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A JUREMA DAS RAMAS ATE O TRONCO ENSAIO SOBRE ALGUMAS CATEGORIAS DE CLASSIFICAGAO RELIGIOSA Marco Tromboni “Jurema” é um signo linguistico polissémico presente em uma variedade de cultos religiosos disseminados por todo © Nordeste brasileiro — indo além deste, de fato, cembora seguramente ali encontremos seu lugar de origem e difusio. Sua disseminacZo deriva de que designa um importante simbolo religioso, sendo sua polissemia uma qualidade que, a0 contrario de por em diivida o cardter religioso de seus contextos de ‘uso, antes destaca a condigao de seu referente como sendo sempre a de um objeto de culto. No entanto, talvez por seu carster polifacetado mesmo — ora um arbusto, ora uma bebida, ora uma entidade espiritual, ou ainda uma “regio” espiritual -, quando se €intimado a justificar sua recorréncia em contextos diversos, ao mesmo tempo em que se percebe uma certa familiaridade entre suas muitas manifestacdes, também se tema sensagio de que estas dizem respeito a fendmenos inconciliavelmente distintos. Isto 6, fica a impressio de que “jurema” seria um signo, mais que polissémico, frant- camente equivoco, Seu caso nos interessa porque mostra de modo particularmente claro a arbitrariedade inconfessa nao apenas das clasificagdes nativas, mas especial- ‘mente de muitas de nossas clssificagdes antropol6gica, as quai, no afl de seguir de pperto as categorias nativas, nem sempre delas mantém uma distincia suficiente e, ‘entre outros problemas, frequentemente tomam o étnico pelo religioso, ou este por ‘aqicle, ¢ nesta confusio de tipos e niveis légicos distintos perdem de vista que o que ‘importa mesmo sio suas relagBes. “Tomemos em exame uma de suas manifestagoes, justamente aquela onde “jurema” ce ter © papel menos proeminente, mas que, no entanto, leva diretamente 20 95 problema da constituicéo conceitual de nossos objetos de pesquisa. “Jurema” € uma palavra frequentemente usada pelo povo de santo de Salvador, onde designa uma bebi- da feita da infusio em cachaca das folhas da planta de mesmo nome, a qual é ofertada 20 “caboclo” em suas festas. Embora esteja sempre associada a est, tal bebida nao parece despertar maior interesse, muito menos se pode dizer que ela € percebida como © simbolo central de todo 0 culto religioso, como ocorre em outras manifestacbes. Esti firmemente associada, assim, ao que ¢ largamente conhecido na cidade como ‘candomblé de caboclo.' Essa variedade ou, para alguns, nacio do candomblé, possui ‘um estatuto confuso no quadro mais amplo do candomblé soteropolitano, ¢ ¢ isso mesmo que a torna “boa pata pensar”. Ao tentar deslindar a confusio, devemos per= _guntar o que entender pelo termo nagdo nesse contexto de uso que vem a ser 0 can- domblé, e ainda em que medida essa lima designacio mais inclusiva, ela propria, jé ni reduz.a algum suposto denominador comum uma diversidade de manifestacées religiosas. Para tanto, isto &, para tomar o termo candomblé como meramente um chssificador genérico para um grupo de cultos diversificados, € necessério por em suspenso todo um longo trabalho de reificacio de categorias, obra de um campo de disputas simbélicas secular que inclui,além dos nativos, também os intelectuais que os cestudaram, ¢ do qual somos todos herdeiros, Tudo isto, sem dkivida, é assunto bastante para uma grande discussio que no caberia aqui sendo provocar, © que fazemos, & _guisa de ensaio, projetando numa escala maior as contradigoes ¢ problemas légicos sugeridos pela expressio candomblé de caboclo,& qual chegamos, frisemos, a0 seguir a trilha de um de seus elementos simbdticos periféricos, a “jurema”. sentido de nacio, pois, dificilmente poderia ter permanecido inalterado, sem transformagdes substanciais, desde quando teria sido usado cologuialmente para se referira efetivos vinculos étnicos mantidos pela populagio negra de Salvador com