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CBRE a A desestabilizagao das escritas sildbicas: alternancias e desardem com pel aura Este texto é uma reelaboragio da conferéncia, apresentada em marco de emu aL nae 2009, na Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, no encerra- Sean on eet ee mento das Jormadas comemorativas dos 30 anos da revista Lectura y Vida. 7 Publicado com o mesmo titulo na: Revista Latinoamericana de Lectura eas re (Lectura y Vida), ano 30, n. 2, p. 6-13, 2009, Uma primeira tradugao ao portugues foi publicada na edicto especial da revista Nova Escola, 2012. A presente constitui nova traducéo. INTRODUGAG “Em 1979, foi publicado no México o livro Los Sistemas de Escritura el Desarrollo del Nifio’ Os dados apresentados nessa obra haviam ido recolhidos em Buenos Aires e arredores, em uma época particu- -Jarmente inéspita para os habitantes do pais. Esses dados foram ana- adios no exilio por Ana Teberosky (em Barcelona) e por mim (em ‘Genebra) quando ainda nao havia e-mail, escaner, nem os recursos de ~ comunicacao a distancia aos quais estamos acostumados hoje. esse livro se defendia, entre outras teses, uma particularmente atrevida: para tratar de entender a escrita alfabética, as criangas hispa- nofalantes passam por um periodo silébico. De fato, inventam uma + escrita silébica onde cada letra escrita corresponde a uma silaba oral. No periodo de apogeu destas construgées silébicas, aparecem letras pertinentes para cada silaba. Em espanhol, as letras pertinentes privi- legiadas sao as vogais.#* Nessa obra sustenta-se o seguinte: A crianga abandona a hipdtese ~" sildbica e descobre a necessidade de fazer uma andlise que uf “além” da sflaba pelo canflito entre a hipétese silébica e a exigéncia de quantidade minima de > grafias (ambas as exigéncias puramente internas, pois so hipéteses is da crianga) ¢ 0 conflto entre as formas gr 5 € eitura dessas formas gréficas em termos da hipStesesildbica (conflito entre uma exigéncia interna e uma realidade exterior ao proprio sujei- to) (cap. 5, p. 196). ‘OGRESSO NA ESCRTAE NAS CULTURAS DO ESCRTO ca Deacordo. Mas 0 que quer dizer fazer uma andlise que od “além” da silaba? £ basicamente correto 0 que se diz ali (ainda que devesse ter posto palavras grificas no lugar de formas gréficas). Correto, mas insuficiente. Nesse fragmento s6 se fala dos conflitos, mas ndo se diz nada a respeito das formas peculiares de analisar a sflaba em fungéo da escrita, préprias do momento critico de crise da hipétese silébica. Sera que se passa do periodo silabico ao alfabético porque se abando- naa anilise oral em sflabas e passa-se a uma andlise em sequéncias de fonemas? O perfodo seguinte (que chamamos silabico alfabético) pa- rece indicar que isto ndo ocorre, jé que as produgées deste momento da evolugéo so mistas por natureza: algumas sflabas so escritas com ‘uma tinica letra, como no periodo precedente, mas outras sflabas sio escritas com mais de uma letra, anunciando, ao que parece, o abando- no da andlise silabica. Recentemente comecei a prestar atengdo a certos processos de produgao que podem nos colocar na trilha de um novo modo de com- preensio deste perfodo de transigdo. Dois exemplos servem para en- focar a questio. ‘Maria (5 anos) vai escrever a palavra sopa. Vai dizendo as sflabas enquanto escreve as vogais correspondentes. O resultado 6OA. Maria observa o resultado e diz “me faltam”. Tipica situagao onde o requisi- to da quantidade minima se impée. O interessante é que Maria, pro- curando outras letras para colocar, nao repete nenhuma das anteriores, ‘mas repete “so-pa”, enquanto pde as consoantes