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eo ce aa UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Ruy Gareia Marques Vice-reitora Marin Georgina Muniz Washington ed ue J EDITORA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Conselho Editorial Bernardo Esteves Frick Fekinto slaucio Marafon Halo Moriconi (presidente) Jane Russo Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro Ivo Barbieri (membro bonoririo) ‘ucla Bastos (membro honoriio) Paulo C. Abrantes Imagens de natureza, imagens de ciéncia 2 ed, — revista e ampliada ed tery Rio de Janeiro 2016 82 Tengen de martes imagens de cnc, liveo. Hi, evidentemente, riscos em tentativas de se ampliar 0 escopo e no se circunscrever a estudos de caso envolvenda uns poucos autores ou um custo intervalo do tempo histérica; mas os ganhos em termos de inteligibilidade também nos parecer evidentes a0 se compor um quadso mais abrangente De toda forma, h4 um uso crescente de fontes primétias, e de uma pesquisa de primeira mio com base nclas, na historiografia que deseavolvemos a partir do capitulo 3. Caberd 20 leitor julgar se 0 resultado 6, a0 mesmo tempo, ins- tigante e satisfatdrio do ponto de vista da fidelidade histérica e dos canones mecodolégicos adotados pela hiscoriografia contemporsinea da cincia Capitulo 1 Imagens de natureza e de ciéncia na Antiguidade A chamada Revolucao Cientifica do século XVII pode ser interpretada, num determinado nivel, como uma substimuigia das imagens de naturcza & de ciéncia da Antiguidade— que foram assirniladas, transformadas ¢ transmi- tidas ao longo do periodo medieval — por novas imagens. A situagio, contue do, é de grande complexidade pelas seguintes razées: 1, Vésias imagens de natureza (e de ciéncia) competiam na Antigui- dade ¢ no periodo medieval, embora algumas delas venham se tor- nado quase hegem6nicas em deverminados momentos. Hé, por- tanto, que se especificar quais imagens foram visadas pelas criticas dos cientistas ¢ filésofos modernos. 2. As novas imagens de natureza — no podemos falar tampouco de uma dinica — emergicam em contraposigio a diversas imagens da Antiguidade do perfodo medieval ¢ assimilaram, scletivamente, aspectos dessas imagens. E preciso fazer justica a essa diversidade, se quisermos ter um quadro minimamente fiel dos episédios e desenvolvimentos que estao na origem da ciéncia moderna. Neste capftulo, apresentamos em linhas gerais algumas imagens de na- tureza e de ciéncia na Antiguidade que serviram como pano de fundo para os dlesenvolvimentos subsequentes que inauguraram a modernidade cientifica, SA lags de utr, magens de ace Mito ¢ filosofia Aristéreles é 0 responsdvel por uma historiogratia que fixa 0 mascimen- to da filosofia (ocidental) em torno do século VI 2.C., com os jonios (Fil6so- fos da Jonia, que ele chamava de physiolégoi, ou soja, aqueles que discursavam. sobre a physis, sobre a natureza). Nessa época, surgem manifestagGes claras de que novas exigéncias — que podemos qualificar de “racionais” ou “positivas” passaram a ser impostas ao discurso sobre a natureza, ‘Tais cxigéncias mare cariam um distanciamento, que foi se aprofundande, com respeitn an cardter dio discurso mitico (em particular, com respeita is cosmogonias miticas). ‘As cosmogonias sio “relatos de génese que descrevem a emergéncia progressiva de um mundo erdenado” (Vernant, 1986, p. 77). Nos mitos, 1 ideia de ordem é tirada da esfera do humano, mais propriamente do so- cial, ¢ projetada na natureza, As cosmogonias miticas so, ao mesmo tem- ppo, teogonias, ou scja, relatos a respeito de como sio gerados os deuses. Lim oposigao a isso, a originalidade do discurso filoséfico € sua recusa do :ntropomorfismo © uma tentativa de separar a cosmogonia da teogonia. A filosofia passa a adotar um vocabuléria profano, evitando utilizar, como recursos explicativos, as “forgas” que atuam na esfera da ago humana, H1é uma gradual delimitagio entee roms (as convengoes que regulam as re- lacéies humanas) e physis. © nascimento da filosofia é caracterizado pelos tipos de perguntas a respeito da natureza que os jénios passaram a se colocar e pelos critérios de iccitabilidade que estabeleceram para as respostas eventuais a essas perguntas, ou seja, por determinadas imagens de conhecimento ou de cigncia, Ao recu- sarem 0 antropomorfismo das explicagdes mitieas acerca da origem do hasmos (do mundo ordenado), 0s filésofos da Jénia fundaram o tipo de racionalidade ocidental, que-veio a marcar tanto 0 discurso filoséfico quanto o que viria pos- tcriormente a ser chamado de discurso “cientifico”. Nao fiz. qualquer sentido separar nesses primérdios, e por muito tempo depois, a filosofia ¢ a ciéncia. Os jénios adotaram uma postura que podemos chamar de “narura- lisca’s as perguntas a respeito da origem (arche) do cosmo (kosms) © de seu dlevir (vir a sex) deveriam ser respondidas apelando-se exclusivamente para ¢ para as potencialidades inerentes aos elementos as propricdades da mater (cerra, agua, ar, fogo) ou a outras substiin Liagens de nanuea de inci i Aniguiade 3B Os dois problemas que constiruiram o discurso filoséfico foram os da origem do cosmo (do arché) eo problema do “movimento”: como, a partir de uma substancia origindria, surgiram as diversas estrucuras