esta ‘ou aquela regiio ou cidade-estado africana. (LIMA, 1977) Os conceitos de “grupo: énico” e “etnicidade” nio sio comumente acionados na caracterizacio sociolégics das chamadas “nacies” do candomblé, ao menos em sua formulagio contempor isto é, politico-organizacional (BARTH, 1969; COHEN, 1969), empregada com s ‘cesso em outros contextos.? Talvez porque hoje as nagées designem diferencas com preendidas em um plano estritamente religioso, nao se leva em conta que nem. # Santos (1995) € aqui nose fonte hiica relativa aos cultosdedicados aos caboclos nos candom Sahador 2 Entretanto, forgo rconliocer qu asdificuldades para identifiacio de fontes documenta, até 0 séulo XIX, 20 mesino tempo segurase suficientes para retratar as formas eo grav de ats politicos organizaciona kangado por tis segmentos Etnicossuborinados, de tradigio fundamen ‘oral assim como sistematicamente ocupados em ocutar-se do regime esravagista, so enormes. 96 foi assim, e que nog cm relagio a este p compreensio da for taria equivocos tipi fora, o significado e povo de santo de Sal cada ver mais impors ble. Este, de conotag dliferencas entre pri de um ponto de vis serreiros—asunidade que ambos se tornae que nacio é um tam de sous significados s inclusdo em um gs que queremos bordinagio do term pprecisamente o ref es entre segmien talvez possamos de dinados, cujos vine ritual de um camp ‘ocontexto da escra magem, mais clarame ms é claro que, me ma autonomia cads te religioso (lingua rrastro de taisy tituicao de um sido lancados 20 mtemporineas na} is, passa pel se suas vias “ns m campo religios stcas sincrénica foi assim, e que no passado taisrétulos poderiam ter mantido uma grande autonomia em relacio a este plano. Parece-nos que, sobretudo numa perspectiva hist6rica de compreensio da formagio dessas frégeis unidades sécio-religiosas, tal abordagem evi- taria equivacos tipicos e ainda nfo inteiramente dissipados do culturalismo. Vindo de fora, o significado e o emprego da palavra portuguesa nagio passa a circular entre o ovo de santo de Salvador por sua conotacio étnica e, partindo daf é que se tornow ‘ada ver maisimportante para a propria construcio do significado do termo candom- Dlé. Este, de conotacio jéreligiosa, parece desde sempre ter se destinado a sumarizar diferencas entre priticas religiosas nfo obstante semelhantes quando cotejadasa partir de um ponto de vista mais distanciado, exterior ao de cada terreiro ou grupo de ‘terreiros—as unidades deste sistema terminolégico de classificacio. O fato linguistico que ambos se tornaram classficadores numa mesma esfera de fendmenos religiosos € que nagio é um raion subordinado a candomblé. Assim, qual o sentido sociolégico de seus sigificados se construfrem conjuntamente, contrastando nacdes a partir de sua incluso em um género comum, o candomblé? (© que queremos sugerir aqui € que a dinamica de ambos, isto é, 0 processo de subordinagio do termo nagio como taxon inchuido no classificador maior candomblé, € precisamente o reflexo, no Iéxico, de processos hist6ricos de transformagio nas relagies entre segmentos discretos da populagio afro-descendente. Processos esses {que talvez possamos descrever melhor como processos de hegemonia étnica entre su= bordinados, cujos vinculos passam a ser, contudo, expressos cada vez mais na lingua- gem ritual de um campo religioso (BOURDIEU, 1987) formado em comum — visto que contexto da escravidio nao fivorecia fio facilmente sua expressio em uma outra Jinguagem, mais claramente politica. 