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ha of Ea: PR Un CHOAY | fet Wize.) ys | “URBANISMO:= 0 MODELO estudos estudos estudos ? SM , a TOIT ORA PRASPECTIVA Titulo do original em francés La régle e¢ le modéle — Sur la théorie de Varchitecture et d'urbanisme Copyright © Huitions du Seuil, 1930 \ Sy cocee BOLI AGUISICAO POR COMPR apauieno of 2A 8 wi 1998 PRESO 9.26] 558. g2 lg. 2 9S Direitos em lingua portuguesa reservados & EDITORA PERSPECTIVA S.A. Avenitia Brigadetro Luis Antonio, 3025 01401 — Silo Paulo = SP = Tn anil Telefones; 200-4000 @ sna oats 1006 Sumario ns OQ PRECONCEITO DAS PALAVRAS .....-.+5 . OS TEXTOS SOBRE A ARQUITETURA E SOBRE A LBADIB) crcusn ce stoner necticut 1. Os Textos Realizadores 1.1, O De ve aedificatoria, Texto Inaugural .....- 1.2, Os Edites Comunais e o Destino de sua Argu- PNONTACAG :e-isisavjianieaeearanictnci nis asece sn etme nae 1.3. Os Falsos Tratados da Renascenga e da Era ABE ES csccjepinseseciauenspmcsingmeanynartactatie apatite 2. Verdade e Falsas Utopias ....... ences . A Utopia de Tomas Morus, Texto Tnaugieal . 2 Depois da Utopia oo. .ee eee es a > De Théléme a Clarens .. . Da Nova Allantis i Antecipagio Cientifica Con- lemporanca a 2.5. Utopins Retéricas .... 3. Os Textos Comentadores 0...) 6 cee ete ee eens 3.1, A Objetivagao do Espacga Urbano 3.2, Comentirios Pré e Contra a Cidade DE RE AEDIFICATORIA: ALBERTI QU O DESEJO EO TEMPO 6. A Teoria de Urbanismo Nenhum termo especifice designa atualmente os escritos de urbanismo que pretendem oferecer uma teoria da organizagao do espago!. Nao estaria essa falha denunciando wma irredutivel heterogencidade? Minha proposta ¢ mostrar que a desconstrugao do tratado de arquitetura, assim como a mobiliza da utopia pelo pré-urbanismo, ao contrario, levaram 4 constituigo de uma nova figura textual, que subtende igualmente as obras intituladas Teorie General de la Urbanizacién, Der Stidtebau, La Cité in- dustrielle, La Ville radieuse, The Disappearing City, Notes on the Synthesis of Form Deravante, chamaremes teoria de ur- banismo a categoria discursiva habitada por essa figura, até en- {Zo nao reconhecida e nao nomeada. Essa denominacao, inspir: da pelo titulo da obra inaugural de Cerda, assinala a pretenséo, explicita e nova, de fazer obra cientifica apropriando-se das me- todologias préprias da ciéncia. A despeito de suas divergéncias, os textos perlencentes a categoria da teoria de urbanismo apresentam trés conjuntos de tragas comuns. Em primeiro lugar, eles se autodenominam dis- curso ¢ientifico. Nao & mais o caso, como © fora com Patte, de buscar ajuda junto a certas disciplinas cientificas e técnicas, in- 1, Estes textos n&o d@evem ser confundidos com os inimeros ma- nuais préticos de urbanismo que relacionam problems & solugdes. tdc- nicas, proruaidas pelos engenheiros desde o ultimo quartel do século XIX, © culo protétipo 6 Ber Stédtebax, publicado por J, Stiibben em 1800, um and depols e quase com o mesmo titulo que Der Stadtebau nach seinen jelinatlertychen Grundsateen, a tooria de urbanisma de Sitte. ‘366 A REGRA EO MODELO dependentes, mas de alirmar a autonomia de um dominic proprio no vaso territorio, em emergéncia, das “ciéncias humanas’, Em seguida, tal como a utopia, esses textos opGem duas imagens da cidade, uma negativa que traga o bulango de suas desordens € de seus defeitos, a outra positiva que apresenta um modelo espa cial ordenado. Enfim, como o tratado de arquitetura, relatam uma hisiéria cujo herdi € a construtor, Tentaremos mostrar como, sem a yontade deliberada de seus autores, sem mesmo terem tdo conseiéneia disso, certos ele- mentos das duas estruturas textuais, que vimas aparecerem entre 1452 e 1516, foram conservados, integrados ¢ articulados, num discurso com pretenséo cientifica. 1. A TEORIA COMO PARADIGMA Coma o fizemos no caso dos tratados de arquitetura ¢ das utopias, a andlise da estrutura textual das teortas urbanisticas sera praticada numa obra paradigmdtica, a Teoria General de la Urbantzacidn?.Essa teoria, publicada em 1867 pela engenheira espanhol Ildefonso Cerda, para fundamentar e¢ justificar as deci- sies que adotara em Plano de Expansio de Barcelona (1859), . €, cam efeito, ao mesma tempo a primeira em data e aquela que tem a forma mais perfeitamente desenvalvidat, O proprio Cerda yeivindicow a novidade de sua empresa: “Vou iniciar o leitor no estude de uma matéria completamente nova, intacta e virgem”5, previne cle“no-inicio de seu livro, algumas paginas antes de pro- por, para designar essa disciplina noya, um neologisma adotado mais tarde universalmente, “urbanisino”, ou antes seu equiva- lente espanhol, urbenizacidy, Depois de justificar a adogao da yaiz latina wrbs®, Cerda define “a palavra urbanizagéo" que, 2. Madrid, Imprenta Espafiola, 1867. Essa edigao original fai repro- duzida em fac-simila 2 provida de um estudo critics de F. Estapé, Bar. celona, Ediciones Ariel y Editorial Vives, 1963, por ovasiio do centendrio da Teoria. Nas paginas seguintes nossas citagdes sao tiradas da tradu- cio francesa, La Théorie générale de Uurbantsation, présentée et adap- tée par A, Loped de Aberasturi, Paris, Soull, 1979, doravante designada Lop., cujas péginas de referéncia sio seguidas das paginas corresponden- tes da edigho Fstapd, designada Es! Concebido numa oseala ainda hoje excepeional, esse plano fai ado Mo curso de sua realizacio, Cf. A. LOPEZ DE ABERASTURI, cié., primeira parte, apresentagfio da obra de Cerda. 4, Nao se trata de um acaso. A obra de Cerda nfo surgiu en nihiio, Ela assume ssentido se for re-situada numa tradigao ibérica que, desde a Idade Média, tentou racicnalizar a organizagia do quadro construido. Ci. J. ASTORKIA, tese de terceiro cicla om curso no Institut d’urba- nisme de Paris VIII. 5. Lop, p. 8l; Est, p. i. 6. Lop, pp. 81, 82, 33; Est., pp. 29-31, 7, Em nossas eitagées, distinguiremos as duas acepgdes do terma urbanizecdo, seguindo-a da palavva (urbanismo) quando se trater real- mente dessa disciplina, th A TEORIA DO URBANISMO 28 para ele, designa ao mesmo tempo um fata conereto, o processe que hoje chamamos urbanizagio, e a disciplina normiatica que _€ 9 urbanismo; em outras palavras, de um lado “um grupo de coustrugdes postas em relagao e em comunicagao tais que os habi- tanles possam se encontrar, se ajudar, se defender [., 1”, & de outro, um “conjunto de conhecimentos, de prinefpios imutiveis e de regras fixas'® que permitem organizer cientificamente as construgées dos homens. Todavia, o cardter pioneiro da Teorfa nao foi reconhecido nem ao nivel de conteddo nem ao nivel da forma ¢, eo contrdrio dos livros de Alberti ¢ de Morus, esse texto nfo teve posteridade direta, Essa ocultagao de uma obra excepeional pode ser atribut- da, em parte, ag contexto politico ¢ cultural em que foi ¢labo- rado o Plana de Barcélona, as polémicas ¢ Js paixdes que desen- cadeou contra seu autar®., Deve-se, sem diivida, principalmente 4 prépria Teoriu, as redundancias que tornam fastidiasa sua lei- tura, a sua extensio (dois valumes. de ocitocentas paginas cada um) que Ihe impediram a difusio e a tradugdéo para outra lingua estrangeiral, O certo @ que a Teoria nao foi lida pelos historiadores, que, como H, Lavedan, cinservaram de Cerda’ ape- nas seu Plano de Barcelona, nem pelos tedricos do urbanismo. _ Com excegfio de seu compatriota A. Sorial#, os tedricos poste- riores a Cerda nao lhe devem diretamente nada. Que seus es crites sfio trabalhados pela mesma figura textual que a Teoria, demonstra-o sua comum pertinéncia a um estrato epistémica. © paradoxo desse paradigma sem posteridade direta e a ,emergéncia multipolar da nova figura reperoutiram sobre a cons- trucdo desse capitulo, Ao contrério dos capitulos ‘consagrados ao De re aedificatoria ¢ 4 Utopia, cle nfia pade ser reservado & obta de um tinico autor, Todavia, demos precedéncia & Teoria cuja andlise foi feita em primeiro lugar, isoladamente. Em sceguida, convocames outros textas a fim de confirmar a identidade da figura que os subtende. 3. Lop, p. 8%; Est., pp. 31-82. 9. Of A. LOPEZ DE ABERASTURI, op. cit. 10. Ade A, Lopez de Aberasturi é a primelra. Niio se trata de uma tradugio campleta, mas de uma adaptagéo cuidadosa, que respeita @ mo- vimento da Teoria e revela seus grandes temas. ~ lL. Em sua Histoire de Purbanisme (t. 111 [Epoque contémporatnel, Paris, 198%, p. 239), H. Lavedan critica o Plano de Barcelona com argue mentos especioses ¢ dedica & Teoria apenas uma nota ¢ieta que eitamos in extenso; “Cerda publicou mais tarde uma memédrla em dois volumes para justificar sua obra, Q tomo I ¢ uma histdria muito fantasiosa do urbanismo. O tomo II contém iiteis estatisticas”. 12, Sua Ciudad Lineal! (Madrid, Est Tipographico, 1894), em com: pensngao, conheceu uma difusio internacional. Notadamente na Franga, G. Benoit-Lévy deu grande publieidade a essa obra da qual Le Corbusier, de seu lado, tirou, sem nunca citd-lo, o canceito de cidade linear. Cf. R, COLLINS, “Linear Planning throughout the World", Journal of the Sociedy of Architectural, Historians, KVILL, Fildéifia, out. 1959. 268 A REGRA EO MODELO A despeito de suas dimensdes, a Teoria, tal como a Idea de Scamozzi, ¢ um texto incompleto. Seus dois volumes campreen- dem apenas a primeira das quatro partes de um conjunte cujo plano! Cerda nos deixou ¢ cujos painéis faltantes, segundo toda verossimilhanga, teriam sido realmente redigidos!#, A primeira parte pretende ser um estudo sincrénica e diacrénico do fendme- ne urbano: conforme a terminologia de Cerda, apresenta a “ur- banizagaa como fato concreto”, O primeiro volume mostra uma exposigdo geral, ilustrada no segundo com dadas estatisticos re- lativos & cidade de Bareclona’®, Esse trabalho de “dissecagéo” & para Cerda, a condigio prévia para a elabaragia dos “prinef- pios da ciéneia urbanizadora’!