complexas que ‘vemos a nossa volta? Para ‘Tales, considerado 0 primeito fldsofo, a Agua era o arche de todas as coisas. A partir desse elemento, desenvolvem-se os outros elementos ¢ forma-se 0 cosmo por um principio interno de movimento, scm ser necessdria a conconréncia dle deuses ou de quaisquer entidades exteriores& prépria matéra. Os archai dos fildsofos jénios — a “agua” de Tales, o “ar” de Anaxime- nes etc. — no podem, contudo, ser identificadas com as substincias designa- das pelos mesmos nomes na quimica modema, Nas cosmogonias dos jénios, toda a nanureza desenvalveu-sea partir desses principios. Os archai dos jonios sfo substancias inimicas, com capacidade de gerar outras substincias, tie gor com capacidade de gerar todo 0 cosmo. Nao sio, portanto, substancias passivas (como, podemos defender, sio as da quimica moderna), mas sim ativas, com um dinamismo, uma espontaneidade interna. Exatamente o di- namismo que atribuimos a0 que é vivo, ¢ que se exibe em seu desenvolvimen- to.! Nessa imagem, conhe: entre espitito ¢ matéria inanimada, Veremos que essa mancira de pensar as coisas ¢ processos naturais, por meio de “metéforas do organismo” (Schlan- ger. 1971), estard também presente em Aristételes. Um pressuposto que caracterizou a postura dos physiolégai foi a busca da permanéncia, da constincia, sob a variedade e o eterno fluxo dos fend- menos. A razfo seria capaz. de descobrir essa ordem, logos dos processos naturais, subjacente & desordem caprada pelos sentidos.* Os mitos, 20 explicarem o real pelo transcendente ~ fazendo apel rescrito a deuses e forgas sobrenaturais ~ de certa maneira resignavam-se & multiplicidade, a mudanga, & desorcem que os sentides nos apresentam, Cada transformagao, cada novo ser, exigia a intervengo de um deus ou de uma forga lorofsmo”, nfo hé uma clara distingia "Eom descrigso, no entanto, amnbém ésimpliicadors, puis veremos, no capitulo 3, que a dst ‘a entre ave © passiva sinda era objeto de cormrovérsias nos sélas XVIII e XIX! O teem lag pole see entendida tance cama “aa%a! ayantn coma “discures” O lage, cane tudo, nio ¢ sé um aviburo do discurso, mas algo que 3° eneontra na propria narureza, cons- tituindo a “estruturainteligivel do proceso do mundo” (Viastos, L987, p. 14). Os gregos ndo Porranto, deyemos nos precaver contra reconstrugies histéricas que apte- sentam uma divisio nitida, uma descontinuidade radical entre © mito ¢ a filo- sofia (ou, entre © mythos € 0 lagas como dois tipos de discurso). Todavia, isso inio impede que percebamos uma clara tendéncia nataralista € racionalista na forma como os jénios passaram a conceber a physis. A filosofia (ou 0 discurso racional) recusou o apelo & eranscendéncia: o natural deve ser explicado exclusi- vamente através do natural’. As causas que atuam no presente sao consideradas cla mecma natureza das causas que atuaram no passedo, A razio filoséfica “submete ao pensamento teérico ¢ causal @ reino dos mitos [que eram] fundados na observacao das realidades aparentes do mundo sensivel” (Jaeger, 1986, p. 135). Os fertmenos nacurais passam a ser explicados sem apelo a instincias, agentes ¢ forcas sobrenaturais. Os jénios admiiram 0 principio de que “o ca0s aparente dos eventos esconde uma ordem subjacente, ¢ cesia ordem € 0 produto de forcas impessoais” (Guthrie, 1962, p. 26) Guthrie, importante historiador da filosofia grega, sintetiza bem em que consistiu esse legado e os problemas que colocou. para a posteridade, os quais até hoje exigem solugdes ventativas: (O sulstantivo grego harnor€ derivado do vetbo kosmee:colocar em ondem, atranjar(derivada- mente), Mais tnrde, foram assocadan a case (cid as anivinyGes endian © morals que ainda persiscem em diversas palayras do poreuguds que incorpocam ese radial greg. * Powéin, “natural” no pode ser equacionado a “material A ideia de natateza (phy) no ene via nel urna sepa Salvo indicago em con nitida entre matéria eespiree (on alta), ro, coelas as tradges neste livro Ingen denatorem ede ici na Angie 87 Esse dom para a abstragio, com suas possbilidadesilimitadas e (nds devemos accescentar) seu perigo incrent, foi a propriedade peculiar dos gregos. © perigo std, obviamente, nz. tentagSo de correc antes de poder andar, Poisé uma expeti- ncia invoxicanre a razo humazta descubris, pela primeira ver, a extensio de seus samalacio cesttica de fos , 20 usar sas 3805 poderes, Bla tendea desprezar a. algar voo muito além da evidéncia disponivel, em diregao a uma grande sinese ‘que é,cm grande medda, sua propria criaglo, Nao oconen aos primeirs fildsofes nnaturais desperdigarem suas vidas clssficando c estabelecendlo correlagbes entre as vitae espécies de animais planras; aut desenvalvendo réenieas experimentais por meio das quais eles poderiam analisira eomposigio de vétias formas de ma- ‘dria, Nio foi assim que aciénca e filosofia comegaram. As pessoas exigiam res- pastas a questBes muito abrangentes, como as seguintes: qual a génese das coisas cexisrentes? Isto é, a partir do que elas surgizam inicialmente ¢ do que sio feitas agora? O mundo é, cm tikima insedneia, feito de uma ow de mais substincias? Ea falei do perigo desse tipo de procedimento, que, sem diivida, choca um cientista modemno, endo absuzo, no sentido literal. Enereanco, se ninguém