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2061/06,0YRCBR DR. ATALDE DAS NEVES INJORIAS UNANIMIDADE ‘TRIBUNAL DE INSTRUCAO CRIMINAL DE COIMBRA RECURSO PENAL ARTIGOS 181°, 183%, N.° 1, AL, A), 184° E 132°, N.°2, AL, J), DO C, PENAL. 1-A violagfio da honra, em cada momento conereto ¢ em cada recorte da vida, s6 constituiré crime quando se veja violndo o sen fundamento imediato - a dignidade humana ~ para o que se devem articular os prinefpios da igualdade, do pluralismo e da liberdade, II- Estando adquirido nos autos que as relagdes entre arguido e assistente esto degradadas, nao faz sentido intuir que aquele se limita a exercer o direito de critica quando diz, num debate, perante um auditério de peritos, que este & “inteleetualmente desonesto” Acordam, em conferéncia, na Secgao Criminal do Tribunal da Relae&o de Coimbra. Inconformado com o despacho proferido pelo Tribunal de Instrugo Criminal de Coimbra no Ambito da instrugo n, 924/03.3 TACBR que nfo pronunciou 0 arguido - Aw. - da pratica de factos que qualifica como autoria de crime de injuiria, p.p. pelos 181°, 183°, n°1 al, a), 184° ¢ 132°, n°2 al,j) do Cédigo Penal, o assistente B... recorre da decisao, Na motivagao do recurso apresenta as seguintes conchusées: 1.- 0 despacho recorrido, ao néo pronunciar, em parte, 0 arguido, violou o disposto no artigo 26°, n° 1, da Constituigio da Repiblica Portuguesa e 72°, do Cédigo Civil 2.- Normas de "estrutura” constitucional, atinentes & proteego ao direito fundamental ao bom nome e, como tal, dircotamente aplicéveis, nos termos do artigo 18°, n® | daquele diploma 3.- B ainda o disposto no artigo 181°, n° 1, do Cédigo Penal, comando de ultima ratio destinada a fazer assegurar a garantia constitucional, Com efeito, 4.- Tidas as coisas na objectividade que elas assumiram nas relagdes entre o assistente ¢ 0 arguido, nfio pode deixar de considerar-se que o mesmo foi muito para além do exerefcio saudivel ¢ legalmente tutelado do direito & liberdade de expressao e de eritica, ainda que cientifica, fazendo-se resvalar para um émbito relevando da pura vindieta pessoal ¢ que, por isso, nfo pode merecer tolerancia juridico-penal 5. Conirariamente, pois, ao assumido pelo douto despacho recottido o qual, por conseguinte, considerou que 0 chamar-se "desonesto" a pessoa com a qual se discute é, nessa sede, toleriivel. Em resposta o Ministério Publico apresenta as seguintes conclusdes: : | - Como € generalizadamente assinalado pela doutrina juspenalistica, o direito penal aotua apenas para a tutela subsididria de bens juridicos claramente individualizAveis, s6 sondo desencadeados os gravosos instrumentos ao servigo deste direito sé fazendo sentido aplicar uma pena para tutela, em ultima ratio, de um bem juridico-penal oe CEs ae a a 2- O art, 26°, n.1, da Constituigao da Reptblica Portuguesa ao indicar, entre o elenco das garantias individuais das pessoas, o direito ao bom nome e reputagdo, mais nio significa que 0 direito a néio ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideragaio social. Ea este comando constitucional que tem de adequar-se a interpretagiio dos art.180° e 181°, do Cédigo Penal quando falam em honra e consideragao. E ao referir como bem juridico destes crimes a honra ou considerago, o Cédigo Penal limitou-se a utilizar sinbnimos, verificando-se total congruéncia entre a tutela juridico-penal e a protecgdio juridico-constitucional dos valores da honra das pessoas, 3 - Para que se verifiquem estes tipos legais é necessario que o facto imputado ou o juizo formulado sejam idéneos, em abstracto, para causarem uma ofensa a honra ou a consideragao da pessoa visada. Contudo, nfo deve considerar-se ofensivo da honra ¢ consideragao de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que, razoavelmente, isto é, segundo a s& opinido da generalidade das pessoas de bem, deverd considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais, 4 Ora, uma euidada apreciagéo dos factos ¢ 0 seu confronto