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CAPITULO 9 LIDERANGA, LEGITIMIDADE E MERITO ADRIANE VIEIRA! GILBERTO BRAGA PEREIRA? MARIA TERESA DE AZEREDO ROSCOE® Introdugao Muito embora os termos lider ¢ lideranga fagam parte do vocabulirio corrente nas organizagées empresariais ¢ de serem encontrados na litera~ tura sobre comportamento organizacional, ainda ha controvérsias sobre 0 seu significado. Ao abordar essa temitica, ¢ preciso levar em consideragio que diferentes abordagens sugerem fazeres especificos e conferem papéis diferentes aqueles que sofrem a acdo ou ocupam posi¢ao de lideranga. Este é um artigo tedrico-empitico sobre legitimacao e mérito da lide- Tanga, sob a perspectiva de quem assume tal posigio, apropria-se da fungio + Doutora em Administragio pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade Novos Horizontes (MG). *Doutorando em Psicologia Social do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre €m Administracéo, pela FEAD/MG. Pesquisador do Laboratorio de Estudos sobre 0 Trabalho, Sociabilidade ¢ Satide, da Universidade Federal de Minas Gerais. * Mestranda em Administrasio pela Pontificia Universidade Catdlica de Minas Gerais. Professors da Fundasao Dom Cabral. 219 ZOO UTVENAN VA € precisa do olhar externo de outros sujeitos para garantir a legitimidade ¢ reconhecer 0 mérito dos seus atos. Por isso, entende-se a lideranca nfo como um efeito de posi¢io hierarquica, mas como um comportamento de autoridade que se constréi na relagio entre individuos, pela admiracio, exemplo e respeito. Segundo Berger ¢ Luckmann (1989), estar em sociedade significa que cada membro individual, simultaneamente, exterioriza 0 proprio ser no mundo social ¢ interioriza este tltimo como realidade objetiva. Ao longo de sua vida, um individuo internaliza e se apropria da realidade objetiva e age sobre ela, modificando- ceito sobre si préprio. No entanto, a concepsio que se tem de si mesmo Na medida em que o faz, constréi um con- precisa da confirmagio de outros sujeitos que Ihe sejam significativos, Dito de outra mancira, os “outros significativos” dao legitimidade & concepeio de si mesmo ¢ também reconhecem suas agoes. Sio essas questies que interessam neste trabalho, a de identificar as concepgoes de lideranga pre- sentes nos discursos dos sujeitos da pesquisa, construidas legitimadas nas relagGes sociais, bem como identificar as praticas de treinamento e desen- volvimento que podem conferir mérito as suas concepsées e agdes. Para Barbosa (1996), meritocracia diz respeito a umn conjunto de valores que postula que as posigdes sociais dos individuos na sociedade devem ser resultantes do mérito de cada um, ou seja, das suas realizacées individu- ais. A legitimidade da lideranga, Pportanto, pode estar associada ao mérito se os valores vigentes em determinada sociedade limitam a ocupagio e 0 exercicio do papel de lider ao seu desempenho individual. Como os valores Presentes em determinada sociedade podem ser modificados ao longo do tempo ~na medida em que, ao internalizar a realidade dada como objetiva, 0 individuo também age sobre ela e a modifica -, a perspectiva de andlise da presente pesquisa ¢ geracional.* Isso porque a cronologia iniciada pelo ano de nascimento e as diferengas etarias constituem “uma base para a de- * Schmidt (2001) destaca que o coneeito sociolégico de gerasa pode ser entendido em quatro sentido: istintos: “[...]i) conjunto de todos os membros de uma sociedade; ii) conjunto dos descendentes do mesmo progenitor ou progenitores; ii) conjunto dos individuos que nasceram aproximadamente 1a esa época; iv) periodo entre o nascimento dos individuos mascidos na mesma época e sua prole E, em conformidade com Aries (1997), 0 termo recebe a conceituagio de [. .] uma populagio relati- vamente homogenea, que corresponde aos homens ¢ as mulheres nascidos no espaco de uma vintena de anos [..)°. PARTE I; Qperacionalizando a lideranga entre a tradicdo, a modernidade © a pés-modernidade 221 finigao dos seres humanos, para formagio de atividades e relacionamentos mnituos e para as diferentes distribuigées dos papéis sociais” (EISENSTA- DT, 1976, p. 2-3). A cronologia a classificagao de geragoes adotada, explicitada no refe- rencial tedrico deste capitulo, foram propostas por Conger (2002): Geragéio Silenciosa — nascida entre 1923 e 1942; Geragdo Baby Boomer — composta pelos que partilham o nascimento entre os anos de 1943 ¢ 1964; e, por fim, a Geragao X — que compreende o periodo entre 1965 ¢ 1981. Se geracdes carregam consigo significados e valores relativos ao seu segmento etirio, © que nos interessa saber € quais so os critérios de mérito socialmente construfdos para a legitimagao das liderangas na perspectiva dos sujeitos da pesquisa. O objetivo da presente pesquisa é, portanto, analisar como legitimidade € mérito estio articulados as concepgdes ¢ As priticas de lideranga, a partir da percepcio de sujeitos investigados. As anélises e reflexdes aqui expostas sao frutos de uma pesquisa empirica de base qualitativa, que utilizou o método do estudo de caso. Os sujeitos da pesquisa, escolhidos intencional- mente, sdo gestores e profissionais de T&D, compondo-se de um conjunto de doze depoentes, representantes de diferentes geragdes. Na sequéncia deste capitulo, sero abordados o referencial te6rico que propiciou a interpretagao dos dados, a metodologia da pesquisa e a descri- Gio das categorias analiticas: critérios para ingresso e exercicio do papel de lideranga; legitimidade ¢ mérito no papel de lider; ¢ lideranga nas aces ¢ tecnologias de treinamento e desenvolvimento. Referencial tedrico O conceito de Lideranga Das trés designacées, lider, lideranga e liderar, talvez somente 0 concei- to de lider nao suscite controvérsias: “[...] pessoa que vai a frente para guiar ou mostrar o caminho, ou que precede ou dirige qualquer a¢io, opiniao ou movimento” (PENTEADO, 1978, p. 1). O conceito evidencia pelo menos duas imagens essenciais: o destague — o lider diferencia-se, ¢ proeminente, aparece no grupo — que se configura como um afributo; ea influéncia, que, we LIDERANCGA por sua vez, sugere uma relacio. Ao se referir & lideranga, Penteado (1978, p. 2) faz mengao, ainda, 4 dominagao, que é entendida como a sintese das duas imagens precedentes (destaque ¢ influéncia); “ter influéncia sobre ¢ elevar-se acima de”. Concluindo, 0 autor afirma que “lideranca € uma forma de dominagao, 0 exercicio de um poder sobre individuos ou grupos” (PENTEADO, 1978, p. 3). Weber (1982) percebe a dominagio no cerne de relages sociais, molda- das pelas lutas de interesses estabelecidas na autoridade, ou seja, no poder de dar ordens e de ser obedecido. Para Weber, as condicoes do poder é que determinam o que o sujeito vé e sente. Ele acreditava que as pessoas pensam no poder de diversas maneiras, mas que apenas alguns tipos de pensamentos as levam a conceber os po- derosos como autoridades, ¢ esses pensamentos seriam determinados pelos tipos de controle exercidos pelos poderosos (SENNETT, 2001, p. 34). E daf que o pensador estabelece trés categorias que traduzem as imagens sobre autoridade: 1, a primeira é a tradicional, que se bascia na imagem de uma sociedade de privilégios hereditarios. A transmissio de autorida- de esta fundada num pasado tio remoto que s6 é possivel compreendé- Ja a guisa de mitos ¢ lendas; 2. a seguinte refere-se a legal/racional, Esta calcada na crenga na legalidade das normas ¢ no direito de dar ordens, reservado aqueles que ocupam uma posicao deliberada por essas normas; 3. a tiltima categoria é a carismatica, que se “assenta na devogao incomum ¢ extraordindria de um grupo de seguidores a sacralidade, & forca heroica ou a cxemplaridade de um individuo e da ordem revelada ou criada por ele” (SENNETT, 2001, p. 35). No pensamento weberiano, ha uma clara iden- tificagdo de autoridade com legitimidade. “Autotidade como crenga na le- gitimidade, mediada pela obediéncia voluntéria: ai esté uma abordagem da autoridade que adquiriu imensa influéncia no pensamento social