6 uma antropologia histérica poderia demonstré- Jo, mas é claro que, ’ medida mesmo de sua estruturagio, esse campo religioso ganha- ria uma autonomia cada vez maior em relagio ao campo das relacdes interétnicas em geral sobre o qual se construiu, ao mesmo passo em que se dilufam no tempo outras expressdes desses mesmos lagos étnicos porventura subsistentes fora do dominio estri- tameinte religioso (linguas/dialetos, roupas, comidas, costumes etc). De fato, hoje nio hh sequer rastro de tai vinculagdes étnicas fora do proprio campo religioso. A constituigio de um campo religioso “negro” em Salvador, cujos fundamentos teriam sido lancados 20 longo do século XIX, e se cristalizaram nas nossas representa- ‘Bes contemporiineas na primeira metade do século XX quando de seu encontro com os intelectuais, passa pela tipificaclo e classficagio de seus elementos componentes, eentenda-se suas virias “nagdes”,cujas semelhancase diferencas, se entendidos mesmo ‘como um campo religioso, se constituiram ¢ organizaram muito mais em fungio das ccaracteristicas sincrdnicas do campo como um todo do que em funcio da fidelidade maior ou menor a esta ou aquela tradigio cultural trazida desta ou daquela Africa. Nao que tais tradigdes nfo tenham nenhuma importincia ou eficécia social prépria, mas que seu acionamento, ¢ portanto sua relevancia, ¢ subordinado & ldgica do campo. A ‘categoria nativa “candomblé”, cujo sentido e emprego atual nao parece terse firmado senio ao final do século XIX —_um termo, aliés, aparentemente de origem banto, e, como tal, curiosamente exterior ao suposto niicleo original “jeje-nag6” daquele —, teria sido, assim, uma categoria classificatéria nova construfda para discernir 0 uni- verso de significagdes em que adquirem sentido tais contradistingées, assim como para adscrever 0 campo como um todo perante as religides de origem européia, De fato, candomblé deve ser tido menos como 0 nome de uma religiio, como se quer hoje, e mais como a designagio intuitiva de todo um campo religioso popular muito particular a cidade de Salvador. Pelo menos no plano da reflexio antropolégica. Seja como for, voltando & nossa trilha, hé entre os adeptos do candomblé grande discordncia quanto 3 existéncia de uma nacio cabocla, isto é, quanto a seo estatuto de nagio aplica-se ao caso. (SANTOS, 1995) Pois, embora a categoria candomblé de cabocl sea largamente conhecida pelo povo de santo soteropolitano, sendo assim linguisticamente operativa nos mesmos contextos em que aparece nacio, a rigor no se tem noticia de alguma casa ou terreiro de candomblé que se conceba como sendo especificamente isto: um candomblé de caboclo. Isto & que se autorreconheca expli- citamente como sendo de tal nagio de modo exclusiva, como acontece a outros terrei- ros que se autoidentificam como exclusivamente ker, ou jeje, ou angola. A expressio tem, portanto, um estatuto ambfguo, O mais comum, hoje, € que essa classificagio, “de caboclo”,seja expressa em combinagio com outras naquelas situagées em que os adeptos de um determinado terreiro sdo instados a se autorreferenciarem uns em relagio aos outros, a exemplo de quando dizem que seu terreiro € angola /caboclo ou. kets /caboclo [sic] etc., demarcando suas contradistingBes face aos outros terreiros que compéem o mesmo campo religioso. Contudo, se uma “nagio cabocla” qualquer 6, como tal, uma unidade de andlise de improvivel identificagio empirica, mas que subsiste, nao obstante, comio uma categoria linguistica operativa nesse campo religio= 80, 0 mesmo nao se pode dizer do préprio caboclo, isto é, das muitas entidades espi- rituais assim denominadas, ede seu culto.’situacio afse inverte, pois praticamente iio ha terreiros ditos “de candomblé” em Salvador que nio reservem determinados ritos ao culto dessas entidades, por menos piiblicos que sejam em certos casos, ¢ por mais que alguns destes terreiros, havidos muitas vezes como os mais tradicionais, * As ais eas formar dea operatiidadeaparecem formuladas em algumasinterpretagbese depo _mentos dle adepts citados por Santos (1995, p. 15-6, 78-81) que aqui seguimos, embora cl no fag so do conceito de campo religoso, procurem negar reneguem a exis pre ocorra. Sendo assim, « 10 campo religios sivo dos caboclos, fuasio de filhos efi denominagées. Se