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Podemos entio definir a difamagho como a atribuigso a alguém, através de terceiros, de facto ou juizo que encerre em si um objectivo eticamente reprovavel, no Ambito da lesfo da honra e consideragio, reclamando a sociedade tutela penal de dissuasio e repressio desse comportamento. Assim, quanto aos elementos objectivos da ofensa, a conduta coneretiza-se através da imputacdo de um facto ou por meio de formulagao de um juizo, ofensivos da honra e consideragho de outrem, ou ainda pela reproduedio daquela imputagao ou juizo. Estas descritas condutas nfio podem ser feitas directamente a0 ofendido, tém de ser levadas a eabo “dirigindo-se a terceiros”. Quanto ao conceito de honra podemos de forma resumida dizer que ele encerra 0 conjunto de valores éticos que cada pessoa humana tem, como o carcter, a lealdade, a seriedade ¢ reetidao, ou soja, a dignidade subjectiva ou patriménio pessoal e interno de cada um. O conceito de consideracdo encerra a dignidade objectiva ou o patriménio que cada um granjeou ao longo da sua vida, traduzido no mereeimento que eada um tem no meio social, ow soja, o seu bom nome, a confianga, a estima e reputagho de que goza, Quanto ao glemento subjectivo, a sua forma de cometimento é dolosa, embora hd muito que a lei deixou de exigir 0 dolo especffico, ou seja, nao se exige que o agente queira ofender a honra e consideragio alheias, bastando que saiba que, com o seu comportamento, pode lesar 0 bem juridico protegido com a norma e que, consciente dessa perigosidade, nao se abstenha de agir, O elemento subjectivo coneretiza-se, assim, em 0 agente ter conhecimento e consciéncia de que os factos por si imputados, ow as expressies que utiliza, sio de molde a produzir ofensa na honra ou consideragho da pessoa visada e de que tal conduta é proibida por lei, Por iltimo, refira-se que o crime de difamagio € de perigo concreto-abstracto ¢ nfo de dano. A lei no exige o dano efectivo do sentimento da honra e consideracio social, bastando & sua consumagao 0 perigo de que esse dano possa verificar-se. Basta assim a consciéneia da genérica perigosidade da conduta empreendida (da imputagio do facto ou formulagio do juizo), que encerre em si mesmo uma genérica aptidao para produzir o evento danoso. O crime consuma- se, assim, com o perigo de que esse dano possa acontecer, o que se coneretiza no momento em que ferceiros tomem conhecimento da imputagio ofensiva 2 outra pessoa, consumando-se, pois, logo que chegue ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido. Sendo este o quadro tipico do crime de difamagiio, é tempo de descer a0 caso conereto dos presentes autos, Ni restam dividas, conforme se refere na decisio reeorrida, que os arguidos nos depoimentos que prestaram imputaram factos ao assistente que siio, objectivamente, atentatérios da sua honra e consideragiio, E contrariamente ao que afirmam os arguidos, a sua conduta, pela circunstincia de as imputagdes terem sido produzidas no fimbito de um depoimento testemunhal, no deixa de ser uma conduta “voluntariamente assumida”. Se é certo que os ora arguidos foram convocados para testemunhar, estando por isso Jegalmente obrigados a depor, nfio é menos certo que o teor ou contetido do depoimento foi livremente assumido. E que se num primeiro momento 0 “acto & devido” no sentido de que a testemunha se no pode recusar a comparecer ¢ a depor, num segundo momento, que se prende com o contetido do depoimento que vai prestar, é um acto livre, “voluntariamente assumido”. Tanto assim & que A testemunha, ciente do dever de falar verdade, se se determinar a mentir, apurando-se a existéncia de diserepfineia entre a realidade e depoimento prestado (depoimento falso), incorre na priitien do crime de falso testemunho previsto no art” 360°, n° 1 do C.P,2 E também a situagio dos autos preenche o requisito de a imputagio ter sido feita perante ferceiros. Mesmo nas cireunstéincias em que foi feita a imputagdo -no ‘cumprimento de um dever ~a imputagao nfo deixa de ser feita perante tereeiros, para os efeitos do art? 180°, do Cédigo Penal, que embora nfio sendo um terceiro qualquer, mas o destinatirio a quem a testemunha tem o dever/obrigagao de prestar o seu depoimento, nfio