correspondentes a estas silabas. (De fato, repete varias vezes “so” antes de colocar o Se varias vezes “pa”, antes de p6r o P, como se procurasse estas letras.) O resultado é OASP. Todas as letras da palavra estdo ali, mas em de- sordem. Maria nao consegue ler o que escreveu. Poderfamos dizer que analisou as vogais, os nticleos vocilicos das silabas e depois os ataques* consonantais. Esta descricdo, no entanto, parece-me incorreta. Como veremos, trata-se sempre de representar a silaba, a mesma unidade, mas a partir de perspectivas diferentes, de ancoragens diferentes. O que Maria produz sao duas escritas silabicas justapostas. vain RHERO Um caso extraordinario ¢ Santiago, também de cinco anos (capi- tulo 4 neste volume). A esta crianga se solicita que escreva uma lista de compras, primeiro no papel e depois no computador. Dois destes pares de sflabas do notéveis. Santiago jé sabe que nao se pode escrever somente com vogais. Produz SA, no papel, e OD, no monitor, para soda; escreve SAM, no papel, e ALE, no monitor, para salame. Se San- tiago conhece todas as letras de soda e salame, porque nao consegue colocé-las juntas? Chamamos este fendmeno de alternancias grafof6- nicas. Como explicé-lo? Creio que presenciamos mancia de ‘centragSes cognitivas sobre dois aspectos da unidade silaba. A silaba oral é considerada a partir de duas ancoragens diferentes. As letras escolhidas correspondem a essas duas ancoragens. A centragdo no “Aspecto vocélico” da sflaba é seguida de uma centragao no “aspecto conSondntico” da mesma sflaba. A mesma sflaba é ouvida “a partir de outfo lugar”. (Ouvida e “vista”, porque a escrita permite vé-la.) NOVOS DADOS DE INVESTIGAGAQ As criangas que esto me ajudando a entender este frégil, mas importante momento da evolucao sao de La Plata, Argentina, Elas tém cinco anos e foram entrevistadas por Andrea Ocampo e Graciela Bre- na, com a supervisdo e apoio de Claudia Molinari Estas criangas frequentam duas escolas diferentes, mas semelhan- _ tes quanto ao modo de introduzir a cultura escrita. Nao preciso detalhar qui suas caracteristicas, somente enfatizar que a andlise da oralidade decorre do confronto com desafios colocados pela escrita ou pela lei- tura. Estas criangas esto acostumadas a justificar suas produgGes porque habitualmente escrevem em conjunto ou em pequenos grupos, e porque o confronto de diferentes solugdes para um mesmo problema de.escrita é habitual. Os ultimos dados obtidos sao do final do ano escolar de 2008. Ainda nos resta muito por analisar, mas alguns resul- ‘ONGRES5O WA ESCH NAS CLLTURAS DO ESCRTO co tados sio suficientemente claros para serem publicados, pois me pa- Tecem muito importantes. Selecionamos criangas que, ao inicio do ano escolar, escreviam bem o préprio nome, mas escreviam qualquer outra palavra usando quase exclusivamente vogais (vogais pertinentes). Propusemos a essas criangas que escrevessem uma lista de palavras particularmente difi- ceis: 15 palavras em uma sesséo (o que é muito), todas dissflabas (que ‘do particularmente dificeis pelo requisito da quantidade minima) e, além disto, dissilabas com uma silaba que os docentes classificam como “complexas”: CVV; como na primeira silaba da palavra piano,’ CVC, como na primeira sflaba da palavra torta [bolo]; CVVC, como na pri- meira silaba da palavra fiesta [festa]! ‘Ao longo do ano escolar, foram feitas trés entrevistas individuais. ‘Quinze criangas foram acompanhadas em 2007 (com foco em silabas CVV) e outras 15 em 2008 (com foco em silabas CVV e CVVC). A tarefa consistia em escrever uma lista de palavras, mas os ele- ‘mentos da lista estavam inseridos