operativa enquan entiioa que ela de bes logicas ela ts candomblé do “ou nuance pejorativa,¢ dadleiros” preceits sia de acusacio, se estranheza se pensa ‘modo de um merc 1 prestigio e adeps spoem torno de a, pretende em Entretanto, mes de “caboclos” ‘auidar das obrig © “caboclo” pa im, a que atribuirs A existéncia da ca imo, no se dena ), mormente qua intelectuais. Na iste enquanto um para, de moda Joou terreiros qualquer mas que Procurem negar qualquer identificacao explicita com uma “nagao cabocla”,e mesmo reneguet a existéncia de culto §entidade em suas dependéncias, embora quase sem- pre ocorra, Sendo assim, estabelece-se uma curiosa assimetria de um lado, a virtual inexisténcia ‘no campo religioso soteropolitano de uma modalidade religiosa dedicada ao culto exchi- sivo dos caboclos através de uma rtualistica que Ihe fosse peculiar; de outro, uma pro Fusio de filhos efilhas de santo a receberem seus caboclos em terreiros das mais diversas que pudesse ser ent mento de seus dircitns Jemsicidade indigena lax ia do Estado, lo discurso étnico de parentesco, assim Eo tradicional expre antigos aldeamentos Silo expuisos daqueles SSeencase priticas m te experiéncia mi ftnicidadc latente, de de uns estimulava’ sentido étnico ante Eencamente reprim ical, Essa circun rivado desses rituals, slugares ermos, com is espetaculare do potencial ineren mente 8 ind Boe 1940, isto é, antes da BBs ctimos, as, por i, atendendo’sg Smcsma epoca em qh sobre terreiros de ea 5 pritica do curandeitism aqui uti- que, pelo = simples econhe~ tes dois mas antes s, respec ambém, otegio ao gmentos face do — coronclismo politico e pressdes fundisrias sobre suas terras de ocupacio tradicional. Via de regra, 0 crtério de reconhecimento dessa condicio utilizado pelo érgio tutor oficial era a presenca de manifestacdes rituais indicatvas de uma cultura indigena. De fato, 0 que na época se entendia como tal na regido era, basicamente, a pritica do tor, cou algo que pucesse ser entendido ou classificado como tal. Ante a perspectiva de reco- nhecimento de seus direitos, virios desses segmentos da populagio que preservavam ‘uma etnicidade indigena atente, acossados pela pressio sobre suas terras e desejosos de tama assisténcia do Estado, foram capazes de mobilizar-se coletivamente em torno de um renovado discurso ético. Tal identidade havia teimado em reproduvir-se até ali grag 20s lagos de parentesco, assim como a um sentido de tervitorialidade sobre uma drea de ‘cupagio tradicional expresso pela meméria oral ~ frequentemente correspondente rea de antigos aldeamentos missionarios ou éreas onde foram encontrar refiigio apés terem sido expulsos daqueles. A tervtorialidade e ao parentesco, somava-se a persistén- cia de crengase priticas migico-religiosas que remontavam, profundamente afetadas, & ji distante experiéncia missionéria, praticamente encerrada um século ant Tal emicidade latente, desde entio crescentemente mobilizada, 4 medida em que o sucesso de uns estimulava o de outros, buscou reavivar tradiges rituais enfraquecidas em seu sentido étnico ante a influéncia da cultura regional nordestina, aliés,em muitos 3305 francamente reprimidas pelas autoridades ptiblicas locais, através inclusive de fora policial. Essa circunstincia os havia compelido, ao longo das décadas, a desem- penbo privado desses rituals, isto €, no interior das residéncias ou de barracdes fecha- dos e em lugares ermos, com a consequente simplificagio de alguns elementos simbé- os mais espetaculares, bem tomo uma orientagio menos politica, porque menos pablica, do potencial inerentemente organizador de coletividades que possui ada le 1940, isto € antes dainstalago da inspetoria da Servigo de Protego ao Ino (SPI) em Recife Os times, ais, por inka iolada do nto governador de Pernambuco, Carlos de Lima ica", como ainda sc saa dizer em lugar do term atual “cau, que teriam se dirigdo a0 