com a incriminago da injésia determina a conclustio de que no é possivel subsumir, em nosso entender, a conduta do arguido na factualidade tipica daquela infracgo. Ou seja, a niio correspondéncia dessa conduta & factualidade tipica daquela incriminagéo destinada a tutela da honra tomna impossivel a condenagao do arguido logo em sede de tipicidade; e se torna impossivel uma tal condenagio, isso vale como imperativo para que ele nfio deva ser pronunciado, atenta a consabida regra de que uma prontincia sé pode juridicamente tor lugar quando a fistura condenago se mostre mais provavel do que a absolvigo, quando, por outra forma, logo em sede de .. indicios suficientes ... nfo se suscite qualquer divide razoavel a sua subsisténcia, 5- E, asazao decisiva da atipicidade da conduta do arguido prende-se com 0 objectivo da intorpelagiio/exposigfio: o que fez o arguido foi confrontar o assisiente com a exposigto tedrica que acabara de fazer, ctiticando a falta de inovagiio ¢ afirmando que o tema constaria ja de qualquer manual, considerando-o, por isso, intelectualmente desonesto, néio se revelando, pois, qualquer intengao de atingir o assistente na sua honra. 6 - Preenchido nao se encontra também o tipo de ilicito subjective do crime de injtria, uma vez que exige o dolo ( genérico, sob a forma de dolo directo, necessério ou eventual Js, como se referiu, no pode considerar-se dolosa, sob qualquer forma, a conduta do arguido. 7 - Com efeito, atentemos nos factos: assistente e arguido estiveram presentes num Simpésio Nacional de Investigagdio em psicologia, encontrando-se este uiltimo entre a assisténcia e sendo 0 primeiro, além de moderador, responsdvel pela apresentagiio de uma comunicagao cientifica, Aberto 0 debate o arguido dirigiu-se ao assistente, ao que parece em tom de voz elevado, dizendo-lhe que 0 que acabara de ali expor mais ndo era do que uma reprodugzo do que podia ler-se em qualquer manual e que o assistente era intelectualmente desonesto. 8 - O que fez 0 arguido foi conftontar o assistente com a exposigio tedrica que acabara de fazer, criticando a falta de inovaggo ¢ afirmando que o tema constaria ja de qualquer manual, Sendo que o arguido ¢ assistente tém em comum a érea cientilica que escolheram para concluirem as respectivas formagdes académicas ¢ que o referido simpésio versava sobre matérias que ambos dominam. 9- Ora, € inequivoco que a referéncia d honestidade nfo é uma forma, aberta ou subtil, de colocar em causa a probidade do assistente, mas sim a critica & apresentagdo, como originais ou novas, de ideias que, afinal, s&o j4 do dominio dos interlocutores e, assim, em nada contribuem para o debate o que, pata alguém com a posigtio académica do assistente, néio ¢ intelectualmente honesto 10 - De resto, a expresso em causa ¢ utilizada diariamente nos debates mais acesos e sem a conotagiio criminosa que a acusagao pretende emprestar-Ihe, E a divergéncia intelectual que encerra, mesmo no quadro das desavengas que ja anteriormente existiam enite o arguido eo assistente, nfo toma criminosa a actuagao do arguido. 11 - Certo que o tom empregue é de critica e nao é o mais delicado, mas nfo extravasou 08 limites da critica objectiva ¢ atipica, porquanto se quedou pelo desempenho do assistente enquanto tedrico no Ambito de matérias relativamente as quais estavam ambos interessados. 12 A pretensiio do assistente a merecer dos outros o respeito de que é, legitimamente, credor nao passa pela obrigagdo de estes, precisamente as pessoas com quem trabalhou, silenciarem a sua opinitio acerca do desempenho profissionel ou da actividade cientifica por si desenvolvida. Apenes um profundo aprego por si proprio ou um exagerado sentimento subjectivo de honra permitiriam fazer desembocar na tutela penal a situago dos autos. 