em uma mininarrativa onde se fala da preparacéo de uma festa, com um baile, a escolha de uma rainha que receberd um colar de pérolas de presente... As palavras fiesta, bai- ina, collar, perlas festa, baile, rainha, colar, pérolas] fazem parte da O objetivo do procedimento era garantir que as criangas compre- endessem as palavras que iam escrever* Por que apresentar palavras to dificeis a criancinhas de cinco anos? A proposta pode parecer absurda. De fato, se entrevistamos criangas que ainda nfo resolvem a escrita de sflabas CV com as duas letras necessarias, 0 que esperamos que elas fagam com as silabas complexas? £ exatamente disto que se trata em uma pesquisa psico- genética e psicolinguistica (jé que ndo tentamos levar a cabo uma pesquisa didética). Precisamos verificar se as criangas, a0 longo do ano escolar, ignoram as dificuldades dessas sflabas (reduzindo-as primei- objetivo de minimizarinterferéncasnaleitaraeevitar possiveis confusées devido 8 proximidade do portugus edo espanhol, as tradugies, a portugues, dos terms espanhis ‘fers no texto orignal aparecerso entre colchetes |]. (NT) Me I ry i eRRERO toa Velogo, eventualmente, a CV) ou se enfrentam essas dificuldades e qual o resultado disto. Recordo a célebre boutade — frase irdnica, provocativa — de um brilhante colaborador de Piaget, Pierre Gréco, que disse em uma con- Teréncia: “A um psicdlogo que trabalha com a teoria psicogenética, pode-se pedir que nos diga como um bebé anda de bicicleta”. Pois, bem, queremos ver de que modo as criangas, que nao conseguem es- grever CV (ainda néo podem caminhar), resolvem sflabas complicadas (andam de bicicleta). SILABAS COM DITONGO (CVV) Nem todas as sflabas complicadas sao igualmente dificeis. Um dissilabo € dificil, mas se o dissflabo contém um ditongo, pode se ‘ransformar em um trissilabo, acentuando as duas vogais (pia-no con- verte-se em pi-a-no), com 0 que se pode escrever IAO, superando ao ‘mesmo tempo os requisitos quantitativos e qualitativos proprios des- te periodo. As criangas se dao conta desta possibilidade? Algumas delas escrevem estes dissilabos com ditongo como se fossem trisstlabos, e colocamas trés vogais pertinentes. Estas criangas, a6 longo do ano, comecaram a incorporar consoantes & sua escrita. “Entre uma entrevista e a seguinte, registramos dois fendmenos parti- cularmente importantes: (a) desaparecimento do ditongo ao aparece- rem as primeiras consoantes; ou (b) 0 ditongo subsiste, mas em desor- dem, quando aparecem as primeiras consbantes. ‘Vejamos um exemplo de desaparecimento do ditongo ao apare- cerem as primeiras consoantes. Uriel escreve radio [radio], ao longo do ano escolar, da seguinte maneira: AIO > ROO — RIO (as setas indicam o intervalo entre uma entrevista e outra). O ditongo se perde ao aparecer a primeira consoante. R nao é 0 ataque da silaba, mas ‘OINGRESSO NA ESCRTA NAS CULTURAS BOESCRTO cs outra maneira de escrever a sflaba “ra”, primeiro com A e logo com R.Na titima entrevista, o ditongo reaparece; a rentincia momenténea a variedade interna havia deixado Uriel insatisfeito, Parece-me dificil afirmar que Uriel péde analisar o ditongo e, poucos meses depois, foi incapaz de analis4-lo. Creio que o que ocorre tem pouco a ver com as Possibilidades de anélise oral de fonemas. O problema esté em outro lugar, Em outros casos, as vogais do ditongo subsistem, mas em desor- dem. Por exemplo, a escrita da palavra radio, feita por Julieta na se- gunda entrevista: AIO - RIDO > RADIO. & importante fazer um registro meticuloso de tudo que ocorre durante o processo de producdo para compreender por que essas letras mas em desordem, satisfazem