moderno” (SENNETT, 2001, p.36). Ao contririo de Weber, e concordando com Cortella ¢ Mussak (2009), entendemos que lideranga nao é um cargo ou efeito de posigao hierarquica. ou um poder formal, mas um comportamento ou uma acio, sendo dese}é- vel que as pessoas que ocupam cargos de gerentes, diretores, supervisores PARTE i: Dperacionalizando a ideranca ene a tradi & mOdSrni#ade 2 pOs*modermnane zz guperintendentes se comportem como lideres. Logo, a lideranga nfo erminada pela hierarquia; é uma autoridade que se constréi pela ad- do, pelo exemplo e pelo respeito, Para Cortella ¢ Mussak (2009), a ga é inerente ao relacionamento humano, quer esse agrupamento mano seja formal ou informal. Além disso, a relagdo lider ¢ liderado e ser compartilhada e alternada, constituindo-se numa via de mio du- Portanto, lideranga nao é um dom ouum trago com 0 qual se nasce ou 4 uma virtude ow uma forca intrinseca ou uma capacidade a ser desén- olvida. Diz respeito & condugio de um grupo em direcio a um objetivo ou -mudanga de seu comportamento, Nesse sentido, também é circunstancial ‘ou situacional, ou seja, a capacidade de lideranga dependeri do contexto, do desenrolar das circunstancias (CORTELLA; MUSSAK, 2009). 'A partir esses conceitos, surge 2 indagago: © que legitima os Iideres em suas posigdes? A nogio de legitimidade construida neste capitulo se baseia no entendi- mento de que a realidade objetiva é socialmente construida por homens ¢ se constitui um modo de organizacao econdmica, politica ¢ juridica de uma sociedade. Ao longo de sua vida um individuo internaliza ¢ se apropria da realidade objetiva e age sobre ela modificando-a e, na medida em que o faz, constréi um conceito sobre si proprio. No entanto, esse autoconceito pre- cisa da confirmagao de outros sujeitos que sejam significativos para ele, a fim de garantir a legitimidade dessa concepsio ¢ também de suas agoes. A histéria dos sujeitos é a de pertencer a virios grupos sociais ¢ ¢ “através dos grupos que as determinagées sociais mais amplas agem sobre o individuo” (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1995, p- 202). De acordo com Berger ¢ Luckman (1989, p. 175), 0 processo pelo qual a interiorizacao de um acontecimento objetivo se realiza € a socializacio, “que pode ser definida como a ampla ¢ consistente introdugio de um in- dividuo no mundo objetivo de uma sociedade ou de um setor dela”. A socializacao primaria ¢ a primeira socializagao que individuo experimenta ha infincia e que o torna membro da sociedade. Um elemento importan- te do processo de socializacio sio os “outros significatives”, pois sto cles wa LIDERANCA 08 mediadores que se encarregam da socializagao. A socializagao primaria termina quando a crianga cria na consciéncia uma abstracdo progressiya dos papéis ¢ atitudes dos outros particulares para os papéis ¢ atitudes em geral; nesse momento, ele ja se tornou um membro efetivo da sociedade ¢ adquiriu, subjetivamente, uma personalidade ¢ um mundo. A socializaeao secundaria é um processo que permite a interiorizagao de submundos institucionais, cujo carater e extensio sio determinados pela complexidade da divisio do trabalho, e da distribuicio social do conheci- mento. Portanto, pode-se dizer que a socializagio secundaria é “a aquisigao do conhecimento de fungées especificas, fungdes direta ou indiretamente com raizes na divisao do trabalho”, como a de gestor ou lider em determi- nada organizagao (BERGER; LUCKMANN, 1989). Por meio do processo de socializacao priméria e secundaria, os valores de determinada sociedade ¢ de seus segmentos de classe siio internalizados, Em tltima instancia, sio eles que configuram os papéis sociais experimen- tados ao longo da vida de um individuo — como o de pai, mae, filho, chefe, empregado. No jogo dos papéis, as nocdes de legitimidade e mérito sao construidas. O papel assume, entio, a conotagao de fungao acompanhada de um conjunto caracteristico de condutas préprias, desempenhado num dado momento, ¢ que lhe dao legitimidade. Comumente, so os papéis que asseguram a conquista do poder de fazer algo em particular de forma legitima, ou de se defender em uma posi do bom desempenho do papel. E possivel distinguir trés niveis de abordagem atinentes A nogao de pa pel. O institucional, ou perspectiva sociolégica (papel prescrito, imposto em fungio do lugar que ocupamos na sociedade), no qual 0 individuo ou instituicdo adquire valor. O nivel individual, ou perspectiva psicol6gica, no qual ele adquire uma fungéo de expresso de si, que remete & perspectiva em fungio do mérito, ou seja, de que o sujeito exerce a escolha dos papéis. E o nivel interacional, ou pers~ pectiva psicossociolégica, em que os papéis perfilam uma caracteristica de complementaridade. Além de os seres humanos se configurarem como seres “com”, nfo hé papel sem contrapapel. Nesta dimensio, 0 processo comunicacional as- sume miltiplas caracterizagdes: a expectativa do papel (a antecipagao do comportamento das pessoas em fungao do que se sabe sobre a posigdo so- cial do outro); a evolugao das atitudes no interior do papel; a disparidade PARTE t: Operacionalizando a fideranga eatre a tradigéo, a modernidade ¢ a pis-modernidade 225 entre o papel desempenhado ¢ as percepgdes que dele tém os demais (EI- SENSTADT, 1976; PRETI, 2000), que garantem a sua legitimidade. Quando se apreende um papel social, outro complementar em oposi- go ascende automaticamente no todo psicossocial. Por exemplo, chefe ¢ subordinado, acionista e gestor, que, numa relagio dialética e dindmica, se dispoem um para 0 outro com um protétipo de atitudes no qual cada um. pode prejulgar ou predizer a conduta em resposta as mensagens que emite. Desse modo, a convivéncia humana é marcada por uma distribuigiio de pa~ péis, por expectativas mittuas ¢ por um sistema de legitimidade, de direitos e deveres rec{procos, cujo sentido corteto indica que a cada direito equivale um dever alheio. Promulgar um direito traz, assim, implicitamente um dever (ELIAS, 1997). Para Berger e Luckman (1989), os valores internalizados na socializagio _ priméria condicionam profundamente nossa forma de perceber e agir sobre essa realidade objetiva, contribuindo na construgio desse cenario social que esta sempre inacabado. Para fins do presente estudo, considerou-se fun- damental levar em conta os valores presentes cm cada gera¢do de lideres, entendendo que a cronologia iniciada pelo ano de nascimento ¢ as dife- - rencas etiirias constituem “uma base para a definico dos scres humanos, para formagio de atividades ¢ relacionamentos miituos ¢ para as diferentes distribuigdes dos papéis sociais” (EISENSTADT, 1976, p. 2-3). Como as geragdes carregam consigo significados, valores, expectativas ¢ grau de importancia relativa ao seu segmento etario, tanto individualmente quanto coletivamente, 0 que nos interessa saber ¢ quais so os critérios de mérito socialmente construidos para a legitimagao das liderancas, na perspectiva dos sujeitos dessa pesquisa. E possivel supor, entao, que, em determinado periodo de tempo e em determinada sociedade, geram-se praticas legitimadoras consonantes com a defini¢io € os critérios de mérito vigentes. As expectativas quanto ao papel da lideranga ficam, pois, condiciona- das aos artefatos culturais ¢ est’io inseridas em cada segmento etério numa relagio reciproca que Ihes dé sentido. Ou seja, as caracteristicas de deter minada geracio e as expectativas de papel a elas relacionadas s6 podem ser compreendidas num comparativo as outras geragées, em seus contrastes ¢ semelhangas ¢, também, em uma visio de continuidade, ante a qual se torna possivel obter um mapa total das potencialidades humanas. No artigo “Quem ¢ a geragdo X?”, Conger (2002) caracteriza trés ge- rages distintas em sua relagao com o local de trabalho e o fendmeno da lideranga: Geragio X, Geragio Baby Boomer e Geracio Silenciosa. Nz sequéncia, serio apresentadas as suas representagdes € expectativas quanto ao trabalho, salientando-se que nao se pode entender os marcos expressos em anos de