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Claudio Roberto da Silva

Reinventando o Sonho
História Oral de Vida Política e Homossexualidade
no Brasil Contemporâneo

Dissertação de Mestrado em História


Social apresentada à Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo.

Orientador: Prof. Dr. José Carlos Sebe


Bom Meihy

São Paulo
1998
Temos de rever nossos preconceitos, sabendo
que essas mudanças não influirão na
orientação sexual minoritária, mas propiciarão
uma extensão de cidadania e bem estar para
milhões de pessoas que hoje não podem se
mostrar do jeito que são, e estão excluídas do
direito mais elementar: o de ser.
Martha Suplicy

2
Agradecimentos

A experiência de produzir um trabalho acadêmico envolve muitas pessoas,


sem as quais não seria possível caminhar sozinho. A trajetória revelou o quanto há
limites que não poderiam ser superados individualmente, pois se em alguns
momentos a solidão era necessária, noutros o contato com familiares, amigos e
colegas foi fundamental. O apoio floresceu em diferentes níveis, desde as palavras
de estímulo pela escolha do tema até as entidades que tornaram a confecção desse
texto possível. Os bastidores da pesquisa estão lotados de nomes aos quais sempre
agradecerei.
Sou grato ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo - FAPESP - que forneceu bolsa de estudos que viabilizou a realização da
pesquisa. Quero expressar meu agradecimento, em especial, ao(a) parecerista que
acompanhou meu percurso de aprendiz de intelectual. Os pareceres lapidaram o
trabalho de pesquisa através de um diálogo franco construído sobre pontos ainda não
suficientemente claros.
O encontro com José Carlos Sebe Bom Meihy foi definitivo para os
desdobramento da formação que obtive nos anos da graduação e da decisão em
abraçar essa pesquisa. Nas entrelinhas dessa dissertação refloresce o tom vital do
professor Sebe Bom Meihy. Mestre que soube ser orientador sem passar por cima
da autonomia do seu orientando, junto dele aprendi a aceitar desafios.
Menção especial deve ser feita à Maria Eta Vieira, com quem tenho
compartilhado instantes de vibrações e desafios. Agradeço à Andréa Paula dos
Santos, Samira Osman, Cristina Ferez, Dante Gallian, André Gattaz, cujas
experiências, com o trabalho de história oral, nutriram-me com preciosas leituras e
sugestões. Da mesma forma identifico à todos os meus colegas de orientação, pós-

3
graduandos e graduandos, graças a nossa convivência “trocamos” comentários que
iluminaram meu caminho durante os anos de desenvolvimento desse projeto.
Agradeço também aos amigos que foram meus interlocutores em diferentes
fases do trabalho. Antônio Carlos Gomes acompanhou o início do processo e desde
então sempre ficou próximo incentivando a caminhada. O debate sobre a
Homossexualidade criou vínculos sólidos com Regina Facchini, Claudio Cezar
Xavier, Marta Gonçalves, James Naylor Green e Wilson Honório da Silva, com os
quais descobri afinidades e fui presenteado com sugestões de leituras e com
constantes diálogos que se revelaram ricos às análises acrescentadas ao texto dessa
dissertação. Luiz Mott, João Silvério Trevisan e Glauco Mattoso que sempre
forneceram informações, fontes bibliográficas, dados complementares que muito me
auxiliaram.
Quero agradecer aos meus familiares que me receberam durante minhas
estadas no Rio de Janeiro e em Brasília, Maria Lina Rocha, Celina Rocha, Tia
Selmira e Paulinho, proporcionando-me o conforto familiar tão caro ao meu bem
estar como ao andamento da pesquisa.
Dedico este trabalho à minha família, principalmente à Antônia Leles da Silva
e Maria do Rosário da Silva Ferro (Mãe e irmã) que seguraram minha barra - durante
esses anos de graduação e mestrado -, e em memória do meu pai, Antônio Geraldo
da Silva.