13 - Termos em que, em nosso entender, deverd negat-se provimento ao recurso e, ‘consequentemente, manter-se, nesta parte, a douta decisdo instrutéria de nao proniincia. No mosmo sentido se pronuncia o arguido, ao considerar que da rigorosa fundamentagio do despacho recorrido, em nada abalado pelas conclusdes do recurso interposto, & manifesto a inexisténcia de qualquer ilegalidade ou de qualquer vicio’ ‘Também, nesta instfincia, o Exm® Procurador-Geral Adjunto emite parecer desfavordvel a pretensiio do assistente, Em resposta ao parecer rcitera o assistente que atento o circunstancialismo das pretéritas relagGes entre arguido e assistente ¢ a expresstio proferida neste contexto, ndo pode deixar de concluir-se que 0 arguido quis atentar contra a honra considerago © bom nome de que orecorrente é eredor. Colhidos os vistos ¢ realizada a conferéncia, cumpre decidir. O recurso tem como itnico objectivo determinar se a expressiio “ intelectualmente desonesto”, nas circunstiincias em que foi proferida, constitui crime de injétias ou se resvala para o conceito de atipicidade sulragado na sentenga recorrida, E do seguinte teor a decisio recorrida Da Injivria O segundo dos ilfcitos imputados baseia-se em factos ocorridos em Lisboa e quando jé linha sido iniciado o inguérito pelo crime de difarnagéo. Em rectas contas, ndio hd conexdo entre os dois crimes ¢ o tribunal competente para conhecer este segundo crime seria o de Lisboa (art*s 19° e 24 do Cédigo de Proceso Penal). Neste momento, porém, cabe aquilatar da densidade dos indicios para qualificar os factos como crime ou da sua (dos factos) potencialidade para lograrem arrimo no normativo sub indice (art? 181° do Cédigo Penal). Reza a acusagao que naquele dia ~ 16.10.03 — assistente ¢ arguido estiveram presentes num Simpésio Nacional de Jnvestigagdo em Psicologia, encontrando-se este ultimo entre a assisténcia e sendo 0 primeiro, além de moderador, responsdvel pela apresentagdo de uma comunicagdo cientifica. Aberto o debate o arguido dirigiu-se ao assistente, ao que parece em tom de voz elevado, dicendo-Ihe que 0 que acabara de ali expor mais néo era do que uma reprodugiio do que podia ler-se em qualquer manual e que 0 assistente era intelectualmente desonesto. E destas duas expresses que a acusagdo faz nascer um crime de injiria. NGo é assim, como veremos. Jé aludimos d natureza da intervenedo do Estado na tutela de direitos fundamentais como seja 0 da honra. Fizemos, igualmente, uma breve incurstio sobre o que C. Andrade designada por tese da atipicidade da critica objectiva, Tendo tais instrumentos tedricos como referéncia, vejamos: O que fez 0 arguido foi confrontar o assistente com a exposiedo tedrica que acabara de fazer. criticando a falta de inovagéio ¢ afirmando que o fema constaria jé de qualquer ‘manual. Recorde-se que arguido e assistente tém em comum a drea cientifica que escotheram para concluirem as respectivas formagies académicas ¢ que 0 referido simpésio versava sobre maiérias que ambos dominam. Neste contexto é criminosa a actuagdo de quem, provindo da mesma drea de investigagao, se dirige ao autor de um texto cientifico confrontando-0 com a sua falta de originalidade? Se assim fosse, nas Universidades ¢ noutros locais de investigagéio, estaria vedada a erttica e 0 debate de ideias ¢ em breve a ciéncia estaria desprovida de matéria-prima. A ndo ser que se admita que a sociedade portuguesa é uma sociedade bafiosa e sem canais de comunicagito que permitam a convivéncia da tese ¢ da antitese[ Assim, José Gil: Acho que no salazarismno j4 havia um medo do semelhante, além do hierdrquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdémos 0 medo, que se transformou, Acho que a principal raziio foi por que nfo eridmos suficientes instrumentos de expresso. A sociedade portuguesa, ao contrério das outras, é fechada, nfo tem canais de ar, respiragdes possiveis. E uma sociedade suavemente parandica (...). E uma obsessio, Estamos sempre a falar de auto-estima (...), Temos medo do acontecimento (...): G..), medo do julgamento dos outros, medo de ndo sermos capazes. Medo de nfio estamos a altura do acontecimento, (.,.) a nossa sociedade tem