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S3 cola 925 ROLAND BARTHES INEDITOS Vol. 2 - Critica “Tiaduco | Ione Cathe Benede SBD-FFLCH-USP iii Uk} Martins Fontes ‘$20 Paulo 2004 1 Indio | Dois artigos acerca de Proust evidenciam a presenga constante, em sua vida, do escritor de Em: busca do zempo perdido, 20 qual ele dedicaré boa parte de seu tiltimo cur- 0, A preparagio do romance. Proust foi, pata Barthes, 0 homem que escteveu o ultimo grande romance ociden- tal ¢ 0 esctitor que ele desejaria ter sido. Ao ser atropela- do, em fevereito de 1980, no acidente que ocasionou sua morte, Barthes estava se dirigindo ao College de France, para preparar uma sesso em que projetaria forografias de pessoas que inspiraram as personagens proustianas, O iiltimo texto desta coletdnea, “Masculino, femini- no, neutro”, datado de 1967, ¢ 0 primeito esbogo da notével andlise que ele publicaré, em 1976, da novela Sarrasine de Balzac (no livro S/Z). Esse texto preparaté- rio serd de grande utilidade para os leitores que desejarem empreender a leitura de S/Z, ow para aqueles que tenham encontrado alguma dificuldade em acompanhar os in- trincados meandros desse livro, o qual propée um de andlise absolutamente novo, jé “pés-estruturalista’, ‘Assim, se estes textos criticos inéditos nao repre- sentam todos o melhor'da produgio de Barthes, que se encontra em seus livros, tém entretanto o interesse de iluminar de viés os grandes'temas que o ocuparam. Ler Barthes, mesmo em seus textos “menores”, é sempre uma festa para a inteligéncia. LEYLA PERRONE-MOISES NOTAS SOBRE ANDRE GIDE E SEU DIARIO. Contido pelo temor de encerrar Gide num sistema que, eu sabia, nunca poderia me satisfazer, procurava em. refletir, concluo ser melhor apresenté-las como esto, € nao procurar disfargar sua descontinuidade, A incoerén- cia parece-me preferivel & ordem deformadora. O Didrio Duvido que o Didrio desperte grande interesse se a Ieitura da obra néo tiver previamente despertado curio- sidade sobre o homem. i 1 addi | No Didrio de Gide, o leitor encontrara sua ética — a génese ea vida de seus livros -, suas leituras — funda- mentos de uma critica de sua obra -, siléncios ~ tragos exttaordindrios de inteligencia ou bondade -, peque- nas confissdes que fazem dele o homem por exceléncia, como foi Montaigne. Muitas frases do Didrio provavelmente irritario aqueles que tenham algum ressentimento (secreto ou no) contra Gide, Essas mesmas frases seduzitéo aque- Jes que tenham alguma razio (secreta ou néo) pata se acreditarem semelhantes a Gide, E 0 que ocorre com toda personalidade que se compromete. As pessoas de formacio protestante deleitam-se com © Diério ¢ com a autobiogtafia; além de terem obses- so pela natureza moral do homem e de a tomarem como desculpa para chamarem a atengZo sobre si, tais ‘pessoas véen na confisso ptiblica uma espécie de equi- valente da confisséo sacramental, Fazem isso também pela necessidade de amesquinhar, com liberalidade, um ofgulho que identificaram como pecado capital; por fim, porque acreditam sempre ser poss{vel corrigir-se. Rousseau, Amiel, Gide deram-nos trés grandes obras confessionais; a maioria dos romances ingleses so au- | Gee | tobiografias (lembremos o movimento oxfordiano e seu sistema de confiss6es puiblicas). No entanto, 0 Did- rio de Gide contém um matiz préprio; é escrito mais freqlientemente como didlogo do que como monélo- go. E menos uma confissdo que o relato de uma alma que se busca, se responde, conversa consigo (ao modo dos Soliléguios de Agostinho). Eu ditia até que no Did- vio de Gide ha um elemento mistico. O Didrio néo & de modo algum uma obra explica- tiva, exterior, por assim dizer; néo é crénica (ainda que €m