é nem o agente nem o ofendido. E como dissemos, sendo o crime de difamagho de perigo concreto-abstracto e niio de dano consuma-se logo que a imputagéo do facto chega ao conhecimento de uma pessoa diversa do ofendido. O crime consuma-se, assim, com 0 perigo de que o dano efectivo do sentimento da honra ¢ consideragio possa acontecer, donde a conduta empreendida hé-de revelar aptidio para que o evento danoso se produza. In casu, 0 facto de o terceiro ser alguém que esth sujeito ao sigilo profissional ¢ o proceso em investigagio estar sujeito ao segredo de justiga, nio retiram por isso ao meio da imputagAo do facto a aptidio para que 0 evento danoso se possa produzir. Contudo, os eventuais danos emergentes da propagagio e conhecimento pablico dos factos (que nfo no Arbito do processo em investigagio) nao podem ser directamente imputados aos arguidos, a nfo ser que existam ind’cios suficientes de que tal divulgagiio pitbliea se ficou a dever & sua acco, Desta forma, em face dos elementos constantes dos autos, se conch conduta imputada nos arguidos preenche os elementos objectivos do crime de difamagao, ‘Vejamos agora o elemento subjective, que se traduz em o agente ter conhecimento e consciéneia de que os factos por si imputados a terceiro sfio de molde a produzir ofensa na honra ou consideragio da pesson visada e de que tal conduta ¢ proibida por lei, Como é bom de ver 0s arguidos a0 mencionarem tais factos nio podiam deixar de representar a possibilidade de 0 assistente se sentir ofendido na sua honra ¢ consideragio, Como sabemos, a dentincia de quaisquer factos desagradiveis, da para mais com a gravidade destes, acarreta consigo sempre a probabilidade de as pessoas visadas se sentirem atingidas na sua honra ¢ consideragio, quer os factos sejam verdadeiros ow falsos, ; S6 que neste caso, o crime de difamagio tem como particularidade crucial 0 facto de os arguidos terem agido no cumprimento de um dever legal, Este facto condiciona necessariamente a aniilise do tipo legal, om repereussdes sobretudo a0 nivel do elemento subjective ou da intencionalidade, assim como ao nivel da ilicitude da conduta, Como jd 0 dissemos, a testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que € imposto por lei, pois, em prinefpio, no se pode recusar a depor, e tem a obrigagio de falar com verdade, sob pena de incorrer na pratica do crime de falso testemunho, previsto no art® 360° do C.P. Nesta posigio, mesmo sabendo que com o seu depoimento pode lesar o bem juridico protegido com a norma, a testemunha nfo pode recusar-se u depor. O depoente cumpre assim um dever legal (ef, art® 31°, n° 2, al. e), C.P.), realizando um interesse legitimo, ¢ que radica no dever mais geral inerente a uma sociedade livre e solidiria de denunciar a prética de um crime de que se tem conhecimento. Ora, quem age no mbito do cumprimento de um dever, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelagdes poderem ou nfo atingir a honra ¢ consideracio do visado, pelo que, nestas eireunstincias esta afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si sio difamatorios, querer forir ou atingir a honra e consideragao do visado. Esté assim afastado o dolo em qualquer das suas modalidades (art? 14°, do CP) afastada a ilicitude da sua conduta por agir no cumprimento de um dever legal. Assim, depondo a testermunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados & pessoa visada sejam em si difamatérios, nunca Ihe poder4 ser imputado o crime de macho, ‘Tal s6 sucederd se a festemunha prestar um depoimento falso, com a consciéncia dessa falsidade, Neste caso, resultaria evidente o intuito doloso, havendo de concluir-se que 0 depoente agin com o intuito de ofender o visado, estando igualmente afastada a eximente da ilicitude, pois faltando 4 verdade, a sestemunha nfio cumpriu 0 dever legal previsto pela norma, Assim, se no decurso da investigagiio os clementos de prova recolhidos forem de molde a demonstrar que a testemunha mentiu, tendo eonsciéneia da falsidade das imputagées, ou seja, que declarou factos contrarios aos factos do mundo exterior por si conhecidos, e com a conseiéneia de que tais imputagses sho difamatérias, incorrera, pois, na prétiea do erime de difamagio. Regressando ao caso em apreso, importa entio analisar eriticamente 0 quadro de indicios recolhidos nos autos. Importa saber se existem “indicios suficientes” de os arguidos terem conscientemente faltado 4 verdade. Vejamos. 