algo de infantil, mas sem a vivacidade das criangas” , “os brandos costumes escondem uma violéncia subterrénea enorme”. httpv/evunix.uevora.pU~oliveira/Imprensaljosegil htm. Da mesina forma, interpelando 0 assistente quanto ao relevo cientifico do que acabara de expar, 0 arguido considerou-o intelectualmente desonesto. E inequivoco que a referéncia a honestidade ndo é uma forma, aberta ou subtil, de colocar em causa a probidade do assistente, mas sim a critica a apresentagéo como originais ou novas de ideias que, afinal, sao jé do domtnio dos interlocutores e, assim, em nada contribuem para o debate o que, para alguém com a posigdo académica do assislente, ndo é intelectualmente honesto. A expressdo em causa ¢ utilizada diariamente nos debates mais acesos e sem a conotagéo criminosa que a acusagéo pretende emprestar-the. A divergéncia intelectual que encerra, mesmo no quacdro das desavengas que jé anteriormente existiam entre arguido e assistente, no torna criminosa a actuagdio do arguido. Certo que 0 tom empregue é de critica endo & 0 mais delicado, mas niio extravasou os limites da eritica objectiva e atipica, porquanto se quedou pelo desempenho do assistente enquanto tedrico no dmbito de matérias relativamente aos quais estavam ambos interessados. Nao é descabida nem despropositada a erttica, seja ela verdadeira ou falsa. E mesmo que 0 fosse (falsa) nem por hipotético exercicio de alargamento exponencial do conceito constitucional de honra se poderia afirmar que assim a dignidade do assistente ficou reduzida, S6 um conceito de honra que a confundisse com um embotado sentimento psicoldgico de auto-estima permitira afirmar-se como criminaso o arguido. Qualquer cidadéo esté no seu quotidiano sujeito a critica da sociedade envolvente e na qual se desenvolve e aceité-la, seja ela justa ou injusta, é também mais um passo para a coneretizagao da honra que the assiste por ser um modo de desenvolvimento da personalidade, ainda mais num o debate piiblico de temas préprios da vida académica de ambos. A pretenséto do assistente a merecer dos outras o respeito de que é, legitimamente, credor nao passa pela obrigacdo de estes, precisamente as pessoas com quem trabalhou, silenciarem a sua opinido acerca do desempenho profissional ou da actividade cientifica por si desenvolvida, Apenas um profundo aprego por si préprio ou um exagerado sentimento subjectivo de honra permitiriam fazer desembocar na tutela penal a sitnagéo dos autos. Termos em que decido ndo pronunciar 0 arguido pelo imputado crime de injiria, determinando 0 arquivamento dos autos nesta parte. Apreciando: Constam da decisto recorrida varias ilagdes juridicas absolutamente inquestiondveis que merecem a aceitagio de todos os intervenientes. Por merecerem este consenso permitimo- nos destacar as partes mais frisantes O arguido encontra-se acusado da pratica de dois crimes contra a honra, estes de natureza semi-piblica em virtude das fungies do visado. A tutela da honra das pessoas, positivada na ineriminagéio da difamagao e da injtiria, € um desiderato criminal que, tal como os restantes, sé 6 desencadeado como ultima ratio, isto é, quando se verifique que foram violados bens juridicos com inegdvel refracgao axiolégica constitucional. Com efeito, a dignidade da pessoa humana é a pedra de toque da Constituigéto da Repiiblica Portuguesa (art? 1°), texto que elenca entre as garantias individuais, o direito ‘ao bom-nome e repuiagdo, entendides estes como sendo “o direito a ndo ser ofendido ou lesaco na sua honra, dignidade ou consideragéo social” [ G, Canotilho eV, Moreira, CRP Anotada, 3* Ed., pag. 180.) Tradicionalmente a honra nao € apreciada sob a perspectiva que a reduz a um conjunto de quatidades relativas a personalidade moral da pessoa, mas liga-se d valoragéo social do sujeito ou & sua consideragéio e reputacdo, at se incluindo a honra profissional. Isto 6, @ honra serd analisdvel como o direito que cada cidaddo tem de reclamar 0 respeito dos outros