tivesse comme ado a se calocar esis quest6cs himas € universas, 2 ciéncia ea filosofia, como rudy as conlhecemos, nunca teriam nasco, Essas éteas nao podcriam ter surgido deoutra mancira, a mente humana sendo o que é. Mesmo hoje, qualquer cientista admitiia que seus experiments seriam infrutiferos se 10 fossom ihsrminados por alguma ideia diretora sto &, por um hipeteseFormaca na mente, mas ainda no provada, cuja comprovagio ou refutagio diteciona a investigagao factual, Uma ligagGo muito préxima ao fendmeno, tal como era ditada pela naruteza pritica da incia oriental, nunca conduztia & compreensio cientica (1962, v. I ppe7-8)- (© surgimento da filosofia no Ocidence esteve marcado, cntto, por um conjunco de exigéncias racionais, por uma crenga nas possbilidades da razao hu- mana de explicar os fendmenos que percebemos pelos sentidos. “Explicar” esté sendo entendido aqui como reduzir o complexo ao simples, o diverso 2 unidade, adesordem 3 orden, o movimento (fluxo) 4 permanéncia. Em uma das vertentes de desenvolvimento da filosofia erega, essa tendéncia conduiu 2 uma desquali- ficagio dos sentidos como fonte de conhecimento. Platio, o primeiro a dar arti- ‘culagaio a essa imagem de conhecimento, defencleu que somente a a7a0 pode ser fonte de conhecimento (episteme), por oposicio & mera opiniéo (daxa) au crenga.® ndicar, em seu didlogo Tietet, a andlize, que se tomaria padio, do term “conhecimenws” como “crenga verdadeira justificada” 38 Imagens de nates imagens de ns Imagens de natureza: kosmos ¢ physis A nogio de physisjé figurava na tradigéo mitica e, portanto, é mais bé- sica, segundo Vlastos, do que a nocéo de kosmos. Os physinlign’ ji dispunham a primeira nogio, mas tiveram de inventar 0 kosmos: “A physis de dada coisa Eaquele feixe de caracteristicas estiveis pelas quais pdemos reconhecer essa coisa e antecipar os limites dentro dos quais ela pode agir sobre autras coisas, ou receber a ago delas” (1987, p. 21). $6 uma intervengao sobrenatural pode afetar a estabilidade previsivel dda physis. Os physioligai eliminam essa excegio para 0 kosmos: “Os physioligoi fazem do mundo um kosmes, conservando o que jd Id estava em forma de physis e climinando todo o resto” (p. 22). Herdclto (século V a.C.) claramente tematiza a imagem de que a natu reza € um kosmos (Vlastos, 1987). Pata cle, o “movimento” é o trago mais ca- racteristico da natureza; mas se investigarmos esses movimentos & luz da razio, podemos ver que sfo, no fundo, ordenados, governados, Embora, segundo essa imagem, nao haja imutabilidade na narureza ~ tudo estando cm transformagio permanente — isso nfo quer dizer que as transformagées sejam desordenadas, caéticas. Hd um dagos que regula ou governa esses pracessos. Q “fogo” em He- ricco, um arché, em esse papel ordenador. Ha quem chegue a ver nas teses de Heréclito, nao sem o anacronismo, 0 esbogo da nogio de “lei” (que, na verdade, co seu significado de “lei natural”, s6 surge na modernidade) traduzindo as regularidades das transformagées que ocorrem na naturera, As primeiras teorias do cosmo eram genéticas (como nos j6nios). Gra- davivamente, passaram a enfatizar “constantes das mudangas’, como em He- riclito, Parménides, Anaxégoras ¢ Demécrito (Vlastos, 1987, p. 22). A imagem de um kosmos limita as explicagies accicéveis para os fe- nomenos.’ Os physiolégoi rejeitaram, particularmente, as que apelam para intervengées sobrenaturais.* Vlastos enfatiza a diferenga entre a atitude natu- ralista dos primeiros fildsofos ¢ a crenga do cidadio grego comum no poder e amplitude da intervengao dos deuses nas esferas natural ¢ humana. Os gregos acreditavam na ate enviada pelos deuses: no desnorteamento ¢ no desvario demos defender que a nogo de phys também resring a explcages de por que wma cia se comporta do modo como se comport O que Vlastos (1987) pereche de orignal na nog de ‘asm € que el exclu intervenges sobrenats 0 qe a nog de phys por sis, na faz Teaov aqui um avo de reli esteia ene uma imager de naira uivaimagem dec Irngennde waiweea ede nga na Ansgaiiale 89 causados pela cegueira ou pela ilusio. Nesse estado, o individuo é irracional, nao podendo responder por seus atos (Vlastos, 1987, p. 16). Hi, segundo Vlastos, um “axioma vécito de [qualquer] explicagéo ra- ional: tudo o que acontece em qualquer regio do Universo [...] envolve apenas interagies entre entidades materiais cuja physis & sempre a mesma em qualquer lugar em que aparege ¢ se conforma com as mesmas regularidades de alto nivel” (1987, p. 23) Diferentes teorias so, evidentemente, compativeis com esse “axioma’. Collingwood (1976) sinteriza a imagem grega de natureza numa tese: a natureza é um “animal racional”, © predicado “animal”, com sua etimo- logia grega que remete a anima (alma), € associado por Collingwood & vida, 40 movimento (especialmente & capacidade de autolocomogéo, que asso- ciamos aos seres vivos, ou a parte deles, bem como ao desenvolvimento). Orermo “movimento”, nos gregos, é muito amplo, referindo-sea qualquer tipo de transformagio, ¢ ndo somente ao deslocamento no espago. Tnstncias de “movimento” incluem a mudanga de temperatura dos corpos, mudangas de cor, 0 crescimento dos seres vivos, o nascimento ¢ a morte etc. Os seres vivos tém essa capacidade de