nascimento como absolutos. Além disso, 0 artigo citado resulta de uma pesquisa realiza nos Estados Unidos, portanto as tendéncias apre- sentadas devem ser relativizadas ao serem aplicadas a realidade brasileira, De todo modo, o que interessa € considerar que cada geracéo vivenciou ¢ partilhou fatos sociais que, circunscritos na dimensio espago-tempo, forja- ram normas ¢ condutas especificas e levaram A constituigao de conceitos ¢ critérios de legitimidade ¢ mérito proprios. A “Geragio X” compreende os individuos nascidos entre 1965 ¢ 1981 Avessos & hicrarquia, preferem o trabalho em equipe e desejam um fan- cionamento comunitério para a empresa. Respondem a necessidade de seu tempo, eis que s6 prosperam nas organizagdes contemporneas porque estas tiveram de responder aos imperativos de mercado, as exigéncias de competitividade e de qualidade. Os valores dessa geracio contrastam fortemente com os da “Geracio Si- lenciosa”, formada pelos chamados durocratas ou executivos dos anos 1950 a 1970, que foram leais as empresas em que trabalhavam e delas receberam lealdade em troca. Representativos da “era de comando”, esses executivos foram surpreendidos, em meados dos anos 1970, pela aceleracao das mu- dangas no capitalismo ocidental. Essa geragio cedeu espaco, como forga de trabalho, para a “Geragio Baby Boomer”, composta por pessoas nascidas entre 1943 e 1964, Nesse sentido, a lentidao e a inflexibilidade adaptati- va dos modelos hierérquicos deram lugar as equipes multifuncionais por Projeto, tomando por base uma estrutura de funcionamento supostamente muito mais democratica e participativa. Com os boomers, assiste-se 4 ruina da aura que envolvia as posigées de autoridade. Para eles, a autoridade perdia gradativamente a confiabilidade. Em uma proporcionalidade inversa, crescia a independéncia, reduzindo-se a obediéncia, © Quadro 9.1 apresenta uma sintese comparativa de parte dos atribu- tos, peculiaridades, representagdes € expectativas quanto ao trabalho ¢ 4 organizagao de cada geracio descrita. PARTE Ht: Operacionalizando a lideranca entre a tradigéo, a madernidade a pés-modernidade 227 QUADRO 9.1. A HISTORIA DAS TRES GERAQOES Denominagées | Nascimento Peculiaridades Silenciosa Entre 1925 e 1942 | « Filhos de familias que viveram a “purocratas” Segunda Guerra Mundial e a Grande Depressao * Alta valorizacdo do emprego + Obediéncia ¢ lealdade Estilo de lideranga autoritario Baby boomer | Entre 1943¢ 1964 | » Criados na era do rock Conviveram com um periodo de extraordinaria riqueza dos Estados Unidos _| “yuppies” * Indulgentes e narcisistas ‘* Marcas: rebeldia e idealismo utépico (hi esquerdistas, revolucionarios etc.) * Estilos de lideranga contrastantes: esperanga € Idealismo versus cinismo e apatia Goragao X Entre 1965 e 1981 | © Filhos de mes que trabalham fora e de pais slackers” ‘separados 840 os itmaos mais novos dos | boomers ‘+ Marcas: realismo pragmatico ¢ cético * Lealdade a si mesmo e nao ao chefe * Trabalho como sindnimo de transagéo * Tragos proeminentes: buscam equilibrio real entre trabalho e vida pessoal; s40 independentes; representam a Era da Informac&o; sonham com locals de trabalho que lembrem comunidades Isso posto, surge uma nova indaga¢ao: como legitimidade e mérito se iculam na sociedade brasileira? Ou, ainda, em se tratando da sociedade asilcira, quais so os critérios de mérito socialmente construido para a gitimacao das liderancas na perspectiva dos representantes das geragdes aqui mencionadas? Eles foram alterados ao longo tempo? ito na cultura brasileira Como afianca Barbosa (1996), em uma ideologia meritocritica, inicas hierarquias legitimas ¢ desejaveis baseiam-se sempre, ¢ S0- ‘mente, na selesio dos melhores com base no desempenho individual. 2B LI VERANGA A autora citada conclui que nas sociedades individualistas modernas ha uma presenga simultinea de uma operacionalidade, que se da através de sistemas meritocraticos, e dos sistemas que se basciam numa ideologia de meritocracia, Desse modo, o debate se concentra mais em questées de ordem pritica do que na definigao de critérios, visto que esses esto dados: mérito/desempenho, No que se refere a sociedade brasileira, a autora afirma também que, nao obstante possa ser reconhecida, em sua organizacio formal e juridica, como um sistema meritocratico em rela¢ao ao ingresso e 3 mobilidade em seu interior, nao é legitimada como uma sociedade ideo- logicamente meritocratica em seus varios segmentos sociais. Critérios, tais como relacdes pessoais, parentesco, posicao social e antiguidade, se misturam aos principios meritocraticos na construgio de suas hierar- quias. Além disso, os significados de desempenho niio so coincidentes nos varios grupos. Em certo sentido, ha uma representagio dupla para a igualdade entre os brasileiros. De um lado, ela é um direito e, de outro, se constitui como fato. No primeiro caso, é assegurada juridicamente: igualdade de todos perante a lei, No outro caso, vale-se de um sistema moral que insete a igualdade legal em bases conjunturais, definindo-a nao sé como um direito, mas como uma realidade indiscutivel. Seguindo essa légica, o desempenho decorre muito mais das condigées em que ele opera do que do talento, Sempre avaliado ou considerado de forma contextual e reproduzindo a légica: “eu ¢ minhas circunstancias” As circunstancias nao so invocadas para valorizar a producio individual, mas para justifica-la, Nessa dimensio, as produgdes individuais se revelam incompativeis entre si, visto que se deram em condigées sdcio-histéricas € singulares distintas, nfo permitindo equivaléncia entre os pesos das varid- veis no desempenho em um mesmo individuo, tampouco entre individuos distintos com as mesmas condigées. Em que medida se torna possivel estabelecer uma interface entre 0 que foi exposto e a tematizagio da lideranga e da legitimidade? Existem pelo menos duas alternativas de ancoragem para essa discussio. De um lado, se tem © processo em que a lideranca toma forma no contexto organiza- ional, ou seja, como escolher, formar ¢ legitimar o lider no desempenho de seus papéis. De outro, h4 as questées de mérito ¢ de desempenho, PARTE tt Oporacionalizando a lideranca entre a tradicSo, « modernidade ea pés-modernidade 229 que interferem ou impdem condigdes ao cumprimento das expectativas de papel, que sao atribuidas externamente ou que desempenham o papel que se atribuem. | A hierarquia organizacional, como qualquer outra, estabelece-se a | partir da detimitagao de posicoes e de uma valoragdo das mesmas. For- PBetaimente, pelo menos, o ingresso e a mohilidade pressupéem a exis- " téncia de critérios meritocraticos ou de quaisquer outras naturezas. Tais critérios, como se espera ter elucidado, condicionam-se, por sua vez, "a representacdes culturalmente instituidas. E nesta diregao que a pre- sente discussdo se justifica, ou seja, na cultura brasileira, como se dé o ingresso e a formaco do lider organizacional? Como identificar poten- ciais lideres e como forma-los? Como reconhecer e se reconhecer como potencial candidato? Confia-se, pois, que respostas serio possiveis de ser esbogadas a partir " da anilise dos dados coletados, néo se esquecendo de que, dependendo da perspectiva de quem se toma como referéncia, € provavel que a resposta a essa indagagao possa variar, pois legitimidade e mérito sao sujeitos a de- finigdes culturalmente constituidas, sobretudo, pelo fato de que aspectos _ earacteristicamente operacionais, como conjuntos concretos de regras, sao - condicionados a representagées culturalmente determinadas. Metodologia da pesquisa Os dados utilizados neste ensaio originam-se de pesquisa empirica de _ base qualitativa. A pesquisa foi desenvolvida através do método de estudo de caso, para se entender melhor a manifestagio do problema, as ages, as Percepcdes, os comportamentos e as interacdes das pessoas relacionadas _ com a situacao estudada (TRIVINOS, 1987; YIN, 2001). Os sujeitos da pesquisa compéem um conjunto de doze depoentes cate- Qorizados segundo a geracio correspondente ¢ a posicdo ocupada: gestores € profissionais de T&D. Apesar de considerarmos que nao € 0 cargo ocu- ido que configura o exercicio do papel de lider, optamos por entrevistar “Bestores © buscar sua percepgiio sobre lideranca, uma vez que, contem- oraneamente, as organizagdes tém a expectativa de que ajam como tal. a © Quadro 9.2 sintetiza o perfil dos gestores. ‘c002 "YHFSHSd 61403 zz | 8661 pL reuoissyoig | Sz woz | nme] ae aeL-x/9 ¥% 0002 BL euoIssyoug at 661 nape] Zz OLX /0H iz 8661 pn ar S661 nape] 2 8% 6661 22 le 2661 nape) ee x ve S961 GBL RRUOISS Od 6L 0961 ney ee | ey aL-12u008 “B/D le 9261 RL eUOISSyoIg i 9261 nap €| 9S eL-10u00g “a/og a 9961 PF ze 9961 ne] Sb Jeprr-rewioog “ad | sewoog Aqeg 9 Let RL PuOIssyOI at z96t neg 6] 08 RL-BS0}OURIS/A ve 086 RL reuorssyoud o z96L nei e| 89 aL-2S0}0U9 16/5 ¥ 2961 wep st eset nei | 99 JOP/T-BSO!DUBIS/A7 ee 6161 wep 9b 0961 nei | 69 20PA-PSORUOISIAN | sacoueyg ve 8964 +P neipe| 89 al (soue) | niuinsse euobereg (sour) ouy ogéngsuy {soue) opdeoynuapy opse105 apepi | anb ouy pep] ep nein ‘pep! 7 ovdisog | oyjeqen op opeoueu op o1juy VULSONY Vd T1suad @6 OuavnD PARTE i: Operacionalizande a tideranga entre a tradigSo, a modernidade e a pos-modernidate 231 A técnica de andlise de dados utilizada foi a “andlise de contetdo”, uma vez que esti a servico da busca de sentidos para as narrativas orais colhidas e transcritas, A fim de que fossem feitas inferéncias interpretativas, isolou- se 0 tema lideranga como unidade central de andlise, a partir do qual foram resgatados valores, crengas, atitudes, opinides, conceitos ¢ representagdes acles relacionados. Descrigdo e andlise dos dados Neste capitulo, sao apresentadas a andlise das categorias estabelecidas neste estudo, que so critérios para ingresso e exercicio do papel de lide- ranga; legitimidade e mérito no papel de lider; expectativas de papéis € lideranga nas ages ¢ tecnologias de treinamento ¢ desenvolvimento. Critérios para ingresso e exercicio do papel de lideranga Quatro varidveis surgiram como determinantes da ascensio e distingao hierarquica vividas pelas geragdes em estudo: experiéncia, formagio acadé- mica, idade e antiguidade. Confia-se, portanto, que haja uma inter-relagao entre esses quatro fatores na determinagao do mérito e da legitimidade. Conforme dados do Quadro 9.1, é possivel identificar uma concen- tracio no grau de instrugdo superior, além de que os sujeitos da Geragio Silenciosa foram os que se inseriram mais cedo no mercado de trabalho (dade média em torno dos 17 anos), seguidos pela Geragéo X (em torno | dos 20 anos) e pela Geragio Baby Boomer (em torno dos 24 anos). | O ingresso na atividade profissional, por parte de dois sujeitos da Ge- tagio X ¢ de dois da Geracio Baby Boomer, coincidiu, aproximadamente, | Com o ano em que concluiram o terceiro grau de instrugao. O fato de que | Somente entre os individuos que compdem a Geraciio Silenciosa no se ob- | Servou essa ocorréncia indica ser esse um importante critério para a escolha | de lideres, a partir dos anos 1980. Acontece que na minha época o que valia mais era a pritica, a convi- -_-vncia, aquilo que vocé ia aprendendo dentro da prépria firma. Ago- 1a, na geragto de hoje nao. A de hoje ja é toda estudo. As pessoas que tinham conhecimento técnico foram substituidas por alguém que tem estudo (NM/Silenciosa-Lider). Na minha época, bastava ter o ginasial que vocé tinha um mer- cado. A experiéncia tinha um valor fundamental. Mas, dessa minha época até o meio do caminho, comegaram a surgir as faculdades, Comegou-se a exigir que as pessoas tivessem um conhecimento de lingua, e que tivessem feito uma ou duas viagens ao exterior (LP/ Silenciosa-Lider). Identificam-se, por meio das falas, novos padrées para o reconheci- mento do mérito ¢ da legitimidade. Sinais reais de alteragdes ocorridas ¢ reconhecidas, o que, evidentemente, tem consequéncias representativas, sustentando tanto 0 “lamento” implicito por uma perda como o “reconhe- cimento” explicito de que os novos tempos sao diferentes. As mudancas culturais assistidas pela Geragao Silenciosa nao s6 provocam certa resigna~ 40 como uma critica ao declinio do “fazer” ou da “pratica”, como atributo principal para o reconhecimento do mérito ¢ da autenticidade a serem da~ das aqueles que se tornam lideres. Isso leva a algumas conjecturas, por exemplo, a de que os processos de ascensio as posigdes de lideranga demandavam mais tempo do que na atualidade, tanto pela presenga de um numero maior de etapas de preparacdo quanto pela forte verticalidade da estrutura, pela exigéncia de familiaridade com a realidade organizacional e pelo estabelecimento de vinculos de confianga. Eu entrei na empresa em fevereiro de 1960 e permanecei até 1963, como aprendiz. De 63 a 79 permancci como mecanico de maquinas. Vocé permanecia como aprendiz, de mecanico por muitas fases, até chegar a especialista ¢ depois até o grau maximo, Vocé ia se aprimo~ rando (NM/Silenciosa-Lider). Outro aspecto a ser levado em conta é a dedicagao da geracao mais nova 4 formagao académica por um periodo maior de tempo, contribuindo para que se abrevie o intervalo entre o ingresso no mercado e a promogio a car~ gos de gestio, o que, em certa medida, é suficiente para referendar que, na ‘PARTE Ii Operacionalizando a lideranca entre a tradigdo, a modemnidade e a pés-modernidade 233 Geracio X, escolaridade, mérito e legitimidade esto correlacionados. Esse pressuposto sustenta-se na consideragio de que varios sujeitos, de todas as geragdes, apontaram essa variével como um valor nos dias atuais, pois assegura um nivel de capacitagao maior. Para o profissional que esta se formando hoje, no mercado, o nivel de exigéncia é muito grande. Ele tem que ter uma alta especiali- zagio, capacitacio muito grande, por exemplo, informatica. Ficou mais competitivo (S/Silenciosa-T8D). Na sociedade contemporanea, competéncia ¢ consequéncia de escola- tizagio, como sinénimo de capacitagao. Ser capaz no € saber fazer. Ser capaz é ter formagao académica. Longe de dramatizar, ao se fazerem tais afirmages, o que se pretende € extremar posigdes, a fim de compreender as transformagées observadas nos elementos tradutores de mérito e de le~ Como visto, a construgao da realidade social pelo homem pressupée a _ transformacao de si, ao mesmo tempo em que se legitima na confirmagao -dos “outros significativos”. E neste horizonte perceptivo que se entende que _a Geraci Silenciosa presencia e explicita, em seus depoimentos, alteragées importantes no que diz respeito aos critérios de mérito ¢ legitimidade. E _ importante destac4-los, pois essa geracdo, que antecede as outras duas, deu inicio, presenciou, condicionou ¢ sofreu o impacto das transformagoes so- " ciais, politicas ¢ culturais. Os demais dados — ramo de atividade das empresas ¢ cargo -atual — nao revelaram particularidades dignas de nota na andlise compara- tiva, a nfo ser a de que individuos das outras geragdes ja se inseriram nas inicial e dos até este ponto nao sé podem ser vistos como parimetros de ingresso, mas também de mobilidade e progressao vertical na carreira. : Legitimidade e mérito no exercicio do papel de lider Buscando evoluir na elucidagio do que legitima ou define 0 mérito no exercicio da lideranga, a maneira como cada geracio conceitua lideranga ¢ asa LIDERANCA como se reconhece ou descreve em relagio As demais trazem informagdes substanciais. Iniciando pela Geracao Silenciosa, observa-se uma autoimagem ou umn aus toconceito (como se vé) coincidente coma imagem projetada (como é vista) pelas outras duas geragdes, Essa geragao se legitima, portanto, pelo autoritarismo, centralizagao ¢ respeito a hierarquia, além de exercer um poder que se impde através da posicio ou do cargo ocupado. Ha um vinculo estreito entre dono e gestor, o que deixa entrever que é o primeiro que se firma no papel, nao entran- do em voga competéncia técnica, conhecimento, experiéncia ou outros fatores que podem legitimar o lider. Nesse sentido, a legitimidade é vista como uma consequéncia natural, quer