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Algumas

sílabas
Excerto de livro a
ser publicado

Henrique Augusto Chaudon


TRÍPTICO COM MELOPÉIA

Sob a pele

lento e surdo

um lume.

Pelas ruas

somente a palha

o velho cascalho

das palavras.

Onde os claros, longos dias do Verão?

Onde uns olhos amorosos, a chamar?

Tortos mortos rios

as planícies devastadas.

Pedra e cal

e a mó moendo infatigavelmente.

Distante, muito além

um obstinado fagote

recorrente e rouco.
PRIMEVA

Quando no espelho

não cuidava meus cabelos.

Quando no espelho do mar

só os coqueiros e teu corpo

me assombravam.

Quando verdes janelas para nós se abriam.

Quando tudo era começo.

Deitavas à beira-mar

que te lambia

e eu.

Depois

um vago pudor

e lembrança.

E agora estes cabelos

onde lentamente o tempo

deposita a sua geada.

Pesa a sombra escassa de um coqueiro.


VAGA ESTÓRIA

São três pequenas baleias, mansas e macias, brincando à volta do


barco. Singramos a manhã salpicada de sal e sol nascente. A mulher-
criança, a barlavento, acarinha o dorso dos cetáceos amorosos e ri,
desfiando antigas canções inauditas. O dia é vívido, úmido, desejado.
Ao leme, um homem feliz.

A bordo da Visconde de Moraes revejo os botos na Baía da Guanabara.


A barca fere a pele complacente do mar recém-amanhecido, revolve sem
pudor as águas imemoriais e nos transporta à outra margem, às portas
da Cidade hirta e angulosa, insaciada.

Fosse um tempo de grandes baleias felizes nos mares do mundo; fosse


um tempo de pescar e remendar as redes ao sol da tarde. Um tempo de
tatuí e cavalos-marinhos, de fortes ressacas e calçadas derruindo.
Tempo dos primeiros pelos e anseios, um tempo de subúrbio e súbitas
esquinas da infância...

Mas um negro monovidro ensombrece o Paço e os passos de João. De


Maria, a louca. E o cais, o chafariz de Valentim, as pedras pisadas e
repisadas, fogos-fátuos, velhos galeões resgatados e logo perdidos, um
longo arrastão sem fim, ao fim o mesmo cais de sempre, as velas rotas.
CASO ANTIGO

Tendo ouvido os sinos todos do dia escrevo estas linhas à beira de um


bar, em pleno verão. Ganhei minhas horas no ofício e agora sento-me
aqui, satisfeito e provisório. Lá fora, rubro como um deus irado, o sol
insiste em seus açoites. Perto, a folhagem rala e empoeirada farfalha na
caixa de amianto, tocada por um vento morno, lasso e exangue. Ergo a
mão, e alguém me traz o que eu desejo. Sorvo sedento, como se
precisasse ou merecesse. É quando chega, num sussurro, o vento
distante de outro Verão.

Eu tinha apenas uns tostões ao sair à feira, naquele dia.

Na primeira barraca, frutos redondos e coloridos, túrgidos e cheirosos,


uns por cima dos outros, a me convidar; tive pudor de ter pressa em
prová-los e apertei as moedas no bolso.

Na segunda barraca, delicadíssimas especiarias envoltas em preciosos


papéis: meus cobres não me permitiram. Em outra, uns olhos tristes e
vidrados e bocas abertas, agônicas, clamando, me afastaram.

Assim, de banca em banca, feito a Raposa, percorri a inteira extensão


daquela feira – as moedas ainda no bolso – e passei por gentes
disputando desprezados tesouros junto ao meio-fio. Prossegui por ruas,
vielas e becos tal um vento velho e cansado. Já entrava a entardecer.

“É hora de beber alguma coisa”- pensei.

Isso dito serviram-me em um copo ordinário uma beberagem qualquer,


não sei. Sei que bebi e bebi e acordei aqui, tarde da noite muitos verões
depois, com essa música – patética – escorrendo de uma juke- box lá no
fundo deste botequim.
O CARACOL

apud Jayro J. Xavier

Entre uma volta e outra do parafuso vejo um lento caracol que emerge
"das sombras eternas do fundo do pátio". São quatro horas da tarde, as
cigarras ao longe amolecem o dia e sinto que a matéria se expande,
invade o instante - esse espaço densíssimo de nada.