4
Sumário

Introdução............................................................................................................................06

PARTE I

Capítulo 1 - Um Conjunto de Vidas..................................................................................19

Capítulo 2 - Um caminho tortuoso até a “Contestação Política”...................................56

Capítulo 3 - Lampião: O Lugar dos Sonhos.....................................................................88

Capítulo 4 - Os Herdeiros do Sonho:trajetórias no movimento homossexual............122

Capítulo 5 - Em Razão do Sonho.....................................................................................159

Conclusão...........................................................................................................................176

Bibliografia........................................................................................................................179

PARTE II

1. Os critérios para a coleta e trabalho com as entrevistas...........................................196

2. Os Membros do Conselho do Lampião........................................................................219

3. Autores Coligidos pelo Lampião..................................................................................300

4. Os Colaboradores do Lampião (Rede I)......................................................................388

5. Os Membros da Redação do Lampião.........................................................................474

6. Os Colaboradores do Lampião (Rede II)....................................................................554

5
Introdução
A trajetória do Projeto

O percurso da pesquisa.

As atividades deste projeto se iniciaram nos anos da graduação. Por ocasião


da entrega de um trabalho de História Social da Arte, curso ministrado pelo Prof.
José Carlos Sebe Bom Meihy no segundo semestre de 1990, apresentei uma
monografia chamada “Erastas e Eromenos na Pedagogia Ateniense”, onde a
discussão temática produziu uma reflexão a respeito da instituição social do
relacionamento entre homem e rapaz, na Atenas do século IV a.C. Nessa época, o
fato de trabalhar com um assunto que me interessava, profundamente, foi importante
para definição da temática que desejava desenvolver na pós-graduação.
O professor José Carlos Sebe sugeriu a leitura da obra Now the Volcano: an
anthology of latin american gay literature, de Winston Leyland.1 A aventura literária
de Leyland revelou a produção de um grupo cuja temática girava em torno da
homossexualidade. Diante desse fato começamos a visualizar a possibilidade de um
trabalho com história oral de vida com escritores e intelectuais que produziram sobre
homossexualidade.
Após a leitura da antologia de literatura gay, foi preciso realizar o
levantamento das demais obras publicadas pelos escritores que compunham a corpo
do texto de Leyland e, posteriormente, proceder a leitura da bibliografia levantada
com o objetivo de obter o máximo de informações sobre o tema. Com a leitura de
Devassos no Paraíso de João Silvério Trevisan,2 surgiu a pista sobre um trabalho de
antropologia que fora realizado durante os anos oitenta. Ao rastrear essa indicação

1
LEYLAND Winston, Now the Volcano: an anthology of Latin american gay literature. San
Francisco: Gay Sunshine press, 1979.

6
cheguei até ao livro A Construção da Igualdade de Edward MacRae.3 Finalmente, a
leitura do romance autobiográfico de Glauco Mattoso despertou a atenção à aparição
de um tema presente nas obras desses três autores.4
Entre os pontos abordados nessas leituras, observei a recorrência de relatos
referentes a um periódico da imprensa alternativa: o Lampião da Esquina. Esse
periódico reuniu um grupo de escritores, intelectuais e jornalistas que
redimensionaram a discussão sobre a homossexualidade. A atenção que dediquei a
esse jornal, voltado às minorias,5 deveu-se a abertura da suas páginas à produção de
reflexões sobre a homossexualidade e, também, à possibilidade de levantar os nomes
das pessoas que escreveram para o jornal.
Localizei esse periódico no Arquivo Edgard Leunroth da UNICAMP, onde
passei a visitar suas páginas para conhecer o teor das matérias. A inexistência de um
catálogo dos colaboradores que escreveram no Lampião logo se fez sentir. Nessa
época iniciei o trabalho de organização dos dados existentes nessa publicação, isso
facilitou a sistematização dos nomes que colaboraram para o jornal em três
catálogos: catálogo de artigos, notas e entrevistas; catálogo de correspondências
publicadas; e catálogo de poemas, poesias e contos. Com a posse da lista de autores
verifiquei que o Lampião apresentava uma confluência de nomes com a antologia
produzida por Leyland. Além de João Silvério Trevisan, estão presentes na
antologia: Gasparino Damata, Aguinaldo Silva, Darcy Penteado, escritores que

2
TREVISAN, João Silvério.Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade. São Paulo: Max Limonad, 1986.
3
MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil
da"Abertura". Campinas: Editora da Unicamp, 1990.
4
MATTOSO, Glauco. Manual do Pedólatra Amador. São Paulo: Ed. Expressão, 1986.
5
Desde o final da década de setenta, o termo minorias tem seu sentido contestado no valor
quantitativo para ser pensado em termos qualitativos. Sob o valor qualitativo o termo se refere a
uma forma de caracterizar indivíduos que são estigmatizados pela sociedade global (mulheres,
negros e homossexuais) e que têm seus direitos de cidadania relegados a segundo plano por causa
de seu sexo, de sua raça e/ou da sua orientação sexual.
MANTEGA, Guido (Coord.) Sexo e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1979. p. 130.