®, em outros termes, para o esta- belecimento da “teorla’ que “constitui o objeto da segunda par- tel? (faltante), Vemes que Cerda utiliza unicamente o presente do indicativo para descrever as diferentes secées de stia obra, quer tenham sido efetivamente impressas quer nao. “A terceira parte (igualmente faltante) trata das aplicagdes técnicas”!8 ¢ da eventual inflexio dos princfpios cientificas pela arte, com vistas a claborar solugdes de transigéo!® que levem em conta contin- gencias existentes ¢ no traumalizem as populagdes, A quarta parte, enfim, “ilustra as anteriores com o exemplo cancreto de Barcelona’™": entio nfio mais se trata do estuda estatistica da cidade, mas das propostas de reestruturagdo e de anpliacio, da “reforma’”’ e do Plano que deram causa ao empreendimemto ted- rico de Cerda, ¢ nfo se acham formalmente integrados na Teoria. A primeira parte do projeto de Cerdi, a tinica publi- cada, pode ser tratada, portanto, como uma entidade auténoma, Especifica o método da nova disciplina e determina as Icis da “urbanizacao”. Pretende fundar uma cidades, de valor universal, cujo enun tando, A tereeira e a quarla partes teriam sido tanto m eiivels da primeira quanto deviam somente apresentar sua apli- cagao a casos particulares, 13, Na Advertincia (Lop. pp. 79, 80; Est, pp. 16, 17). ld, Ch A. LOPEZ DE ABERASTURI, op. cit, 15, “Ivamos mostrar] com o auxilio de um exemple concrete e de numeros indiscutiveis tudo o que dissemos em termes abstratos @ gerals quanto cs elementos canstitutivos das wrbes, a seu organismo, a seu funcionamente [ nao constitui ums declamagio enfdtica e va, mas um fato incentestével, Recorremos & estatistiea no tocante aos dados relativos A urbe sohre a qual concentramos nosso estudo [Barce- Jenal" (Lop., 2. 178; Est., p. 815). Segundo a prdpria confissSe de Cerda, o segundo volume é um "complemento” de primeiro, cujo contetide, em eondigées de menor ignorfimefa, poderia ter sido relegado “ao final da obra, camo anexo” fibid.j. Lop, p. 78; Est, p. 17 Lop., p. 119; Est, p. Bid. Idd. fop., p. 80; Est, p. 17; bem como Lop, p, 179: Est, p. 614. Lop., p. 179; Est, p, 814, 4A TEORIA DO URBANISMO 269 11. O Discurse Cientificista e Cientifico Embora a entidade textual que é a Teoria, na situagao em que a deixou Cerda, apresente uma sintese estrutural das figuras do tratado, da utopia e do discurso cientifico, coma no vaso de todas as outras teorias do urbanismo, esse tiltimo sé é reconhecido e assumido pelo autor. Ja na introdugae e no preficia metocold- gico, Cerda se apresenta como o criador de uma ciéncia nova, de que nao se encontra vestigio antes da Teoria: “Nada, absolu- tamente nada, fora escrito sobre um tema de tamanha importdn- cia’*4, Nao cessa de afirmé-lo no decurso da obra: “A urbaniza- gio [o urbanismo] retine todas as condiges necesstrias para acupar um luger distinto entre as ciéncias que ensinam ac homem o caminho de seu aperfeigoamento’®®, ela é “uma verdadeira ciéncia”*3, Para o, engenheiro espanhol, esta ciéncia inteira tornou-se possivel (nos planes do conhecimento e da técnica) e, ao mesmo tempo, foi exigida (no plano pratico) pela emergéneia de “wma nova civilizagio'’4, Testemunha ¢ araute do “mundo novo", apre- sentathe “como caracteristica distintiva [...] 9 movimento ¢ a comunicagao’®, frute da revolugde cientifica que, gracas 4 in- trodugio do vapor e da eletricidade, trouxe uma mudanga nos transportes e ne modo de circulagio das pessoas, e deu crigem is telecomunicagdes*®, Como bom futurdlogo, Cerdd anuncia a era, da “comunicacio universal”, : Esta experiéncia da modernidade ¢ o papel atribufde ao movimente ¢ & comunicagaa, na urbanizagaic da segunda metade do século XIX, repercutem sobre a definigéo que Cerda apre- senta do objeta da “ciéncia urbanizadora’. Porque, pretendendo ser uum cienlista conseqiiente, cle comeca por determinar o objeto que sua disciplina deverd estudar, Esse momento primeto fa-lo rejeitar categoricamente a nogia de cidade ¢ suas dcepedes rece- 21. Lop, p, 13: Est, p. & 22, Lop, p. 83; Bet, p. 31. 23. Prdlogo do t. I, Lop., p, 103; Est, t. Il, p. 1. 24. “Montada no vapor e armada com a eletricidade” (Lop, p. 78: Est., p. 18), Sobre essa “nova civilizaghio", cf. particularmente a Adver- téncia ao Leitor e a introdugiio em seu econjunto, da qual ela constitul Oo ieitmotin. 25. Lop, p. 73; Est, p. 8. 26. “Homens da época da eletricidade e do vaporl, Nio tenham medo de proclamd-lo: somos uma geragio nova, dispomos de novos meios infinitamente mais poderosos que os das geractes anteriores; le yames uma vida nova .] construimos cidades novas adaptadas &s nossas necessidades e nossas aspiracées" (Lop., p. 164; Est, p. 686). “A locomogio aperfeigoada {a vapor] avanga [...] com uma rapides assombrosa, Aliow-se & eletricidade que, por meio do telégrafo, trans- mite instantaneamente a yontacde imperativa dos homens [...] Estes transportes ripidos, econémicos, cémodoes, democriticos, abrem uma ore nova na marcha progressiva humanidade” (Lap, pp, 176-177; Est, 270 A REGRA EO MODELO bidas, particularmente as que se baseiam em critérios numéricos, administralivos ou culturais. A_urbanizagao como [ata conereta supera a idéia limitada da cidade tradicional, para englobar todas as aglomeragécs possiveis, quaisquer que sejam a sua cxtensio ou sua dispersdo. Cerda apresenta uma sua definigdo Tuucional, a-primeita do género: a urbanizagaéa ide to-somente ta asso- clagda do repouso e do movimento, ou antes nos espagus que serve ad repouso é ao movimento dos seres humanos, isto €, os ediffcios ¢ as vias de comunicagic?’, Reduzinda assim o processo de organizagfo do espago & combinagéo de abrigos destinados 4 estada e de vias de comunicagées, Cerda formula pela primeira vez os dois conceites diretores que, hoje mais do que nunea, con- tinuam sendo os dois pdélos operacionais de urbanismo, a habi- tagdo e a circulagao. Anuncia, pois, ¢ prepara a grande redugfio que a planifica- gio urbana impde 4s sociedades atuais. Mas descobre no movi- mento uma dimensio do urbano até entao ignorada e acerca de qual nossa época mal comega a pressentir que instrumentos con- ceptuais permitiriam integré-la numa descrigao cientifiea. Cerda supera o estatismo, da apreenséo balzaquiana da cidade, apolada pelos modelos de pensamento de Laplace ¢ de Cuvier. Sua cl- dade esté em movimento: limites flutuantes, que nunca se detém, populagao interminavelmente errante. Ele antecipa a intuigao, no entanto quase sempre piongira, des romancistas de sua época, tal como Zala, mas ainda nao. pode valer-se do modelo da termodi- naimica estat{stica, cujo interesse caberd mais tarde a Musil pres- sentir®®, Além disso, a_importaneia que cle atribui a circulagio nao o leva a negligenciar a habitagaio, que para ele n&o-se reduz ao alojamento, coma para a maicria dos urbanistas progressisias que lhe sucedem, mas continua sendo a exigéneia primeira e fun- damental, aquela que permite o desenvolvimento da, pessoa hu- mana, “Q ponto de partida como o ponto de chegada de todas as vias € sempre a habitagao ou a moreda do homem'**, a7, “Para dar uma idéia da urbanizagio no domi da oidneia, di- remos que seus elementos constitutives sain os abrigos, seu objetivo o reciprocidade dos servigos € seus meics as vias comu Est, p. 44), Cf. também: “A localizagio, a dispo: construgdes e as formas gue assumem as vias de circulagio an se desen- yolverem constituem nosso tnico objeto, a totalidade daquilo de que devernos prestar contas’ (Lop, pp. 9899, Est, p. 207); ou ainda essa férmula lapidar: “Todo espaco deve satisfazer duas necessidades, o mo- vimenta ¢ © repouso. Tais necessidades sao a3 stnas para o individuo, a familia e as caletividades complexas" (Lop, p, 137, Est, p. 408). 24, Ci, MICHEL SERRES, Feur ef Signaux de brume, Zola, Paris, Grasset, 1975, e Hermes V, fe passage du Nord-Ouest, Paris, Ed. de Minuit, 1980, pp. 27 € ss. 29. Lop, p, 125; Est, p. 945. Cf. também o primeira capitula do Livro I, em particular; “[Devemos) considerar o abrigo coma um togu~ mento artificial, um spéndice indispensdvel, como o complemento do organismo humano. Por esse fato, a idéia do homem esta constante- A THORIA DO URBANISMO am Com uma acuidade que inspirard Soria, mas que néo mais se encontraré depois antes de M. Webber®, ele perecbe que as no- yas técnicas de comunicagio vao transformar completamente as formas de urbanizagao, tornar anacrémicas as antigas cidades, permitir modos dispersados de agrupamento, o que ele sugesti- vamente chama de urbanizacao ruralizeda’). Um termo particular, urbe%2, é forjado por Cerda a fim de designar a aglomeragda, quaisquer que sejam suas dimensdes € sua forma. Procedendo como cientista, cle examina e define todas as nogdes de que é chamadeo a se servir, Nao teme precisar 0 contetido de termos aparentemente tio simples quanto os de regifia, subtrbio, rua. Além disso, elabora uma metalinguagems3 para designar um conjunto de elementos do urbano que a lingua- gem nfo soube analisar ou que as designacdes correntes cobriram de conotages diversas e que se deve encarar com 0 olho néo-pre- conceituoso do cientista Apesar das aparéncias, Cerd& continua fiel a esse rigor lexi- colégico quando, com um mesmo vocdbulo, urbarizecidi, designa duas coisas muilo diferentes, o processo de urbanizagao ¢ o urba- nismo, que alualmente distinguimos com cuidada. Isto porque, para ele, a ciéncia urbanizadora, o urbanismo, conforme a ter minologia atual, é constituida por um conjunto de proposigdes cientificas deduzidas da andlise da urbanizapfio, que as coloca necessariamente em acdo, mas de forma ainda nao-combinada e ‘cadtica”, devido A inércia que a histérla Ihe opde. A urbaniza- gio “tedriea” é detida por fatores miltiplos e imprevisiveis: as nogdes ‘de fluxa e de inércia jf anunciam, sem gue Cerda tenha consciéneia disso, os modelos explicativos da fisica. A urbaniza- cao é um fendmeno especifico decerto, mas nao-privilegiads, aces- svel ao conhecimento como qualquer outro, ¢ portanto subme- tido a leis, da mesma forma que os outros fendmenas do mundo. ¢ descobrir uma racionalidade sob a diversidade das forma- des urbanas de onde Cerda, com notivel firmeza, exclui o acaso. “0) recurso aq acaso somente se justifica pela preguiga do pes- mente ligada A de seu abrigo que, por este motivo, se designa pela termo mais significativo [...] 