0 teor dos depoimentos a que nos temos vindo a referir constam de certidio junta aos autos e mostram-se reproduzidos na acusagio deduzida pelo assistente, Mostram-se igualmente junto aos autos os relatérios periciais e exames médico- logais e de avaliagfo psicolégica dos arguidos. Os demunciados foram interrogados como arguidos, ¢ o assistente prestou o seu depoimento por eserito. assistente manteve integralmente o teor das queixas que apresentou, Negou tais imputagdes ¢ considera que aqueles factos “sao inventados, com o propésito de provocar a instauracdo de um processo crime contra ele que destrua a sua carreira politica, como lider partidério, deputado e membro do Consetho de Estado, ao mesmo tempo que afecta a credibilidade do maior partido da oposicto”. As declaragées dos arguidos foram reiteradas ao longo de todo o inquérito, iendo-o também sido neste inquérito. O assistente limitou-se a apresentar contradigées pontuais ¢ imprecisies nos depoimentos prestados, sem que tenha apontado qualquer facto que pudesse indiciar que os arguidos conheciam a falsidade das imputagbes e que pretendiam denegrir a sua imagem. A verdade 6 que, conforme se afirma no despacho recorrido, os arguidos “,,, prestaram as suas declaracdes de forma objectiva e contida dentro do processo em Investigacito, nfo resultando do depoimento dos mesmos que tenham em momento algum tecido consideragdes ou efectuado julzos de valor acerca da pessoa on personalidade do assistente. Limitaram-se tio 56, a relatar os factos por eles, alegadamente vividos ¢ por si conhecidos”. Eas contradigdes ¢ imprecisdes a que alude o recorrente no slo de estranhar se tivermos em conta que os factos relatados pelos arguidos tero ocorrido j4 hi alguns anos, a que acresce a natural dificuldade em depor sobre factos desta natureza. Contudo, tais contradigées entre alguns factos ¢ a datagio imprecisa de alguns acontecimentos nao permitem, por si, fazer um juizo de falsidade acerea dos mesmos, Por outro lado, importa atentar no facto de as pericias aos arguidos bem como os exames médico-legais de natureza sexual a que foram submetidos coneluiram ser de admitir a consisténcia dos relatos (cfr. fis. 276-328), Ora, os elementos probatérios constantes dos autos, analisados criticamente naio nos permitem coneluir que os depoimentos prestados pelos arguidos sejam veridicos, mas também nao permitem a conelusio contréria, pelo que, pelo menos pela aplicagiio do prineipio in dubio pro reo, enquanto regra de apreciagio da prova, ter-se-a de coneluir pela inexisténcia de indicios suficientes de que os arguidos ao proferirem tnis imputagdes fivessem agido com dolo, ou seja, gue tivessem querido atingir o assistente na sua honra ¢ consideragio, inexistindo igualmente indicios da ilicitude da conduta dos arguidos, pois inexistindo indicios de que os arguidos tenham prestado um depoimento falso, nfo podemos concluir pela ilicitude da sua conduta, pois se tiverem prestado um depoimento veridico a sua conduta ja no é contritria as normas legais, Chega-se assim a um non liquet, que s6 pode ser resolvido a favor dos arguidos, assim se coneluindo pela “inexisténeia de indicios” que nos permitam imputar- Ihes o crime de difamagio. E deste modo, em face do quadro de indicios acima referidos, tem-se como muito mais provavel em sede de julgamento a absolvigfo dos arguidos que a sua condenagio, pelo que outra nfo poderia ser a decisfo instrutéria que nfo fosse a niio promincia dos arguidos, pelo que bem andou a decisio recorrida, nio merecendo qualquer censura. Diga-se, por vltimo, que nfo faz qualquer sentido a discuss trazida pelo recorrente quanto a definir a quem compete o énus de prova da falsidade ou veracidade das imputag6es, empurrando tal énus para os arguidos, a quem, na sua 6ptica e interesse, incumbia a prova da verdade das imputagées, € nfo conseguindo aqueles fazer tal prova teriam de ser responsabilizados por tais imputagées. Ora, nada de mais errado, pois a prova dos elementos constitutivos de um crime compete ao Estado e a0 Assistente nas vestes