esteja atrelada a seu carter patrimonialista, ou aos direitos decorrentes da propriedade privada. Nao parece ser casual amencio ao modelo “patriarcal” como descritor da Geragao Silenciosa, haja vista a possibi- lidade ficil da relagio contida no verbete que associa “pai” e “patrao”. De acordo com os dados coletados, a Geraso Silenciosa se revela, para as demais, como defasada tecnologicamente e resistente, quando se trata de assimilar mudangas ¢ transformagées. Como dito, o que a legitima ou the con- fere métito nao é somente a competéncia técnica (mesmo que traduzidas em experiéncia e pritica), mas outros atributos, como a antiguidade, o status he- reditério a representagao delegada. Outro aspecto relevante esta na justifica- Gao pela vontade geral, quando se pensa que ha aqui um autorreconhecimento coincidente com um reconhecimento legitimado pelas outras geragdes. Antigamente era o seguinte: ~ faga o que estou mandando e niio dis- cuta. Exa uma lideranca impositiva, ndo era participativa, Ela nao dis- cutia os fatos. Até porque as empresas, naquela época, com excegoes, cram familiares, nas quais 0 avé passava para o pai, que passava para © filho, que passava para o neto e, assim, sucessivamente. Mas, nas empresas de sociedade limitada ou sociedade andnima, o conceito era © seguinte, se era o dono: ~ eu estou mandando, cumpra. Se era o em- pregado do dono, na fungio gerencial;— mogo, mandei fazer, faca, nado discuta a minha ordem. Era impositiva (LP/Silenciosa-Lider). Quanto a formulagao do conceito de Lideranga, a Geragio Silenciosa es- tabelece urna conexao entre lider e empreendedor e, também, uma diferen- ciagao explicita entre chefe ¢ lider. A mesma vincula lideranga ao alcance PARTE Ht: Operacionalizanda a lideranca entre a tradi¢do, a modernidade e a pés-modernidade 236 de objetivos ¢ a habilidade para mobilizar pessoas, compreendendo-a como uma varidvel cultural. Nesse caso, 0 contexto justifica a autoridade, ainda | que se discuta o seu carter autoritario, ou seja, as circunstancias historicas € conjunturais justificam a performance. Curiosamente, a Geragao Baby Boomer se identifica como uma gera- Gao “intermédia”, descrevendo o que possui a mais ou a menos em relac’io as outras duas. Sua autoimagem esta associada a representacées idealistas e romanticas, ao mesmo tempo em que se percebe independente na acao e focada em metas. Foi vista pelas duas outras geragdes como aquela que iniciou 0 processo de contestagio do autoritarismo, mas que ainda preserva _ resquicios dele em suas agdes. Ao conceituar lideranga, ela traz elementos _ que, de um lado, traduzem uma democratizacao, mas, de outro, preservam averticalidade, a associagao de lideranga ao cargo, ao dom e a virtude. A Geragio X surpreende com um volume de dados expressivo, porém contraditérios em seu contetido. Além de se descrever como alienada, poli- _ticamente, quanto as questées sociais, se autointitula individualista, voltada para a busca do prazer (fazer somente aquilo que gosta) e preocupada em -conciliar vida pessoal e vida profissional. Os sujeitos se descrevem como abertos, com um estilo de gestiio mais proximo do democritico, estimula dores da independéncia e capazes de delegar autoridade. No perfil autoa- ‘ttibuido consta, também, uma marca forte no dominio técnico, na capaci- dade profissional e no comprometimento com 0 trabalho. Acho bem alienada a minha geragao. Eu até estava conversando com uma pessoa da Argentina, como as pessoas ld sio mais inteiradas. Nio sei se € porque em politica a gente ja fica meio com pé atrés mesmo. E tem uma histéria da época da ditadura, que a gente nio foi acostumada. A gente é bem por fora do que acontece (R/X-Lider). Elementos contraditérios convivem na percepgio da Geracao X: dese- o dinheiro, o reconhecimento, o sucesso individual e, ao mesmo tem- po, manifestam a expectativa da convivéncia compartilhada e harménica, gerindo um pensamento que pende para o comunitarismo ou para uma abalho sio entendidos como meio de consolidagio do merecimento, ¢ lealdade a organizagio se transmuta em compromisso com o trabalho e ze LIDERAN esforgo de realizacao (“correr atras”), 0 que no deixa de evidenciar a neces- sidade da diferenciagao pela individualidade c pelos atributos pessoais. Nao € mais a experiéncia que conta, mas a capacidade para produzir resultados, Tendem a lidar com o poder ou a autoridade de forma aparentemente me- nos apegada e personalista. Apropriam-se, talvez, com menos reserva do poder, ainda que a estratificagao hierdrquica fique escamoteada. Descjam a independéncia, a0 mesmo tempo em que a fomentam; idealizam, em ver- dade, uma interdependéncia ao contrario das geracées anteriores, que preco- nizaram a dependéncia (Silenciosa) e a independéncia (Baby boomer). A Geragao X ¢ legitimada a partir de atributos relacionados com a capa- cidade cognitiva, muito mais do que com a operacional ou a do fazer. Sao percebidos e se autoconceituam como criativos, capacitados, com visio de futuro, além de representarem a renovacao. Sao, portanto, outros valores que parecem tomar forma e influenciar as expectativas de papel relativas 4 legitimidade ao desempenho no papel de lider. Contudo, se 0 proceso histérico no ¢ linear nem continuo, s6 pode ser compreendido dialetica- mente. Se aos Aoomers cabe 0 atributo contestagao ou ruptura, assim como aos burocratas cabe a nominagao autoritarismo, aos representantes da Gera- cao X cabe a denotagao da esperanga ou do futuro. Parece-me que existe uma tendéncia a achar que a geragio nova éa gran de esperanga, a grande surpresa, ou a grande decepgio para o futuro. E nfio tem muita nogio de proceso, de continuidade. Eu acho que, por mais que ndo seja, 0 formador da geracdo passada foi a geracéo anterior ala, O conceito € repassado. Entio nao existe surgimento de conceito novo na rea, Sao repassados e adaptados a situagio (E/X-Lider). Assim, as expectativas que as outras duas geracées construiram acerca da X confirmam parte de sua autopercepgio, sobretudo no que se refere & maior preparacio académica, dominio da tecnologia e potencialidade. Sao vistos como lideres criativos, que primam pela descentralizagao e a parti- cipagio. Entretanto, as outras geracdes fazem questio de deixar assinalado que na pratica ainda tomam como referéncia as geracdes mais velhas e que, por isso, ainda estao presentes nessa geracao tragos de autoritarismo. Para concluir, vale dizer que 0 carter histérico-cultural referenda valo- res vigentes, os quais constroem um sistema de legitimidade e mérito em PARTE it: Qperacionalizando a lideranca entre a tradigao, a modernidade e a pis-modernidade 237, que direitos ¢ deveres sio explicitados em conceitos ¢ visoes de mundo, expressas em lugar seméntico, no vocabulario. $a0, pois, tanto esquemas interpretativos como motivacionais que conferem um fazer especifico a cada geracao, um poder de fato ou de direito, um status hierérquico ¢ uma expectativa de papel. Na relagdo papel e contrapapel, est’o contidos o sta- tus hierdrquico (valor) e a expectativa. Ao conceituarem lideranga, as gera- g6cs delimitam um significado. Ao atribuirem um conceito, cireunscrevem o seu fazer dentro dos limites do papel, a0 mesmo tempo em que fazem __ emergir posigGes ¢ fazeres para os outros. _ Expectativas de papel Embutida no estilo de lideranga encontra-se uma expectativa quanto ao que o lider deve ou nio fazer. Nesse sentido é que se entende que o estilo _ 0u tipo de lider mencionado espontaneamente pelos entrevistados sintetiza que é ou deixa de ser a lideranga, bem como 0s atos ¢ as condutas sociais - dos quais ela se faz impregnar. Cada uma das trés geracdes, considerando os lideres ou os profissio~ nais de T&D, apresentou um comportamento com uma distingio relati- va. Alguns tipos de lideres repetiram-se tanto em um grupo quanto em outro, ora se relacionando a um papel social definido claramente (lider comunitario, lider sindical, lider de time, lider de classe, lider social), _ laissez-faire, \ider cazismatico, lider negativo, lider