0 de habitaglio fvivienda),,termo que in dica que ela 6 sua ¥ e a complemento de seu ser” (Lop., p. 8; Est, p. 99). Cerda indica, na seqiléncia dessa mesma passagem, que, Dare designar a casa, ele no ut ri precisamente o termo casa que nao denota essa funcin vital. Cf. ainda: Lop, p. 186; Est, p. 408. 36. Cf. "The Urban Place and non Place Urban Realm”, Explora- tions in Structure, Filadélfia, University of Pennsylvania Press, 1964. BI. Gf, especialmente Lop, p. 110; Fst, p. 758. 42. “A edogio [da palavra wurbel-foi necesséria porque nessa lingua, no possui termo adequado a meu propdésito” (Top., p. 82; Est, Bp. 30). 33. Além de urbe @ urbanizagio (com os composts "yrbanizar’, “urbanizadora”, “urbanizador'), eitemos: entreviaa, vias éranscendentes e particulares, ‘sobre-kalo, @ todos os conceilos operatdrios de sell volu- 1 nds, trechos, malka, nodagees. me dedicado & “estatistica de Barcelon: 37a A REGRA EO MODELO quisador’”4, afirma o engenheiro espanhol que parece visar, an- tecipadamente, as dissertagdes de Corbusier sobre o papel do acaso na formagao das cidades antigas. Assim, 0 urbanismo aplicada € 0 corolirio de uma ciéncia experimental © tedrica cujo caminho Cerd’ questionou empla- mente%, O autor da Teoria nfo se contentou com uma critica @ uma anilise de nogées. Determinou os métodos de observagio e de tratamento mais bem adaptados a seu campo de estudo, as disciplinas 4s quais podia recorrer na coleta de informagéo e me- lhor ainda na determinagiia das Jeis que regem esse dominio. Formalmente, ele trata seu objeto a partir de dois enfoques, quantitative ¢ estrutural. A quantiticaego dos dados urbanos, sob a forma de estatistica, constitui uma garantia indispensavel de cientificidade®’, Além disso, uma atitude estrutural é ditada de alguma forma a Cerda pelas duas clénelas independentes a que recorre: @ histéria, bem como a anatomia e a fisiologia®? Ihe ser- vem para construir sua teoria da “urbanizagio”, A seus olhos, a histéria é a disciplina que permite situar a ciéncia urbana: nem finalidade em si, nem suplemento de sa- ber, ela j4 é para Cerda esse caminho obrigatério que, conforme nossa época descobriu, atravessa todos os dominios da antrope- logia. Para Cerdi, ¢ impossivel compreender a significagio e a problema das cidades contemperaneas, sem referéncia A histéria de que sao o produto: “a histéria da urbanizagdo-¢ a—histétia do homem"8, Mas essa férmula no remete a uma continuidade do acontecimento. Levado ao mesmo tempo pela ideclogia post tivista da ¢poca ¢ estruturalista avait ia fetire, o autor da Teoria conecbe a0 contraério a histéria como sucessio descontinua de constelaghes de praticas sociais; a urbanizacao simboliza a cade vez eslas constelagées, cuja face, a identidade mais diretamente perceptivel, ela revela de alguma forma. A técnica & a catalisador que determina ¢ acelera a informagio ¢ a transformacio das ou- tras prdticas soviais. O estabelecimento humano evolui, pois, ao sabor das mudangas da técnica. Melhor do que qualquer outro 34. Lop, p. 100; #st, p. S14, Cf, também “fa urbanizagao) cuja ort: gem e¢ desenvolvimento se atribuem ao acaso abedeca no entanto [...) a esses principios imutaveis” (Lop., p. 88; Est, p, 32), 35. “A medida que me aprofundava em meus ostudos ¢ pesquisas, compreendi [,,,} a necessidade de me informar, de estabelerer e fixar as bases e principios sobre os quais se devia construir essa ciéncia” (Prdlogo do t. TI, Lop., p. 183; Est, t. 1, p 1). 36. "Por esse melo tados os problemas serfio postos em termos matematicos e portanto nao mais se poderd evocar contra nds os capri- chos da imaginagéo, Cumpre, entio, admilir que todas as estimativas se baseiam na logica irrecusivel dos nimeros” (Prefdcio do t. II, Lop., p. 184; Best, t. Il, p. ap. 87. Igualmente designada por nds como “medicina experimental", segundo @ terminologia empregada na época. 38. Lop, p. 81; Est, p. 80 | A TEORIA DO URBANISMO amg indicador cultural, 9 meio de locomogfio®? que nele reina (pedes- tre, eqilestre, de reboque, de rodas, aperfeigoada) e, por via de conseqiiéncia, a estrulura do sistema de circulagdo permitem de- terminar uma classilicagaéo das cidades. O modo de locamegac da seu significado ao desenvolvimento da urbanizaciio, Funciona na histéria cerdiana da mesma maneira que o modo de produgdo na historia marxiana. A Teoria ¢ o Capital sia publicados no mesmo ano, Num © noutro caso, eslamos 4 frente da mesma ruptura em relacao 4os pracessos histéricos tracicionais, da mesma historificagio de uma “ciéneia social”, Situando a comparacdéo no dnica plano onde possa ter significagfo, o de sua relacica com o conhecimen- to, a analogia das duas obras merece ser levantada e desenvolvida, A histévia marsiana ¢ 4 histéria cerdiana valorizam identicamente a praxis tenica, dio provas de um mesmo etnocentrismo e@ sio uma @ outra orientadas por uma teleologia revalucionaria. Come Marx, Cerda reconhece a diversidade das culluras antiges*, de- pois confunde a histéria universal com a do Ocidente*!; ¢, para ele também, a ciéncia da histéria integra uma revolugao a reali- zar, Mas uma revolugao pacifica, a do quadro canstruide que sera transformado pela aplicagia das novas téenicas de transparte ¢ de comunicagao, Depois de Cerda, a histéria serd convocada pelo discurso veredictério de todas as teorias do urbanismo. Mas ela nao mais desempenhara o papel que lhe reservava a Teoria, onde, tomando, de passagem, as vias da arqucologia ¢ da etmologia!?, permite ao mesmo tempo consiruir uma nova definiggo da urbanizagao @ testar a validade de conceitos operatdrios tirados das ciéncias da vida, 38. "A lpcomogao conatituiré, em cada épaca urbana, a ponto de partida de nossas pesquisas e o meio de controle de nossas observacdes. A histérla da locomagio pode ser dividida em cinco periotos distintos tu” (Lom, p, 164; Fat, p. 685), i 40. Ele conhece @ utiliza ao maximo os trabalhos da arqueologia de sua época. 41. Partindo da hipdteso segundo a qual, na origem, “reinava uma iiniea urbanizagio, pois havia um tiniea povo, uma wmiea civilizacio e uma tnica humanidade”, ele mostra que, com o tempo, “as urbes che- garam respectivamente s adquirir uma caracteristica propria e di tiva [... que nao permite) mais considerar globaimente a urhanizacao geral”. Mas “com o tempo, as diversas manifestagoes da urhanizagao chegaram {...] a s¢ confundir. (...1 Se vimos wm grande centro de urbenizacdo de um pais qualquer, vimos todos os outros [...1 a civil gacio é hoje a mesma em todos os palses em que nao reina a barbdrie™ (Lop., p. 96; Est, p. 182, Cf. também Lop. p. 144; Est, p. 482). [O grifo é nosso.) 42. “Indicador urbano” (Lop., pp. 146 ¢ ss: Est., pp. 465 @ s8.). CerdA dedicou mais de cem pdginas a uma andiise etimologica dos ter- mos. urhanos, que, confarme ele pensava, the permitiria reconstituir o sentido original des componentes da cidede, Essa hipdtese, fruto de um enfoque éneontrade igua nte na mesma época nos trabalhos de Fus- tol.de Cou sobre a cidade antiga, nfo podia todavia forn a4 AREGRA E © MODELO Isto porque, na Teoria, oSgnfoque histérico se articula sobre o enfoque bioldgico. Sua perspectiyacdo niio impede que o obje- to estudado tenha relagéo com as metodologias prdprias acs orga- nismos vivos, a anatomia e a fisiologia. Cerda apela explicitamente para essas duas disciplinas, seguinda e aperfeigoando o caminho aberto quarenta anos antes por Balzac, quando ia busear ensina- mento junto a Cuvier e Geoffroy Saint-Hilaire, para aprender a olhar cientificamente as sociedades humanas. © termo dissecagio® reaparece como ume profissic de fé nos wés primeiros livros da Teorfe, Cerdi pretende ser o “‘iria anatomista do organismo urbano’™#*, do grande “carpa” social, do qual cle corta, em seguida desarticula em subconjuntes os dr- g40s essenciais, em outras palayras os elementos de bass, que encontratnos em todas as cidades ¢ que caracterizam a cidade em geral. Assim, é levado a definir o corpo humana pela combi- nagao de dois tipos de elementos irredutiveis, o edificia ¢ a via de circulagao, cuja opesigio & combinagfio podem explicar todas as esealas do quadro construido, desde o sistema das cidedes li- gadas entre si pela “grande viabilidade universal” até a casa, passando pela ilheta, Outrossim, “oa que é a urbe? Um conjunto de habitagées ligadas por um sistema de vias [...] O que € a casa? Nada mais nada menos que um conjunto de vias e de pegas de habitagao, como a urbe T...] A grande urbe ea urbe-casa di- ferem apenas pelas dimensées e pelas scciedades que abrigam'. Crerseja ouvir o eco do De re aedificatoria. Aqui ¢ li, o modelo do corpo parece induzir a mesma andlise estrutural. No entanto, a meléfera de corpo e a identificagio da cidade com a casa nao tém o mesmo valor em ambes os textos. Seus significades respectivas sio separados por toda a distancia criada por enfo- ques diferentes do corpo. As ciéncias do ser vivo nao existiam na época de Alberti, Elas se constitufram a partir do século XVI148, jf conhecem um grande desenvolvimento ¢ propdem seus métodos e conceltes is ciéncias humanas no momento em que Cerdi escreve. f Cerdh os resultados esperacios, tanto devido as insu. cimento conlemporaineo quanto por rausa da sua prépri na matéria, Entre outros exemplos (ct tificos, citemos apenas o caso de urbes que Cerda deriva de urb (relha de charrua). Deve-se observar, todavia, a seguranga de intuigho com que, através dessa climologia fantasiosa, Gerd aponta o cardter originalmente sagrado do ato urbanizador (Lop, mp. 81-82; Est., pp, 2% 30). Dapels, os trabalhos de E. BENVENISTE sobre Le Vorabuldire des institutions indo-europdennes (Paris, Editions de Minult, 1969) mos- traram a fecundidade deste caminho. 