desenvolvimento, como, por exemplo, o cres- cimento, que os gregos, segundo Collingwood, estavam dispostos a atribuit a todas as coisas da natureza. Os gregos pensavam, portanto, a natureza a partir do modelo dos processos associados & vida. O predicado “racional” é associado por Collingwood & mente, a inteli- xgéncia, que ordena os movimentos “césmicos”. Segundo esse autor, os gregos vviam os seres vivos individuais como participando da vida e da racionalidade do conjunto da natureza. ‘Veremos, entretanto, que, embora essa imagem de narureza fosse a pre- dominante, outras escolas filoséficas gregas, como os atomistas, adocaram imagens distintas Os eleatas € 0 atomisoa ‘Vimos que a delimitagao gradual do campo da filosofia com respeito ao mito traduz uma crenga na razio humana, em sua capacidade de compreender autonomamente a natureza, de fornecer-Lhe inteligibilidade. Para que a razao fos- 68 primeiros fildsofos opuseram o inteligivel 20 sensivel, afirmando 0 primeito e desvalorizando, em maior ou menor grau, o segundo, AO tesigensdenssueen, amagen cine Esea tendéncia aprofund-se, ¢ atinge seu paroxismo, com os fk fos eleatas. Com estes, o inteligivel ¢ 0 sensivel tornam-se inconcilidveis. O inteligivel afirma-se pela negagio do sensivel. $6 a razo pode produzit conhecimento pela imposigao da exigéncia kigica de nao contradi¢ao. Como nas diz Vernant, “esta abstrago de um Ser puramente inteligivel, excluindo a pluralidade, a diviséo, 2 mudanga, constitui-se em oposicio a0 real sensivel em seu devir perpétuo” (1974, v, 2, p. 121). Os paradoxos de Zeno (um eleata) sobre o movimento ilustram ad- miravelmente esse privilégio da razZo com respeito aos “dados” dos sentidos. Zenao demonstrou a impossibilidace ldgica do movimento ao mostrar, com stutos argumentos, que a existéncia deste implica contradig&es insuperdveis, paradoxos insohiveis. © que a raz40 nao pode compreender ¢ assimilar, o que iio se encaixa em seus padres, deixa de ser considerado existente ou mesmo possfvel. A férmula ser = pensar, proposta por Parménies (um cleata) ilustra de forma sintética 2 méxima radicalizagio dessa aritude racionalista itando mais uma ver. Vernant: [..]0 pensamento encontra-se separado, desmembrado, cortado da realidade fisica: a Razao 56 pode ter por objeto 0 Ser, imutivel ¢ idéntico [..] Apés Parménides, a carefa da flosofia grega consist’ em restabelecer 0 vinculo entre o universo racional do diseurso ¢ © mundo sensivel da nacureza, através {pio de contra- de uma definigdo mais precisa, ¢ com mais nuances, do p digdo (1974, pp. 121-2) ‘A imagem de naturcza dos atomistas pode ser entendida, sob certa perspectiva, como uma tentativa engenhosa de oferecer uma saida para o im- passe eledtico, centando conciliar mutabilidade ¢ imutabilidade. Os étomos sio permanentes, imutaveis nas suas formas, indivistveis; somente os agrega- clos (macroscépicos, por assim dizer) sofrem mudanga. Distinguem o “cheio” (associado a0 Ser dos eleatas, representado pelo dtomo) e 0 “vazio” (o Nio Set). Um deles nao pode surgir do outro: o Ser (étomo) nao pode surgir do Nao Ser (vazio) e vice-versa, atendendo aos preccitos cleiticos. E verdade que os tomos se encontram em movimento, mas esse movi mento é considerado uma propriedade ou estado intrinseco dos dtomos, algo primitivo e, consequentemente, no passivel de explicagio ou de redugio a algo ainda mais bs Mag “movimento” ¢ entendido aqui de forma mais Tang.ns denen edeciincn ns Antigsitade: 4 restrica, simplesmente como deslocamento no espago. Outras modalidades de “movimento”, que associamos a qualquer tipo de transformacio, seja quanti- cativa, seja qualitativa, sio reduzidas a esse movimento, digamos, mecinico ¢ imanente aos dtomos. Na exposigio que faz Aristételes da visio atomista, as diferentes qualidades que observamos nos agregados de stomos resultam de mudangas em sua forma, ordem ¢ posigio. Algumas propriedades que supomos ser intrinsccas aos corpos— como a car, o sabor etc. —sio explicadas pelos atomistas como efeitos sobre os nossos sentidos de mudangas nesses agregados: em suas propricdades relacianais, portance Os atomistas acreditavam que a alma era também composta por éto- mos de determinado tipo, mais répidos ¢ sutis, Assim, a interagao corpo/alma nos atomistas era vista como, em tiltima instancia, mecanica. Nesse sentido, 8 atomistas podem ser interpretados como monistas: nfo acreditavam na existéncia de duas subscincias — material imaterial, corpo ¢ alma — mas uma tinica substancia, com diferentes propriedades, zssociadas a dtomos de diferentes formas e em diferentes estados de movimento, Logo, a imagem dos atomistas parece nfio se enquadrar ma caracte- rizagio de Collingwood de uma imagem tinica de natureza entre as diver- sas escolas filos6ficas gregast de uma natureza como um “animal racional”, A natureza, para os atomistas, nio € viva, dinimica, geradora. Ela nao é pensada com base em “metéforas do organismo”. Tampouco essa natureza “racional”, no sentido de possuir um “logos’, uma mente ou razio que gover- ne € organize seus movimentos. Tada a organizagio que observamos na natu- reza resulta de choques, de colisdes cegas, sem finalidade (tetas), em um plano ‘ou projeto, sea cle transcendente ou imanente (inscrito na