sua trama a atualidade muitas vezes transpareca), Nao Jules Renard nem Saint-Simon, ¢ quem procurat nela jufzos importantes sobre a obra deste ou daquele contempordneo (Valéry ou Claudel, de que Gide fala com freqiiéncia) provavelmente ficard frustrado, E uma obra egoista, mesmo quando — e, sobretudo, exatamen- te quando ~ fala dos outros. Embora a marca de Gide scja sempre a grande acuidade, 0 seu grande valor estd na forca de reflexao, de retorno Para o proprio Gide. “O que deve figurar aqui é precisamente o miudis- simo, por ter sido“retido pelo crivo de alguma obra Devo escrever, ¢ sem tebuscamento algum, detalhes” “ind, bas, Soliliguies wide fli Sto Palo, Ps 1 dnldior (Journal, p. 933, ano 1929). Portanto, ndo se deve crer que.o Didrio se opée 4 obra ¢ que nao é, ele também, uma obra de arte. Hi frases que esto a meio-caminho entre a confiss4o'¢ a criagao; sé falta inseri-las num ro- mance, e jé sero menos sinceras (ou melhor: sua sin- ceridade conta menos que uma outra coisa, que € 0 prazer de as ler). Eu até diria o seguinte: nao ¢ 0 Didrio de Edouard que se parece com 0 Didrio de Gide; a0 contrério, muitas enunciagbes do Didrio de Gide ja tém a autonomia do Didrio de Edouard, J4 nao si to- talmente Gide; comecam a.estar fora dele, rumo a al guma obra incerta onde desejam tomar lugar, que elas estéo chamando. Nietasche escreveu: “Apesar de nao set de modo al- gum superficial, um grande francés néo deixa de ter sua superficie, um invélucro natural que envolve seu fun- do. sua profundidade...” (Aurore 192). . A obra de Gide constitui sua profundidade; admi- tamos que seu Didrio é sua superficie; ele se desenha ¢ justapde seus extremos; leituras, reflexdes, narrativas mostram quéo distantes sfo esses extremos, quo vasta a superficie de Gide. 1, bras, So Palo, Companhia das Lets, 2004. 4 1 Gee | Das Schaudern Gotthe citado por Gide (p. 207): "O tremar (das Schaudern) 0 -melbor do hemem.” O “das Schaudern” de Goethe assemelh: te ao “homem maravilhosamente ondulante’ taigne. Nao sei se alguém deu a devida imporcancia 20 lado goethiano de Gide. Assim como as suas afinidades com Montaigne (as predilecdes de Gide nao indicam influéncia, porém identidade); no € por acaso que Gide escreve uma obra critica. Seu preficio a “trechos escolhidos” de Montaigne e a propria escolha dos tex- tos nos dao informagées tanto sobre Gide quanto so- bre Montaigne. Os didlogos — Nada mais préprio & literatura france- sa, nada mais precioso que esscs duetos mantidos, de um século a outro, entre escritores de mesma classe: Pascal ¢ Montaighe, Rousseau e Moliare, Hugo e Voltaire, Valéry ¢ Descartes, Montaigne e Gide. Nada prova mais a pere- nidade dessa literatura, e também, justamente, seu tre- mor, sua ondulaclo, aquilo que a faz escapar 4 esclerose dos sistemas, que faz seu passado mais remoto renovar-se em contato com uma inteligéncia presente. Se os grandes classicos so eternos, ¢ porque estéo sempre se modifi- cando, © rio é mais durdvel que o mérmore. 5 1 inddas | Gide dé vontade de ler os cléssicos. Toda vez que os cica, eles tém uma beleza espantosa, esto vivissimos, bem perto, modernissimos. Bossuet, Fénelon, Mon- tesquieu nunca sio tao belos como quando citados por Gide. Parece até crime conhecé-los tio mal. wee Um critic de Gide nfo deveria pretender fazer um retrato bom ou ruim dele, como costumam os bidgra- fos; seu papel deveria ser convidar a nao julgé-lo mal por ignorincia ou, pios, por preteriglo, voluntéria ou nao, de algumas obras ou palavras suas. Em relago a Gide cabe ser “infinitamente respeitoso para com sua perso- nalidade”, assim como ele o foi para com a personalida- de dos outros. O Didrio, justamente, muitas vezes ¢ escrito