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RAL Cadernos Antropologia Imagem rama de P6s-Graduagio Construcdo e Analise de Imagens Cadernos de Antropologia e Imagem 3 Construgio © Andlise de Imagens Cadernos de Antropotogia e Imagem & uma publicacdo organtzada pelo Nice de Arirapalegia Imogen (NAD, da Oficina de Ens ¢Pemszo on Conciae Serie de Deportamento de Gincias Social Instat de Filosofia e Ciencias Pumonas da Universidade do Estado do Rio de Tansiro - BERD. Sua proposta da de atualiaor as “siseusssee em tormo do uso de imagem nae Giavcias Saciate expeciatmenta'na tobi ‘da Antropotopia, senda wm Deiculo para a publicagdo tanto de iteratara f8. Considerads deen quanto de Sontribuigoes cansonporinece Cadernos de Antropolognetmagen [Nici de Antrepolegs«Lmagem ‘Oficina de Cendae Soca EN) ‘Rua io Francisco Xaver, 524-Bloco Asal 9001, 20550013 Rlode Janeiro RJ Tel Fax (021)587-7590 Fotografia de Capa: Lorna Marshal. Acervo Documentary Educational Resouress - DERI USA Reprogugées fotogrificas: Barbara Copaue Tradugdo do francés: Renato Aguiar ‘Tradugio do inglés: Ricardo Quintana Colaboraram: Bruno Henning, Gleiee Mattos, Monica Siqueira Publicasdo semestral Solictase permutal Exchange desired Edditores Claris Ehlers Peiseto Parrivie Aosteostér Gomissde Edttoriat Clarice Ehlers Poisose Ciedia Resende Luts Rodolfo Vitheno Marcie Percira Leite Lyriam Sepalocde dos Santor Petctia Birman Patricia Monte Mor Rocane Manhées Prado Valter Singer Consetho Editorial Ana Marie Gelone (Univursidede Federal Ge Rio de Tanciro), Bela Reldman. Bianco (Universidade Euaduel de Gampines), Cornélie Ectere Wniversidede Federal do Rio Grande do Sui), “Dovid MacDougal! (Pidddoork Productions, Aurordiia), Dominigue Galois (Oniversidade de $a0 Paulo), Evinabert Weatherford (National Museum of the American Tadian, BUA) -Eneone Somain (Universidade Extodiual de Compine:), Fase Ginsburg Glew York Universiy, EA), Maree Henri Plaule (NRSIE col des Howtes Ender en Sciences Sociales, Frangaye Miriam Moreira Loite (Universidade de ‘So Paulo), Peter Loizos (London School of Beanomics and Political ‘Sciences, Inglaterra), Regina Cilia R Wovses (Universidade Fediral do Rio de Janeiro). Siloia Cainby Novoct (Universidaae de Sto Peule), ‘stoke Da Rix (Cineeste) Sylvain Marerce (Onicersiré Paris VIIT-Pravga) CCatalogagio na Fonte UERY/SISBUSERPROT 6122. Caemos de anuopologh ¢ inagen/Unvenace do Eaado do fo de Janie, Nideo de Angopelega ¢ imagem — N1— (1995) — — Ro de Janet: UER, NA, 1996 — v= Copubicuds com Programs de PéeGraduasio em Clncis Soci ds UER) Semel 15st O14 9556 1 Antropologi - Pevédicos | Univeidade do Essado do Rio de Jenero Misco de Anuopologa © imagem 11 Univesidade do Esado do Rio de Jancto. Programs de Poe ‘Gaduaeio em Ciencias Soci cov 57205) Colaboraram neste ntimero Colette Piault - anwopéloga-cineasta, professora da Universidade de Nanterre-Paris X, onde coordena um curso de antropologia visual. Suas pesquisas nesse campo estto voltadas para © estudo da sociedade rural sega, jf tendo publicado livros ¢ artigos ¢ realizado uma série de seis filmes sobre vida cotidiana. E presidente da Associacao Francesa de Antro- pologia Visual Fliane de Latour - anuopéloge-cineasta, professora de antropologia visual na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales ¢ pesquisadora do CNRS, no Cente d'Etudes Afticaines. Realizou varios filmes sobre as soci- edades africanas € francesa que foram premiados nos festivais de filmes documentitio e etnografico europeus Fernando Birri - cineasta, fundador da Escola de Cinema de Santa Fé, Universidade Nacional de Literal, Argentina £ um dos pioneizos do novo cinema latino-americano Antes de se instalar em Roma, em 1964, Biri trabalhou no Brasil com Thomas Farkas e também em Cuba, México ¢ Venezuela Gilberto Cardoso Alves Velho - antropslogo, professor titular do Pro- grama de Pos-graduacdo em Antropologia Social, Museu Nacional, Univer- sidade Federal do Rio de Janeiro Ex-Presidente da ABA ¢ ex-Presidente da ANPOCS, desenvolve pesquisas sobre a antropologia das sociedades com- plexas. Seu titimo livro publicado foi "Projeto e Metamorfose: antropologia das sociedades complexas" John Collier Jr. - antropélogo, professor de antropologia e educagio na San Francisco State University e de fotografia no San Francisco Art Institute E autor do dlissico Visual Anthropology e formou muitos fotégrafos a ser- vico da antropologia, Foi membro da Farm Security Administration Photographic Unit e realizou pesquisas fotogrificas no Peru, na Nova Es- cécia entre outios paises Marcia Percira Leite - socidloga, professora do Instituto de Filosofia Cigncias Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi coor- denadora da Oficina de Ensino e Pesquisa em Ciéncias Socials, no perfodo 1994-96. Publicou varios artigos sobre