as criancas. Por exemplo, vai escrever baile e comega com as vogais AE. Olha o resultado enquanto diz “bai, bai... la ve corta” [bai, bai...o va)’ € a intercala: AVE. Volta a considerar o resultado enquanto diz “ le falta Ia ele” [bai-le.. falta 0 ele] e acrescenta ao final. O resultado AVEL, que ela 1é sem problemas, apontando duas letras para cada sflaba. Esta satisfeita porque as letras sdo efetivamente pertinentes. A ordem dentro da silaba nao importa. SILABAS COM CONSOANTES EM POSICAD CODA (CVC) ee aparecimento das consoantes, em posigo coda, costuma estar acompanhado de graves problemas de desordem com pertinéncia. A palavra forta foi proposta nas duas primeiras entrevistas. Milagros e ‘Valentina escreveram TROA na segunda entrevista, mas chegaram a este resultado através de processos diferentes. : 0 eu FERRERO Milagros comega escrevendo OAA e comenta “dos a... esta compli- cado” * L€ 0 resultado “to-o..or-ta”. Em funcao desta leitura, tenta por O0A, revisa o que escreveu previamente e vé que jé usou OOA para “collar”. Deixa OAA, insatisfeita. Na segunda entrevista, antecipa “como ‘Toms, la te y la 0 (TO) y la a (A)". O resultado é TOA. Leitura de con- trole: “tor. y Ia erre", acrescenta o R ao final. O resultado é TOAR (desordem com pertinéncia). Nova leitura de controle: “tor-tar.. ah! la erre acd”. Volta e escrever: TROA (desordem com pertinéncia, com oR inserido fora de lugar, mas “dentro” da silaba a qual pertence). ~ Na primeira entrevista, Valentina comeca a aceitar duas letras para nao repetir vogais. Escreve OA. Na segunda entrevista verba- liza enquanto escreve: te (T) torrr, la erte (R) tor-ta, laa (A)".O resultado é TRA. Comega a leitura de controle: “tor... Jao”. Intercala esta vogal. O resultado & TROA (desordem com pertinéncia, como Milagros). ‘Vejamos um exemplo do que pode ocorrer com uma palavra no plural, “perlas” [pérolas], jf que ambas as silabas apresentam codas (R €.S, respectivamente). Tomés 6 um menino que utiliza consoantes desde a primeira entrevista e est4 muito atento a representagiéo das codas. Em todas as entrevistas escreve esta palavra com letras perti- nentes, mas em desordem: PRES -> REAS - PRSA // PRLSA (barra dubla indica mudanga durante a mesma sesso). A escrita da segunda entrevista (REAS) é particularmente notavel porque Tomés escreve as duas codas, mas nenhuma das duas consoantes em posicdo de ataque. Detalhadamente, a produsdo é assim: na primeira entrevista Tomés antecipa oralmente “per, per, perlas, la pe y la erre” (PR) “Ia e” (E) “ese” (6). O resultado é PRES, que ele 1é apontando duas letras por sflaba. Na segunda entrevista também antecipa enquanto escreve: “Ia erre y ae (RE) las, laa (A) per-las, ese (S)". O resultado & REAS. Na terceira “Em portugus seria “dois a. std complicado”. A partir deste comentitio,encontraremos cuts fess nas qunis as riangas falam os nemes das diferentes letras, em espanhol,enquan- ‘mas esrevem e/ou refletem onde cloctlas, como € 9 casa de L=ele,T = fe, R= re, 8 =e, Pepe (NT) ‘OINGRESSO NA ESCRT E NAS CULTURAS 20 SCRIO ” entrevista, antecipa duas letras por silaba: “per (PR) las (SA) i. Lé 0 resultado, PRSA como “per luas por silaba), e conclui “la ele delante de la ese”. Intercala esta letra. O resultado é PRLSA. Realiza a Jeitura de controle: “pr (PR) las (LSA)”. Mostra-se muito: ‘satisfeito com o resultado. SILABAS COM DITONGO E CODA (CVVE) —————eeeeeooaoeeeerrvreee Uma das palavras propostas, “festa” [festa], tem uma sflaba inicial particularmente ‘com ditongo e consoante $ em posicio coda. Uriel escreve assim: IEA + IEA + ETA // FSA. As escritas das duas primeiras sessdes