43, Cf. particularmente a Introduco, onde Cerd& evoca seu “trae balho de dissecacio" (Lop, p, 78; Esl, p. iT), 4. Lop. p. 148; Est, p. 592, 45, Lop Est, p. 407. Cf. também Lop, pp. U4, 129, 182, 194; ‘Est, pp. 268, 363-364, 379, 388. 46. Of F, JACOB, La Logigue du vivant, op, oll. incompetel nille, Durgo) t&o pouco cien A TEORIA DO URBANISMO ath Este nfo fala mais como poeta ou como artista, nem somente como anatomista, Passados os trés primeiros livros em que se limitou “a inventariar os elementos constitutives [do organisme urbane] como se se tratasse de corpos inertes”, cle chega ao estudo de seu funcionamento, a sua fisiologia, “da vida a esse corpo ina- nimado™?, © capitula sobre a “funcionomia urbana” que pre cede e introduz o Livro 1V demonstra como Cerda se apropria, para o tratamento de seu dominio prdpria, dos métados e de ce tas conceitos operatérios da biologia, Apés as designagdes gerais de género, espécie# e organismo, é deliberadamente que utiliza a nogao de regulagdo e apreende-a na anilise das fungdes ur- banas de circulagao, alimentacfio, digestfio, evacuagéo”, que joga com os conceitos de niicleo® e de desenvolvimento, que vai bus- car na teorla de Lamarck a idéia de adaptagao, a qual contribui para dramatizar sua descrigéo do urbano, _ Entretanto, ao mesmo tempo que trata a cidade como orga- nismo vivo, Cerda nao deixa de se referir a ela como a um objeto inanimada, um continente, um instrumento®!. Contradicfio nao- assuunida? Inconseqiiéncia? Serd este efetivamente, mais tarde, 6 caso de intimeros tedricos do urbanismo que, sem sentir qual- quer embarago aparente, ¢ sem se explicarem, conferirao alterna- tivamente i cidade o estatuto de ser vivo e de artefato, Assim € Le Corbusier, para quem a cidade é ora um “corpo organiza- do", suporte de uma “organizagao bioldgica’®3, ora uma mé- quina*’, e que, ocasionalmente, nao recua nem mesmo diante de 47. Lop, p. 149; Est. p. 692. Sobre o vitalismo cerdiano, ver no en tanto infra, p. 278. _j8 A eldade 6 uma espécie cuijos representantes apresentam, por delinigko, @ mesma organizagio especifica, embora possuindo, como os organismas vives, sums particularidades individuals. “Cada urbe, pone- ticamente idéntiea as outras, constitui, na reolidade, uma lade orl Binal e particular. A partir desses dois tinicos elementos, vias @ entre: vias, s¢ formam ¢ se formaria um mimero infinita de urbes, cada uma com uma fisionomia particular" (Lop, p. 103; Est, pp. 681-682), 49. Lop, p. 155; Est, pp. @45448, “Os drgios correspondentes o todas as fungGes de alimentagia, digestéo e excregfio" da cidade se en- contram na casa (Lop., p. 139; Est., p. 412). 50. Cf. os capliulos sobre os subiirbiog e os micleos urhanos, em particular: Lop, p. 106; Est, pp. 241 a sg, 31. Por exemplo: “A eldade ennstitui um todo complexo, um éns- trumento” (Lop, p. 108; Est, p, 465), [0 grifo ¢ nosso.) ; La Ville radiewse, Paris, VincentFréal, 1933, 4.2 parte, p. 134. Por simplificagio, na seqiiéncia desse capitulo, todas as citacdes de Le Corbusier seraq tiradas dessa quaria parte que constitu uma obra auténoma, aintese de todas as idéias, e protdtipo, dos livros de Le Cor- busier, Cf. também: “A cidade viva, total, funcionante com seus Greaics que sia os da sociedade maquinista” (idem, p. 40). A "Cidade Radiosa” esl4 totalmente colocada sob o signo da vida: os termos “vida” e@ “viver” (sem contar as formas verhais nfo infinitivas desse verbo @ os adietivos devivaclos} sparecem 63 veacs nes 3 paginas do texto, cujas fdrmulas da tipa “viver, habitar!", “viver, resplrari" ou “wiver, rir!” conslituem o destaque retérieo, 3. Idem, p. 189, 216 A REGRA EQ MODELO formulagdes antindmicas, das quis uma das m definigio da cidade como “biologia cimentada’55, O prdpric Cer- da reconhece explicitamente a dupla pertingncia do objeto ur- bano ¢ o problema que ela coloca. Resolve a aparente antinomia do organismo e do artefato por meio de uma concepgao ousada do corpo (urbane) coma maquina, que se poderia hoje reatua- lizar com © auxilio dos modelos da biologia celular e molecular: assim, @ subsolo da cidade se assemelha “A primeira vista’ ao sistema venoso de um ser misterioso”... Mas, na realidade, “esse conjunto de tubos nfo constitul nada mais que um sistema de aparelhas que mantém o funcionamento da vida urbana‘, A forma como Cerda recorre aos métodos ¢ is aquisigées da histéria e da biologia deve levar a concluir que ele efetiva- mente elaborou um discurso cientifico? Qu apenas cle se con- tentou em praduzir marcas lingilisticas, isto @, enunciades sem referéncia situacional’’, e mesmo essa “denominagio” com que E. Benvéniste faz “'a operagaic ao mesmo tempo primeira e tiltima de uma ciéncia?8 [mpée-se imediatamente algumas reservas. Em primeiro lugar, o engenheiro espanhol apela amplamente a um imagindrio pré-cientifico, Por exempla, sua concepgio do cor po urbano n&a é somente inovadora: ela também remete & “psi- cologia” aristotélica®? ¢ & teoria cartesiana dos animais-miquinas, Da mesma forma, longe de eeantond-lo no campo epistemeldgico tragado por Claude Bernard, Darwin ¢ seus contempordneos, a analogia arganicista As vezes conduz Cerda a reencontrar diante do ser urbana certas formas arcaicas do yitalismo ou do animis- mo antigos @ renascentes®, cuja sobrevivéncia trai a carga de mistério, quando nae o peso migico ou religioso, com que a ci- is lapidares & 4 34. "A casa do homem moderno fe e cidade), maquina magnifica: mente disciplinada, trard a liberdade individual", fa Ville radieuse Cp. 143); ou ainda, p, 190, 8 cidade “méquina de circular”, (Parenthéses de Le Corbuster.) 55. Idem, p. U1. Entre muitas outras fdrmulas do mesmo tipo, eltemos apenas para lembrar as “fatalidades bioldgicas” e a "blologia mortal’ que pesam sobre os "tragados erréneos" do passada (yp, 138 3139), ou da a “célula humana de 14 m* por habitante’, “Dbiologiea- mente boaem sl {conforme ad ser) ¢ suscetivel de multiplicagie ao infinito (dé aeordo com og recursos fornecidos pelas técnicas moder nas)” [p, 143, Parentheses de Le Corbusier), 56, Lop, p. 118; Fst, p. o06. 87. Cf. J. SIMONIN-GRUMBACH, op. cif, pp. 110 e ss. Cf. infra, p. 188, n. 194, © p. 147, m. 226. 58. Problames de Ungtistique générale IL, p. 247. Para a denomi- nacho na Teorta, cf, supra, pp. 271-272. 59. “Até agora nossa andlise se prendeu exclusivamente A parte ma- terlal que conforma da modo © corpo da cidade, fazendo quase alléneio sobre sua parte humana que constilui a alma e a vida da cidade, isto €, sua populagdo, a0 passo que na realidade, a Meira é apenas o instrumento posto a servigo da segunda” (Lop, p. 183: Est. t. 11, p. 2) 80. CZ, por exemplo, a passagem onde Cerda’ assimila os 2 ag jonelas da casa a “Srgios correspondentes nos olhios @ A aud (Lop, p, 130; Est, p. 412), A TEORIA DO URBANISMO ait dade continua lastreada no correr do iempo, e fala bastante da diticuldade de seu enfoque abjetivo. Depois, a intengdo norma- tiva que anima a T¢oria faz desviar, como veremos adiante, os enuncidos de [ato para uma axiologia. Feilas estas reservas, a T'eorla nos coleca na presenga de uma série de enunciados cientificos ¢ de uina teoria que os in- tegra? No que diz respeito ao primeiro ponte, e embora seus empréstimos is ciéncias da vida tenham por vezes levado Cerda a desconhecer a especificidade de seu objeto proprio, o pensa- mento de Darwin lhe permitiu melhor cercar a evolucde do esta- belecimento humane, que ele descreveu como pioneiro da geo- gratia urbana. No que concerne ao segundo ponte, em compen: sacio, a utilizagao da palavra nao deve iludir. A Teoria niio sa- tisfaz uma série de exigéncias atualmente caracteristicas de uma teoria cientifica: 9 capacidade explicaliva, a capacidade de pre: visio, a transitividade e sobretudo a refutabilidadeS!, Quer ela se apie sobre a histéria e sobre o papel que nela iepresenta a técnica, quer vd buscar na biclogia a metdfora organicista, a construgdo de Cerdé se situa num nivel de generalidade que faz The faltar a complexidade dos fenémenos de cultura. Sua margem de adesio aos fatos ¢ limitada. As mesmas raz6es, as quais de- vemos acrescentar sua dimensaa normativa, privam-na de valor de previsio, Enfim, a “teoria” de Cerdi ¢ apresentada como uma verdade fixa e imutdvel, em termos que podemos imputar aum cientificismo, mas que dependem bem mais de um enfeque utopista, A parte dada pela Teorfa a um verdadeiro discurso cienti- fico parece, pois, afinal, muito real, mas limitada: redugiio subli- nhada, por sua vez, pela precariedade dos enunciados niv-situa- cionais, permanentemente ameagados pela intervengio em pri- meira pessoa do enunciador, . 