para retificar a idéia que se possa ter feito de Gide, por citagbes, relatos, palavras inexatas. E um perpétuo acerto de si mesmo; como um escrupuloso operador de camara, ele est sempre acomodando a imagem & visio preguicosa ou malevolente do puiblico. “Eles querem fa- zet de mim um ser tremendamente preocupado. Minha nica preocupacio ¢ ver meu pensamento ser mal inter- pretado” (Journal, p. 864, ano 1927). ee Gostaria que aqueles que criticam Gide por suas con- tradigGes (sua recusa a escolher como todos) se lembras- 6 1 Gotice 1 sem desta pagina de Hegel: “Para o senso comum, a oposicéo entre verdadeiro ¢ falso € algo fixo; ele espera que se aprove ou que se rejeite em bloco um sistema existente. Nao concebe a diferenca entre os sistemas fi- loséficos como o desenvolvimento Progressivo da verda- de; para ele, diversidade quer dizer unicamente contra- dicio [...] O espitito que apreende a contradigéo nio sabe libertd-la e conservé-la em sua unilateralidade, e reconiecer, na forma daquilo que parece entrechocar-se € contradizer-se, momentos mutuamente necessdrios. tee Gide 6, portanto, um ser simultaneo. E quase como se, no comego, tivesse sido dado completo pela Na- tureza. Depois, foi com calma expondo sucessivamen- te 08 diferentes aspectos de si mesmo, mas é sempre bom lembrar que esses aspectos na realidade sio con- tempordneos uns dos outros, como, alids, suas obras: “Custa-lhes admitir que esses diferentes livros coabita- ram coabitam ainda em meu espitito. Eles s6 se suce- dem no papel e devido a grande impo: deixarem escrever conjuntamente. Seja qual for o livro gue escrevo, nunca a ele me dou por inteiro, e 0 tema que me reclama com mais insisténcia logo depois de- senyolve-se, entretanto, na outra extremidade de mim mesmo” (Journal, p. 275, ano 1909). Donde: fidelida- de contradigées, ct 1 dnaios | Fidelidade — Gide esta todo em André Walter, € ‘André Walter ainda esté no Didrio de 1939. Segue-se que Gide néo tem idade. E sempre jovem, é sempre maduro, é sempre sdbio, é sempre fervoroso. Sé a tilti- ma parte de sua vida, por causa da velhice, adquiriu uma cor mais grave, mais grega, a0 modo dos Tr4gicos. Mas certas tendéncias suas — ou certos aspectos seus — ele conseguiu encarnar to bem em jovens quanto em velhos (as personagens de Gide nunca séo objetivas, sem serem puramente ele mesmo), em La Pérouse como em Lafcadio. Gide é um coragio, uma alma fiel. E interes- sante como sua vasta leitura pouco lhe modificou a fi- sionomia. Suas descobertas nunca foram renegagbes. Quando leu Nietzsche, Dostoievski, Whitman, Blake ou Browning (exceto Goethe, cuja influéncia ele con- fessa), foram reconhecimentos de si niesmo, portanto raz6es para continuar-se. A situacZo de Gide, no cru- zamento de correntes contraditérias, nao € nada facil. Sua perseveranga é, pois, admirével; é mesmo sua razéo de set, o que 0 faz grande. Quantos teriam acabado numa conversio? Aquela fidelidade & verdade de sua vida é herdica: “Quao mais facil ¢ trabalhar segundo uma estética ¢ uma moral j4 dadas! Os escritores que se submetem a uma religiZo reconhecida avangam com cer- tezas. Eu preciso inventar tudo. As vezes, é urn imenso tateio em direcao a uma luz. quase imperceptivel. E as vyezes me pergunto: para qué?” (Jornal, p. 1000, ano 1930). | Goce t Contradig6es- Em que sentido, entéo, pdde mover- se essa natureza fiel, cujas obras, porém, deixam uma impresséo de cambiancia ¢ mobilidade - a tal ponto que houve quem o acusasse de esquivar-se por incons- vancia? Aqui é preciso dissipar o preconceito da rigidez: certos espftitos chegam a parecer constantes & forga de serem sempre inteirigos; escamoteiam suas guinadas (por mais conseqtientes que sejam), ¢ de sua nova opi- nigo sé apresentam a face endurecida, que eles solidifi- cam com alta dose de violéncia: A atitude de Gide diante destes € mais humilde e comedida. Com uma consciéncia que a moral comum tem o estranho hébi- to de chamar doentia, ele se explica, se entrega, se retra- ta delicadamente ou entio se afirma com coragemn, mas no engana 0 leitor sobre nenhuma de suas mudangas; Gide pde tudo no movimento de seu pensamento, ¢ néo em sua brutal profissdo. Vejo varias raz6es para essa ati- tude: 1? as flexdes de uma alma séo a marca de sua au- tenticidade (todo o esforgo de Gide é para tornar-se tornar outrem “auténtico”); 2° 0 prazer estético que ele tem em fazer reverberar lentamente as infimas mudan- gas de sua natureza (sendo 0 movimento, para Gide, 0 melhor do homem); assim como um magico que se en- trega & mais bela de suas operagées; 3° 2 profusio de seus escripulos na busca da verdade, procurada através das nuances mais sutis (a verdade nunca ¢ brutal); 4° 1 Indios por fim, a importincia moral dada aos estados de con- flito, talvez porque eles so garantia de humildade, No Japao, onde o conflito entre catolicismo € pro- testantismo, helenismo e cristianismo nao faz muito sentido, Gide é bem lido. Do que gostam nele? Da ima- gem de uma consciéncia que procura honestamente a verdade. © tinico ponto em que se pode falar de evolugéo de Gide é 0 seguince: em certo momento, a questo so- cial ganhou para ele mais import&ncia que a questo moral, Em 1901, ele escrevia: “Questo social? Sem dii- vida. Mas a questo moral é antecedente. O homem € mais interessante que os homens; foi ele, nao eles, que Deus fez & sua imagem. Cada um € mais precioso que todos” (Journal, p. 93). Depois, em 1934, quando os tumultos do mundo o afastam da obra Parte: .. “Qua- se nada mais hé em mim que nao se compadega. Para ‘onde quer que eu volte 0 olhar, 86 aflicao vejo em tor- no de mim, Quem permanece contemplativo, hoje, dé mostras de uma filosofia desumana ou de cegueira monstruosa” (Journal, p. 1211). Mas haverd af verdadeira evolugio? No méximo, uma recrudescéncia do fermento evangélico, a0 qual ele se entrega mais livremente, por ja nao ter os empe- 10 | Gitica 1 cilhos da juventude; ¢ também o peso da atualidade, de que ele sempre se ressentiu humanamente. een Alguns escolhem um caminho e nele ficams outros mudam, a cada vez com a mesma conviccio. Gide, porém, manteve-se numa encruzilhada, constantemen- te, fielmente, na encruzilhada mais. importante, mais palmilhada, mais cruzada que existe, por onde passam as duas maiores estradas do Ocidente, a grega e a cris- 1; preferiu essa situagao total, onde podia receber as duas luzes ¢ os dois bafejos. Nessa situacao herdica, pro- tegido por nada, mas também circunscrito por nada, prestou-se a todos os ataques, ofereceu-se a todos os amores. Para ser dutadouro numa situacéo to perigo- sa, esse homem precisou de certa dureza, da qual sio feitas as obras-primas. __ Muitos no sabem o que devem censurat mais em Gide, seu paganismo ou seu protestantismo, Sao como © asno de Buridan, entre a Agua ¢ 0 cardos ora, € gra- gas & sua indeciséo que o cardo continua crescendo, ¢ a dgua, correndo, O ctistianismo de Gide estd por demais ligado a seu destino pessoal (digamos, para sermos mais claros: con- n 1 sedis | jugal), para podermos falar do assunto sem dizer gran- des besteiras (ver Journal, pp. 747 ¢ 753). De qualquer modo nio se pode esconder o seguin- te: “Quem quiser salvar sua vida a perder4.” Essas pala- vras de Cristo esto no fando de toda obra de Gide. Sua obra pode ser considerada como certa mitologia do orgulho. © orgulho , para ele, 0 fato moral capi- tal. Todo critico deveria insistir nisso, mostrar, a