e a nao receber deles juizos ow imputagdes vilipendiosos € degradantes ou, mais subjectivamente, equivale & representacdo psicolégica que cada wn de nds tem de si proprio, ao apreco ou auto-estima, a qual poderd corresponder, ow ndo, d consideragao ou & reputagao social de que goza. Decorre do Texto Fundamental que a honra assenta no primado da dignidade humana pelo que a pretensito ao respeito que Ihe anda associada se consubstancia num direito plural na titularidade de todos e néo apenas de alguns. A honra é um “valor ou bem imaterial (...) e perfila-se a mesma quer a vejamos encarnada no mais nobre espirito, quer a olhemos no mais refinado biltre” | Faria Costa, Comentarios Conimbricenses, Tomo I, pag. 652) 4 dignidade humana ¢ o livre desenvolvimento da personalidade so, assim, respectivamente o fundamento e 0 fin iltimo da honra que 0 ordenamento penal, por definigdo fragmentdrio, protege. Donde, a violagao da honra, em cada momento concreto ¢ em cada recorte da vida, 36 constituird erime quando se veja violado o seu fundamento imediato — a dignidade humana -, sem prejulzo de se ultrapassar este momento estatico{ Quintero Olivares, Comentario al Nuevo Cédigo Penal, Aranzadi Editorial, pag. 1025./ ¢ se tratar de forma diferente 0 que ndo se nito vislumbra igual @ partida com o que se exige, igualmente, uma articulagfio entre a igualdade, o pluralismo e a liberdade. Jé:se ve que os crimes que no elenco criminal tutelam a honra tém um referente objectivo refiactério e suplementar: a repressio criminal apenas intervém quando principios e valores éticos fundamentais saiam lesados num dado contexto histérico. A honra ndto é confundivel com a fineza de trato, a sensibilidade intelectual ou cultural ou com a elegancia, real ou artificial, que domina o convivio social nas mais diversas areas. Dagut deflui que a tutela da honra ndo pressupde um calar constante dos pensamentos ou ideias, das eriticas ou dos elogios que alter merega no constante fluir das relacdes, ainda mais quando, pela posicéto social ou profissional que ocupe, aquele se encontre em lugar de destaque particular no seio de uma qualquer comunidade de individuos. Em suma, a tutela da honra encontra-se num plano supra individual 0 qual néio sai Jesado com epifanias sociais préprias de uma sociedade livre. Sob o thtulo Atipicidade da critica objectiva, Costa Andrade escreve 0 segitinte/Liberdade de Imprensa ¢ Inviolabilidade Pessoal, 1996, pags. 232 ¢ ss,J: “o exereicio do direito de critica (...), tende a provocar situagées de conflito potencial com bens juridicos como a honra e cuja relevancia juridico-penal esté & partida excluida por razbes de atipicidade. (..) 4 tese da atipicidade da eritica objectiva nao depende do acerto, da adequagao material ou da “verdade” das apreciagGes subscritas (...). O regime jurldico-penal da critica objectiva serd, em qualquer caso, idéntico: quer resulte da apreciagdo cuidada e certeira de um perito e conhecedor, quer traduza a mais indisfargvel manifestagao de diletantismo ow, mesmo, de ignordncia (...) (..) 0 diretto de erltica com este sentido e aleance néto conhece limites quanto ao teor, a carga depreciativa e mesmo a violéncia das expressdes utilizadas (...)". Citando Uhlitz, continua Costa Andrade: “Quem exagera e generaliza, quem, para emprestar eficdcia ao seu ponto de vista, utiliza expresses desproporcionadas, rudes, carregadas, grosseiras ¢ indelicadas, ou quem no calor da discussdio objectiva ou por excesso do seu temperamento faz subir 0 tom de voz, néio tem de recear qualquer puni¢ao (.. E, continua aquele Professor, * (...) é hoje igualmente pacifico 0 entendimento que submete a actuagdo das instancias puiblicas ao escrutinio do direito de critica (...