cidadania, justica e direitos, interes- sando-se pelo uso da imagem em pesquisas sobre esses temas. ld Michéle Ficloux ¢ Jacques Lombard - antrop6logos-cineastas ¢ pes- quisadores do Centre d'Etudes Afticaines/EHESS ¢ da ORSTOM, respectiva- mente. Michéle Fieloux tem desenvolvido pesquisas sobre a sociedade afti- cana lobi, no Burkina Faso enquanto Jacques Lombard ditige seu interesse antropolégico para 2 cultura das povos de Madagascar Monique Haicault-Bouchard - antropSloga-cineastz, professora da Universidade de Toulouse Il e pesquisadora do CNRS, no Laboratério de Economia e Sociologia do Trabalho, em Aix-en-Provance. Membro da As- sociacao Francesa de Antropologia Visual, publicou varios artigos sobre 0 uso do audiovisual em sociologia Patricia Birman - antropdloga, coordenadora da Pés-Graduaglo em Gieneias Sociais, do Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas da Universi- dade do Estado do Rio de Janeiro. Publicou varios artigos sobre religioes afro-brasileira e, recentemente, 0 livio "Fazendo Estilo, Criando Género’ Patrick Deshayes - antropélogo-cineasta, pesquisador do CNRS, no Institut de Recherche de Sociologie Contemporaine e membro do Grupo de Pesquisas sobre Einologia Amerindia. Um de seus tiltimos filmes focaliza uma comunidade do Santo Daime, no Acre Peter Ian Crawford - antropdlogo, professor de antropologia visual na Universidade de Manchester e consultor do Thisd World Infomation. Tem diversos artigos publicados sobre antropologia visual e mais recentemente publicou, junto com David Turton, 0 livia Film as ethnography (Manchester University Press, 1992). Peter Loizos - antropélogo, professor da London Schoo! of Economics and Political Sciences (LSE). Realizou varios filmes etnograficos participou de uma série de documentirios para a televisio inglesa ¢ americana. Entre outros ttulos, publicou recentemente Innovation in etbnograpbic film Regina Célia Reyes Novaes - antopéloga, professora do Instituto de Filosofia e Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FCS/ UFR). Suas pesquisas se localizam na intersecao entre religido, politica conflitos sociais e tem colaborado na edicao de videos sobre estas mesmas questées. Atualmente coorcena o comité editorial da revista Religido e So- Giedade editada pelo Instituto de Estudos da Religiio (ISER) em colaboracéo com © Centro de Eswidos da Religiio (CER/USP) Rosane Manhies Prado - antcopsloga, professors do Instituto de Filo- sofia e Ciéncias Humanas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Desenvolve pesquisas nas areas de industria cultural, género e meio-ambi- fente, em relagao 2s quais tem publicado diversos artigos Maria Rosilene Alvim - antropéloga, professora do Instituto de Filoso: fia ¢ Ciencias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/ UFR)). Pesquisa sobre familia, infancia ¢ juventude nos temas trabalho ¢ violencia. £ coordenadora do Nicleo de Estudo e Pesquisa sobre a Infancia ¢ Juventude (NEPD) Silvio Da-Rin ~ cineasta-documentatista, realizou entre outros filmes Fénix e Igreja da Libertacdo ¢ participou de inimeras producdes. Foi pre- sidente da Associacao Brasileira de Documentaristas (ABD) e é mestre pela Escola de Comunicacio da UFR] Sylvia Caiuby Novaes - antropélogs, professora da Universidade de Sio Paulo (USP). Realizou pesquisas sobre 03 Bororo de Mato Grosso durante mais de vinte anos, tendo publicado varios livros Fundou o Cento de Trabalho Indigenista, do qual € presidente. A partir de 1990 interessou-se pela antropologia visual, fazendo pés dovtorado na Inglaterra ¢ realizou dois videos sobre o Paquistio. Coordena anvalmente 0 Laboratério de Imagem € Som em Antropologia da USP. Sénia Duarte Travassos - antropdloga, professora da Faculdade de Sociologia e Ciéncia Politica da Pontificia Universidade Catdlica do Rio de Janeiro. Doutoranda no PPGAS/Museu Nacional, trabalha como pesquisado- ra visitante no Programa Raga e Etnicidade do Niicleo da Cor/IFCS/UFR) ‘Terence Tamer - antropdlogo, professor do Departamento de Antropo- logia da Universidade de Chicago, e do Latin American Studies Center, na Universidade de Comell, responsivel por pesquisas pioneiras de introdugao do video junto aos indios Kayapé, no Brasil Timothy Asch - antopdlogo-cineasta. Sua producio filmica é vasta € rica tendo realizado mais de 70 filmes etnograficos, muitos deles em cola- boracio com outros antropélogos Criou © Documentary Educational Resources (DER), em Massachussets, ¢ © curso de antropologie visval na Universidade do Sul da California (USC), cuja producio esta voltada para a criag2o de um instrumental voltado para o ensino e a pesquisa em antro- pologia visual. Sumario Apresentacéo - Clarice Peixoto © Patricia Monte-Mér 9 A fabricagéo de imagens: experitncias 13 Ao imagindrio, um lugar de destaque 15 ~ Michdle Fidlowe © Jacques Lombard