Deposito a ferramenta: nas mãos, a memória perfeita.

Ele deita uma baba brilhante à passagem, "inclina as antenas e capta o


áspero dia" entre folhas que apodrecem mostrando a tessitura, agora
ossadas descarnadas de onde o sortilégio se foi. Prossegue o caracol
fabricando as próprias trilhas. Passa, soberano, ao largo de formigas
que arrastam um seu moribundo irmão e flui, de uma obscuridade a
outra, deixando não mais que um visgo furta-cor no chão da tarde
indiferente.
PRISMA

Era um passarinho preso numa gaiola pendurada na parede patinada, e


piava, piava, piava. Seu dono o tratava religiosamente com água fresca,
alpiste novo e tenras folhas de alface. Como o sol não banhasse aquela
feia parede em nenhum momento do dia, o passarinho era levado às
terças, às quintas e aos domingos até à praça no fim da rua.

O homem morava naquele cinzento apartamento de fundos havia


muitos anos. Tantos anos que já ninguém mais sabia nada a seu
respeito. O passarinho piador era um dos muitos que possuíra: todos
amanheciam mortos após algum tempo piando, comendo alpiste e indo
à praça três vezes na semana.

Quando um passarinho morria, o homem removia da gaiola o corpinho


inerte e o envolvia em um pano muito branco, que retirava de uma
gaveta cheirando a cedro. Dirigia-se então à praça, contrito. Lá, cavava
uma pequena cova com as mãos, depositava com cuidado a avezinha,
cobria muito lentamente a sepultura. No dia seguinte havia outro
passarinho piando junto à parede patinada.

Anos e mais anos assim se passaram, até que em um lindo dia de sol a
gaiola amanheceu vazia e ficou lá, pendurada, até apodrecer e
desmanchar-se no chão. Do homem, nunca mais nada se soube.

As pessoas que hoje moram no prédio eventualmente param ao pé


daquela parede, ficam proseando à toa. Alguns creem ouvir pássaros
cantando.
MELANCOLIA REVISITADA

Para Yvette Centeno

Suspenso, o trabalho; pelo chão, esparsas, as ferramentas. O artífice


sonda distantes mundos factíveis. Na destra, o compasso imóvel. A
sinistra sustém o peso de milênios. Sentado ele está (há quanto?) e o
cão ressona a seus pés.

Alado e imóvel, absorto. A matéria o rodeia, prenhe de possibilidades,


clamando, convocando. O artífice sonha, todavia. O tempo escorre, o sol
nasce ou se põe? Quem saberá?

Na cidade, ao longe, faz-se o comércio; há uma algaravia sem fim, os


homens chegam e se vão mares a fora. E o artífice sonha. Seu pupilo
estuda e aguarda o momento. Tudo está por fazer, por terminar. Mas
não há pressa alguma, embora o sino possa sonar a qualquer momento,
incontornável.

O lume, ao fundo, não se apaga. A tenaz pode esperar, o lenho pode


esperar – não temos já aquela perfeição que repousa redondamente aos
pés do artífice? Não temos já as faces lavradas e incorruptíveis de um
poliedro pesando o peso do planeta?

E o artífice sonha. Enquanto durar o mundo ele estará sonhando.

O arco no horizonte longínquo (que o artífice não vê) parece selar essa
certeza.
Henrique Augusto Chaudon nasceu em Niterói, RJ, em 05/03/1955.

Publicou quatro livros de poemas:

‘Confissões a Baco e Outros Poemas’ em 1977, com apresentação de


Jayro José Xavier;

‘Vento’ , em 1982, com introdução de Antonio Carlos Villaça;

‘ A Terceira Gaveta e Poemas Anteriores ‘, 1994, compartilhando com


Frederico Girauta o 1º lugar no Concurso Novos Talentos, promovido
pela UFF/IBM;

‘Poemas’, em 2005, onde reúne uma seleção de poemas dos livros


anteriores e inclui seis textos inéditos, por ocasião de seus 50 anos.

Participou das seguintes Antologias:

‘Cem Poemas Brasileiros’, Vertente, S.Paulo, 1980;

‘Água Escondida’, CBAG, Niterói, 1994 e

‘Antologia Poética da Universidade Federal Fluminense, vol. 2’, Eduff,


Niterói, 1996.

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