respei- to, 0 lugar do Dostoievski, que se une, estreitamente, com Numguid et tu? ¢ com o diptico Limmoraliste ¢ Porte éivoite. intl pretender conhecer Gide, nem que seja um pouco, se néo se concebe claramente a impor- tincia dessas palavras evangélicas. Nos ultimos cem anos, hé trés homens que sen- tiram, pela pessoa de Cristo, uma atragéo muito for- te, intima e— poderia dizer? — fraterna, cam o queen- tendo fora do conhecimento dogmético ou mis Nietzsche (como irméo inimigo), Gide ¢, na Ruissia, o escritor Rozanov. "Bn face desse asiatismo ~ escreve Gide (trata-se de Renan, Bartts, Loti, Lemaitre) ~ como me sinto déri- co!” YJournil, p. 1134, ano 1932). O helenismo de Gide 2 | Giza 1 ganha plenitude na velhice. Do tempo de Les Nour- ritures terrestre?, ele guardava algo de helenistico: Pierre Louys ndo estava longe. Mas agora ele se tornou grego de verdade, ou seja, trégico. Nos ultimos anos do Didrio, ha paginas admiraveis, as quais sabedoria e softimento conferem um som extraordindrio de pureza ¢ proximi- dade. Ora, o dificil - e conseguido pelos gregos do sécu- lo V~é ser sdbio sem ser forgosamente racional, ou seja, ser feliz sem renunciar forgosamente ao sofrimento. Na ultima sabedoria de Gide, nenhuma seguranga, sempre aquele tremor (das Schaudern); é uma sabedoria que no nega, que no abafa 0 softimento; nao congela os demé- nios, , com pélpebras que a idade torna pesadas, néo olha para Deus com uma serenidade insultante. Nas ul- timas paginas do Didrio ele me parece estar vendo Edi- po, mas Edipo em Colona, e nao mais Edipo rei. A obra de arte Edo ponto de vista da arte que cumprejulgar 0 que ‘sreva, ponto de vista em que nunca ou quase nunca, pie o erttico... E, alids, 0 tnico ponto de vista que no exclui nenbum entra. Journal, pp. 6-58, ano 1918) “De inicio, considerava-me um simples artista, € quase no me preocupava com nada, & mancira de Flau- eas. O: fas de tor, Bio de Jneitoy Nova Frontcra, 1982. Un bert, a nfo ser com a boa qualidade de meu trabalho. Sua significacéo profunda, para ser exato, escapava-me” Clournah p. 1027, ano 1931). Dessa significacio pro- fanda de sua obra, Gide s6 tomou consciéncia diante das reagdes alheias; ¢ sistematizou-a em suas obras criti- cas. Livros como Nourritures nfo seriam tao belos e du- radouros se ele os tivesse carregado conscientemente de uma intengao qualquer, antecedente & obra, para a qual a obra nfo passasse de moldura cémoda. Sio livros pro- priamente poéticos, em que o autor, como o vates la no, néo passa de intérprete; sua mensagem 0 supera,€ de inicio ele talvez nfo a compreenda bem; vem mais forte que ele, de quem o habita, de um deus. Uma vez criada, sua obra quase o surpreende; ela jé nao é ele, a tal ponto que ele nfo possa enamarar-se dela, como Pigmalizo, da estétua. O pretexto legttimo —No devemos nos enganar so- bre os trabalhos criticos de Gide; & neles que ele encer- ra o mais profundo de si mesmo. Sao seus livros siste- miaticos — admitindo-se que Gide tenha um sistema; quanto 20s outéos, io demasiado obras de arte, sio de- masiado gratuitos. £ sé em segunda mio, iluminados por essas obras criticas, mas por assim dizer & reveli que Les Nourritures terrestres ou Oedipe podem assumir “ | Grice | © aspecto de Evangelhos, e sua mensagem, de ética nova. A obra de Gide é uma rede de que nao se pode solcar nenhuma malha. Acho totalmente inttil dividi-la em faixas cronolégicas ou metédicas. Ela quase precisaria a, como certas Biblias, com um quadro sindpti- co de referéncias, ou ainda como aquelas paginas da Enciclopédia, cujas notas & margem conferiam valor ex- Plosivo ao texto. Gide &, freqiientemente, seu proprio escoliasta, Isso era necessério para conservar