Uma tentativa de representar 0 tempo no espaco doméstico2 1 - Monique Haicault-Bouchard Os tempos do poder 35 - Eliane de Latour Uma experiencia de feed-back 53 - Patrick Deshayes Projeto cinematografico ¢ método lingittstico em antropologia social 57 ~ Colette Piawle Documentdrio fotogrifico: fotografias como dado primdrio na pesquisa antropolégica 69 - Joanna Scherer Porque e como os filmes sdo feitos 85 = Timothy Asch Fotografia ¢ construgdo etnografica 99 - Sonia Duarte Travassos Um casamento no Paquistdo: na captura de imagens 107 + Sylvia Caiuby Novaes Uin povo entre dois mundos: 0 passado dos nativos americanos e a assimilagéo urbana 117 + John Collier Ir Andlises de filmes 123 Africa no plural: identidades e territérios 125 + Patricia Birman Grenga, transe e possesso: a propésito de quatro documentérios 133 ~ Gilberto Velho ; Grass: a narrativa visual do nomadismo pastoral 139 = Peter Tan Crawford Construgses de vida real: biografias e retratos 153 = Peter Loizos Midia visual, politica cultural e prética antropolégica 173 = Terence Turner Violéncia imaginada: Joao Pedro Teixeira, 0 camponés, no filme de Eduardo Coutinho 187 : ~ Regina Novaes Trajetéria 209 As ratzes do realismo no documentdrio 211 ~ Fernando Birri Resenhas de filmes e videos 221 ' Giranda, cirandinha 223 . por Maria Rosilene Alvim Em busca do pequeno paraiso 226 por Marcia Pereira Leite Franz Boas: The shackles of tradition 228 = por Rosane Manhaes Prado Grass 231 4 = por Silvio Da-Rin First days in the life of a New Guinea Baby 233 por Valter Sinder : O espirito da TV 235 por Sheila Maria Guimaraes de Sd BRAAISIEYAYSEEI A presenta ¢gé&éo ‘A consiuczo de uma etnogmafia, como resukado da “obseragio partcipante” © das diversas estratégias € técnicas de pesquisa, tem sido um distintivo importante da antropologia frente As demas citncias sociais Nao é 2 toa que, nas reflexdes contemporineas que redefinem 1 pesquisa de campo, especialmente no que diz respeito & relagio pesquisador/pesquisado, as questbes relativas 8 subjetividade e objetividade na andlise, a emografia esteja no foco das ateugdes, No ceme destas discussdes esti a afirmagio de que o pesquisador que escreve suas anotagdes em um diirio de campo faz 0 seu relato, a sus observagio autoral. Ele € parte consttutiva da pesquisa e fica evidente a natureza construida das descrcoes culturais Podemos dizer o mesmo dos filmes? S20 0s documentitios registros privilegiados da “realidade” capturados pelo cineasia ou histrias consiuidas a partir de uma abordagem escolhida, ¢ Finalmente montada? Muitos filmes realizados por documentaristas t2m sido objeto de interesse da antropologia, especialmente no que diz respeto aos temas focalizados. Por outro lado, a produglo da imagem audiovisual, seja ela a fotografia, o video ou o cinema, jé se incorpora 20 universo di produgio académica, especialmente no campo da antropologia, tanto como metodologia importante da pesquisa quanto como resultado das observagées “Nem o texto escrito nem os filmes, mesmo em se tratando de biografas, fornecem acesso diteto & realidade humana... ndo existem ‘pedagos de vide’, mas histérias de vida, aarrativas autorais sobre vidas reais" refere-se Peter Loizos & Pascal (1960), em artigo que publicamos neste nimero. Comparando as monografias aos filmes, Loizos diz que estes normalmente criam 4 ilusio de ‘acesso direto” por parte do observador, até que seja teinado 2 perceber as imagens como “registros do real’. Queremos pois saber como foram as monografias constut das, mas também os filmes! Como se constroem filmes, videos, fiografas, enquanto etnografias? Podemos tomar estes prodatos audiovisuais como dados de pesquisi? Quais séo os limites? Como fazer uma leitura das imagens para buscar informagdes que nio estio explicitas? De que maneira os filmes, por ‘exemplo, produzidos longe dag discussbes académicas vém enriquecer 0 debate antropolégico? Neste terceiro niimero de Cademnes de Antropologia e Imagem procuramos selecionar artigos que tratem dos inimeros tipos de uilzagio de imagens nas pesquisas socais sobre a fabricagdo de imagens e a andiise de imagens produzidas por cineastas e/ou antropéloges. S30 trabalhos que discutem esses “novos” insrumentos de expressio ¢ comunicacao de que langam tio alguns pesquisadores na tentatia de desvendar os fendmenos Socais; sto olhares que se cruzam, se interogam € experiéncias que s€ confrontam Muito jf foi dto sobre o uso de imagens e sons como insrumento de pesquisa de campo ‘ou'sobre a utiizaco de imagens jé produzidas como conteido significatvo 20 desenvolvimen- to de métodos de andlise antropoldgica Filmes, videos ¢ fotografis como produto de inves- tgaglo arropogjca jf fazem pate do rol das "novidades" académicas, A especicidade tdsces textos € que eles nos mostam 0 “caminho das pedrs’ Auavés da realizaclo