Ri sentido de terrtoralidade €informado também pels memiéria mitica de uma série de *incidentes Beicis”, envolvendo entidades espirituais, ¢ ov, personagens histrica/mitcos, que pontilham a mesma €poca em que, nos grandes centros urbanos,usava-se da farga policial par le sobre terciras de candamblé e outros cutos affo-brasileros, sob a alegacto retériea do ica do curandeirismo echarlatanismo, da danca ritmada pelas Quando retomam a luta politica pelo reconhecimento de sua alteridade émica © de oe pelo “vinho da jurem seus direitos, se valeram do reavivamento de algumas préticas rituais, jé agora menos ostensivamente reprimidas, o que significava em geral a retomada do zor e sua rests de versos de uma tradic tuicio corajosa aos espacos pablicos. Ante a possibilidade desta ousadia vir res em efeitos politicos positives, e nfo apenas em perseguicio e discriminacio, em ¥ i musical do caboclo do s ira cabocla de expe! localidades foram realizadas “represent: ‘um termo nativo — em setem ao passado long! praca piblica, para as autoridades do érgio tutelar, o que poderia, & primeira vist se: “Eu fui no mato czade6 (carne de boi Ge “trabalho espiritual” d fra”, espécie de fest levar-nos a pensar ter sido este movimento no mais que um mero exercicio inst ‘mental de manipulacio simbdlica. Entretanto, quando “piiblico” significa o es; interno da adeia, dancar regularmente torés nosantigos terreiros, simples careiras m= mata, ou lajedos do alto das serras em que, como acreditavam, seus antepassados, = conhecidas como “m gentio brabio”, tinham dancado nos tempos idos, significava mais do que apen J. “mesa” ou incorp semente mats antiga, “e buscar 0 reconhecimento oficial. S mificava também reavivar, sobretudo perante préprios,a meméria do direito territorial comum, ao cadenciar ritmicam solo tradicional, oom os pés desnudos e a0 som das maracs, o canto de suas “toantes” nte sobre o Feroncos”, “ramas” e “ por um “encantado’ ‘ou “linhas”dirigidas a seus “encantados”. Tratava-se, antes de mais nada, da reafirmacic Bex scja, um representante gs de rama”, dramatiza do corpo coletivo, e do estabelecimento das bases de sua rearticulacio politica em Enwetanto, se a presen Ssmplesmente uma inf torno de liderancas carismaticas e dos poderes numinosos do “reino da jurema” implicava, como ainda hoje, em reunir a comunidade em torno da celebracio 4 passado dos “troncos velhos”, representados nos “encantados” que incorporam nal de “baixo espiitismo™ “mestras” para dar consultas aos doentes, eceitar os remédios do mato, dar conseligs B soré, por outro lade A comunidade e admoestar os desafetos internos. isis fundamental, uma a Mais que isso, quando invocados pelo canto de seus “toantes” ou “linhas” comp: Icio quic se vem estabe que isso, 4 P seus “toantes” ou {guando as mesmas floress #11936, p. 100-102), a tilhados, com variagGes, por todas essas etnias, os principais “encantados” como circulam pelas varias aldeias, cada uma delas uma “ponta de rama”, tal como anc trais miticos que vém validar no plano simbslico do sagrado a articulacto politica tem prevalecido entre os vrios povos indigenas do Nordeste em sua lentaeatribul caminhada conjunta rumo ao reconhecimento oficial e 8 retomada da terra, Ao d matizar na danca coletiva o imaginério do passado mitico presente na poesia canta dos toantes, gente simples ¢ analfabeta encontrou uma linguagem de poucos conceit magens eloquentes com que falar de si para si. Comungando a Jurema, 5 vinho da Jurema”, nio sé com os membros da geragio presente, mas também come antepassados, cla celebrava,e celebra,a propria comunidade. O ritual, asim, tem sid a propria linguagem mediante a qual se expressa ¢ vivencia a etnicidade, tanto quant se comunica para a sociedade envolvente. (O toré € um ritual em que a possessio pelos “encantados” é0 lado mais espetacs= pen lar, porém o aspecto etnicamente mais relevant