cidadao, lider ditador, lider legitimo). Ou, ainda, a uma classificagio segundo o que determina a lideranga (lider nato, lider puro, lider natural, lider pela experiéncia, ze LIDERANGA QUADRO 8.3 EXPECTATIVAS DE PAPEL ~ PERCEPGAO DOS LIDERES Categoria Expectativas de Papel — Subcategorias, Estilo/tipo de lider icas de lideranca mencionado Silenciosa * lider natural * fazor . + mandar fazer . * dar instrugoes * lider sindical © distribuir tarefas | * lider democratico * coordenar servigo | © lider laissez-faire * mobilizar pessoas: | * lider carismatico * contatar o pessoal | * lider pelo conhecimento © representar a organizagao © lider pela experiéncia * agregar pessoas * lider nato * atingir objetivos * lider social * influenciar a equipe Baby Boomer * lider nato * observar subordinado * lider natural * focar resultado | * lider de time * tomar iniciativa © lider de classe * cumprir metas x * lider legitimo * acompanhar/cobrar/direcionar * lider ditador © monitorar/distribuir tarefa/outorgar * lider nato * ser exemplo/parametro: * lider carismatico * saber-fazer/dominar processos '* lider social * buscar proximidade/dialogar © identificar talentos © inovar/promover solugdes Fonte: PEREIRA, 2008, da lideranca, enquanto a Geragio X transita entre as trés categorias. A tipifi- cacao, ao que parece, estd carregada de um forte componente ideolégico ¢ faz surgir os “submundos institucionais” implicados nos modos da divisio do trabalho, como a distribuigao do conhecimento. Sao, pois, a tradugio de um “campo semintico”, de um modo de dizer ¢ de identificar que estao Os boomers, em contrapartida, delimitam em especial o papel soci interiorizados. Estes traduzem nio s6 os sentidos para o papel lideranca, como também determinam um conjunto de condutas contidas nas inter- pretagdes que cada geracio faz dele. Compéem, ainda, a percepgao da Geragio Silenciosa sobre a lideranga praticas voltadas para a execugao de tarefas, para a garantia da produtivida- de e do clima humano, tais como fazer, mandar fazer, coordenar 0 servi¢ € agregar ¢ mobilizar pessoas. Nas outras duas geracées, sobretudo na X; k | ' I} PARTE: Operacionalizando a fideranca entre a tradicSo, a modernidade e a pOs-modernidade 238 a conotagio desloca-se para uma expectativa identificada muito mais com questées humanas e estratégicas do que 4 operagio, o que esta traduzi- do nos verbos acompanhar, monitorar, direcionar, inovar, convencer ete. Contudo, o papel operacional da lideranga vem acoplado a conotagdes que visam identificar talentos ¢ agregar valor. Mais uma vez, os lideres da Ge- racio Baby Boomer revelaram-se acanhados para se expressar, destacando apenas o foco em resultados e metas, bem como na observagio de subordi- nados com vistas a disciplinarizagao € ao aproveitamento de talentos. A visio dos profissionais de T&D (Quadro 9.4) incorpora outras priti- cas, nfo se registrando alteracdes expressivas no conjunto j4 mencionado. Acrescem-se alguns tipos de lider a lista, mas nenhum que mude significa- tivamente o sentido interpretativo. Nas praticas, apresenta-se uma imagem ja marcada por fungoes de lideranca que focam mais a equipe do que a ta- refa, tais como dialogar, ser transparente, treinar, identificar necessidades, implantar projetos etc. Entre os sujeitos da Geracio X, observam-se maior diversidade e am- pliagéo do papel do lider; hé tanto 0 uso numérico de mais verbos quanto um afastamento das questées de ordem pratica em dirego aquelas que dizem respeito & preparagio para o futuro e mobilizagio de pessoas. Os boomers contribuem com “defesa de direitos”, ¢ os sujeitos da Geragao Si- Ienciosa, associados ao “fazer”, acrescem “treinar equipe” e “identificar ne- cessidades”. No mais, todos permanecem nas agdes que asseguram a con- secugio de resultados. De todo modo, no cémputo geral, o que se tem & a delimitagio de um aparato de atributos e agdes que confiam uma legitimidade ao papel, composto por simbolos, ritos, valores ¢ condutas esperadas ¢ permitem a Socializacao dos significados do que vem a ser 0 exercicio legitimo do papel _ de lider. Assim, ao lider cabe tornar-se competente, porém e, sobretudo, se apropriar de uma linguagem e seus significados instituidos para que possa identificar-se subjetivamente com o papel, formar habitos compativeis ¢ Processar a compreensio do que tacitamente estd presente em sua e nas utras geragées. No espaco organizacional, nao se pode esquecer, esto em Convivéncia representantes das trés geracdes em estudo, convivéncia que se Materializa tanto nas colaboragdes demandadas quanto nos conflitos pré- Ptios, conformando direitos e deveres ¢ uma mobilidade entre o exercicio do papel ou de seu contrario, o contrapapel. 240 LIDERANGA QUADRO 9.4 EXPECTATIVAS DE PAPEL - PERCEPGAQ DOS PROFISSIONAIS DE T&D. Categoria | Expectativas de Papel ‘Subcategorias Estilo/ Tipos de _| Praticas de lideranga Geragoes | Lider mencionados Silenciosa | » lider comunitario | + orientar/mandar fazer * lider cidadéo e’planeier . a * treinar equipe . influenciar . * acompanhar resultados * lider idealista * identificar necessidades Baby * lider autoritario | © compartithar Boomer | « lider nato * envolver pessoas * lider rel influen * lider politico * representar * defender direitos x * lider legitimo * dialogar/direcionarfser referéncia/ser * lider autoritério transparente * lider aberto * empreender/implantar novos projetos ** lider esponténeo | * inovar tecnologicamente/ agente de mudangas ** lider positivo * mobilizar/estimular/motivar * focar negécio/valorizar mercado, pessoas ¢ produto Fonte: PEREIRA, 2006. No material em anilise, até este ponto, esta presente uma variedade expressiva de referéncias tradicionais, outras que remetem a legalidade ou racionalidade, como ainda aquelas da ordem dos dons pessoais ou carismna, remontando a nosologia weberiana. Ha, também, indicacées da proemi- néncia do lider, sua influéncia e mesmo a domina¢io como mecanismos de se conferir autenticidade ou mérito no exercicio da lideranca. No tocante as bases de poder, tem-se a experiéncia tanto quanto a capacitaciio profis- sional e o desempenho como critérios definidores do merecimento ¢ legiti- midade, sem deixar de dizer que, na forma como o controle é exercido, fica implicito na tipicidade ¢ na classificagao de estilo: Lideranga nas acées e tecnologias de T&D Deter-se na verificagao das praticas organizacionais relativas 4 formacao de lideres é valorizar a escolha de instrumentos e métodos para constru- PARTE t: Operacionalizando a lideranca entre a tradiggo, a modernidade e a pos-modernidade 241 ao de indicadores de um sistema de mérito. A legitimidade também se insere nessa dimensio, visto que a presenca ou a auséncia de processos estruturados e€ a aplicagio ou nao de determinadas técnicas para a capa- citagao podem conferir credibilidade e, consequentemente, autenticidade aquele que cabe desempenhar o papel de lider. Mesmo porque, como ja se teve a oportunidade de especificar, a socializacdo secundaria necessita ser reforcada por técnicas pedagégicas em conformidade com a motivacao da- queles que se encontram em processo de aquisicao de novo conhecimento ou assuncao de novo papel. No que concerne a percepgao dos lideres sobre a influéncia das praticas de T&D, primeiramente buscou-se identificar o tipo de treinamento rece- bido antes e depois de serem promovidos e os eventos e técnicas que fize- ram parte da experiéncia desses sujeitos. Ja para os profissionais de T&D, adotou-se outro parametro, o de identificar de que esses profissionais se re- cordavam, descrevendo-se o tipo de preparacdo existente para lideres, bem como a natureza dos eventos adotados e as respectivas técnicas utilizadas. Percepgao dos lideres Considerando a visio dos lideres, constata-se que muito pouco ficou _registrado. Os entrevistados foram undnimes em afirmar que nenhum de- _les teve uma preparacio anterior 4 data em que se tornaram oficialmente lideres. Os sujeitos da Geracio Silenciosa descreveram uma aprendizagem que se deu na