prépria narurcra). Cornford, num cléssco da historiografiafilséfica,avalia 0 programa dlos atomistas como culmifiando uma tendéncia “cientifica”? nos primérdios da filosofia grega, iniciada com os jénios, ¢ contrapondo-se a uma tendéncia “mistica” (que ele associa a Herdclito, Pitigoras, Parménides e Empédocles, para citar somente representantes dessa tendéncia entre os pré-socriticos”). Ravinnalista®e naturlisea” raver fostem terms mais adequados ne © Os pré-socsiticos incluem os filésofos e escolasfilossficas que precederam Séerates (culo V AC), que €vi iguas na histérin da Glosofia geega por ter imprimido uma orientago mais anttopoldgica ¢ ética a essa filosofa (volcindo-se para o homem ¢ para a sociedad), que, até entdo, era dominada por urna preacupagso cosmolégica (com a nacureza) AZ tengens de asses, maze de cnc Referindo-se aos atomistas, Cornford defende teses que, embora controver- sas, nfo deixam de ser esclarecedores ¢ sugestivas: Nis somos, portanto, deixados com um modelo conceitual do real no qual triunfou uma elareza conceitual perfeita, o qual se manteve no campo da cigacia até oncem. Os Deuses ¢ a alma imortal desapareceram na danca das particulas materiais. A phys perdeu —embora o termo tenha sido reti- do ~ todas as suas associagées antigas de erescimento ¢ de vida. Nao existe wa como um ‘crescimente’; nada ak’m da associagéo ¢ da dissociaso de 4eomos imutéveis. Todo 0 movimento havia antes sido considerado uma propriedade inerente da coisa viva, a expressio propria de sua vida inter- nna, Agora a vida é extinpada [..,] da matéria; 6 movimento, nio € mais considerado uma atividade espontinca, nfo jaz mais dentro, mas entre os Svomes impenetréveis, Em vez da vida, nada é deixado além da mudanga de relagdes espaciais; e © governo do mundo retorna para Ananke-Moira [Necessidade] (1954, p. 158). Os atomistas, a0 dispensarem a atividade de uma substincia espirieual para explicar os fendmenos nacurais — seja os zrchai dos jénios, 0 “amor” € 0 “dio” de Empédocles, seja o Nous de Anaxdgoras -, teriam banido, ainda segunda Cornford, as tilrimas vestigins da tradicio mistica. No entanto, isso nao significon, em absoluto, o fim das concepgbes vicaliseas, espiritualistas e panteistas de natureza entre os gregos ~ pelo con- twisio, E evidente que um programa materialista ¢ reducionista como o dos uomistas ~ de explicar tudo 0 que existe na natureza a partir de processos puramente mecdnicos — sofreu criticas ferozes dos fildsofos da época. Até hoje esse programa (que, com algumas qualificag3es, foi retomado pela cigneia moderna a partir do século XVII) é contestado em algumas frentes, cxatamente naquelas eavolvidas na explicago, por um lado, da vida e, por outro, da mente! Empédocles de Agrigento (490-435 a.C.) propés uma safda dife- rente para o impasse eledtico, embora andloga 4 dos atomistas. Supds 1 existéneia de quatro elementos, ¢ nao de um tinico, como 0s archai de todas as coisas: ar, fogo, terra e dgua. Esses elementos, considerados imutiveis, teriam quatro qualidades, associadas duas a duas em c deles: 0 quente ¢ o frio; 0 timido ¢ 0 seco, Esses elementos combinam-se € Imagens de paucene de inca Antiguiade 48 separam-se, resultando nas transformagBes que observamos na natureza, ‘com base na semelhanga das suas qualidades: 0 semelhante atrai o seme- Ihante, Veremos que a teoria dos quatro elementos reve uma influéncia direta sobre Aristételes e, por ineermédio dele, marcou grande parte da histéria da filosofia e de outras reas. ‘Aléin de fildsofo, Empédocles foi médico ¢ fundador da escola médica ana, tendo aplicado sua teoria da matétia ao estudo dos processos fisiolé- gicos. Ele simboliza um tipo de relacionamento da medicina com a filosofia ho qual esta forneceria os prineipios vobze os quai a pritica médica deveria se apoiar, 0 tdpico da préxima segao. Imagens de conhecimento na filosofia ¢ na medicina © entendimento de que a filosofia € um produto privilegiado da ra- io humana implicou uma modalidade de rclacionamento entre a filosofia e qualquer discurso que tivesse a pretensio de ser portador de conhecimento (verdadeito e universal): a Filosofia deveria fundar (ou mesmo absorver) todo © conhecimento. Jé na Antiguidade cléssica, essa pretenso fundacionista e hegemé- nica da filosofia foi contestada, bem como a teoria do conhecimento sobre a qual ela se apoia. A prética médica, ao reivindicar um espace epistémico aurGnomo, teria um papel central nessa disputa e, desse modo, viria a in- fluit decisivamente no desenvolvimento da prépria filosofia. [sso nao deixa, contuclo, de ser surpreendente, dado 0 caréter prético da medicina. Mas, por outro lado, foi talvez justamente o carter pritico de uma atividade que se avalia por seus resultados coneretos (a cura ou nao do paciente) que levou os médicos a essa critica as prerensdes dos fil6sofos, de modo a afirmar a especificidade de sua atividade. ‘Aarte médica é, além disso, de grande importincia para o historiador desse periodo, pois sobreviveram muitos escritos médicos, os mais antigos datando do inicio do século V, enquanto a maior parte dos textos filoséticos, correspondendo is origens da filosofia grega, perdeu-se." 1 Os textos médion foram preservalos¢recoplados no Museu de Alexandria