}". Nem sempre, porém, as coisas foram vistas a esta luz. Em épocas anteriores (.. sustentava-se (...) que as instancias pliblicas deveriam estar a coberto desta critica, que 36 poderia socavar o prestigio ¢ abalar a confianea indispensdveis a sua subsisténcia e desempenho (...). Como Herdegen observa: “Tempi passatil A luz da experiéncia do direito fundamental da liberdade de expressio (artigo 5° da Lei Fundamental), é necessdiria uma actualizagdo que abra toda a drea da actuagdo das autoridades pitblicas ¢ funciondrios, dos tribunais e dos juizes, do parlamento ¢ dos deputados, dos partidos politicos (..)” Deste contexto retiram-se trés vectores que devem ser confrontados com 0 contexto factual onde a expressio, aparentemente injuriosa, foi proferida 1. asepresstio criminal apenas intervém quando princ{pios e valores éticos fundamentais saiam Jesados num dado contexto histérico. 2. A honra néo ¢ confundivel com a fineza de trato, a sensibilidade intelectual ou cultural ou com a elegancia, real ou artificial, que domins-o convivio social nas mais diversas areas, 3.- A tutela da honra encontra-se num plano supra individual o qual no sai lesado com epifanias sociais préprias de uma sociedade livre, Parece inquestionavel que apodar alguém de intelectualmente desonesto para além de violar as regras do bom trato, abala a honra e consideragiio do visado, Salvo se, analisado © contexto em que tal expressio foi proferida, se concluir que nfo Ihe esti inerente qualquer inteng&o injuriosa mas tio s6 mero direito de o Esta questio & delicada e susceptivel de diversas opinides, quando esté em causa a expresstio que analisamos. Se por um lado aplaudimos e niio queremos beliscar a liberdade de criticar, nfio podemos permitir que a cobro deste direito se atente contra a honra ¢ consideragiio do visado, Por isso, mais do que tecer consideragdes tedricas sobre os interesses conflituantes necessério escalpelizar minuciosamente os factos com que somos confrontados na acusagdo, sobejamente indiciados nos autos, para concluir se estamos perante mero exercicio de critica ou intengAo injuriosa, ‘Também aqui 0 despacho recorrico nao deixou de estar atento, $6 que a ilagiio que retira do contexto afigura-se-nos algo discuttvel, principalmente nesta fase processual onde basta a verificagio de indicios suficientes, ‘Vejamos os factos constantes da acusago, que limitam o crime de injuirias, posto que para além deste ha um outro de difamagao que mereceu aceitagao na prontinci "No dia 16 de Outubro de 2003 o arguido assistiu no auditério 2 da Fundagdo Calouste Gulbenkian, em Lisboa, aos trabathos do « V Simpasio Nacional de Investigagdo em Psicologia ». Os trabalhos foram coordenados ¢ moderados pelo Professor Doulor B... que também apresentou uma comunicagao cientifica No final, aberto um periodo de debate, o arguido, em vor alta em tom exaltado, perante todo 0 auditério, referindo-se d apresentagiio do referido Professor, disse que a sua intervenedo foi uma reproducdo do que se podia ler em qualquer manual e por diversas vezes, afirmou que aquele era intelectualmente desonesto. O arguido sabia que todas as mencionadas expresses que profertu relativamente ao assisiente ndo correspondiam a verdade e, apesar disso, néio se absteve de as proferir. Tais afirmagdes sco manifestamente ofensivas da consideraeao e respeito, pessoal e profissional, devida ao Professor Doutor B..., tendo sido produaidas por virtude das fungbes de Professor Universitario que aguele exerce, O arguido agiu voluntaria, livre e conscientemente. Quis atingir 0 referido Professor na honra, honestidade, dignidade, respeito e consideragdo pessoal ¢ profissional que the séio devidas, Para prosseguir os indicados fins escotheu meios ¢ locais para dar a méxima publicidade ds ofensas que fez d honra, consideragao ¢ bom nome do assistente. Sabia ndo serem permitidas tais condutas” Na apreciagdo critica destes factos, articulada com os conceitos juridicos referidos, conclui-se no despacho recorrido: 1 - O que fez. 0 arguido foi confrontar o assistente com a exposigio te6rica que acabara de fazer, ctiticando a falta de inovagiio e afirmando que o tema constariajé de qualquer manuel. 