pratica do dia a dia, com alguns eventuais cursos internos ou externos, e nao se recordaram de um método ou técnica de ensino mais caracteristico. Asseguraram que se escolhia um lider com base no tempo de empresa € no dominio de um processo ou operagao. Em contrapartida, apesar de se dar em muitas etapas, a carreira era claramente definida: sabia Se em quanto tempo alcancava-se determinado posto e 0 que era necessario fazer para isso acontecer. Nao havia, na visio dessa geragio, uma formacao _ estruturada, ainda que a experiéncia e o tempo fossem critérios utilizados _ para se promover alguém. Os lideres da Geracio Baby Boomer assistiram a uma mudanga nas _ exigéncias. Embora também nio tenham tido oportunidade de vivenciar 2az LIDERANCA uma preparacao estruturada, consideraram a formagdo académica um cri- tério que os favoreceu, ainda que associada A experiéncia e ao tempo de permanéncia na organizagao. Igualmente a geracao anterior, aprenderam com 0 exercicio ¢ a pratica, assim como através de cursos, de rotinas com os superiores ¢ leituras por estes recomendadas. A partir do momento que vocé despontava nisso dentro da organizacio, a supervisio percebia seu potencial, te pegava, buscava para cd te mol- dava dentro de uma séric de reunides e procedimentos tedricos, onde, as vezes, vocé experimentava estas suas experiéncias com outras liderancas, para poder ver se vocé conseguia dar uma sintonia dentro do procedi- mento interno da organizacio (D/B. Boomer-Lider). A Geragao X também nio foi privilegiada com uma preparacio. Tive- ram a oportunidade de participar de médulos tematicos focalizando o ne~ gdcio ou aspectos técnicos s6 depois de terem assumido 0 cargo de gestio. A estruturagao dos eventos obedeceu a um formato “tradicional de sala de aula”, com exposigées conceituais e algumas técnicas de dinimica de gru- po, para integrar os participantes. Sao médulos tematicos. Sempre abordando direta ou indiretamente a questo da lideranga. Foi muito interessante. Eu achei muito bom, muito pratico. A gente que nao é da area, a gente nao sabe. Tem coi- sas que até eu acho que vocé vai aprendendo na marra. Por exemplo, quando eu peguei a geréncia, eu nao tinha conhecimento nenhum. Nunca tinha sido gerente, era muito novo. E a gente esta aprendendo, a gente tem que ter nogdo, tem que ter senso, tem que ter uma percep~ 0 de como funciona a equipe, respeito as pessoas (R/X-Lider). Foram poucos os elementos trazidos pelos lideres dessa geracio, ou seja, ficou registrado pouco ou nenhum investimento em suas formacées, levando-se em conta a iniciativa individual ou das empresas pelas quais passaram. Como se esperava, os especialistas em T&D conseguiram descrevet uma materialidade mais rica em detalhes do que os lideres que prepararam, a partir da década de 1960. PARTE t: Operacionalizando a tideranga entre a tradiga0, a modernidade @ a pOs-modernidade 243 Percepc¢ao dos profissionais de T&D Os profissionais de T&D reforgam a unanimidade encontrada entre os gestores, ao afirmarem que em nenhuma das décadas de que trata a pes- quisa houve investimentos na preparagao das pessoas para a assungio de posicdes de lideranca. Descreveram apenas as tentativas experimentadas, na década de 1990, com o advento dos programas de érainees, que, no en _ tanto, consideraram terem sido frustradas por fatores miiltiplos, tais como problemas gerados com os mais antigos de casa, que se sentiam ameagados; imaturidade dos ¢rainees, que desejavam imprimir um ritmo mais rapido a _ suas carreiras, ou dificuldades das prdprias organizacées para absorver os _profissionais treinados, Era assim: ~ Vou preparar o fulano porque tem uma possivel vaga aqui. Existia adaptagio a uma carreira. Fulano virou chefe. Entio, vocé, a partir daquele momento, vai participar do treinamento, mas no existia preparagio prévia nfo, vocé era jogado no fogo (DO/B. Boomer-T&D). Até a década de 1970, reconhecem uma realidade que privilegiava mais contratagio do que a formacao de um lider. Nao que se encontrassem . © momento foi marcado pela chegada dos precursores de Gestio de cursos Humanos as organizagdes brasileiras, que tinham como priorida- definir procedimentos e técnicas a serem utilizados. Foi uma época de pesquisa, de definigo de instrumentos, essas pes- soas definiram as coisas. Criagio de praticas foi um trabalho pionei- 10, Recursos Humanos no Brasil, nessa época, até o final de 60, era uma coisa muito incipiente. Eu citei o Pierre Weil, por isso o Senai 0 chamou. Ele conhecia o sistema de recursos humanos da Europa. Ele fala disso num trabalho que eu li, entio, é um trabalho de pes- quisa, de pioneirismo (S/Silenciosa~T&D). za LIDERANGA Nos anos 1980, surgiram algumas iniciativas mais estruturadas para a formagao, e 0 foco comportamental e gerencial comegou a tomar forma nas empresas. Os ocupantes de cargo de coordena Jo passaram a contar com uma assisténcia dos centros de treinamento e com programas corporativos, sob a forma de médulos temiticos realizados com o apoio de consultores & instrutores externos organizagao. No final dessa década e mais fortemen- te na seguinte, surgiram os modelos de gestao baseados em competéncias © a incorporagio do conceito de cultura organizacional, o que parece ter dado outra face as praticas de capacitagio, com o objetivo de internalizar os novos valores organizacionais Conforme Bergman e Luckman (1989), 0 processo de socializagio priméria é fortemente carregado de emogoes, pois nele estio envolvidos “outros”, como pai e mie, que tém forte significagao para o individuo € influenciam sobremaneira a construgio do conceito que ele tem de si mesmo. A socializagao secundéria acontece naturalmente, e apenas por meio de identificagées mituas com “outros” com os quais nos relaciona- mos. No entanto, se existe a necessidade de mudar radicalmente os valo- res internalizados na socializagio primaria, a organizacio precisara fazer uso de técnicas pedagogicas especificas e mobilizadoras da subjetividade. Nesse caso, é preciso substituir a figura materna ou paterna da primeira infincia, ¢ tudo o que ela simbolicamente representa. A figura do lider tem esse propésito. E preciso levar a equipe a admirar, respeitar, imitar ¢ seguir um lider que personifique a propria imagem da organizagio ¢ que seja capaz de obter os resultados ¢ as performances desejadas da equipe. Mas é também preciso criar esse lider, fazer com que ele incorpore esse novo papel ¢ todas as suas vicissitudes. Isso acontece por meio de técnicas muito préprias para essa nova fase da socializacao secundaria, que varia- rio em fungio das motivacdes que o individuo tem para a aquisicao do novo conhecimento. Segundo Berger ¢ Luckman (1989), é fundamental aumentar a car- ga afetiva do processo de aprendizagem, para produzir a identificagao ¢ a inevitabilidade julgadas necessérias nesse momento, 4 semelhanga do que acontece com a formagio de um sujeito religioso, um noviciato. $6 assim, 0 relacionamento do individuo com o pessoal socializador torna~ se carregado de significagao, ou seja, 0 pessoal socializador reveste-se do carater de “outros significantes”. O individuo entrega-se, entao, nao PARTE i: Operacionatizando a tideranga entra a tradic20, a modernidade e a pés-modernidade 245 parcialmente, mas 0 que é subjetivamente, a totalidade de sua vida, A facilidade com que se sacrifica 6, sem duvida, a consequéncia final des- se tipo de socializacio. Esse é, com certeza, 0 objetivo das praticas de workshops ¢ coaching. Um dos depoentes relatou uma experiéncia vivida em 1988, e sua per- cep¢do das técnicas de mobilizagao da subjetividade: Comegou quando houve um sentimento de que se precisaria mudar a cultura organizacional. Eu nunca entendi muito, porque a coisa foi muito subita. Nao sei te falar qual foi o levantamento de necessidade de treinamento. O contetido do trabalho é muito interessante, mas a metodologia, a maneira como a coisa foi organizada, é altamente questiondvel. Se vocé imaginar que vocé expe as pessoas na frente do grupo, sem 0 menor