de acusador. A existéncia ou nfio de indicios da pratiea de um crime hé-de emergir no seio da investigagao, dos elementos de prova carreados para os autos, apreciados segundo 0 prinefpio estabelecido no art” 127° do CPP e pelos prinefpios gerais de direito, Como sabemos nem todas as investigagdes permitem a recolha de “indicios suficientes” da pratica do crime denuneindo, mas o que se néio pode subverter as regras de investigaciio criminal, colocando, neste caso, a cargo do depoente a prova da verdade dos factos. Ese € certo que o art, 180°, n° 2, alinea b), do C.P. expressamente onera 0 arguido com a prova da veracidade da imputago, importa n&o esquecer nunca que nesse enso o agente faz. a prova da veracidade para que a conduta nfo seja puniyel (situagio em que o crime se mostra perfectizado). $6 que no caso em aprego, ¢ retomando 0 que dissemos supra, os arguidos agiram no cumprimento de um dever, o dever de prestar depoimento enquanto testemunhas. Nessa particular posigio, nao faria 0 menor sentide estar ainda a onerd-lo com a prova da veracidade das suas afirmagées. Ele nfo decidiu livremente presté-las. Foi coercivamente levado a fal, coereaio que se manifesiou nfo $6 na necessidade de prestar as declaragées, como ainda na sujeigho ao dever de yerdade, sob pena de incorrer na prética do crime de falsidade de testemunho. E, sendo certo que ninguém teria a ousadia de defender que num eventual inquérito pela pratica de um crime de falsidade de testemunho, recairia sobre o arguido 0 énus de provar que falou com verdade, por ser por demais evidente que seria a0 MP que eaberia provar que cle mentiu, donde, pela mesma forma, no inquérito por difamacho, decorrente dessa alogada falta A verdade no depoimento prestado, se no pode fazer recair nos ombros do arguido o fardo da prova da verdade das suas afirmagées. Sc assim fosse, serin coarctar a liberdade e obrigagio de dentincia de crimes, pois ninguém se disporia a prestar o seu depoimento sem primeiro saber se tinha meios para provar a verdade dos factos. O absurdo traduzir-se-in em impor ao depoente que fizesse a prova daquilo que a investigagio penal, como neste caso, nao conseguiu, 11.Face ao exposto, resultando da andlise eritiea ¢ conjugada da prova junta aos autos no se poder concluir por um juizo de probabilidade sobre a culpabilidade dos arguidos, face sf inexisténcia de “ind{cios suficientes” da préitica do erime de difamagao que Ihes foi imputado, temos por bem fundado o despacho de nao promincia, interpretando correetamente as normas legais aplicadas, Assim se conelui pelo acerto da decisio recorrida, Improcede, pois, o reenrso interposto, WL-Decisio, Nestes termos, ¢ com os fundamentos acima expostos, acordam os Juizes da 3* secgio deste Tribunal da Relagio em negar provimento ao recurso, mantendo a decisio recorrida, nfo se pronunciando os arguidos, Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiga ema 5 UC (cfr, arts. 87°, n° 1, al. b) e3, do C.C.J. 513°, do C.P.P.). Notifique, Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceigaio Gongalves e assinado pelos Desembargadores Margarida Ramos de Almeida e Rui Gongalves. Lisboa, 16/07/2008, 4A Lei n° 48/2007, de 29/08, que recentemente alterou 0 Cédigo de Processo Penal, veio reforgar este entendimento, face sis alteragdes introduzidas, dosignadamente nos artigos 86° ¢ 289°, que vio no sentido de aproximar a instrugdo do julgamento (p6s fim ao segredo de justia na instrugiio, vigorando sem excepgio a regra da publicidade -cfr.art® 86°- ¢ fal como na fase de julgamento, os intervenientes processuais passaram a poder assistir a todos os actos de instrugiio, a suscitar esclarecimentos € a requerer a formulagio de porguntas que tenham por pertinentes para a deseoberta da verdade -efr. art” 289°,n° 2). 2 Da conjugagio dos artigos 132° a 134° e 116°, todos do CPP, € 360° do C.P. resulta que a falta injustifieada de apresentagdo ¢ punida nos termos do art” 116°, do CPP. A recusa injustificada equivale a recusa de depor, ¢ a recusa injustifienda de prestagao de depoimento, so punidas nos termos do art” 360°, n° 2, do C.P,, ¢, finalmente, 0 depoimento falso é punido nos termos do art? 360°, nl, do CP,

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