2 A divergéncia intelectual que encerra, mesmo no quadro das desavengas que jé anteriormente existiam entre arguido e assistente, nfio torna criminosa a actuago do arguido, 3 - Certo que o tom ompregue € de critica ¢ nfio ¢ o mais delicado, mas nfio extravasou os limites da eritica objectiva e atfpica, porquanto se quedou pelo desempenho do assistente enquanto teérico no émbito de matérias relativamente aos quais estavam ambos interessados. 4 - Nao é deseabida nem despropositada a critica, seja ela verdadeira ou falsa, E mesmo que 0 fosse (falsa) nem por hipotético exercicio de alargamento exponencial do conceito constitucional de honta se poderia afirmar que assim a dignidade do assistente ficou reduzida. 5 $6 um conceito de honra que a confundisse com um embotado sen de auto-estima permitira afirmar-se como criminoso o arguido. Analisando os factos e constando da propria acusagio que as relagbes entre o assistente © © arguido estavam deterioradas, é mais razodvel interpretar a interpelagtio do arguido como ofensiva do que circunsereve-la ao direito de critica, Seno vejamos. arguido nao comega por referir quando € porque razilo a exposigtio apresentada nao é inédita. Em ver de proceder a uma andlise critica para a qual esté devidamente habilitado c em seguida, se fosse caso disso, coneluir que nada do que tinha sido dito era inédito, podendo até aludir em tom jocoso aos manuais de segunda categoria, o arguido confronta © assistente em tom exaltado intitulando-o de intelectualmente desonesto. E fé-lo perante um auditério de peritos. O arguido no confrontow o assistente com a exposigéio teérica que acabara de fazer, criticando a falta de inovagao, ultrapassou este pressuposto para dizer precipitadamente que o assistente ¢ intelectualmente desonesto, Estando adquirido nos autos que as relagdes esto degradadas, ocorrendo a prontineia do arguido por difamar o assistente noutras circunsténcias, tem sentido intuir nas suas palavras um mero exercicio de critica? E claro que nao. Poi precisamente a percepg&o contraria que colheram os presentes no auditério e nestes autos depuseram., Objectivamente nao é possivel concluir que nesta situagdio, em concreto, 0 arguido tivesse © propésito tinico de exercer o seu direito de critica, Alids nfo ha qualquer continuidade na critica, a intervengéio queda-se na exaltago e por af se fica, Ora, sabendo nés que 0 proprio arguido & perito na matéria exigia-se mais, Para afastar qualquer divida de intengfo injuriosa deveria o arguido actescentar ao que disse alusdes de carécter cientifico que pudessem sustentar a ousadia das suas palavras, Se 0 arguido e assistente ém em comum a drea cientifica e o referido simpésio versava sobre matérias que ambos dominam, era natural que o arguido para além da alusio provocatéria entrasse nos detalhes tedricos. De onde se conclui que o arguido nao quis exercer a critica objectiva e atipica, O que esté suficientemente indiciado & que 0 arguido quis, naqueles circunstfncias e perante aquele auditério, ofender a honra e consideragiio do seu ex-orientador de doutoramento, em ntervengaio desabrida e desproporcionada, Detectado esse propésito nfo interessa aferir se a critica ¢ verdadeira ou falsa, pois nao estamos perante um exereicio de direito & critica. Nao é esse o sentido ou a intengio da intervengao. Esta ¢ interpretagiio dos factos que nos parece mais verosimil, mais consenténea com a realidade, aquela que verdadeiramente esté indiciada nos autos. Pese embora o mérito da decisao recorrida, onde se procede a uma excelente ponderagiio juridica, os factos indiciam a pratica de um crime de injirias p.p. pelos 181°, 183°, n°1 al 2), 184° © 132°, n°2 al,j) do Cédigo Penal. Termos em que se acorda dar provimento ao recurso, revogando 0 despacho recorvido que deverdi ser substituide por um outro que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusagao de fs. 160. Custas pelo arguido ~ 3 UC de imposto de justiga,

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