a gratuida- de, a liberdade da obra de arte. A obra de arte de Gide é voluntariamente fugaz; ela escapa — gracas a Deus — a todo ¢ qualquer dominio de partidos ou dogmas, ainda que revoluciondtios. Nao fosse isso, ela nao seria obra de arte. Mas infetir dai que o pensamento de Gide ¢ fugaz ¢ erro. Gide deixa-se perfeitamente tomar ¢ definis, em suas obras criticas, em seu Didrio, Quan- do conhecemos esse Gide, de sua obra poética depreen- dem-se ressonincias novas, uma visio corajosamente sistemética do homem. tee “Quis indicar nessa Tenvative amoureuse a influtn- cia do livro sobre quem o escreve, até mesmo durante © ato de escrever. Pois, saindo de nés, transforma-nos, modifica a marcha de nossa vida... Hé uma retroacao de nossos atos sobre nds” (Journal, p. 40, ano 1893). Gosto a aproximar essas palavras destas de Michelet: 5 1 nao | “A Histéria, no progresso do tempo, mais faz o histo- tiador do que o historiador a faz, Meu livro criou-me, Fui eu a sua obra” (Prefacio de 1869). Se admitirmos que a obra é uma expressio do querer de Gide (vida de Lafcadio, de Michel, de Edouard), 0 Diario € realmen- te 0 inverso da obra, seu complemento oposto. A obra: Gide tal como deveria (gostaria de) ser. O Didrio: Gide tal como ele é, ou, mais exatamente, tal como 0 fize- ram Edouard, Michel ¢ Lafcadio (muitas citag6es belis- simas no Dirio a respeito, pp. 29, 730, 781). sae Foi por ter sentido, em certo momento, o desejo de ser alguém a quem deu 0 nome de Ménalque, Laf- cadio, Michel ou Edouard, que Gide escreveu Les Nour- ritures terrestres, Les Caves du Vatican, L'immoraliste ¢ Les Faux-Monnayeurs. “O desejo de pintar personagens encontradas por af parece-me bem freqiiente. Mas a cria- Gao de novas personagens s6 se torna necessidade natu- ral nos que, atormentados por imperiosa complexida- de, nao a esgotam com seu préprio gesto” (Journal, p. 781, ano 1924). Narrativas e Romances ~ A estética de Gide com- preende duas correntes: uma que esgota a importincia | Grice | que ele atribui & natureza. moral do homem; a outra, que esgota o prazer fisico que ele sente ao imaginar-se na pele de outros, no na sua. Narrativas (André Walter: Symphonie pastorale, Lilmmoraliste, Porte étroite) -Transformacio em ficgio — quase — de um caso, um tema, um sofrimento. Nao fosse a arte extrema, seria quase apdlogo, mas um apé- logo que no se vincularia a teoria alguma. Em suma, todas essas narrativas so quase mitos, Hé uma mitolo- gia gidiana (mitologia prometéica, néo olimpica), em que cada personagem nao teme reproduzir um pouco a outra, € que, como toda mitologia, tende a alegoria, 20 simbolo ou pelo menos pode ser interpretada como tal, Cada herdi envolve o leitor, convoca o exemplo ou aiconoclastia. A mitologia, tal como essas nartativas de Gide, néo prova nada; é uma obra de arte na qual cir- cula muita fé; é uma bela ficgo na qual se aceita acre- ditar porque ela explica a vida e, ao mesmo tempo, é um pouico mais forte, um pouco maior que ela (d4 a ima- gem de um ideal; toda mitologia € um sonho). E essas narrativas de Gide, como todo mito, séo uma equiva- léncia entre uma realidade abstrata e uma fico concre- ta. Todos esses livros sio livros cristios, Romances (Les Caves du Vatican, Les Faux-Mon- nayeurs) ~O peculiar desses romances é sua completa gratuidade; sio jogos. (O jogo, em relacéo ao dever, € © que se faz “a troco de nada”.) Nao provam nada e sé y 1 ies | so psicolégicos por apresentarem um imbréglio ¢ uma incoeréncia bem peculiares & vida. Nasceram do prazer superior de imaginar histérias nas quais o imaginador se introduz, sob os aspectos mais numerosos ¢ picantes possiveis (cudo o que ele nao pode ser). E um instinto de fabulacéo