1.2. Medicatizagdo e Utopia A redugiio da urbano ao biolégico tem como correlativo sua medicalizagao, Pode-se até mesmo pensar que constiliti a preocupa- fo primeira de terapla que levou Cerdé a tratar a cidade se. gundo procedimentos tirados das ciéneias do ser vivo, De qual- quer moda, a medicina clinica é para ele a finalidade da medi cina experimental ¢ o urbanista é assimilado ao mesmo tempo ao fisiologista e ao médico, Com Cerd& o urbanista veste, para nao mais abandend-lo, 0 easaco branco do terapeuta. A cidade esté doente, Cabe ao prético procurar as causas da doenga, fazer-Ihe o diarnéstica, aplicar remédios. A terminologia médica funciona de uma extremidade a autra da Teovia®, Assim, segundo o mesmo en- 61, ae R. POPPER, La Logique de la découvert scientifique, rat is, Payot, 1978, pp. 88 @ ss. » para as férmulas mais impressionantes, Lop, pp. 75, 78, Fat, pp. 1, 12, M, 16, 17, 606 oe A REGRA BO) MODELO foque que dera origem ao panoptismo ¢ j4 marcara uma parte dos textos do pré-urbanismo. Cerda transporta, sem inquictude meto- doldgica, as nogdes de normal 4 de patolégico para o campo do social, oculta a diferenga das normatividades em agio na medi- cina ¢ na anttopologia, ignora que a organizayao do espaco hu- mano depende das normas da cullura e da ética. Em suma, por meio da analogia médica, cle desdobra o objeto inicial da ciéneia urbanizadora, que se transforma em dois abjetos segunde o en- feque da utopia. A abordagem clentifica e cientificista do munda construido pela teoria do urbanismo se presta a um investimento pela utepia na mesma. medida em que uma e outva forma textual colocam desde logo a cidade como objeto. O organicismo dos tratadistas oferece a prova conirario, Se Filareto™ e Scamozzi empregaram amplamente a meté[ora do corpo, ¢ mesmo a metéfora médica sem nunca deseambar para a utopia, é que se situavam numa 16- gica do projeto: o urbano era para eles um processo a ins am nenhum momento um dado a partir do qual reagir, E somente fazende da cidade um objeto de conhecimento cientifice que se deve carrelativamente converté-la em abjeto utépico. Mas nos expomos efetivamente a isso quando a cigncia de referéncia tem aplicagdes corretivas, quanda, particularmente, entra em jogo a medicalizagao que, como vimos®, contaminou, desde o inicio, a maioria das ciéncias humanas, Para Cerda, a articulagio de um caminho “cientifico” com um conjunto de elemenias utopistas é tanto mais facil quanto o engenheiro espanhol nao se coloca apenas como prético, mas como pensador social, que aborda as problemas da saciedade ocidental em seu conjunto, ¢ nao setorialmente. Por isso, a doen- ga urbana n@o para ele, como © sera pata intimeros tedricos ulteriores do urbanismo, uma patologia do espago: ela consiste numa hipertrofia do sistema econémico dominante, iste é, do capitalismo. Em neme de um liberalismo, Cerda denuncia @ ex- ploracda® da classe operaria pela classe dominante. Assinala em particular seus dois aspectas estreitamente ligados entre si: a re- dugo dos saldrios ao simples custo da reprodug&o da forga de trabalho® © a especulagtio fundidria. “OQ desejo imoderado de 63. Cir FILARETO, op. p. 60, Livro I, f. 75, 64. Supra, Cap. §, pp. 234 ¢ ss, 65, Esse fermo, que reaparece freqiientemente na Teorfa (cf. parti- cularmente Lop., pp. 143 a 146; Est, pp. 156-406), acnba por designar uma classe social: “A exploragdo coasiderou a liberdade doméstica como um luxo supérftiuo” (Lop, p. 143; Est, p. A5Gh, 66, © argumento ¢ resumido no comego da Monografia Estatistica da Classe Operdria em Barcelona, Lop. pp. 198-199; Est, t. Of, p. 560, "A moradia constitui a primeira necessidade do homem social, qualquer que seja a classe a que pertenca; se a satisfagka dessa necessidade absorve o essencial des recursos, como poderia fazer frente as outras necessidades, fisicas e morais, da existéneia?’’ A THORIA DO URDANISMO Pi) especulugio dos proprictérios fundidrios urbunos", a maneira sis- temidtica como esses exploram o espaco para “socorrer as neces- sidades do mercado com frenesi” sao. descritos em paginas no- taveis®?, Nesse quadro clinico geral, o mau funcionamento da espago urbuno constitui nfo sé o sintoma mais visivel da doenga social, como também seu agenteS#. Mais exatamente, o espago urbane € 6 suporte de todos os cacifes sociais. B através dele que se joga o destino da sociedade. E o pharmaken platénivo cuja face venenosa au, no caso, deenie nunca foi deserita, antes da Teoria, com igual espirito de sistema, Nova Raphael Hythle- day, cujo papel de viajante e de veyeur-testemunha, Cerda, 0 “ob- servador-[ilésofo", arrasta seu leitor para uma “visita imagindria” gragas A qual ele pintard o quadro dos tragos patoldégicas da cidade contemperanea. A cidade doente ¢ apreendida primeira mente de modo global, numa espécie de visio longinqua ¢ pano- raémica, que revela “‘um imenso caos’®*, “amédlgamas fldicules”™ e, de cambulhada, aberracées, contradicSes, danas de uma urba- nizagio “'viciasa, cortuptora, antipolitica, imoral ¢ anacrénica’™, Em seguida, a critica detalha uma série de close-up sucessivos sobre o conjunto dos elementos constitutivos do urbano?: desde os arrabaldes e as muralhas “‘irvacionais, funestas, tiranicas [que], depois de haver comprimido as forgas urbanizadoras do nticleo urbana, converteram em deserto uma grande extensiio de terre- nos que poderia ter sido urbanizada com vantagens para a grande massa das populacGes que sofrem a dura lei do monopdlia fun- didrio”™, até as casas, que a “légica da exploragio” transformou em “tugtrios repugnanies € malséos'’74, passando pelas vias que 87. Em particular: Lop, pp. 183 a M6; Est., pp. 888 a 464, 68. “Vi clara e distintamente que esse organismo fa cidade] com os defeitos essenciais de que ele sofre, incompleto em seus meios, mes- quinho em suas formas, sempre coxstrangedar ¢ sufocante, aprisiona e tém sob constante torkura toda a humanidade que [...] hita sem cessor para romper definitivamente a tirimica casca de pedra que a aprisiona” (Eop. p. 76; Est., pp. 1218), Compreendendo esse papel da cidade, Cerda julga ter “‘supreendida in fregrantt a causa primordial desse mal-estar profundo que as sociedades madertas sentem em seu selo, @ que ameaga sua existéncia’ (Lop. p. 76; Fat, p. 12). 69, Est, p. 267 (nao traduzido). fa. Lop, p. 169; Est, p. Tal, 71, Lop, p, 141; Est, p. 446. 72. Cada um sofre a focalizagfio critica em duas vezes, quando do exame anatémico, e depois por ocasiao do exame fisioldgico tratado sob a designagio de “funcionomia”, 73. 73. Lop, p. ll; Hat, p. 250. 74, Lop, p. 141; Est, p. 446. As "caréncias e misdrias da casa atual’ que, “tratada como um artigo de comércio qualquer", “deixou [de ser] o simbolo da morada do homem” e “mais do que a uma habitagio se assemelha ao antro de destas feras" (Zap, pp, 144 ¢ 140; Est, pp, 459 2 422) s#o denunciadas com violéncla, tar do ponto de vista de seus efeitos (alojamentos como “lugares de promiscuidade e de conflites”’, Lop, p. 136; Bed. p. 408), quanto de sous caracteres espaciais © fisicos: 230 AREGRA EO MODELO obstaculizam a “comunicabilidade” através de seus tragados, suas dimensdes, seus revestimentos, ¢ a higiene par sua estreiteza ¢ pela altura dos imdéveis que as bordejam, sem omitir as ilhotas reta- Thadas, superdensificadas pela especulagio e privadas de sal. Assim, Cerda foi o primeiro a inserlr no balancgo ds pato- logia urbana a rua-corredor e o patio-poco™, fururos cavalos-de- batalha dos Congressos de Habitagdo Higiénica, de Tony Garnier e dos CIAM. Mas nassas poucas citagdes mostram bem que esse quadro clinico, tracado de maneira tio pouco serena, ¢ na reali- dade um quadro eritico e que, longe de traduzir, como o quereria 8 o pretende Cerda, a impussibilidade do cientifico, trai o jufzo do valar reformador. De fate, o quadro clinico da cidade moder- na resulia ao jnesmo tempo de um discurso fatual ¢ de um dis- curso engajado. E enquadrado e organizado pela critica correti- ya™8, caracteristica da utopia, que engendra a imagem pas oposta termo a terma do objeto posto em causa. A imagem positiva da cidade sadia e adaptada a suc gdes nfio deveria ter lugar nos dois volumes publicados da Teoria, que séo explicitamente consagrados & “urbanizagio como fate concreto”. Logicamente, essa imagem de uma cidade que néo tem realidacde, e acerca da qual o proprio Cerda diz que ainda nao tem existéncia’?, somente deveria aparecer na segunda parte (fal- tante), dedicada & “teoria”, No entanta, ela estd presente, dita no presente do indicative, de parte a parte do texto publicado. Cerdi nfo pode impedir-se de capta-la, antes do tempo, no es- pelho da critica, de invoed-la em sou detalhe a medida que se precisa o quadro clinico da qual ela é a outra ¢ a verdade. Ver- dade ao mesmo tempo da norma médica ¢ do ideal utspico: esse deslizamento que permite a superposigiio e a coincidéncia dos dois géneros textuais faz com que a abstragic constituida pelo organismo urbana tedrico se benefice da mesmo estaluto ile existente que a cidade real. Em outras palavras, a cidade ideal, normal ¢ nermativa, de que Cerd& nfo conhece exemplo, segun- do ele prdprio reconheee incidentalmente, é entretanto evocada com a mesma intensidade, os mesmos meios lingtlisticos que a cidade atual. A deserigdo no presente do indicative da cidade contempo- ranea doente é reforcada por numerosos shifters e pelo (estemu- exigiidade, plantas ruins, ausamicia fle sol, auséneia de isolamento, Note- se a semelhanga das duas primeiras formulas gernis com as de Marx nos Manwseritos de 1844, trad, EB. Botigelli, Paris, 1957, Editions sociales pp. 101, 102. 