eso colerivamente atribuikos 4 escola hipocritica, embora, provavelmente, suas origens tenham sido as mais di ‘yersas, Uina posibiidade ¢ que tenham pertencil & biblioteca dessa escola, sitada vailha de €65s (ver Farrington, 1967, p65) 41 Imagens de mean, imagens de cicia (hatamento de ums lusagio, a partic de um comentirio de Apoltnio de Citium (1® séeulo .C.) a6 ‘isto hipoerisca “Sobre a ariculgse, . XI. Vengaminho, Biblioteca Medicea-Leurenciana, Florenca/ Archives Charmet! The Bridgeman Att tira Podemos dis inguir pelo menos duas orientagées na medicina grega: 1 medicina religiosa ou magica, que se fazia nos templos de Esculdpio (em rego, Asklepids, o deus da cura); ea medicina que se assentava em bases lagen de aturns ee ici ns Angie 45 filosdficas (representada por Empédocles e pelos pitagéricas)."” A partir de certo momento, determinadas escolas médicas gregas rebelaram-se contra essas duas orientagées, com destaque para as escolas de Cnide e de Cés (esta liltima associada ao nome do legendério Hipdcrates).!" Contra a medicina que se fazia dencto dos templos, essas escolas afirmaram uma postura que poderiamos também chamar de naturalista, defendendo que as causas das doengas so naturais, Contra a segunda orientagio, houve, pelo menos em suas intengdes explicitas, uma rejeigio da tutela filoséfica (e do caréter a priori de suas teorias) a afirmagio de uma postura empirista pritica (Lloyd, 1981, pp. 923-4)."* Arist6teles assim se refere is relays entre 0s flésofos © os médieos: “Pode dizer-se que a maior parte dos fildsofos da natureza ¢ aqueles médicos que tém um interesse cientifico por sua arte tém isto de comum: os primciros terminam estudando a Medicina e as outros baseiam as teorias médicas sobre os principios da ciéncia da natureza”. Contudo, hd claras evidéncias de que as relagées entre a filosofia e a medicina foram muito mais conflituosas do que a citagio de Aristételes dei- xa transparecer. Partiram das escolas médicas gregas as primeiras criticas & pretensio da filosofia de fornecer os fundamentos metafisicos para todos os discursos e priticas; no caso da medicina, essa metafisica dizia respeito 4 na- tureza da satide e da doenca, com implicagées para a terapéutica. Esbogou-se uma reagio contza aquilo que médicos como Aleméon ~ considerado o diretor da escola de medicina de Crotona, de principios do século V — consideravam uma intromissio indevida dos filésofos no dominio da medicina. FHA divengindias,encte os hisoridoes, ce « medina represenaa nos textos pacts, e catiter nacuraista ¢ empltca, ¢ posterior ou anterior 4 medicina dos cemplos (ver Loy 1981, p. 921: cf Nordenskibld, 1985, p. 25). Farington menciona também as prétcas que hoje chamaramos de paramédicas, execs plus direwtes dos “Ginisios, onde os gaegos mais abastados eram orientadas sobre @pritca de exercicios, a alimentacio © subrsetidos a ceaarnentos como massagens ec. (1967, pp- 65, 68,76). "Nao avis foemacia médica na Grésia como inde onbecemas hoje, com se crit pblice. Os eonhecimentos médieas exam passades de pais para flhos € mantinhamese propridade cle gids fechadas. Iso explica a grande heteogencidade da tova epritea méiica gras oye, 1981; Nordenskiold, 1935, p. 25) ¥ Taso de for alguma climinow a pritica da medicina migico-religioss, que continuow, prova- velmente senda a de maior popularade, "> Avisutele Pur nacunalia, Das sentids ¢ dos objerossensivis(upud Sousa, 1981, p. 38) 46 Imagen ce nature, imagens de cidacla Contra o cariter aprioristico da filosofia, os médicos gregos adotaram uma atitude claramente empirista. O estudo dz medicina grega, por meio do Corpus hippocraticums, revela que & na arte médica que devem ser buscadas as raizes de uma teoria empirista do conhecimenco ¢ de uma metodologia compativel com essa epistemologia. Com efeito, nesses textos percebe-se 0 confronco entre os métodos dedutivistas do filésofo da época, que se baseiam em prineipios estabclecidos « priori ¢ deles extrai consequéncias légicas, e ‘os métodos mais propriamente indutivos a serem empregados pelo médico, erando um conhecimenta a pasteriori. No tratado Da medicina antiga desse corpus, possivelmente escrito pelo proprio Hipécrates, encontram-se explicitados que objetivos os médicos per- seguem, os problemas que se colocam e quais os métodos adequados & medi- cina, em contraste com a filosofia: Assim, mantenho que nie Ihe séo precisos quaisquer postulaos ocos, como 0s que sio incvitiveis a0 se lidar com problemas insohiveis que estio além do aleance da observacio, como, por cxeimplo, a0 se tratar do que se passa no ot € debaixo da terra, Se um homem formular uma opinigo sobre esas coisas, rem ele nem os que 0 escurarem poderdo saber a0 certo se o que ele afirma € verdadeiro ou filso: pois no € possivel proceder 2 nenhuma verifcasio através de experigncias, de manciea a alcangar um conhecimento exato (apud Cornford, 1981, pp. 50-1). © ataque aos filésofos é nitido, e 0 autor aponta a dificuldade, ou impossibilidade, de controle experimental das hipéteses propostas por cles. 14 outras passagens desse tratado que sao impressionantes por soarem tio contempordneas em suas reflexes metodoligicas. Elas merecem ser citadast Todos aqueles que tencem a discutir a arte da cura com base