como o das criangas que dé tanta leveza, tanta irreveréncia vaporosa a Les Caves du Vatican, ea Les Faux-Monnayeurs dé tanta complexidade inveross{- mil. A prova de que Gide concebeu suas personagens com um prazer profundo, e de que foi o seu desejo de ser elas que nelas ele encarnou, essa prova eu veria em detalhes humildes, mas que no enganam. A voltipia de Lafcadio em usar certas roupas novas, minuciosa- mente descritas (como uma crianga detalha o brinque- do que quer, ainda mais por ser imagindrio); a atitude de Edouard em relagao a Olivier. Assim como nos jo- gos infantis, a realidade cavalga de repente o fantdsti- co: histérias vividas séo inseridas no romance sem que Gide se dé o trabalho de mudar os nomes: 0 episédio do velho La Pérouse, 0 roubo de Georges (ver Journal, p. 691). ‘Les Faux-Monnayeurs—“O que eu gostaria que fos- se esse romance? Uma encruzilhada — um encontro de problemas” (Journal, p. 760, ano 1923). A critica pro- ‘vavelmente tetia interesse em considerar esse livro como um grande romance russo pensado ¢ escrito por um grande escritor francés. O tom, o espirito do episédio 18 | Grice | dos rapazes em Os irmdos Karamazov’ esth quase inte- gralmente na primeira cena de. Les Faux-Monnayeurs Como todo romance de Dostoievski (exceto, talvez, O eterno marido), Les Faux-Monnayeursséo um né de his- térias diversas, cujos elos nfo aparecem de inicio. (Foi a conselho de R. Martin du Gard que Gide reuniu es- sas inctigas independentes num 6 feixe.) Assim como Les Caves du Vatican, Les Fause-Monnayeurs Sao um 10- mance diabélico; quero dizer que, sendo a unicidade da ago incessantemente rompida em proveito de pers- pectivas imprevistveis e muitas vezes inexploradas, o que se tem ¢ uma fantasia infernal. Prova a contvarior as nat- rativas de Gide séo obras evangélicass nelas, tom ¢ in- ttiga tém a simplicidade dos anjos. ae Onoméstica das personagens de Gide — Distinguir os heréis pelo nome e as personagens pelo sobrenome. Os nomes de familia sfo, nd mais das vezes, caracteristicos ou itdnicos (mas, com que sutileza escolhidos!): Bara- glioul, Profitendieu, Fleurissoire’. Por meio do sobre- 5, Tad, bats vol 1 Ri de asco, Nom Agu 2, 2008 6 Tra. bras, ol I, Rio de Jai, Nova Agua, 28, 2008 (N. da) 7 1, Barplk eves do sbrenie lao Hargio com nfo sme ou face 1 Indio | nome; Gide brinca com essas personagens, seus apegos, aquilo de que 0 comum das pessoas se orgulha, mas que, para Gide, as impede de ser auténticas. Os nomes, 20 contrério, sfo sempre vagos, impessoais: Edouard, Michel, Bernard, Robert. Sdo vestes largas, que nada denunciam; a personalidade desses herdis esté em out- ra coisa, nfio no nome (ou seja: na familia, na socieda- de), coisa pela qual nao sao responsaveis, Hé ainda os nomes mitolégicos ou exéticos (também escolhidos sim- plesmente por Serem bonitos): Ménalque, Lafcadio, cuja excentricidade histérica ou geogréfica néo confere clas- se nem nacionalidade ao heréi, ¢ avisa que nao o en- contraremos em nosso tempo ou em nossos lugares, justificando ~ talvez ironicamente —a estranheza de sua moral ou de seus atos. Parecem dizer: “Fiquem trangiii- los, voces nao encontrardo nenhum Ménalque e nenhum Lafcadio entre nés; mas talvez seja pena.” Romances de Gide - Notat que 0 lado habitual do romance (observag6es, atmosfera, psicologia) é silen- ciado. Tudo isso € considerado coisa sabida. O roman- ce foi escrito além, a partir da trama ordindria; tem confianga na qualidade do leitor. Nossa época, em alguns de seus maiores escritores (na verdade, desde Edgar A. Poe), poderia ser definida pelo fato de que o artista desmonta os procedimentos da criagao e interessa-se por eles quase tanto quanto por 20 | Gee 1 sua