dos tiversos trabalhos temos 2 oportunidade de conhecer, mais detahadamente, como, para cada ‘uso da imagemsom, hé um modo diferente de inuroduzir e de tatar essa documentacio, apresentando os “objtivos’ ¢ as “fungdes” desempentadss por ese instrumental na anise nteopol6gica Na verdade, podemos interrogar qualquer documento visual produzido ou iio pelo pes- uisador e realizar um trabalho de desconstrugto, em uma tentatva de descobrir a miseet Scone da cimera no momento do registro das imagens. A imagem é, pois, um objeto simbélico, tum elemento da fabricagio de sentido. Os artigos aqui apresentados nos orientam na leitura ddessas imagens, procurando desvendar 2 grammética da linguagem ¢ servindo de guia privle- giado 20 nosso olhar. © que se percebe é que as diferentes abordagens aqui focalizadas tratam menos dos objets do que a forma como foram constridos, menos sobre os métodos do que sobre os modos de utlizagio, menos sobre a5 ténieas de tratamento do que as categorizagGes ¢ 08 sistemas de inerpreagio. Elas apontam, assim para 0 fato de que o audiovisual pode favorecer per peaivas, confiontos ¢ wocas de evident eficcia:simulanetdade das leiturase flexiblidade das trocas, rida comunicagdo e retomo creo da pesquisa e de sua pertinéncia, ete. Como diz Jean Rove, ‘no cinema de documento, 0 isco € permanente Durante muito tempo, 0s pesquisedores das ciéncias humanas afimavam que a camera seria um obsticulo 3 observagao entfca Eles ainda nfo sabiam que a camera € 0 passapomte mais eficaz para descobrir a realidade ou penetrar no imagindtio’ (in *Le vrai et le faux", Traverses, 47-1969) sta & uma descobert jf experimentads por alguns pesquisadores, cuja veiculagio € 0 principal objetivo dos Cadernos Apresentamos aqui, artigos de época que marcaram esse dscuss2o mas que, n0 Bras, tiveram povce repercussto, como o debate introduzido por Collier Jr. sobre 2 utlizagao da fotografia como método de pesquisa ¢ as reflexdes de Terence Tumer sobre o uso da miia pelos hayapé Outros arigos esto mais vokados para as quesbes metodol6picas suscadas pelo uso desse insrumental na pesquisa, como 0s textos de Colene Pill, Monique Haicault, Joanna Scherer, Syvia Cauby Novaes e Sonia Travassos. Confrontamos também um antropé- logo-cineasta classico — Timothy Asch — e outto mais contemporiineo — Eliane de Latour — 1a perspectva de mostrar usos diferenciados da imagem-som. Completando esse quadro sobre as diversas formas de fabricar imagens, os textos de Patrick Deshayes e Michie Figloun/ Jacques bombard Outros tabalhos como os de Gilberto Velho, Patricia Birman e Regina Novaes utilizam filmes documentiris como instrumento de teflexio sobre questbes relatives a crenga e transe, identidade e violéncia respectivamente. Peter Crawford e Peter Loizos analisam a narrativa de determinados filmes Neste niimero, incluimos, ainda, um artigo de referéncia importante do cineasta argentino Femando Birr sobre o cinema documentiio, Completando ese panorama, apresentamos resenhas de filmes ¢ videos Alguns foram realizados no contesto de uma pesquisa antropolégice, como First Days in the life of a New Guinea baby, Giranda, cirandinba, Em busca do pequeno paraiso. O antropdlogo Franz Boss é retrtado na sétie Strangers Abroad, para a televisio ingless, no programa The shackles of tradltion Enquanto Grass € considerado um clssico da filmografiaintemacional, O Espirito da TV {6 se constiui em um des cléssicos brasleios. Os trabalhos aqui reunidos nos permitem refltr sobre as miitiplas questOes suscitadas peta relacio observador/observado tendo a cimnera como pivot dessa relacdo e nos impulsionam 2 trabalhar conjuntamente sobre uma producio cientfica audiovisual e, principalmente, sobre quais a5 condigdes possiveis para o desenvolvimento de uma antropotogia do audiovisual Agradecemos intmeras contsibuigdes que viabilizaram 2 publicagto deste niimero Clarice Eblers Peixoto Patricia Monte-Mér EBLE BRAEFYYYYE EF Ao imagindrio, um lugar de destaque” Mchile Fétoux, que desenvolve pesqui- sas na regido lobi ba cerca de 15 anes, € Jacques Lombard, que confroutou sua expe- riéncia em Madagascar e Burkina Faso, fil- smaram a suspensao do luto de Binduté Da, sama figura eminente de Burkina Faso. Entre ‘05 lobis, como em muttas sociedades, pratt- ‘came funerats dupls. bem depois do enter- 10, as bezes warios anos mais tarde, de modo «@ mobilizar os recursos da familia, wma faustosa cerimnia pie termo ao tuto e con- {firma 0 morto em seu estatuto de ancestral sts segundos fuerais (bob) sto opor- tunidade de uma encenagdo ritual com t0- dos os recursos do espetaciulo, desde cantos ¢ Iouvores até mimicas, evoca-se a personal. dade do defunto Michele Fiélowe e Jacques Lombard decidiram wtilizar os recursos do cinema documentério no priprio epirito do bobur, fazendo reviver 0 grande desapareci- dd