73. Cf, entre ontras passagens, no caso da rua, Lop, pp. 128-129; Est., Dp. 355-358; para o patio, Lop. p. 143; Est, p. 454 (“esses patios ge assemelham a pogos profundos e sem luz onde se acumulam todas as espécies de imundicics [.. %. Lop. p. 182 Est, p- v7. Lop, p. le relime todas essas © — ae ee A TEORIA DO URBANISMO 281 nho em primeira pessoa do autor, Que, ocasionalmente, ela deva ser completada por uma deserigio de cidades antigas, o presente do indicative logo se apodera dessa, relegando as tempos do pas sado que a teriam transformado em relato ¢ teriam situado essas cidades numa histéria™, De fato, a apresentagdo dos tipos urba- nos do passado sé superpde, na Teoria, a uma histéria, propria- mente dita, do estabelecimenta humano. A primeira serve para precisar e embelezar a imagem da cidade-modelo, a segunda para enegrecer a da cidade real, Nao ocorre o mesmo com o léxico de Cerda que néo serve para a articulagio e o deslizamento uma pela outra das duas figuras do discurso clentifico e da utopia. Sem ter consciéncia disso, © autor da Teoria utiliza um vocabulério que Ihe permite tio bem jogar nos dois quadros que o leitor j4 nao sabe em que lugar textual se encontra, Efetivamente, como extravid-lo melhor senféo desviando certos vocdbulos de seu uso, por exemplo apli- cando o canceita de verdade aos componentes ideais da cidade, e ode perfeigso a uma norma urbana julgada positiva? Quando se refere a uma “urbanizacio perfeita’™? e invoca a “verdade” de um alojamento tipico, Cerd’ joga pela primeira vez um jogo de associacda ¢ de embaralhamento de que se apropriario todos os tedricos do urbanismo e no qual Le Corbusier seri mestre quan- do emprestar A sua cidade radiosa organizagdes “perfeitas”®? ¢ um plano “justo, verdadeiro e exato”8l, _ Nesse movimento de vaivém que confunde o enunciado cientifico e a deserigio utépica, a verdade da ciéncia é transfor- mada em solugio salvadora radical®?, em modelo. Cerda condena as solugdes de compromisso®. Ele considera medidas de transi- fo somente a tilulo diplomitica e provisério, essencialmente no cnso de aglomeracdes preexistentes. Reconhece-se af a intransi- géncia maniqueista da utopia, segura agora do aval da ciéncia que doravante torna inttil a personagem do herdi, inventor do mode- lo, ¢ © substitui pela do cientista®. ‘A mesma superposigfio de duas cidades antigas, uma paradig- ca, descrita no presente, a outra, histérica, descrita no passado, se encontra em Sitte (of. infra, p. 300). 19, Lop. p. 80 6 p. 97; Bst, pp. 17 e 199. 80. Za Ville radfeuse, p, 148. Cf. também os cruzamentos nas et eruzilhadas perjeites, p. 123. 81, idem, p. 184. Cf. também pp. 149 € 153, 83. “Destinada a regenerar @ urbanizagio e por conseguinte a s0- ciedade” (Lop, p. 147; Est, p. 407). 43, As quais ele ope 2 solugio que “consiste em entregarse in- teiramente mios da ciénela, em obedecer-Ihe cegamente, faxendo udo o que ediste, para submeter as realizagdes a seus itealos” (Lop. p. 178; Est, p. 414}, [0 grifo é nosso. Of, infra, pp. 284, 287 a 308, 282 AREGRA EO MODELO 3. Domindncia da Figura de Morus: Os Falsos Tragos Albertianos js Mas trata-se realmente de um modelo utépico? Cerdi evaca realmente uma “cidade-modelo’'®5, No cntanto, a nogaio de modelo urbano nio € univeca na Teorfa: por vezes ela designa um objeto, em outros casos, refere-se a um método e a um sistema de regras. Ora, conforme as exigéneias do paradigma moreano, Cerda desereve os constituintes-modelo (normais e sfos) de uma cidade (cu organismo, normal ¢ so) ponto por ponte opanivel As aglo- meracdes da sociedade industrial; e a cada um dos elementas criticados da “urbanizagao contemporanea”, ele contrapée ele- mentos-modelo, vias, entrevias e alojamentos, verdadciras objetos cuja morfologia e, se for o caso, cujas dimensdes cle especifica. Ora, a0 contraria, parece olhar para o paradiema albertiano: a cidade-modelo nao tem nome prdprio, sua imagem permanece delicada; a despeito da clareza com que sfia revelados seus com- ponsntes, ela é enearada camo um problema metodoldgico. Cor. relativamente, a investida contra o espago pelo construir assume em Cerdi, o mesmo valor que entre os tratadistas. A cidade deve se espalhar: “Yemos com repugnéncia tudo o que limita e opde obstéculos ao desenvolvimento de uma cidade®5_ Acontece o mesmo com o alajamento individual cuja “extraardindria exten- sio’®? desde os inicios da urbanizagio a Teoria evoca maravi- thada. Atitude inversa do caminho utopista, que Le Corbusier poderia ilustrar quando denuncia “a prépria desnaturalizagéa do fenémeno urbano” pela “expansio desmedida das superficies acupadas” ¢ se atribui o objetivo de “amontoar a cidade sobre si mesma’8, de “anular a distancia’’®9, Qual € o significado dessa ambivaléncia? Quande Cerda anuncia a seus leitores que ““a cidade-modelo sera construida de acardo com os principies [da Tratado tedrico™]”, poe em agia jentamente dois sistemas normativos incompativeis, os da regra e do modelo, tirades respectivamente dos dois pa sdigmas ins- taurados? De fata, aqui naa se trata de repr mas de leis, ¢ o uso, comum a Alberti ¢ Cerda, do termo “principio” deixa ape- nas pressentir algumas analogias entre seus caminhos®!. No en- %5, Lop, p. 183; Est, p, 610. 86. Lop, p, 108: Est, p, 351 ai. Lop, p. $4; Fst, p. 114. 88. La Ville radieuse, p. 107. 89, Idem, p. 143. Na ade Radiosa, “tudo ¢ coneentragio, nada 6 dispersiio” (idem. p. Inversamente, a cidade atual é estigmatl zada porque @ “aberta, espalhada, ramificada alé os longinguos horizon- tes" (idem, p. St). 90, Designacio da terceira parte, faltante, da Teoria (Lop, p. 153; Est, p. 610). [0 grifo é nossa.) Sl. CL. infra, pp. 310 © ss. A TEORIA DO URBANISMO 383 tanto, quaisquer que sejam a natureza e a importincia dessas analogias, 0 conjunto dos principios e das leis cerdianas, parte integrante de um método de concepedo, nao tém, na Teoria, genio um yalor seméntico ¢ ndo-semidtico. Ao contrério dos prin- cipios ¢ das regras albertianos, no sé nao detém o privilégio exclusiva de comandar a edificagao, mas também e sobretude na tém qualquer efeito sobre a morfologia do texto. A arquitetura textual da Teoria & totalmente subtendida e organizada pela re- lagao dual, propria da utopia, entre uma critica da ma cidade existente e wim modelo da boa cidade destinada a substitui-la. Todavia, podemos nos perguntar se um relato de origem de lipo tratadista, situade na primeira parte da Teoria, nfo Wabalha efetivamente @ texto e nfo permite que Cerd’ opere uma sutura, desta vez, funcional da figura do tratade com a da utopia. Com efeito, Cerda apresenta, acima de seu préprio modelo espacial engendrado por uma critica sistemdtica da cidade contempora- nea, uma espécie de arquimodelo, a urbanizacdo ruralizada, que teria tido uma existéncia real, mas num tempo a-histérico, O relato, cujos dois painéis ocupam respectivamente, na primeira parte da Teoria, todo o primeira livra ¢ um espaga importante do segundo, teria a [ungio de fundar esse arquimodelo. No primeiro painel, Cerda indica desde logo que a origem da urbanizagado nfo deve ser buscada na histéria das nagoes nem na de um pove qualquer, porque “a urbanizagao existia antes que esse pove existisse”. Vamos encontré-la “na histéria da humanidade [...] niio nessa histéria como foi escrita [mas] na histéria do homem priniiiiyo, do homer natural, puis o primeira homem deve fer possuido necessariamente umn abrigo, win refi- gio. Nessas bases, Cerdi reeonstitui um cendrio original, Poco obstrufdo com floreados ou com psicologia quanto o do De re aedifiegioria. “A primeira tarefa [do primeiro homem foi procurar um abrigo, Depois, uma necessidade inata a levou @ procurar a ajuda ec a companhia de scus semelhantes; os abrigos foram postos em comunicagio, ¢ é esse processa que constitui a urbanizagao**8, Por mais simplista e rudimentar que seja esse squema dualista, Cerda Ihe atribui um valor capital, ¢ para nds ignificativo: “L...] origem insignificante [.. .] origem da mais alta importancia para a filesofia, origem que convém & humani- dade buscar ¢ conhecer porque a vartir dai é que foram forma- dos os princfpios essenciais da ciéneia urbanizadara’™. Por isso, a despeito de uma menor complexidade, esse pri- meito painel narrativo da Teorfa® € compardvel aos relatos de Lop, pe Fst, p 4, Lop, p 24 AREGRA EO MODELO origem albertianos, a uma espécie de sintese entre o primeira relato do Prdlogo » a segundo relato do Livro T, Cap. II. © epi- sédio cerdiand estd situado na mesma temporalidade a-historica cuja reconstituigao € igualmente reivindicada pelo autor; ocupa a mesma situagao liminar na solcira de uma obra cuja organi- zagao ele contribui para enformar, fornecendo os dois pélos — repouso ¢ movimento, alojamente e circulacao, pela primeira vez destinados a uma atengiio exclusiva — em torna dos quais, de capitulo £m capitulo, sistematicamente, gravitam a historia, a anatomia e€ a Fisiologia da cidade. Enfim, lendo, nas primetras linhas, a celebragio da urbanizacac®, vendo ser essa tratada como causa e méo como conseqiiéncia da civilizagio e do desen- yolyimento da humanidade®’, sente-se que a urhanizacdo aqui simplesmente substitui a edificagiio, num relate que teria om mo funcionamento que o de Alberti, Entretanto, cabe observar que, a0 contrario des axiomas ¢ dos principios do De re aedifi- catorid, os prineipios cerdianos supostamente nfo tém necessida- . de de fundagao, Sao dirclamente avalizados pela ciéncia e nao desempenham qualquer papel na estruturagio do texto, O pri- meiro painel nfio pode, pois, ter funcao real ou declarada no paradigma cetdiano onde se pode [é-lo como um anacronismo ou como um ato falho. Quanto ao segundo painel, seqiitneia do primeiro, ele se inscreve, ndo sem dificuldades, © a despeita do plano e dos ti tulos explicitos de Cerda, na primeira Parte do Livro H, que supostamente traga © “desenvolvimento da urbanizag3o’? nos tempos pré-histiricos e histéticos. Com efeito, uma vez munido de seus dois prineipios de repouso ¢ movimento, ¢ depois de ter afirmaco que “a histéria da urbanizagio é a histérie do homem "4, Cerda adia ainda mais a entrada na histéria (deve-se “renunciar & ajuda da histéria se se quiser deserever desde suas origens o desenyolvimento da urbanizacio'®}, para mergulhat no intermédio de um tempo imagindrio, que novamente cle re- 93. No registra da necessidade, ele serve para fundamentar os seis prineipios bésicos da edificuc3o, ao passo que o primeira painel da 80 diz respeito aos dois prince: gerais (repouso @ movimnentoy da urbanizaciio, 56. "A urbaniaagio que nascou com ele ¢ sa desenvotveu com ele o homem deve tudo o que ele 4, tudo o que ele pode ser nesse mundo” (Lop., p, 86; Est, p, 41). 87, “A urbanizagio conduzin fo homem) aa estado de . ensi ne a cultura, Ela o civilizou" ibid. J. Cf, também: ‘Veremos cond Oa elementos cssenciais [da urbanizagio] caminham na mesmo passa que a civillzagko, on melhor, como a urbanizacao precede-a e prepara o cam! que em seguida ela terd de seguir” (Lop, p, 87; Est. p. 80). 