so idénticas, mas na terceira, hd uma mudanga considerdvel. O primeiro recorte oral é “fies-ta” e corresponde a pro- ‘dugao ETA. Ao verificar sua produgao, Uriel faz outro recorte “fi-es-ta”, rejeita o que tinha escrito e produz FSA (lé uma letra por silaba) casdo importante de evolugdo: hé mais consoantes que vogais nesta tiltima produgao. Camila na terceira entrevista, apresenta-nos um exemplo expres- sivo. Diz: “con efe” [com F] e escreve FETA. Lé: “fi-es” (sobre as primei- as duas letras) e conclu: “me falta la ese”, Insere a letra e fica FETSA. Comega a ler: “fi. me falta Ia i". Insere o Le fica FEITSA. Confere no- vamente: “fi... fengo que sacar la E” [fi.. tenho que tirar o E]. Esta vez decide reescrever a palavra eo resultado é FITA. Comega a ler: “fies... ‘me falta la ese”. Insete 0 S na mesma posigao de antes. Fica FITSA. Ca- mila, cansada, renuncia a uma leitura analitica e “fiesta”, sem seg- mentagdes, deslizando o dedo sobre as letras em um gesto continuo. A série de transformagées de Camila éa seguinte: FETA // FETSA // FEITSA // FITA // FITSA. ‘Todo o trabalho de Camila fica na primeira sflaba, a silaba dificil. A segunda silaba, bem resolvida no inicio, fica desarticulada devido a ‘ todo esse trabalho. Durante a agdo de escrever, Camila intercala sem ordenar. a leitura que impée a busca de uma ordem, porque na ora- lidade as sflabas ndo sao permutaveis. Camila insere letras, o que é um sinal de grande progresso. Mas, uma coisa é perceber que a silaba /fes/ tem um Ie um §, e algo muito diferente é saber exatamente onde por estas letras. Camila sabe que devem ir “dentro”, mas ainda nao sabe se.vai “antes de” ou “depois de”. A ESCUTA DA SILABA COMO UM ACORDE MUSICAL Para compreender 0 que esté acontecendo (compreendé-lo do onto de vista do sujeito em evolusao), proponho deixar momentanea- mente de lado as teorias fonolégicas da silaba que no podem dar conta destes processos porque no esto pensadas em termos evolutives. Pensemos na escuta musical de alguém que nao é msico profissional. Posso escutar uma obra orquestral (uma sinfonia de Haydn ou de Mozart, por exemplo) pondo atengao a linha melédica geral, as mu- danas de intensidade, as mudaneas ritmicas. A obra musical é produ- zida por todos os instrumentos da orquestra e posso escuté-la como ‘um objeto tinico, mesmo sabendo que diferentes instrumentos contri- ‘buem para ela, mas sem por aten¢ao particular em nenhum deles. ‘Mas posso ter uma escuta da mesma obra focada nas cordas (0s instrumentos indispensdveis da orquestra) ou focada alternativamen- te nas cordas e nos instrumentos de sopro. Ter uma escuta que dife- rencie cordas e sopros, porém integrados na sonoridade plena da or- questra, é muito dificil para alguém que nao seja miisico profissional. Aanalogia me parece util para compreender esse momento pre- «iso da evolucio. Da centracao privilegiada nas vogais (as cordas que vibram) passa-se a escutar 0 mesmo acorde musical procedente de (NGRESSO NA ESCRTA NAS CLUTURAS 00 ESCATO 2 outros instrumentos (néo vogais). Sao centracdes alternadas, incom- pativeis entre si: uma ou outra, mas ndo as duas ao mesmo tempo. Parece-me que as criangas escutam a sflaba como se fosse um acorde musical produzido por varios instrumentos. £ a escrita que obriga a considerar esses sons simultaneos como se fossem sucessivos. As alternancias com pertinéncia (caso Santiago, escrita de soda e salame) expressariam 0 momento das centracées excludentes sobre os instrumentos que participam do acorde musical (as cordas e 0s sopros, ‘ou seja, as vogais e as consoantes). Essas centragées alternadas podem aparecer na mesma