aativagio, mediante as “linhas”, as 0s “caboclos” (agor= m cde sua rest- Be en plena rast, I espsco ssaos,“o aes inte sobre 0 poantes? litica em ema”. Tl bracio do -onselhos s* compar- como que politica que tribulada Ao dra- acantada jm, tem sido nto quanto embalo da danca ritmada pelas pisadas e pelos maracés, e 0 “enlevo” proporcionado pelo famo e pelo “vinho da jurema”, de todo um imaginario caboclo condensado nos mnilhares de versos de uma tradicio oral muito ricae centendria, uma espécie de cordel {grafo e musical do caboclo do sertio. Que fala, de forma vivida e bem humorada, de uuma maneira cabocla de experimentar acontecimentos e situagées tipicas, que muitas vezes remetem ao pasado longinguo dos “troncos velhos”, sem deixar de estara falar do presente: “Eu fui no mato esconder meu aié (sacola)/ Pra branco nao dizer/ Que eu comi seu cradzé (carne de boi)/(..)"(versio Kiriri). O toré € “trabalho”, no mesmo sentido de “trabalho espiritual” dos cultos chamados meditinicos, mas é também uma “brincadeira”, espécie de festa e encontro social de todas as semanas. Nele usam-se categorias conhecidas como “médium”, “aparelho”, “coisa ruim”, “espirito” (de mortos), “mesa”, ou “incorporar”. Quanto a esta iltima categoria, hé uma sinonimia aparentemente mais antiga, “enramar”, que, significativamente, remete 3s metéforas dos “troncos”, “ramas” e “pontas de ramas”, Uma “mestra enramada” € alguém tomada por um “encantado”, frequentemente um antigo “mestre” de muita “cién- ia”, ou seja, um representante dos “troncos velhos” que se faz préximo, assim, de sua “pontas de rama”, dramatizacio que estabelece performaticamente a sa identifica Gio. Entretanto, se a presenga dessas categorias poderia, por um lado, levat-nos a supor simplesmente uma influéncia direta, de fora para dentro, oriunda do que jé se chamou de “baiso espiritismo” (ANDRADE, 1983), do kardecismo ou da umbanda sobre o toré, por outro lado, pensamos que tais expressées antes representam, de modo mais fundamental, uma atualizacio léxica construfda ao longo do contato ¢ comunicagio que se vem estabelecendo com essas formas religiosas no decorrer deste século, quando as mesmas floresceram e tiveram seu vocabulirio difundido, Como di, Cumha (1986, p. 100-102), acerca da comunicacio interétnica ou da etnicidade como linguagem: a escolha dos tipos de tragos culturais que iro garantir a disting’o do grupo enquanto tal depende dos outros grupos em presenga € da sociedade em que se acham inscridos,jé que os sinais diaciticos devem poder se opor, por defini- Glo, a outros do mesmo tipo [..] a questio de saber quais 6s tragos diacriticos que serio realcados para marcarem dlistingges [étnicas] depende das categorias compariveis dis- Isto, pensado em termos do campo religioso mais amplo a que sempre estiveram expostos os “caboclos” (agora novamente “indios”), faz do toré aquela dimensio que 15 melhor expressa, dentre os rituais indigenas do Nordeste, 0 continuo exercicio de atualizacao das fronteiras simbolicas que adscrevem estes grupos étnicos, e acompa- nnham de forma dinamica as transformagées por que passa a sociedade envolvente. suas caracteristicas culturaisdistintivas reduzem-se, praticamente, i esfera ritual, 6 a mesmo que vamos encontrar as categorias compariveis que organizario articulad: mente as oposigées numa espécie de gramitica interétnica, Assim, se os “aparelhos (ou “mestras”) “incorporam” (ou “enramam”), no incorporam “espiritos de mor= tos” como acontece “nessas coisas de negro”, como os indios se referem, por veze a0 que entendem por “xang6s” ou “centros espiritas” — mas somente “encantados {sto é, entidades “sivas”, que jé sio da natureza, habitantes/guardiges das fontes natu rais perenes, das matas, do fundo dos rio elagoas, das grutase tabuleiros ete. “Encan tados” que sio, ao mesmo tempo € sem contradicéo, antepassados, isto é, si “troncos velhos” que, através