através de fotografias do dium de fan lia e de filmes de arguivo, e confiando os comentarios a um dos seus filbos O filme que realizaram ultrapassa @ descrigdo para catingir uma profundidade bisiérica e socto- igica vara entre os filmes etnogrficos 0 cinema nao fot posto agui a senvigo somente do registro de arquivo. servi sobre- tudo para abranger as miiiplas dimensdes de uma bistéria de vida, resituindo ao mes- ‘mo tempo, em sua beleza impressionante, as ceriménias que marcan o fim verdadeiro Este filme & tem pequeno milagre; todas as condigées necessérias estavam reunidas uma sociedade plenamente imbutda da sua pré- pria cultura, uma etnografia fina, baseada ‘em anos de irabalbo de campo, um cémera que conbece bem 0 seu trabalho, ¢ autores {ue ndo temem propor 1uma esctita cinema- togréfica es ménoies de Bld Da, de Mike Flos oes Lana Principio de 1988, soubemos que o segundo funeral de Binduté Da, morto em ‘outubro de 1987, acabava de ser marcado para o més de fevereiro. Sabiamos quem era Binduté Da, e supomos que 2 cerimé- nia esara 4 alura do destino tio particular apes =e ace! 13] ls. ddesse personagem, ainda mais consideran- do que 0 bobur, ou segundo funeral, cons- tiui ocasilo para ‘erigir uma estitua’, can- tar fowwores, contar a epopéia daquele que, assim, vai se tomar um ancestral Com efeto, Bindwé Da, a quem conhe- ciamos hi cerea de 15 anos, era wm homem notivel com mais de um titulo. Sobretudo, pode-se dizer que, 2 sua maneira, ele encamava, através das suas ambigildades € contradigdes, o fim de um mundo ¢ a dificil construgio de um outro, Filho de um gran- de adivinho e guerreiro famoso, que repre- sentava os velhos valores da sociedade lobi, Binduté Da foi sucessivamente soldado ar- tlheiro, recnsta na Franga de 1930 2 1933, corinhelto do diretor da escola de Gzoua, na regito lob, e depois chefe de cantio em Iridiaka, de 1944 2 1983, em uma das regi- {es mais refratéias & administragéo colonial da Aftica ocidental. Conhecido como um dos titimos grandes cagadores de elefante, depositrio de um prestigio extraordinério (que the conferia grande poder, ele escapou de inimeras escaramugas a0 longo da sua dificil carrera de chefe de cantio, € tam- bém de muitos ataques de elefanes Em 1934, a0 retomar da Franga, conhe- ceu sua primeira mulher; em seguida, casa sucessivamente com 22 outras, até 1987, constiuindo desse modo, com mais de uma centena de flhos, 2 maior famfia conhecida a sua regido. Ao momer, 19 esposas 1d estavam para prantear seu desaparecimento, sua descendéncia reunindo, entdo, cerca de 400 pessoas (ritual dos segundos funerais € organi- zado pelos anciaos, homens ¢ mulheres, que aleangaram os niveis mais elevados de inici- ago, atingindo assim a realizagao do seu ser social no mundo obi. A estrutura do. ritual obedece 2 dois principios funda mentais: — Uma representagio que permita des- ccrever @ passagem delicada, perigosa, de ‘um mundo a outro. Ao fongo do ritual, em cetapas sucessivas, 0 defunto perde 2 parce- la de vida que ainda Ihe resava depois do ‘su entero, para entio se tomar um moro ‘completo, concluso, pronto para tomar seu lugar no pais dos ancestais. No mesmo movimento, de maneira sincrGnica, as vi ‘vas passim pelas provas que marcam sua separacio definiva do defunto Libertas do Iuto, elas retomam seu lugar no mundo dos vivos. Essa consiruglo, que ativa os princl- pios de organizacio essenciais da socieds- de lobi, se esboga através de uma metéfora emprestada do processo de transformacdo do sorgo (germinagZo, moedura, fermenta- Gio da cerveja, etc) A germinagiio do sorgo conesponde & primeira sequéncia desse ritual: a5 visvas retiram certs sinais exteriores do luto (pin- ‘ura 20 caulim); 0 defunto, que depois do seu entero emava na mata, retoma 2 sua casa A fermentacdo. 08 parentes defuntes vm do pais dos mortos para buscar 0 novo ddfunto. Eles o banham na cerveja do sorgo 0 raspam com um ralador a fim de que adquira 2 cor vermelho-brasa, cor dos que esto no pais dos mortos. Esse transforma- $0 do defunto € condigdo para a fermen- ‘acto da cerveja. Em seguida, as vivas pilam nozes de karté, procedimento divinatério ‘que deve trazet a0 conhecimento de todos ‘© comportamento de cada mulher 20 longo da sua viuvez, e que precede obrigatoria- mente 2 suspensio definitiva do luo, A consumagéo: © moro panty definit- vamente para sua nova morada, Seus prin- Cipais objetos familiares (arcos, aljava,alforje) sio retirados da sua casa e disiibuidos pelas casis de alguns dos seus parentes. Consome- se ento a cerveje, e as mulheres so libera- cas de todo compromisso com 0 defunto — Uma forma de expressio, um género que, se apoianda em imagens, objetos, re- iquas e cenas mimicas das atividades do defunto especialmente escolhidas, permitird chegar & representagio definitva do Fururo ancestral © desenrolar