em postulados o calor o frio, a umidade, a secura ou qualquer outta coisa que imaginem ~ teduzindo assim as causas da doenga e da morte dos homens a um ou dois postulads, ado somente cometem um erro, mas merecem ser acusados porque se enganam a respeito do que é uma arte ou uma técnica [sechne. Entretanto, todos os homens dela se utilizam nos momentos de crise de suas Fire wecho &ambém citado por Fastingion (1967, p. 70). Tnmgens de cuca ede cnc a Antigudade 47 vidas, prestando grands homenagens ao pritivo e av artesto, se eles sdo bons (apud Farrington, 1967, p. 70). Essa passagem, além de criticar a dependéncia da medicina com respeito « postulados filoséficos a respeito da natureza (inclusive do homem), como faz © erecho anterior, rafirma o cariter pritico da arte médica. A especificidade dessa arte, de toda a arte, deve ser respeitada em relagdo a outras atividades mais reéricas ¢ especulativas. Hé também uma clara critica do autor do tratado a tendéncia da Filosofia a reduzir a pouces principios a explicagio de qualquer fendmeno. Isso é visto como particularmente grave no caso dos fendmenos cavolvidos na docnga ¢ na satide, que dependem de um mimeto indefinido de causase de condigoes; 0 médico tem de estar atento as diferencas, as particula- ridades dos pacientes ¢ de suas condigées (Farrington, 1967, p. 71). Palibo, genro de Hipécrates, atacou diretamente a doutrina jénica de que “tudo é um”, que implicaya ser © homem, composco de uma tinica subs- tincia fundamental Pélibo recusa-se 2 tomar como ponto de partida da doutrina médica 0 pos- tulado fisico ou metalsieo dos filésofos de que toda a realidade ¢, portanto, também 0 corpo humano cém, em tltima andlse, de consistir numa om mais cosas que nao estao visivelmente presentes no corpo (Comnford, 1981, p. 58). Segue outra passagem do tratado hipocritico Da medicina antige: Cercos médicos e filésofos afitmam que aquele que é ignorante a respeito do que é 0 homem nao pode conhecer a medici wt aquele que quiser tratar seus pacientes corretamente, dizem cles, deve conhecer isso. Mas a questio que eles levantam concerne & filosofia: € 0 dominio daqueles que, como pédocles, escreveram sobre a ciéncia da naturera, sobre o que € 6 homem desde 0 comego, sabre 0 modo como cle primeiramente aparece € sobre os elementos de que era originariamente constituide, Mas a minha opiniso & primeira, que tudo o que os Filésofase os médicas escreveram sobre a ciéncia dda natureza é menos da ordem da medicina do que da literatura. Bu defendo também que 36 se pode adquirir um conhecimento claro da natureza do ho: mem através da medicina, € por nenhum outro meio; e que se pode adquiti esse conhecimento uma ver que a medicina tenha sido’ compreendida, mas 48 tagens de marae, imagens de citcia que até 0 momento [isso] €impossivel ~ quero dizer, saber © que & 0 homem, ington, 1967, p. 73). 2 causa de sua cragSo ¢ outas coisa (apu Outro tratado médico do Corpus hippocraticum revela uma consciéncia metodoldgica sofisticada de que um empirismo, que seja a0 mesmo tempo ingénwo ¢ radical, tampouco esté & altura da arte médica. O médico precisa, frequentemente, ultrapassar a fronteira entre o que é visivel (os sintomas) e © que € invistvel (a situagio dos drgios e processos internos que causam os sintomas). Para isso, ele tem de se servir da razfo: “|. © que escapa a vista €dominado pela via do espirivo [...] Na verdade, 0 médico, como nie pode ver a perturbaco com seus olhos, nem a aprender com suas orelhas, tenta cencontrécla pelo raciocinio” (apud Farrington, 1967, p. 74) Hd também, nesse mesmo tratado, ums clara sugesto de que o médico no se limita a observar passivamente os sintomas, mas pode, por uma inter- 4o, obter informagies a respeito daquilo que no é dado aos sentidos: Quando nio dispomos daquela informagio, ¢ a natureza nao fornece nada por cla prépria, a medicina descobriu meios de constrangé-la, pelos quais a natureza 6 obrigada, sem ser ferida, a revelar seus segredos; quando estes si0 fornecidos, aqueles que compreendem a arte médica sabem claramente qual a via que deve ser seguida, Por exemplo, a arte médica forga a natureza a dis- pensar a linfa por meio de alimentos ede bebidas amargas, de tal sorte que se pode chegar a uma coneluséo vendo-se coisas que antes eram invisiveis, Igual- mente, quando a respiragio fornece um sintoma, 20 fazer © paciente corer numa subida, obrigamos a naturera a revelar seus sintomas (apud Farrington, 1967, pp. 73-4). Em outros textos, a perspectiva empirista dessa orientagio em medici- nna também é bastante evidente, sem que se pretenda eliminar a necessidade dla tavio e da teoria.” Norar a sofisticago com que um médico (e no um fi- "’ Discordamos, quanto a este aspecto, de Farrington (1967, pp. 75-6) por ele no reconhcer, de forma cabal, a importincia da filasfia. A despeito de apoiat-se em principios a priori cde ‘adotar métodos dedutviseas, a filosofia natural, em seus primérdios, posibilitow & medicina {e a outras dreas) 0 acawo 4 orden da te explicatvo, prelitivo ¢, consequenten awmentando, portanto, seu Imagens de maces ede dnc na Astiguidale 49 lésof0) descreve os processos cognitivos pelos quais se adquire conhecimento a partir da experiéncia sensivel: Na pritica médica, devesse