da “ciéncia do indio”, “se encantaram™ curadores dos sem ter mortido propriamente. De fato, boa parte de sua “ciéncia” esté em saber afastar esses “coisa ruim”, precisamente o que representa a nio-indianidade. Desse modo, verifica-se, em que pese a répida caracterizacio, que um camp religioso indigena se encontra nitidamente delineado, e que, apesar de constantemente atualizado, é bem mais antigo do que se poderia supor a partir da pequena visibilidade de seus agentes para a sociedade emvolvente. Campo esse forjado ao longo de unt histéria de contatos ¢ trocas culturais entre os virios povos indigenas da regio desd quando foram submetidos a uma experiéncia missionéria comum, inchusive no sen do bem concreto de que nko s6 varios grupos de diferentes etnias foram aldeados numa mesma missio desde o principio, como também, desde enti, vérias de inisses foram sucessivas veres reduvzdas umas is outras, e/ ou segmentos delas tram feridos de lé para c®. Essas priticas mégico-religiosas assumiram, assim, ainda me século XIX ou mesino antes, a condigio de linguagem ritual comum mediante a qual se cexprimea emicidade indigena ante a sociedade envolvente no ambito regional. E cat que, enquanto campo religioso, nao estamos falando de um todo homogéneo @ “A perda cultural de que mais os povos indignas se resentem ada lingua nativa, da qual rest Pag Se rt a wana ake aie RS a cos demais ndios ” Mobilidade esa que nunca cessou de exist, tendo atravessado todo o perfodo imperial, ni Aiferente no tempo do SPI emesmo agors, sob tutes da Fundacio Nacional do nd (FUNA diferenciado, mas proc termos de disputasc menor eficicia na id outro “entendido na ticasinternas aos gr: nental, estamos faland tionadas pela e para s 105 dos quais se dio t ordeste, de faccion Bdades rituais* Bais ainda, percebe o Nordeste, particulas mbuco e Paralbs ide regional envo frouxamente de cai Encia religiosa si0 idade empitica de oclo” em meio implica em di aqui vstos.Julg se tente identific ado desse elemen se disseminar B ideia metaforiza ciministadas tant os em detalhe do situagies an edi em certo Sees ox Timball,. Serrciros diferentes. te tual ep mo exercicio de acompa- volvente, Se ritual!" 6 af Sr%o articulada- pparelhos” spiritos de mor- fete. “Encan- sto &, sibios jade. stantemente visibilidade Be fongo de uma o desde aldeados wirias d las trans- Sim, ainda no ntea qual se gional. F claro smogéneo & a qual restou dos crm falda ndiferenciado, mas procuramos nos reportar a tudo o que tal conceituagio implica em termos de disputas concorrenciais por legitimidades, reivindicagGes de uma maior ‘ou menor eficécia na lide com o universo do sagrado por parte deste ou daquele pajé ‘ou outro “entendido na ciéncia do indio”, a conectar prestigios pessoais ¢ estruturas politicas internas aos grupos étnicos". Porém, sem contradicio e de modo mais fun damental, estamos falando de uma estruturacio de categorias de entendimento pro- porcionadas pela ¢ para a experiéncia religiosa que estabelecem regras e limites nos termos dos quais se dio tais disputas. Hs varios exemplos, entre os grupos indigenas do Nordeste, de faccionalismos internos que se rebatem, quando nao se originam, em rivalidades rituais." Mais ainda, percebe-se com clareza que esse campo religioso indigena existente na regido Nordeste, particularmente na érea que inclui o norte da Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco ¢ Paratba, esté intimamente conectado com 0 campo religioso maior da sociedade regional envolvente, particularmente com aquele seu segmento que designa- mos frouxamente de campo afro-brasileiro, cujas categorias de entendimento da propria cexperincia religiosa sto homdlogas porque construfdas em uma comunicagio recipro- «a, € sio, por isso mesmo, facilmente oponiveis em um sistema de distingGes. Essa dlversidade empirica de rituais, seja aqueles claramente vinculados 8 