98. Lop, p. 87; Est, p. 50. 99. Est., p. $8 (nfo traduzido). A TEORIA DO URBANISMO 286, constitui, a partir da nogfo de natureza humana. “Quem nos for- neceré as informagGes necessdrias [sobre esse tempo do qual nao subsistem testenunhas]? Resposta: o homem, sua natureza, seus instintos inatos, seus desejos™100, A andlise do que é proprio do homem permite entdo a Cerda elaborar trés novas seqiiéncias correspondentes ao aparecimento de tres noyas formas de urbanizacao. £, primeiramente, no mesmo tempo imaginario que no Livro I, a “urbanizagio elementar pri- mitiva!0l das sociedades que tém uma tinica atividade, Em seguida, na tempo, que se chama eo mesmo tempo his- térico ¢ inocente, em que os humanos saem de sua flo- resta original, ocorre a “urbanizacéo combinada simples'!2, Finalmente, emerge o arquimodelo, a wrharizacdo ruraliza- da. Entéo, no se trata mais, para Cerda, de definir como no Livro J, gestos primordiais, mas antes um verdadeiro objeto- modelo: consistindo de uma casa unifamilial, cercada de uma rece de veredas ou de vias ptiblicas, ¢ indefinidamente multi- plicdvel, esse modelo revela ser efgito e causa de progresso, mas também ponto de partida de uma queda, origem do processo de degradagaa que mio cessa, depois, de atingir nosso ambiente construide. A articulagio das tés seqiténcias do segundo painel do es- quema de origem entre elas e com o primeira painel nao deixa de apresentar dificuldades devidas 4 impreciséo e a heterogenei- dade das cronias em que se desenvalve o relato, Nao estd clara a fronteira que separa um primeiro tempo, mitico ou imaginario, ie um tempo secunddrio, real e no entanto ainda inecente. A urbanizacao ruralizada, por sua vez, ¢ atribuida primeivamente fis tribos “imagindrias" entre as quais “a urbe 6 todo a campo de estabelecimento dos agricultares3, Em sepuida, “essa obra- prima da urbanizagao, a mais adequada, a mais digna, a mais perfeita que a sabedoria humana produziu'!, ¢ apresentada, sob uma forma mais elaborada, como a obra de uma sociedade “ver- dadeiramente histérica”, que soube combinar diversas atividades, e cujos vestigios Cerda localiza em torno de Babilénia!03, Mas nao situa com clareza o momento em gue se rompe a bela inge- nuidade original, nita-se a indicar que o processo de degra- dagio comega quando os povos passam a crescer e multiplicar- Jon, Fst, p. 87 (fio traduzide), 101. Livro TI, Cap, I, Ela compreende trés fases: troglodits, cicld- Plea © tugdrica (em cabanas). 102, Livro II, Cap, 11. 109, Lop, p. 90; Fst, p. 96, 104, Lop, p. 90; Est, p. £22, Lop. p. 9 st, p. lid. Embora a cidade que ele acaba de ever poxssn "parecer uma entidade puramente ideal’, Cerdh afirma, tanto, que as descobertas arqueoligicas confirmam hipdt 1 266 A REGRA EO MODELO se. Ele nao especifica se se deve atribui-lo & diferenciagio das culturas on a tima peryersiio do instinto humano que, sob a pressdio do espirito de lucro ¢ de competigao, faria aglomerar as cidades sobre si mesmas e construir em altura. Uma explicagiio através do-crescimento demografica teria sido compativel com o positivisme de.Cerda, Esse nfio a tenta jamais, Mais, esse pro- gressista milifante, esse campeio da industrializagio, nic hesita, sem_o cuidado de se contradizer, em descrever o destino do am- biente construida como discipulo de Rousseau, .- Ossegundo painel do “relate de origem" cérdiano parece, efetivamente, funcionar como garante de um modelo espacial, reacional ¢ artificial, cuja forma arquetipica e “natural” ele apresenta, Afasta-se, pois, do esquema candnico de Alberti, Fm- bora carregado de reminiscéncias tratadistas, nao cansegue man- terse na continuidade de um tempo abstraio. Nao pode avalizar um modelo, ¢ portanto uma escolha axioldgica, a nao ser intro- duzindo um tempo real ¢ contando a histéria de uma queda, O relato fundadar € substituido por um relate escatoldgico, E contra a corrente dessa escatalogia, definitivamente to pouco, funcianal quanto o primeira painel do relato, que se deve ir buscar o garante efctivo do modelo: a nogio de natureza hu- mana. E essa nogao cheia de conotagées cientificistas, carregada também de uma heranca rousseauista, que articula os dois pai- néis do relato cerdiano, explica a atividade original descrita no primeiro e legitima o modelo apresentade pelo segundo. Por sua ambivaléncia, permite a passage do plano dos fatos para a plano dos valores, a confusda e a assimilacdo do enunciado ¢ da norma, A natureza humana, tal como Cerda pensa ser ela depen: dente de um caminho “cientifico”, é entendida em termos subs- tancialistas, mais bem afinados e articuldveis a um texta ulépico. do que a um tratado. Que sc reporle & descrigao da edificagao que faz Alberti em seu relato de origem do Livro I do De re aedificatoria, Coloceda como uma seqiiéncia de operagées, ela constitui o que chamariamos hoje um invariante cultural univer: sal, imputivel 4 natureza humana. Naturalmente, essa nogao nfo aparece no tratado de Alberti. Todavia, o intérprete atual ign razéo em ver na_atividade edificadora, assim —apreentida’ (ght seu surgimenta, uma competéncia cujo contetido ¢ indeter. ‘mninado, Cabe precisamente a (a natureza de) a hamem preenché- . lo, ao sabor do que he é mais consubstancial, sua demande e seu desejo, quer esse se manifeste no plano da comodidade on do 105. “A cada progresso da hum: ade, a urbahizagio ruralizada, que € a tniea verdarleiramente natural e adaptada ao homem, [...1 sempre perdeu algo de preciosa,” A despeito da cosréncia de sou pro- prio. pensamento, Cerda acrescenta: "Sua sorte ¢ a da liberdade indi- vidual que, & medida que progrediam a cultura e a constantemente novas r A TEORIA DO URBANISMO 287 prazer. O que faz as vezes, assim, de natureza humana no De re aedificatoria paderia ser definido como um potencial de de- sempenhos possiveis numa multiplicidade de campos, tais como os do construir ou da linguagem. Na Teovig, em compensagiio, a alividade oviginal da edificaclo leva, desde logo, a um dado objetivo, o corpo humano: o homem repousa e © homem mexe- se. A natureza humana € uma substéncia que coloca sua marca no texto, assinalando af as zonas proibidas & penetragfio trata- dista, Uma vez mais, impée-se a comparagio com Le Corbusier. A natureza humana que este vai buscar “no mais profundo’107, sob os esttatos de artifieias em que a enterramos, o “homem de sempre”, o “homem-padrao’”’, essa “natureza eterna”, essa “cons- tante C...] que praticamente néo muda’0#, é sem hesitagholl® definida como um corpo e¢ dotada de um estatuto ontoldgico que o préprio Rousseau nunca atribuiu a seu “Shomem da natureza”. E com respeito exclusiva a essa entidade corporal é que o arqui- teta empreende um drdstico inventdrio das necessidades humanas de basel0, Quanto @ Cerdi, menos unidimensionat!, procura compa- libilizar a desnaturalizagfio que o tratadista reclama nele, com © habliat natural que © rousseauista ¢ o utopista exigem. Recusa inserir a natureza humana num corpo desenhado com demasiada precisio, Todayia, a despeito dessa engomadura, a natureza humana continua sendo, na Teoria, o acontecimento e o dado originals que, ao mesmo tempo, esclarecem a histéria ¢ aveliam a modelo, articulande um conjunio de tragos utopistas ¢ um enunciado que pretende ser cientifiea. O trabalho dessa nogio suprime a funcfio de um relato de origem. Reduzido a uma en- genesa aparéncia, lembrenga inassimildyel de uma tradigio 107. Op. cit., p. 93. 108. Idem, pp. 93, 142, 97, 126, 108. “Qual ¢ o homem moderno? BE uma entidade imutdvel (0 eorpo}, munida de uma consciéncia nova" (idem, p. 92). “Le Corbu- sier's Concept of Human Nature” (Critique, IIT, The Cooper Union School of Art and Architecture, New York, 19741, mostramogs como Le Corbusier, no curse de sua definigio progressiva do homem moderno, ‘hega a eludir completamente a definicho da “consciéncia moderna”, nonte esvagiada de taco contetido. 10, “Retornemos ao préprio fundo da natureza. Inventariar suas sidades. Conclusic: salisfazer a elas e somente a elas” (LE COR- BUSIER, idem, p. 151). lll, Em “Le Corbusier's Concept of Human Nature”, p. 150, puse- mos em evidén no -entanto, ums répida ¢ estranha passagem que se assemelha a um ato falho, de Le Corbusier se entrega a fascinacio da desnaturalizagao e do artificio, para exaltar “cidades onde nada mais existe do que era normal: @ meio natural, mas onde reina uma outra norn sedute utépica, sem limite, profundamente Cspirite” (op, cit, p. $2), Curlosamente, a palavra “utdpi af numa das rarag passagens do livro que nio tem a marc 288 A REGRA E © MODELO textual bem conhecida de Cerdi, o pseudo-relato de origem da Tearia revela-se tio intitil quanto o teria sido um relato herdico (ficgao do motive) que Cerda nda esereveu: primeiramente por- que ele nfo assumia a dimensfio utépica da Teoria, em seguida porque, a seus olhos, é & ciéncia que cabe fundamentar o mo- delo- espacial. 