do ritual cortesponde em grande medida & histria de vida da pessoa em honra da qual foi organizado. Essa his- téria engrandecida é também a ocastio de tuma evocagio do mundo lobi sob uma forma prodigiosa © esteeotipada, pots s6 io retidas das atividades do defunto, aque- las que comrespondem a um modelo ideal, ‘em que predominam valores como a core- ‘gem, o sentido de honra e a capacidade de enftentar @ morte como thima realizagio, a integralidade do ser No tocante a Binduté Da, sua familia tinha escolhido os temas do patriarca, do cagador valoroso e do cultivador incansé- vel Ainda que na mesma disecio do tito, cescolhemos deliberadamente “abrir” o mais possivel a histéria de Binduté Da, sem nos limitarmos aos tés temas selecionados. ‘A construgio escolhida deveria dar 20 imaginério 0 lugar de destaque, situando melhor 0 papel do bobur a partir de uma i : aan eae ex ménais de Bludué Da, de Nice Flea e aequs loniel Fsogafa de Ameld Hein 1984 pattcularidade da “tealidede": como se faz histéria, e como wansformar um fomem em herdi, em ancestraP’ Retornamos entio a Burkina Faso, para colher os testemunhos os quato filhos mais velhos de Binduté Da. AS intervengdes mals pessoais, menos estereotipadas, foram mantidas para a narra. gio do filme, que trata essencialmente da histéria vivida de Binduté Da, € no de uma andlise do ritual Assim, 0 filme se apdia em dois elemen- tos exsencias: a5 seqiéncias do ritual, que introduzem certos episédios da histéria de Binduté Ds, © a unidade narrativa estrutu- rada a partir dos relatos de vids, transmit dos por seus filos mais velhos Estes rela- tos autorizam 2 introdugao de varias se- Hoje, a cada projeclo, pergunto aos es- pectadores o que acharam da duragao, adii- tindo que eu mesma o achava demasiado longo. Estranhamente — ¢ isso demonstsa bem a diversidade e a subjetvidade das percepgies —, 05 jovens franceses, assim como 0s nérdicos, americanos, ingleses ou sgregos, no reclamam da sva duraclo. Bas, queles que percebiam essa duragao exces- iva, eu perguntava o que era longo demas, Talvez mais conscientes da linguagem cine- matogrifica, eles mio diziam a “monte- 2 6 on ng at Ioagei pe ier a ena + ipa dosing sac die a Bom ceape fons on nce paeiprioge Salmce ‘Soe ans ‘tae 3} CRhctoenes, et pe cm ee fear wo sieves sea as egageneneres leo. gem", mas, em vez disso, “a segunda festa" Todavia, a segunda fesia é tratada mais rapidamente do que 2 primeira, € mais rica visualmente, mais espetacular, mais viva, mais gil a sua montagem. Simplesmente, vinda depois da primeira festa, essa Péscoa waz uma redundiincia - Foram exatamente esse questionamento sobre a duragio excessiva do filme e 2 discordincia sobre 0 que fazer para reduzi- Jo que me sensibilzaram quanto 20 delica- do momento da concepgio do projeto Desde entio, quando vejo filmes que “nfo conseguem manter seu pique", 2 pri meira pergunta que me fago é sobre 0 projeto, sobre sua concepeio. Com efeito, é antes da filmagem que ceras escolhas po- dem e devem de fato ser feitas Filmer na indecisio € perigoso, e nto € funcio da ‘montagem consertar ou mascarar as lacunas eros da concepelo. Além do mais, essa cihima etapa dure interminavelmente nesses cas0s, 0 que no seu papel. *O roteto, tudo esté no rotciro’, dizia, parece, Jean Gabin. Porém, nés ndo tabalhamos um fil me antropolégico a partir de um roteiro sticto sensu, mas sim de um projeto. Do rigor da sua elaboracao dependem ampla- mente a qualidade e o interesse do filme realizado A partir dessa experincia, me pareceu ‘que a concepsio de um filme de antropo: Togia repousa — 20 menos — sobre ues ‘elementos essenciais. 1, Que © tema do filme tenha um sen- tido e uma certa importincia para as pesso- as filmadas com que se vai colaborar ¢ que se insia, de sigum modo, no lugar 2. Que exprima bem 0 que @ pesquisa pemmitiu colocar em evidéncia, que seu vin- culo com a pesquise seja claro e rigoroso 3. Que a estrutura e a escrtura cinema togrifice escolhidas sejam apropriadas Voltando ao meu exemplo, creio ter dado grande atengio a0 primeiro € 20 segundo aspectos. Em contrapantida — era meu quar- to filme, mas o primeiro em que eu mesma slo me encarreguei das tomadas —, prova- velmente niio me detive o bastante sobre 0 terceiro aspecto. Fiz uma opgo: tratava-se de um filme de observaglo, construido em seqincias, sem entrevistas nem comentéi- 5, em que a palavra foi deixada as pes- soa filmadas, mas ele sofreu por um lado, daquela estruture bicéfala de que falei an- teriormente e, por outro, apresentou er- 108 de sintaxe? Dogmatismo Técnico ou Pesquisa Metodoligica Como se elabora um projeto? Quais sio as questdes a serem examinadas? Talvez se ppossa concordar que somente o produto acabado, o resultedo, o filme, € imponante Tratase de fazer € de ser bem sucedido 6.2 performance conta, 0 que nos leva a rejeitar