escrita (caso Maria, escrita de sopa), como agrega- dos sucessivos. Depois percebem que no acorde musical (a silaba) hé sons que esto ali dentro e, por isto, comecam a intercalar. Colocam dentro, nao “antes de” nem “depois de”. Nao se pode passar imedia- tamente de “est dentro” para “esté antes de” ou “depois de”. No caso da sflaba, isto é tio ou mais dificil quanto no de outros dominios do desenvolvimento cognitivo Omissdes e desordem, dois elementos cléssicos do diagnéstico de dificuldade de aprendizagem. Mas estas eriancas so perfeitamente normais. Neste estudo, todas as criangas produziram escrita com letras pertinentes, porém em desordem, em quantidade variével (minimo ‘uma vez e maximo oito em cada sessio de 15 palavras). Para compre- ender o que fizeram é evidente que nao basta analisar 0 produto final. E preciso compreender o processo e saber com preciso 0 que dizem enquanto agregam, apagam, substituem ou intercalam letras. Saber se continuam modificando a primeira produgao ou se decidem reescrever. Aoobservagio dever ser detalhada e a andlise sumamente cuidadosa. OBSERVAGOES FINAIS Nas escritas silabicas, a fronteira sildbica fica marcada, jé que, quando se Ihes permite escolher, as criangas preferem caracteres sepa- rados e cada letra, separada das outras, corresponde a uma sflaba. Na escrita alfabética esta fronteira desaparece. Parte da dificuldade reside no-desaparecimento dessa fronteira. A passagem do “saber fazer” no plano da agio verbal ao “pensar a tespeito” dos elementos do produto dessa agio verbal é, nada mais enada menos, que a transformagéo da linguagem — instrumento de agao — em objeto de reflexao. E preciso colocé-la fora de si mesmo e dos outros falantes. Tiré-a do contexto comunicativo e concebé-a como ‘um objeto a ser considerado em si mesmo e por si mesmo. A grande dificuldade reside em que nao se trata de um objeto do mundo fisico ‘ou cultural que preexiste a agio do sujeito sobre esse objeto. A lingua oral existe & medida que existem atos de fala! Descobrir que os objetos tém partes e que as partes dos objetos sfo classificdveis e ordendveis é algo que as criancas de 4-5 anos j fi- zeram com outros objetos do mundo fisico ou cultural. Através de sua asdono mundo, descobriram também que as propriedades dos objetos completos no coincidem necessariamente com as propriedades das, partes. Agora devem fazé-lo com a Iingua oral. A escrita ajuda as criangas nessa anélise, desde que seja uma construgéo auténtica endo linha c6pia. Propus deixar de lado, provisoriamente, as teorias fonolégicas. ‘AS teorias fonolégicas da sflaba sao 0 que sao: modelos tedricos que ‘oS ajudam a problematizar essa unidade (a sflaba), quanto as suas, possfveis distingdes internas. Nao sio modelos do desenvolvimento € muito menos, das etapas mais instaveis desse desenvolvimento. Nés, psicolinguistas, nfo podemos nos limitar a ver quais modelos de ané- lise da sflaba se ajustam aos nossos dados. Nao podemos ignorar esses modelos. Mas também ndo podemos forcar os dados evol que se ajustem a um modelo sincrénico. Por respeito as andlises lin- sguisticas (mas reconhecendo sua “im-pertinéncia” para compreender ‘a evolugio), sugiro procurar analogias na musica, analogias que tém seu correlato na teoria psicogenética sobre outros dominios. Por outro lado, que informagio estes dados acrescentam sobre as relagdes de precedéncia ou sucessdo entre oralidade e escrita nestes ‘OINGRESSO NA ESCRITA E NAS CULTURES DO ESCATO momentos da evolucio? Jé sabemos que os modelos hegeménicos dizem que as criangas devem ser capazes de analisar a oralidade em termos de sequéncias de fonemas