar com vocé, pensar ‘com voce. Por isso me atrevo agora a convidar vocé a abandonar as linguagens dominantes da pedagogia, tanto a linguagem da técnica, do saber e do poder, como a linguagem da critica, da von: tade ¢ da agio, essas linguagens que nio captam a vida, que estio cheias de formulas, que se ajustam perfeitamente a logica policial da biopolitica, linguagens emprestadas da economia, da gestio, das ciéncias positivas que tornam tudo calculivel, identificavel, mensurivel, manipulivel. E se digo a vocé que “gostaria de poder falar com voce” é também porque nio sei em que lingua, porque teremos que procurar uma lingua que esteja entre nés, uma lingua da qual a tinica coisa que sei é que no pode ser nem a sua nem a 0 Caxrcio “Eoxcacio: Exenenci € Sextno" minha, que nunca poder ser a prépria de nenhum de nés, mas na qual, talvez, trataremos de nos falar, vocé ¢ eu, em nome proprio. ‘Ja basta de falar (ou de escrever) em nome da realidade, em nome da pritica, em nome do futuro ou em nome de qualquer outra abstragio semelhante. Ji basta de falar (ou de escrever) como experts, especialistas, criticos, porta-vozes, j& basta de falar (ou de escrever) a partir de qualquer posi¢io. Para podermos nos falar precisamos falar e escrever, ler e escutar, talvez pensar, em nome proprio, na primeira pessoa, com as préprias palavras, com as proprias ideias. Obviamente, s6 podemos falar (¢ escrever) com as palavras comuns, com essas palavras que sGo a0 mesmo tempo de todos e de ninguém. Falar (ou escrever) com as préprias palavras significa se colocar na lingua a partir de dentro, sentir que as palavras que usamos tém.a ver conoso, que as podemos sentir como proprias quando as dizemos, que sio ppalavras que de alguma maneira nos dizem, embora nio seja de nés de quem falam, Falar (ou escrever) na primeira pessoa no significa falar de si mesmo, colocar a si mesmo como tema ou contetido do que se diz, mas significa, de preferéncia, falar (ou escrever) a partit de si mesmo, colocar a si mesmo em jogo no que se diz ou pensa, expor-se no que se diz e no que se pensa. Falar (ou escrever) em. nome proprio significa abandonar a seguranga de qualquer posi¢io ‘enunciativa para se expor na inseguranga das proprias palavras, na incerteza dos proprios pensamentos. Além disso, trata-se de falar (ou de escrever), talvez de pensar, em direcio a alguém. A lingua da experiéncia nao s6 traz a marca do falante, mas também a do ‘ouvinte, a do leitor, a do destinatirio sempre desconhecido de nossas palavras e de nossos pensamentos. Ao contririo dos que filam (ou escrevem) para ninguém ou para estranhas abstragSes, como 0 ¢s- pecialista, o estudante, o expert, o profissional, ou a opiniao pablica, falar (ou cscrever) cm nome proprio significa também faé-lo com alguém e para alguém. Pensar se parece muito com conversar consigo mesmo. Talvez por isso conversar — no dialogar nem debater, conversar — se parece tanto com pensar em comum. Miguel Morey 70 (Ume lingua para a conversarto Necessitamos de uma linguagem para a conversacio. Nio para o debate, ou para a discussiio, ou para o diélogo, mas para a conversacio. Nao para participar legitimamente nessas enormes redes de comunicagio ¢ intercimbio cuja linguagem nao pode ser a nossa, mas para ver até que ponto ainda somos capazes de nos falarmos, de colocar em comum ‘0 que pensamos ou o que nos faz pensar, de elaborar com ou- tros o sentido ou a auséncia de sentido do que nos acontece, de tratar de dizer 0 que ainda nao sabemos dizer ¢ de tratar de escutar 0 que ainda nao compreendemos. Necessitamos de uma lingua para a conversacio como um modo de resis- tir a0 nivelamento da linguagem produzido por essa lingua neutra na qual se articulam os discursos cientifico-técnicos, por essa lingua moralizante na qual se articulam os discursos criticos e, sobretudo, por essa lingua sem ninguém dentro ¢ sem nada dentro que pretende nao ser outra coisa que um instrumento de comunicagio. Necessitamos de uma lingua para a conversacdo porque s6 tem sentido falar e escutar, ler ¢ escrever, em uma lingua que possamos chamar de nossa, ou seja, em uma lingua que nao seja independente de quem a diga, que diga algo a vocé e a mim, que esteja entre nés. Nota: Se uso a palavra “conversacio” para Ihe dizer, outra vez, que quero falar com vocé, é porque essa palavra sugere horizontali- dade, oralidade e experiéncia. O que quero dizer a voce, entio, em primeiro lugar, é que precisamos buscar uma lingua que no rebaixe, que nio diminua, que nao construa posigdes de alto ¢ baixo, de superior ¢ inferior, de grande e pequeno. Necessitamos de uma lingua que nos permita uma relacio horizontal, uma relagio em que vocé e eu possamos nos sentit do mesmo tamanho, na mesma altura. que quero dizer a vocé, em segundo lugar, € que neces- sitamos de uma lingua que nio seja apenas inteligivel. Repare 71 (Cenaco “Eoucacko: Eentncn & Seo" que cm filosofia, ¢ nao s6 em filosofia, quando a questio é estar bem informado sobre o carater sensfvel da lingua, quando se trata de considerar a lingua a partir de sua relaco com 0 corpo ¢ com a subjetividade, frequentemente se apela a nogdes que tém a ver com a oralidade, com a boca e com a lingua, com 0 ouvido com a orelha, com a voz. E ai nio se trata da diferenga entre fala ¢ escrita, mas sim da diferenga entre distintas experiéncias da lingua, incluindo o ler ¢ o escrever. A oralidade a que me refiro mio se ope A escrita, mas, 20 contririo, atravessa toda a linguagem, como se a escrita tivesse sua propria oralidade, como se fosse possivel tracar diferencas entre tipos de escrita segundo suas diversas formas de oralidade. A vor é a marca da subjetividade nna experiéncia da linguagem, também na experiéncia da leitura ¢ da escrita. Na voz, 0 que esta em jogo ¢ 0 sujeito que fala e que escuta, que Ié e que escreve. A partir daqui se poderia estabelecer um contraste entre uma lingua com voz, com tom, com ritmo, com corpo, com subjetividade, uma lingua para a conversagio... € uma lingua sem voz, afonica, étona ou monétona, arritmica, uma lingua dos que nao tém lingua, uma lingua de ninguém e para ninguém, que seria, talvez, essa lingua que aspira a objetividade, aneutralidade c a universalidade e que tenta, portanto, o que foi apagado de todo traco subjetivo, a indiferenga tanto no que se refere ao falante/escritor quanto no que se refere a0 ouvinte/leitor. E o que quero dizer a vocé, por iiltimo, € que necessitamos de uma lingua na qual falar e escutar, ler e escrever seja uma ex- periéncia. Singular e singularizadora, plural e pluralizadora, ativa, ‘mas também pessoal, na qual algo nos aconte¢a, incerta, que no cesteja normatizada por nosso saber, nem por nosso poder, nem por nossa vontade, que nunca saibamos de antemao aonde nos leva. Gostaria de conversar com voce. 2

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