todo e qualquer dogmatismo técni- co, independentemente do resultado Todos nds conivecemos o prazer € mes- ‘mo 0 jsbilo que pode haver em descobrit 0 que nos circunda através do olho de uma clmera, 0 que Jean Rouch chama de “cine uanse” Hé quem pare por aqui mesmo € decida de uma vez por todas que todo filme aniropolégico em que o antropélogo ni foi fo cimera deve ser sejetado. Todavia, 2 dis- tinglo entre um filme rodado pelo proprio antropélogo € outro em que tenha se en- carregedo do som em vez da imagem 10 € to evidente face ao produto acabado. Hi cas0s em que possivel — infelizmente — esabelecer esta diferenga: aqueles em que a camera inexperiente do antropélogo pas- sela em sua aventura, descobre talvez, mas rem pot isso permite a0 espectador desco- brit ; © aqueles em que, sem que tenha consciéncia, apaixonado por sua relagao com a cimers, 0 antropélogo nos entrega um itinerdtio caético, pigmentado eventualmen- te de algumas imagens muito bonitas, £ verdade que entre 05 filmes que “funcio- nam’ hd alguns excelentes, entre 0s melho- res, filmados pelo proprio realizador, que aliés, muitas vezes, nfo ¢ antropélogo, Nesse caso, ele é — ou se tornou — mais cine- asiz-cameraman profissional do que antro- pélogo, 0 que quer dizer que os filmes assim realizados nem sempre sto concebi dos no quadro de uma pesquisa antropolé- gica, 20 mesmo tempo ampla e profunda* As discussdes sobre os métodos técni- cos efetivamente ofuscaram durante mui- to tempo os problemas da realizacio, da “direcao" cinematografica (para se referir a9 termo inglés), e da concepcio do pro- jeto em si Como observou com muita pertinéncia Colin Young, as discussoes sobre método, visando impor um deles € excluindo 05 outros, sfo, na verdade, discusses sobre poder (cf Bibl 7) Julgase 0 método a luz do resulado, € é face ao filme acabado que se poderd ava- liar 0 método € sua adequacio 20 projto. Um filme antropol6gico resulta de uma série de escolhas € recusas. E preciso que ele conte uma “histria’, mas no mais que cma igi om mpg ct ‘uma Por iso, acho que nossa abordagem pode se aproximar daquela dos lingistas, através da nogio de pertinéncia “Toda descricio supde uma selecio, Todo objeto, por mais simples que pareca 3 primeira vist, pode se revelar de uma complexidade inf rita. Ora, uma descrigio & necessaramente finita, 0 que quer dizer que somente certos tragos do objeto a descrever poderdo ser resgatados’ (cf. Bibl. 8). A pesquisa da pemtinéncia ndo € um dado em si, mas sim (© objeto de uma abordagem rigorosa, que pode provavelmente ser aplicada, com be- neficio, 205 ués elementos de base de um projeto cinematogrifico, Filme, pessoas filmadas ¢ abordagem do meio Pode-se fazer filmes muito interessantes e até espetaculares em um meio social dado, as 56 certos temas e o tatamento dado a cles susitao o interesse das pessoas filma- «as, Por exemplo, no povoado de Epire, onde trabalho, como em todo e qualquer povoado ‘rego, a5 eleicdes e especialmente 2s elei- ‘Ges municipais sto um periodo de intensi- dade particular. Eu poderia fazer — talver 6 faca realmente agora — um filme excelen- te sobre esse assunto, Trata-se incontestavel- mente de uma bom tema, comportando sua estrutura interna, seus momentos dramiticos sua cronologia. © filme seria talvez satis- fatério para os “atores", os espectadores potenciais, e para mim mesma Entreanto, 20 escolher centrar meu primeio filme, in- trodut6rio no povoado, sobre a desergao dos seus habitantes, me parece que escolhi um tema realmente fundamental para 0s prépri- os habitantes. 0 “her6i era 0 povoado inte- ro. Por causa disso, mev projeto foi mais bem aceito e a colaboragio mais faciitada, intenreree ieieinas Sotcout ot Tecto pe ne aig pe Eee perenne coasters eam eso lez. pois o problems abordado era de fato 0 seu problema essencial A relagio com 0 meio diz igualmente respeito & natureza da equipe de filmagem ‘Que 2 equipe deva ser reduaid, € um ponto sobre o qual todo © mundo estd de acordo Contudo, segundo os temas, os meios, sua composigio ¢ a repanigfo dos paptis p dem variar. Ter em visa 0 resultado © nto impor ou se impor principios é sem dtvida a estratégia mais equilibrada. Por exemplo, nos filmes mais intimos que fago na Grécia, minha presenga fisica, como pessoa com quem se pode bater um papo ou brincar, é fundamental. Se tivesse, escondida pela ‘mera e concentrada no trabalho de opera- lo, de ficarfazendo algumas perguntas dis traidas, ninguém me levaria 2 sério Meus ineriocutores na Grécia tém necessidade de uma verdadeira situagio de conversagio amigivel, € nao daquela sempre um pouco anificial de uma entrevista. [sso se liga & cultura grega, que di muita imponincia & palavra, em que, por exemplo, nio se pode absolutamente, como & possivel fazer na Arica, conversar através de um inérprete: ‘ou 2 gente fala grego, mesmo