para compreender a escrita alfabé- tica (phonological awareness — consciéncia fonol6gica). Eu propus que a escrita alfabética é a que obriga a adotar uma atitude analitica com relagio a fala (Ferreiro, 2002). No entanto, ndo se trata de substituir um modelo unidirecional Por outro igualmente unidirecional (como sugere Olson, 1996). O Ponto de partida para a andlise da fala é a escrita socialmente consti- tuida, bem como a escrita produzida pelas criangas. Mas indicar 0 onto de partida nao equivale a predeterminar o ramo das andlises posteriores. Os exemplos que analisei mostram agdes em ambos os sentidos Porque “a oralidade” nao é um objeto tinico, nem sequer no ambito da palavra: a oralidade analitica que busca na segmentacio silébica as letras pertinentes ndo é 0 mesmo que a oralidade verificadora (leitura) ou a oralidade confirmatéria (que também Porsua vez, “o escrito” também nao é um objeto tinico, nem sequer ao nivel da palavra: ha escritas que se impdem ao sujeito, como se fossem imodificéveis, tanto como tentativas de escrita, provisérias, disponiveis & modificagao (nem sempre afortunadas). ‘Temos visto varios casos onde a interacdo oral/escrito ocorre em ambos os sentidos (do oral ao escrito e do escrito ao oral). Men- cionar uma interagao em ambos os sentidos nao explica nada, mas 40 menos previne contra a tentagdo de substituir um modelo tradi- ional unidirecional (oral + escrito) por outro igualmente unidirecio- nal (escrito ~ or: Parece-me que compreender, em todos seus detalhes, estes mo- ‘mentos de transicéo e, em particular, essa “dlesordem com pertinéncia” que tratei de expor, ¢ crucial para entender as dificuldades e as espe- Cificidades da alfabetizagao. Porque mostra, além disso, as dimensdes. propriamente draméticas do processo, um processo que esté longe de ser linear, ou seja, por adigées sucessivas. Ao abandonar a escrita com 6 xm FRR simples vogais, ao comegar a introduzir consoantes, as criangas nao do acrescentando letras “alegremente”. A introducao das consoan- desorganiza o sistema anterior e as criangas deve empreender a a tarefa de enfrentar os desafios de encontrar uma nova organi- ‘ago. Essa nova organizacao impactaré ao mesmo tempo a oralidade analitica e a escrita reflexiva. Notas ndentes, puseram em inglés e grego. ‘que podemos utilizar éavogal.Sehé uma consoan- (@ataque pode ser composto). ‘hd uma consoante depois da vogal, diz-se que esté na posiglo de consoante e V de vogal. 5. Em espanhol, esta palavra & dissflaba: pia-no do sistema da lingua, indica, carecem de uma propriedade fundamental das p 7. Em espanol, as letras b e v sio pronunciadas da recebem nomes diferentes: em grande parte da América, ob & chamado de “be larga” Iba: ‘ov "be corta”[b8 curto}: na Espana, so chamadas respectivamente 8.O termo francés actions lngagitves é mais apropriado que o espanol (acts de abl) que parece traduzido do inglés speeck acs 4 Identidades e diferengas na escrita em papel e em computador nas primeiras etapas do processo de alfabetizagao Artigo publicado na Revista Latinoamericana de Lectura (Lectura y Vida), ano 28, n. 4, p. 18-30, dez. 2007. i Instituto Superior de Educacgo Vera Cruz Biblioteca we EMILIA FERREIRO ‘Valdemar Sguissardi — 0 INGRESSO NA ESCRITA ENAS CULTURAS DO ESCRITO SELECAO DE TEXTOS DE PESQUISA Dados internacionais de Catalogacéo na Publicaglo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) | traducao de i Rosana Malerba 1: Alabezaio 2. Alabetzaio dig 3. ara Lira Pengo To | roves coos cas pra catilogo asta: 1. Albena: Easing Bacio S724 CORTEZ, EDITORA

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