respeito, sem ter nogio, vamos dizer assim, do que € que vai desencadear, ai € um negécio muito sério. E nds tivemos alguns casos, realmente assim, de pessoas que nunca mais foram as mesmas. Porque entao tinha uma avaliacio, um diagnéstico completo, psicolégico mesmo, um instrumento deles, ¢ na hora do dual era usada, E nés tivemos proble- mas. Lembro de uma pessoa, que era um engenheiro conccituado ¢ treinamento a avaliagao indi tudo mais, que se tornou alvo de chacota. Foi uma situag’o extrema- mente vexatéria (DO/B. Boomer-T&D). A base conceitual dessas praticas pedagégicas reflete certo ecletismo. Segundo os relatos, convivia-se, ainda, com os modismos e as consequen- tes descontinuidades nos modelos de gestéo. Contudo, 0 enfoque com- | Portamental tomava corpo, ¢ o modelo de competéncia firmava-se como referéncia conceitual, assim como “grupos operativos” e o D.O. (Desenvol- vimento Organizacional). [na década de 1980] Fui contratado para participar do projeto de hominizacio na empresa X. L4 dentro mesmo eu fiz. a formagao em “grupoterapia”, dinamica de grupo, jogos, j4 fui tendo uma base com cla. Acabei ficando trés anos no projeto. Treinamos trés mil pessoas nesse projeto de hominizacao, que era desenvolvimento comporta- mental. A gente trabalhou desde o pessoal operacional até o pessoal 26 LIDERANGA de chefia. Af, em 1998 entrei na empresa Y. La tive contato com o Desenvolvimento Organizacional, Departamento de Relagdes In- dustriais, Recursos Humanos e depois Desenvolvimento Organiza- cional (CM/B. Boomer - T&D). Nos anos 1990 e de 2000 em diante, a formagio de lideres, na visado dos depoentes, assumiu uma conformacio continuada de longo prazo, buscando- se uma personalizaco maior. As bases teéricas indicadas foram as referéncias antropoldgicas e sistémicas e outros modelos que tém origem nos autores ¢ correntes americanas. De toda forma, os profissionais de T&D encararam es~ sas transformagées mais como uma modernizacao de antigas praticas do que efetivamente revolugdes na materialidade das ages que se desenvolviam. Asseguraram haver uma defasagem entre a teoria ¢ a pratica ¢ que essa distancia era facilmente perceptivel na rotina didria das organizacées, nas quais ainda predominava uma gestao paternalista ¢ autoritaria, Com tudo isso, ainda persiste uma indagagao: por que esse esforgo nao se fez retratar na visio dos lideres das trés gerages, sendo reconhecido apenas pelos es- pecialistas (profissionais de T&D) e, ainda assim, com ressalvas (distancia entre a teoria ea pratica)? Uma primeira pista parece estar ligada ao fato de que, mesmo que se tenham obtido avangos, a geragéo mais jovem ainda est sob o impacto ¢ a influéncia do modelo autoritario. As trés geragdes efetivamente coexistem em cargos em que se embute a expectativa do exercicio da lideranga nas empresas atuais. Vive-se, pois, uma transigao. Por outro lado, ainda nao ha um modelo que substitua aquele vertical e baseado na hierarquia, a nao ser que se tome como tal a nogao de autoridade auténoma, sugerida por Sennett (2001), ao formuli-la em contraposigéo ao paternalismo, O autor descreve a autoridade auténoma como desprovida do “cuidado” e da responsabilizagio pelo outro. Como dito, a sutileza dessa concepgio parte de um principio de que na vida social é possivel a autossuficiéncia e a inexisténcia de controle de uns sobre os outros. Nesse contexto, a autonomia assume uma forma simples, por um lado, traduzida na posse de “qualificagées”. Sob 0 rétulo de “sociedade das especializagdes”, a sociedade moderna tem como valores a pericia, a habilidade técnica, conferindo independéncia de julgamento, autonomia ¢ condigao para a autogestio, configurando-se novos critérios de meritocracia, que, por sua vez, afetam a nogio de legitimidade. PARTE 1: Operacionalizande a tideranga entre a fradi¢go, a modernidade e a pés-modernidade 247 Consideracées finais Este capitulo abordou a questi da legitimidade e do mérito no exer- cicio da lideranca, da perspectiva de quem exerce esse papel e de quem prepara para tal, ou seja, dos lideres ¢ dos profissionais de treinamento ¢ desenvolvimento. ___ Legitimidade e mérito se articulam a ago do lider na medida em que, ao desempenhar esse papel, quem avalia o desempenho ¢ estabelece a au- -tenticidade da posicio social sio os préprios sujeitos da ago, bem como _ todos 0s outros nela implicados (pares, subordinados, superiores hierérqui- "cos, profissionais de recursos humanos). Eles constituem o préprio apare- Iho legitimador, que conta ainda com simbolos, rituais ¢ cerimdnias para a _ transmissao dos valores que postulam que posigées sociais devem ser resul- _tantes do mérito de cada um. Por esse motivo, considerou-se fundamental evar em consideragao, nesse estudo, os valores presentes em cada geracio " de lideres, tomando como referéncia a cronologia ¢ a classificagiio proposta por Conger (2002). Ao se estabelecerem as categorias legitimidade e mérito no exercicio do apel de Lider, objetivou-se evoluir na elucidacao do problema de pesquisa, _identificando como as gerag6es conceituam lideranga e como reconhecem “ou descrevem as demais. Iniciando pela Geragio Silenciosa, identificou-se ¢ resistente as mudangas. Vincula lideranga ao alcance de objetivos e 4 abilidade para mobilizar pessoas. Socializada sob os valores autocraticos € patriarcais, ela assume um viés nitidamente personalistico nos relaciona~ jentos e mostra-se avessa aos modelos contemporaneos, que fomentam a A Geragao Baby Boomer, por sua vez, nfo consegue se caracterizar com preciso, a nfo ser como a que possuiu algo a mais ou a menos em relacio as outras duas, Foi vista pelas demais como aquela que iniciou 0 proces- 0 de contestagao do autoritarismo, mas que ainda preserva resquicios do A Geragio X se descreve como politicamente alienada quanto as ques~ es sociais, individualista e voltada para 0 principio do prazer, além de ‘Preocupada em aliar vida profissional e vida pessoal. Percebe-se, também, EO LTUENANYA como democritica na yestio, delegando autoridade ¢ estimulando inde. pendéncia. Pode-se afirmar que cla se legitima muito mais por atributog cognitivos do que operacionais. S20, portanto, outros valores que influsy: cam as expectativas de papel relativas a legitimidade © métito do lide, nessa ultima geracao. Contudo, é importante salientar que cla € vista pelag mas que, Beragdes outras geracdes como criativa, descentralizadora e Participativa, na pratica, ainda mantém tracos de autoritarismo herdados das anteriores. Quanto as praticas de formagio de Iideres, o que chama a atengao é que, apesar da riqueza de detalhes da apresentagao das técnicas de formacio de lideranga na percepgio dos profissionais de T&D, aqueles que foram sub- metidos a clas pouco se recordam. De fato, é possivel identificar nos depoi- mentos dos sujeitos investigados uma mudanga nas priticas de legitimagio € nos critérios de mérito para a assungao € © exercicio do papel dos lideres através das gerasoes. Ha algumas evidéncias de progressées ¢ conquistas ao longo da histéria das geragdes, mas sem que se observe a consolidagio de um sistema de mérito que possa dar legitimidade aqueles dos quais se espera o exercicio do papel de lider. Os dados da pesquisa permitem que se concorde com Barbosa (1996), quando esta afirma que, apesar de a sociedade brasileira ser reconhecida em sua organizagao formal e juridica como um sistema meritocratico em rela- G40 a0 ingresso eA mobilidade em seu interior, nao é legitimada como uma sociedade ideologicamente meritocrética em seus varios segmentos soci Isto porque os critérios como relagdes pessoais, parentesco, posigdo social e Se antiguidade ainda se misturam aos princ{pios meritocraticos na construgio de suas hierarquias e, ainda, porque o significado de desempenho e a im- portancia relativa a esses valores nao sao coincidentes nas varias geracdes, como descrito e analisado. Referéncias ACQUAVIVA, M. C, Diciondrio juridico brasileiro Acquaviva. 9 ed. 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