que imperfe- tamente, € entZo exis, ou endo no pode- mos falar a lingua, e 56 0 inérprete existe Em contraparida, € perfeitamente compreen- dido e aceto que 0 manuseio de um insiu- mento sofisicado como a cdmere suponha um especalsta, e sua presenga, acresceniada 2 su competéncia, empresa uma cera ser- dade & filmagem, sevedide esa que, longe de prejudicar, representa um tunfo Do lado oposto, David MacDougall conta que quando flmou entze os turkana, na Afica oriental, eles estavam tbo habituados a vé-lo com sua clmera no ombro, dia apds dia a0 Jongo de meses, que se surpreendiam quan- do o viam sem ela. Esses exemplos servem para ilusuar 0 que foi dito acima sobre © imperialismo metodoldgico ¢ técnico, bem como para insist sobre a necesséria ade- quagio do método a0 meio ¢ ao tenia, Seria, ingénwo imaginar que se possa flmar nas mesmas condigées nas montanhas européi- as, sob chuva, no interior de pequenos quar tos sombrios ou ao ar livre na Aftica ena Oceania, ou ainda que se possa adotar a mesma esttéga de filmagem quando se trata de um ritual tibetano complexo, que implica na presenca de um grande nfimero de pes- soas em lugares diferentes simultaneamente, cou quando o que se quer é filmar urna Gnica pessoa em vista de um filme-portrait Outro elemento importante é a relagio cas pessoas filmadas com $ imagens em ‘geral: conheceram a televisto ou seré que s6 viram 2 propria imagem no reflexo na Agua cde um charco? Assim, 2 peminéncia do tema do filme para 2s pessoas filmadas se acres- cents aquela da técnica adotada em relagio 20 meio social ¢ cultural Filme e Pesquisa Tentando estabelecer 2 tipologia dos fil ‘mes antropolégicos, hi quem distinga alguns tipos: filmes intrumentos de pesquise ou de exploragio, documentos brute, filmes de expleagio ou de lustragto, destinados a um publico mais ampio etc © que me interessa aqui € o filme cxjo piojeto se concebe em ligacio estreita com ‘uma pesquisa aprofundada e cuja concepeio seja em si uma pesquisa. Durante muito te po os temas dos filmes de antropologi ‘chamados de “etnogréficos”, se limitavam 20 registro de dados. Nos anos setenta, surgi ram igualmente os filmes sintétcos, corres- pondendo pelo menos em parce & grade das ‘monografas escrtas —- em particular anglo- sexdnicas — € tatando de um grupo social fe do seu meio” Nio parecia entio es- sencial estenderse sobre a concepeao a colocagdo em imagem do tema, pois ‘ou bem o filme se limitava a um registro de dados, ou entio ele estava aparente- mente pré-estruturado, quando tratavam de rituais ou de atividades técnicas, [+ mitados 4 agio stricto sensu ‘Todavia, todos os aspectos da vida de uma sociedade — notadamente sua expe- riéncia vivida — podem ser objeto de um filme, Fazer um filme no pode se limitar a acompanhar uma investigagio com uma cimera, 2 fazer o registro audiovisual do que {oi observado a partir de um outro porto de vista, A elaboraglo de imagem e som supde um momento de rupture € de reconstruglo ‘numa linguagem diferente, a qual faz apelo 4 novas competéncias, 2 outros concetos. E ‘© momento da ctiagao AA relagio do filme com a pesquisa s6 pode, por isso, ser uma relacio complexa, Se observacio, informagao, comunicagio direta ou inditeta da percepeio sensivel e do vivido! sto de fato os vetores privilegiados do filme antropolégico, a quantidade ¢ 2 ratureza dos dados que ele pode comporar mo podem pretender exaurir o tema Ele pode transmitir uma cert informagao verbal por meio de diferentes dispositivos técnicos, escolhidos em fungdo do préprio projetc didlogos internos a aco, entrevistas mais ou renes provocadas com o antropélogo, voz em off dos protagonistas, comentirio ete. (c£Bibl 7) Além disso, 0 espectador deve compre ender 0 que vé e, assim como as legendas permitem uma tradugio lingistica, 0 cineas- ta, pelos meios técnicos que the paresam ‘mais adaptados, deve propor com relativa freqiéncia uma tradugio cultural dos fatos socials, Por outto lado, se a escolha (ou rejeigdo) de certas imagens pode induzir 0 especta- dor, 0 comentirio ou certs dilogos inter ‘nos podem relatvizé-la, provocando véties iregGes intepretaivas. © filme pode, igual- mente, ter hipcteses como base, ese ele no 0 melhor supore para desenvolver andl ses de dados © abstragdes, pode todavia ‘mostrar fatos qualifcados como didaticos € amplamente empregados para 0 ensino da anitopologia em muitos paises. Resta 0 pro blema da demonstragio: pode um filme ser ‘um instrumento de demonstrac2o? Em pri- ‘meio impulso, seriamos tentados a respon- der pela negatva, pois as escolhas indispen- svels & realizagio, bem como 2 natureza ‘mulvoca das imagens, parecem se const tuir em obstéculos para 2 demonstragio. Mas ppor quais caminhos 2 antropologia “cléssica” (esctta) chega & demonstagio? Ela retine

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