afirmagio de alteridades étnicasindfgenas, seja aqueles que apenas apresentam uma imagem genérica do “caboclo” em meio a outras entidades espirituais vinculadas a tradigbes culturais distintas, implica em diferentes concepgdes acerca da jurema nos virios grupos re sos até aqui visto. Julgamos haver af material para muita digressio teérica, na medida tem que se tente identifica as razées e os principios que regem as transformavGes de significado desse elemento simbético, admitindo-se que, de uma origem comum, aca- bam por se disseminar no interior de uma sociedade maior e variadamente segmentada Tal € a ideia metaforizada em nosso titulo: a de um tronco, mais antigo, radicado na ‘0 term pajé asim como eaciqus de incorporagio recente eresua mais da mposigo de um modelo regional de organiza indigenaassimiladoincersamente, no qual FUNAl, enquanto principal agente {do campo politico em que se motimentam esses grupos, possui um peso deteriinante, embora nio ‘exclusivo, Assim, 0 cargo de pa €sabretud politico € com frequéncia seu ocupante ndo coincide sero individuo de maiorestalentosesprtuaise curativos. Obrimente eva crcunstincia gera tenses que ddeyem ser adesinistradas tanto naesfera ritual quant politica pels lderangas da “situae studamos em detalhe um desses casos, © dos indios Kir, em Nascimento (1994). Mas temos presenciado situagbes andlogas entre os Pankararé, os Truk, 08 xi, os Atkum ¢ os Kapinawé, mesmo jd se dem certos grupos antes sequer de serem recone ficialmente pela FUINAI, como ccorreu com os Tambalsl, que se encontravam divididos em facgSes politics rivals, corresponden- tes dois terreiros diferentes de tré. Em todos esses casos, €em outros mais em que o facionalisma ‘io € tio evidente, ritual poisca interna sfo duas faces de uma mesma maeds, cexperiéncia colonial e missioniria desses povos indigenas, com a qual suas crencas pré coloniais tiveram que estabelecer um dislogo inevitivel e encontrar uma acomodagio, desde cedo, a0 longo dos séculos XVII, XVIII e XIX; suas “ramas”, mais novas cis, que incluem orientadas para muitas direcGes, sob o influxo das mais variadas infh tanto as formas contemporineas dos rituas praticados atualmente pelos povos indigenas, quanto aquelas “ramas”, que, desde o século passado, se disseminaram na sociedade Iaior juntamente com a dispersio de grande parte da populacio cabocla, talveza maior parte dela, vindo, neste processo, a se “sincretizar” com outras crencas. E preciso reconhecer que, assim como muitas foram as populgdes indigenas que lograram, ao longo do século, reverter processos de dissolucdo étnica em meio as Pr fi tos foram os casos em que tal nio se deu. £0 que ocorreu, seguramente, na localidade de Estiva, no municipio de Alhandra-PB, um antigo aldeamento indigena que subsis= tiu até 0 século passado, e que, por razdes particulares, ndo manteve uma identidade es de uma sociedade envolvente infinitamente mais poderosa, igualmente mui- étnica indigena, mas € hoje uma espécie de Meca do catimbé paraibano (VANDEZANDE, 197 dentro de algumas fami AL, coma cidade crescendo em volta, dando-se, entio, 0 encontro com outras tradi= ito nitidament ) Em outros casos, as tradigSes indigenas foram mantidas ,transmitidas de geracio a geraco, como em Piacabugu- “candomblé” [sic] al Bes, como o sincretismo entre “toré delineado (ARAUJO, 1977), ou em Laranjeiras-SE. (DANTAS, 1988) Sem diivid ruitos tém sido os caminhos, as etapas e os encontros intermedidrios que levam dos rituais praticados pelos indios no Nordeste desde o século XIX aos atuais rituais em contrados em grandes centros, como Salvador, Recife, ou Natal, chegando, hoje, tam bém a outras partes do pats, Talver seja possivel ordenar todas essas variages em uma perspectiva de transfor magées histbricas, em que as diferentes historicidades locais apresentariam uma tes

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