remeter, inicialmense, nto a teorias plaustvcis, mas 3 experiéncia combinada com a tario, Uma teoria verdadeira € formada pela recordacto das coisas apreendidas pela percepeao dos sentidos. Pois essa percepsio, vindo no inicio da experiéncia e transportando & inteligéncia as ‘cojsas que lhe foram submesidas,€ claramente imagistica, e 0 intelecro rece- bendo essas coisas vétias vezes ¢ notando a ocasiio, © momento e a mancira, as armazena € se reoorda, Mas ex aprov a teoria se sua Base repousa sobre 0 incidentee 0 ela dedus: a conchusdo de acordo cum os ferdmenas,Pois se a oria cencontra sua base num fato claro, ela ese justificeda para existir no dominio do intelecto, que ele proprio recebe todas as suas impresses de otras Fontes. Assim, devemos conceber nossa natureza como estando movida e instruida pela forga de uma grande variedade de coisas, ¢0 incelecto, como eu disse, to- ‘mando da nacureza as impress6es, conduz-nos verdade, Mas se ele parte, no de uma impress clans, mas de wana feta plausive, ele nos leva a uma condigio desagradivel eincimoda, Tedos agucles que agem assim sto ds cease x perdem (apud Farrington, 1967, p. 75: grfos do original) Logo, seria uma imensa simplificagéo acreditar que os médicos, a0 se oporem A abordagem racionalista dominante em tilosotia aquela época, passaram a defender ¢ 2 praticar um empirismo indutivista ingénuo. Hé, inclusive, evidéncias de diferengas, nesse tocante, entre as escolas médicas, A-escola de Cnide era muito mais empirista do que a de Cés, que defendia uum equilibrio sofisticado entre empirismo e racionalismo, como os diltimos trechos citados, todos desta tiltima escola, demonstram cabalmente. Diremos algo mais a respeito dessas escolas na préxima seco. © Corpus hippocraticum retine os conhecimentos adquiridos na jé lon- ya e antiga pratica médica. Em que consiste essa pritica? Cornford tenta responder: ‘A Medicina é~ e 0 foi sempre ~ uma arte pritica, jf com séeulos de histéria, quando velo a cer aquilo que hoje podertamos chamar de um fundamento de ceoriacientifica. © médico era o ‘curandeirol, um artifice a0 servigo do pblico, um cirurgiio que tabathava com as mos. Lidava sempre com o do- 50 Tanigons de marr, imagens deca, ‘ente individual etinha sempre diante de si, como finalidade prética imediata, a necessidade de 0 curar. Quaisquer que sejam as idcias preconcebidas que possa ter quanto & natureza do corpo humano e de suas doengas, no pode fugir’a necessidade constante de observar os sintomas de cada caso individual. de diagnosticar o mal ¢ de centar descobrir 0 que hi a fazer: Sua reputagio © seus proventos depencem do éxito que alcangar, nao como teérico, mas como curandeiro (1981, p. 11). Aristdteles reconhecerd, em sua Metafisca, essas especificidades da arte médica (na verdade, de toda arte) ao afirmar que o médico nao cura 0 Ho- ‘mem em geral, com “H” maiisculo, mas um homem particulas. A imagem de conhecimento da pritica médica foi, na verdade, crucial para que Arist6reles pudesse romper com 0 antiempirismo radical de seu mestre Plato, abrindo as portas para a articulacio de uma teoria do conhecimento que reconhecesse, de forma mais equilibrada, tanto a participagio da raz4o quanto dos sentidos na aquisicao do conhecimento, Volraremos a Platao e Arist6teles mais adiante. O carster eminentemente pritico da arte médica conduz, efetivamente, ’adogo de uma postura fundamentalmente empirica. Continuamos citando Cornford: Ao contririo do filésofo natural, cuja especulagao incide sobre assuntos que cestio fora do aleance da observagie |, 0 médico ¢ obrigado a part da observa de casos individuais, notar os sintomas e 2 descabri, se poss vel, o que esté mal ¢ como dar-the remédio, Tanto quanto nos ¢ dado saber, foi no tempo de Aleméon [4] que a medicina libertou-se suficientemente de sua fase magica para se aperceber claramente da importincia suprema da observacio cuidadosa, A escola hipoeritica é merecidamente célebre, ainda hoje, pelos minuciosos registros de casos individuais conservados nos livros sobre epidemias. Eases registros cram consciencemente feitos para servi de base indispensével as regras generalizacas da prdtica médica: ‘neste ou naquele «e280, 0 reméiio tal provon ser eficx nesta espécie de febre’. Mesto nos casos cm que nio tinha sido posstvel enconcrar remédio algum, registravama-ze fiel- mente 0 prognéstico do médica, as crises, 0 enrso da doenga e seu desfecho. Punha-se entao © problema das causas: por qué rarao esta este corpo fiuncio- nando mal e por que motivo este remédio é eficaz ou ineficaz? Portanco, era no fim, ¢ nilo no prinetpio, que vinha a interrogagio quanto & natureza do Inspec turns ede inci a Anciguilade 5 homem, quanto & constituiggo de seu compo © quanto aos elementos e ‘for «28 visivelmente presenres nele, que precisavam ser ajustados e reequilibrados pela ap ramente (1981, pp. 59-60), cag de forgas’antidotss conics em subscancias ministradas exter F evidenre que essa metodologia estava em rota de coliséo com o dedu- tivismo dos fildsofos naturalistas: ‘Os filésofos comogaram pela cosmogonia, herdando os problemas tradicionais implicitos nes micas cosmog@nicos. Como nasceu, do caos ou da unidade ini

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