7
compuseram o Conselho Editorial da publicação; Caio Fernando Abreu, Franklin
Jorge e Valery Pereleshin, escritores que colaboraram para o jornal.6
A delimitação do projeto se deveu, em boa parte, à preocupação em analisar a
importância da integração de sujeitos que traziam entre suas experiências o interesse
em discutir mais profundamente as questões referentes à homossexualidade. Esta
constatação revelou a existência de um capítulo da recente história política brasileira
carente de estudos pela perspectiva do historiador.
A transformação das concepções relativas à homossexualidade pode ser
percebida em três níveis: o primeiro se refere à imprensa alternativa que promove
uma reformulação da imagem associada ao indivíduo que sente atração por outros do
próprio sexo; ele deixa de ser tratado como um amaldiçoado, incapaz de auto-
realização, para transformar-se num ser que poderia provocar a revolução da
estrutura social;7 o segundo se refere a produção acadêmica que retira a discussão do
campo da medicina e da psicologia para colocá-la no campo das ciências humanas,
alterando o enfoque ideológico e teórico da questão homossexual; o tema deixa de
ser tratado como vício abominável, patologia e desvio, para tornar-se uma variável
neutra da sexualidade humana, estudada como subcultura socialmente construída;8 e
o terceiro se refere aos novos movimentos sociais que viabilizaram uma crítica ao
machismo e ao racismo do país, conduzindo à reformulação das noções de gênero e
sexo e à consolidação da identidade do militante homossexual.9
Essas alterações captaram minha atenção e despertaram um interesse maior
em compreender a origem desse processo, assim como em compreender também os
motivos relacionados ao abandono das antigas concepções produzidas sobre a
homossexualidade.

6
LEYLAND, Winston, Op. cit., p. 5.
7
MACRAE, Edward., Op. cit., p.77.
8
MOTT, Luiz & SILVA, Sônia T. D. G. “Teses Acadêmicas sobre a Homossexualidade no Brasil”
Comunicação apresentada no: XXXIX Seminar on the Acquisition of the Latin American Library
Materials (SALALM). Salt Lake City, Utah, USA: 29 May-02 June, 1994. p. 2.

8
No curso de pós-graduação o projeto a ser desenvolvido possuía uma
configuração híbrida, ou seja, havia a necessidade de pesquisar tanto o material
escrito quanto de conversar com as pessoas que o produziram: a proposta inicial era
comparar as fontes escritas com as fontes orais. Essa orientação definiu uma colônia
para entrevistas,10 cujos parâmetros recaíram sobre os intelectuais que produziram
reflexões sobre a identidade homossexual. Não poderia, contudo, deixar de lado
alguns critérios para fazer as entrevistas.
O levantamento bibliográfico advindo da obra de Winston Leyland e o
conhecimento dos autores que escreveram para o Lampião serviram de referência
para estabelecer o critério de escolha da primeira entrevista. João Silvério Trevisan
aparecia tanto na antologia quanto como um dos autores que engrossava as páginas
do jornal, por essa causa pareceu-me o nome mais indicado para iniciar a rede de
entrevistas.11 Essa decisão também deveu-se às leituras prévias que o anunciavam
como um depositário da história do grupo face à sua produção intelectual. Preparado
o percurso comecei a realizar as gravações, entrevistando as pessoas a partir da
indicação dada pelos colaboradores. Porém, as circunstâncias do trabalho com
história oral de vida revelaram que a trajetória do percurso necessitava ser
reavaliada.
Face ao universo de dezessete depoimentos, constatei a afluência de alguns
limites: a confecção dos documentos de história oral de vida ocupou em conjunto
com a leitura bibliográfica a maior parte do tempo. A reordenação do trabalho para
um tratamento que privilegiou as fontes orais surgiu como uma exigência natural
durante o percurso.

9
SOUZA, Pedro de. Confidências da Carne: o público e o privado na enunciação da sexualidade.
Tese de doutorado apresentada à UNICAMP. Campinas, 1993. p. 145.
10
Segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, a colônia é definida pelos padrões gerais de sua
comunidade de destino, ou seja, grupos com traços comuns que marcam um comportamento que os
caracteriza. SEBE, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. São Paulo: Ed. Loyola, 1996. p. 53.
11
A Rede é uma subdivisão da Colônia e que visa estabelecer parâmetros para decidir sobre quem
deve ser entrevistado ou não. Idem, p. 53.