obra, Porque se acabou de entender que a arte éum jogo, uma eécnica (ss0 data do dia em que os franceses inventaram a formula da Arte pela Arte. Ver Niewsche: Além do bem e do malt, af. 254), Nao actedito que este- ja interpretando erroneamente Valéry, ao dizer que ele se tornou poeta para poder dar conta exata dos proce- dimentos da poética, Donde o surpreendente Didria de Edouard e, também, varios trechos do Didrio. ee Giéncias naturais —O Didrio induzird o fucuro crt- tico a considerar demoradamente o gosto de Gide pe- las ciéncias naturais. “Ndo cumpri minha vocacio; na- turalista € 0 que gostaria de ter sido, deveria ter sido” (Journal, p. 1305, ano 1938). Esse gosto permitiu-lhe langar um longo olhar atento para o mundo formal. Todo poeta que se aprofunde um pouco deve aproxi- mar-se do naturalista, As ciéncias naturais forneceram a Gide numerosas comparagGes, até partes inteiras de demonstracao (em Corydon, com seus ataques aos li- vros cientificos de Maetcrlinck). E que nada melhor do que elas coloca.o problema ontolégico. Muitos grandes espititos utilizam a ciéncia para explicitar esse proble- ‘ma, primeiro a si mesmos, depois a seus leitores. A aten- sao dispensada por Valéry & epistemologia, e por Gide as ciéncias naturais, deverd dar 0 que pensar. 5, Tiad. brs, Sto Paulo, Companhia ds Letras, 4 ed, 1992, (N. de) a | dior | Lugares-comuns ~ As vezes, em Gide, encontra-se a sombra de um lugar-comum, mas vestida daquele esti- lo sempre admirével, que, talvez naquele momento, o seduziu um pouco, iludiu-o. Mas no estou certo de que cle nfo tenha desejado esse pensamento neutro, para melhor fazer brotar a graga de sua expresso, out mes- mo por humildade, mais exatamente por aquela cons- ciéncia que o faz explicar longamente (no Didrio) pro- blemas mitidos de tradugao. Com esse homem, nunca se sabe; ele se pos em estado de adiantar-se a nés na apreciagéo de suas fraquezas, de tal modo que dificil- mente lhe possam ser imputadas. Nao é seguro que ele jente, mas sem pre- no as esteja oferecendo voluntat venir, sem avisar se est4 ou nfo consciente disso. Coquetismo do uniforme — Consiste no faro de que é mais dificil brilhar quando todos disp6em de armas iguais ¢ comuns; a vitoria € assim mais valiosa. Para Gide também ha certo coquetismo do lugar-comum, do uniforme, Com a mesma idéia e as mesmas palavras de todos, ele consegue dizer alguma coisa vilida. E a regra clissica: ter coragem de dizer bem o que ¢ eviden- te, de modo que um autor clissico nunca seduz & pri- meira leitura; seduz mais por aquilo que néo disse, mas, 22 1 Choe 1 que seremos levados a descobrir naturalmente, tao bem desenhadas esto suas linhas essenciais, Mas também as linhas acessérias s4o suprimidas. E préprio da arte (ver, a propésito, certos desenhos significativos de Picasso). “Nao se escteve bem sem saltar as de arte sem escorgo.” Isso nao deixa de conter uma pri- meira obscuridade, ou uma enorme simplicidade, que leva os mediocres a dizerem que “nao entendem”, Nes- se sentido, os classicos so os grandes mestres do obs- curo, até do equivoco, ou seja, da preteriggo do supér- fluo (0 supérfluo de que € tao évido o espirito vulgar), ou, se preferirem, da sombra propicia as meditacbes € as descobertas individuais. Obrigar a pensar sozinho, eis uma definicgo possivel da culcura cléssica; a partir daf ela jé nao € monopélio de um século, mas de todos, 0s espiritos retos, quer se chamem Racine, Stendhal, Baudelaire ou Gide. EXISTENCES revive wimesal da Asoiago “Les Eadie a sanazorvon’. Cee nivenitaire de Gaede Sain Hired Tevet), nt 27, ull de 1942, Reedgio parcel no Magazine Liaeste, ni? 97, feria de 1975.

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