1.4. O Trabalho do Eu Tratadista Toda forma narrativa funcional ndo é, entretanto, excluida da Teoria. As seqlitncias descritivas e os “‘discursos”, camo as reconstituigées histdricas que os susiém, sao englobados num grande relato que comega na primeira linha de livro para ter- tninar na ultima, Relato formulado na primeira pessoa do sin- gular, levado ao pretérito, pontilhado de shifters miiltiplos que, como no De re aedificatoria, imprimem a marca do narrador sobre todas as enunciagGes da obra: trata-sc, enfim, de uma for- ma traladista auténtica que trabalha no texto e que, por sua vez, neutraliza ¢ converte em citagGes as tomadas-de-palavra do eu utopista. Isto porque, oulrossim, a primeira pessoa utopista da ficgio da perspectiva perdeu sua [ungio a0 mesmo tempo que desaparecia a fiegdo do motivo que Ihe cabe engastar. A articulagao dos elementos da figura tratadista cam os das duas outras figuras postas em jogo na Teorfa encontra seu lugar no relato do sujeito-herdi de Cerda, o construtor-eseritor, autor do livre, Sujelto capaz de assumir e fazer sua a palavra veredic- toria da ciéncia, e ao mesmo tempo de absorver as duas perso- nagens da ficefo utopista, a do escritor-voyeuy e a do herdi- realizador de cuja vocacio mitica e salvadora ele se apropria. Por. intermédio desse relata tratadista ¢ dos deslizamentos permitidas pela sua articula com um conjunta de tragos tira- dos da figura da utopia, a Teoria trai, com muito maior clareza’ que qualquer outro tratado, aquilo cuja existéncia ele se arroga a missao explicila de negar: a dimensfio sagrada e o peso das proibigées tradicionais que pesam sobre a edificagdo. De um lado, com efeito, Cerda inicia seu livra com uma adverténcia ao leitor, seguida de wma apresentacfo, depois de um prefécio & primeira parte, no curso dos quais, exatamente como Alberti no Préloga do De re aedificatoria, traga sua histd- ria intelectual nas relagdes que ela mantém com seu livro, O chaque provocada pela descoberta das aplicagdes praticas do va- porll2, a tomada de conseiéneia do cardtér anacrénico das cida- 112. “Ainds me lembro da profunda impressaa que senti euando, muito jovem ainda, vi pela primeira voz em Barcelona, a aplicagho da vapor &s maquinas industriais {.,.] Pouca tempo depois (...] no sul da Franga [,.,] descobri a aplicagka da vapor & locomacia terrestre, ORIA DO URDANISMO one des com relagfo aos progressos da técnica, o atestado da dupla earéncia do conhecimento e do poder diante do problema urbana, a decisio conseculiva de se consagrar ao estudo do “urbanismo”, é que slo sucessivamente as etapas dessa pesquisa pessoal, que dio seu plano ao livra, E se, ovasionalmente, a biografia parega inclinar-se para a contingéncia e, diferentemente da de Alberti, ceder lugar ao detalhe concreto, ao quotidiano, sempre se trata de melhor esclarecer a histéria intelectual do autor, permitinde especificar, pela data de seu nascimento, o contexto histérico de sua problematica e, pela natureza de seus estudos, o campo de suas competéncias, Ulteriormente, na seqiiéneia do livro, Cerda sublinha as dificuldades suscitadas por seu projeta @ a imensi- dade da tarefa a cumprir, interrompe uma descric&o para comen- ti-la, coloca-la em perspectiva do ponto de vista da situagita de enunciagiol4, Ele realiza, nesse ponte, uma homologia entre o De re aedifieaioria ¢ a Teoria que fazem igualmente coincidir as seqliéneias da deseoberta pessoal com as do métade proposio ¢ com a marcagio do livre. De outro lado, nfo somente o grande ordenador do urbano st apresenta como o herdi-salvadar que detém wire solugio, até entéo pracurada em vao, para o problema da cidade, mas tam- bém introduz em sua Adyerténcia um tema estranho aos iratados, o do “saerificio”. A constituigio da ciéncia urbanizadora ¢ as conseqiiéncias que dai pode tirar a humanidade somente se tor- naram possiveis porque o autor resolveu pagii-das ao prego de sua carrcira, de seu repouso, de sua vida particular, de sua for tuna. O fato de que, em menos de uma pagina, o termo reapa- -rega quatro vexes!l4 nfo deixa de ser significative e traduz outra coisa que nao os estados d’alma de um burgués do século XIX frente as perspectivas que lhe oferece a cra da técnica, O sacri- ficia do herdi Ihe ¢ imposta pela gravidade das transgress6es a que conyida seus Ieitores, serve para conjurar a violéncia feita i terra, que ae Teoria axiomatiza. e senti de novo a mesma impressio. {...] Era preciso encontrar o ver- dad objeto [,..] de minha surpresa [..,). O que atingira minha ima- inacho, era a visio desses Iongos emmbolos carregando, nos dois sen os [...] populagdes inteiras [...]" (‘Ao Leitor", Lop, p. 71; Est., pp. 66). 118. “Exar entho os catélogos de todas as bibliotecas nacionais @ estrangeiras, decidido a reunir uma colegio de todos os livros que iratassem esse assunto. Mas qual nfo foi minha surpresa quando cons tatel que nada, absolufamente nada, fora escrito sobre um tema ce ta- manha importaneia” (idem, Lop, p. 1%; Est, p. 8). 11g. “Assim [em 1849] tomei‘a decisio de fazer esse sacrificio em homenagem a idéia urbanizadora [ Confesso que a saerijicia que me pareceu o mais dificil de todos (...] fol o de minha carreira adqui- rida & custa de tantos esforgos ¢ onde eu havia depositado tantas espe- rangas. No entanto, seerifiguel-c sem hesltar [...] todos esses sacrift elas me parecem bem pequenos em comparagio com a grandeza do objetivo (...1" (Lop, pp. 774 Est, pp, 10), 200 4 REGRA EO MODELO Na histéria dos textos instauradores, Cerdé é o primeira a pronunciar esse termo, para nds esclarecedor atualmente!5: sacrificio que n&o realizaram abertamente nem o arquiteto-herdi Alberti, nem o herdi lendario Utopo, sacrificio que proclama o que as palavras calavam mas que dizia a estrutura mitizante dos dois paradigmas, a violéneia da edificacdo, 2. OUTRAS TEORIAS: DE SITTE A ALEXANDER A andlise precedente nos autoriza a falar de utna nova fi- gura textual? A organizegio que vimos desenharse nda apre- seta mais a mesma clareza que as do iratado e da utopia, No entanto, o paradigma cerdiano nos parece merecer esse nome na medida em que expée um projeto instaurador e o exprime numa forma original: pois, outrossim, ele trunca o funcionamen- to.de um enunciado de intengéo cientifica, encaixanda nele dois conjuntos arficulados de tragos, tirados das duas configuragdes instauradoras, Mas essa figura, descoberta num texto sem posteridade di- rela, somente assumird significado se conseguir organizar igual- mente as outras teorias do urbanismo. Nio podendo produzir a prova individual ¢ detalhada para a totalidade destas, tomei a decisto de me ater a uma amostragem restrita de textos signi- ficativos e de convocd-los a todos, para neles verificar a presenga e a articulacfa de tragos pertencentes respectivamente a cada um dos irés conjuntos discriminatives que atuum na Teorla. Para melhor descobrir desvios ou variagdes, escolhi de bom grado obras escalonadas no tempo, muito diferentes, ¢ retive apenas uma por autor. Com algunas excegdes, minha demonstragio utiliza apenas Camillo Sitte, Le Corbus : C, Alexander. © pai. © sc im. punha porque seu Siiédtebaull® ¢ a primeira teoria de urbanismo significativa publicada depois da Teoria, i qual se opunha ao mesmo tempo pela repercussao consideriivel que conheceu ainda cm vida de seu autor ¢ por scu enfoque, que afasta os problemas da comodidade para situarse unicamente ao nivel da beleza, Le Corbusier, representada por La Ville radiewselll, me parece dever ser incluido, em primeiro lugar, porque ilustra a tendéncia oposta & de Sitte, em seguida porque, embora nao tenha tido qualquer papel inaugural e¢ se tenha inserido numa cerrente (progressista} jd constituida!!®, sua obra escrita — a mais abun- 115. Cf. R. GIRARD, La Violence et te Saeré, Pari Der Skidtebau nach selnen Kiinstleriscken Gri Grasset, 1972. nisdize, Viens, Cf, supra, p. 275, n. 52, Da qual fazem parte a Ciwded Lineal, citada acima; Die Stadt waft, de T, FRITSCH, Leipsig, 1896; To Morrow, 0 Peaceful A THORIA DO URBANTSMO on dante, a mais difundida, a mais lida da literatura urbanistica — ftormouese uma espécie de simbolo, Alexander, com uma de suas ullimas obras, Une expérience d’urbanisme démocratiquel9, representa tendéncias novas: manifesta uma yontade de ruptura para com seus predecessares e reivindica uma diferenga acerca da qual é importante saber se permanece ou nao cativa de uma figura comum as tearias de urbanismo, 2.1. O Discurso Cientifico: Simulagdes e Realidades Todos os autores de teorias urbanisticas, com excesSo de Sitte, se valem, como Cerda, de um discurso cientifico, Mas, na quase totalidade dos casos, limitam-se a afirmar de manciva en- cantatéria e sem prova a cientificidade do urbanismo em geral, e de suas préprias propostas em particular, ¢ a produzir somente os indicies lingiiistieas da que seria um discurso ecientifice. Nao é, pois, de surpreender que esses textos miméticos nia conte- nham qualquer autocritica, nfio sejam objeto de qualquer ques- lionamento epistemelégico. Le Corbusier maneja de forma exem- plar esse terrorismo verbal: “Ja se esboga uma doutrina arqui- tetimica, internacional, fundada na ciéncia e na técnica. [...] As provas de laboratério existem"!"0. “Tudo € experimentado pelas ciéncias. Em todo o mundo hé edleulos, tracados, graficas, amostragens, proves’!21, Com respeito a estas afirmacées tio peremptérias quanto gratuitas, a mancira com que Sitte, quase um século antes, man- tém seu Stidiebau o mais perto possivel de um discurso cienti- fico, parece tanto mais notdyel quanto, paradoxalmente, em nenhum momento, ele inveca, de forma explicita, o aval da citncial Mas o rigor de seu enfoque nao atraiu a atengaa dos historiadores © des criticos, aos olhos dos quais ele no maxima pode passar por um esicta dolado de bom senso e que integrou algumas verdades primeiras num método de concepgio do am- biente em escala reduzidal#2, Path to social Reform, de E. HOWARD, Londres, Swan, Sonnenschein & Co., 1896; Une cité industrielle de TONY GARNIER, Paris, Vincent, 1917. 119. Op. cit., supra, p. 117, n. 192. 120, Op. cit, p. 93 121. Idem, p. 105. Cf. também as pp. 130-181, tipieas para a invo- cagio da fdrmula cifrada e da experiéncia de laboratério, e sobretudo a breve introdugio ts tragdés de La Ville radtewse (idem, p. 138), apresentadas como “produtos tedricos (quel permitiram fixar o préprio principio das coisas’ gracas & “teorin”. 112. G Re ©. volume de notas ¢ is que acompanha sua traducio do Sitidiebay, City Planning avcording to artistic ples, New York, 1965, e G. R. COLLINS, “Camilla Sitle reappraise: a”,

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