9
Gostaria de ressaltar, ainda, o diálogo riquíssimo que se estabeleceu com o
parecerista da FAPESP. Ele cobrou um questionamento mais direto e objetivo
quando enviei as primeiras textualizações anexadas ao projeto de pesquisa.
Expliquei o processo de trabalho com história oral enfatizando dois pontos: a
importância de um depoimento mais completo sobre a história de vida do
colaborador; e as fases de produção do documento - transcrição, textualização e
transcriação - que antecedem o levantamento das questões a partir da leitura das
narrativas. Esses dois pontos foram ouvidos pelo parecerista e entendidos como
requisitos necessários para o andamento do projeto.
Os pareceres consecutivos foram de fundamental importância à orientação da
forma como interpretar o material, apontando reflexões que circulam essa
metodologia e elencando pontos que perpassavam as entrevistas. Estes foram alguns
dos aspectos mais interessantes originados a partir desse diálogo.
A redefinição do trabalho voltou-se as narrativas produzidas durante o
andamento de pesquisa, privilegiando a trajetória que o grupo de colaboradores
desenvolveu e observando as especificidades políticas que remetem aos significados
referentes às afirmações sobre a identidade homossexual. A confecção desse texto
surgiu por causa das entrevistas, sem as quais não seria possível constituir o corpo da
presente dissertação.
Após recompor o percurso da pesquisa, passo a explicar a forma final que o
texto assumiu.

10
Trajetória da Análise.

Para pensar a organização da história coletiva do grupo de colaboradores,12


elaborei uma tabela de assuntos recorrentes nas entrevistas. Deste trabalho originou-
se um índice temático.13 Este índice, ainda que fragmentado e intercalado, busca
uma articulação para dar coerência e significado a cada depoimento que compõe o
conjunto das histórias de vida. Em conseqüência da multiplicidade de vozes emergiu
uma história coletiva marcada pela participação de todos. Para compor a trajetória da
análise ouvi as narrativas, desenvolvendo cinco pontos que foram transformados em
capítulos e que serão cortejados por uma bibliografia complementar.
O primeiro ponto tratado se refere a categorização das narrativas, nas quais o
eixo da construção textual denota as especificidades dos colaboradores ao contarem
a história de vida. É precisamente do leque de especificidades que aflui o critério de
organização das narrativas, pois tal atitude se reflete nas atitudes políticas dos
colaboradores, assim como na construção de significados sobre a identidade
homossexual. Esse fato possibilitou agrupar as diferentes formas de narrativas
através de categorias, as quais anunciam seis conjuntos que no seu interior contêm as
especificidades de cada depoimento.
Nesse sentido, houve colaboradores que privilegiaram a trajetória profissional
como forma de moldar a história de vida, em outras narrativas os entrevistados
contrapuseram-se aos modelos generalizantes de identidade homossexual e deram
primazia às suas experiências enquanto indivíduos, outra forma de tecer a narrativa

12
Essa pesquisa busca uma relação de afinidade entre as partes envolvidas na entrevista, assim não
há termos como ator, informante ou objeto de pesquisa, visto que as pessoas não foram procuradas
para a obtenção de informações, mas para colaborarem com o processo de trabalho do pesquisador
compartilhando suas experiências de vida. Idem, p. 28.
13
Essa forma de trabalho foi nutrida pela leitura de Braços da Resistência de André Castanheira
Gattaz, onde o autor, a partir de onze depoimentos de história oral de vida, trabalha com os
depoimentos dando coerência a cada verdade individual e buscando a verdade coletiva da colônia
de entrevistados. GATTAZ, André Castanheira. Braços da Resistência: uma história oral da
imigração espanhola. São Paulo: Xamã, 1996. p. 15.

11
surgiu através da história do rompimento com grupos políticos de esquerda por causa
da referida identidade, há ainda as histórias que buscam elos com a participação nos
partidos políticos de esquerda e em outros movimentos sociais, há também as
narrativas que imprimem um tom de transição contada pelos colaboradores que
migram de outros movimentos sociais para o movimento homossexual e finalmente
os depoimentos que recuperam especificamente a trajetória dentro do movimento
homossexual. Desta riqueza de posturas recuperadas através das narrativas floresceu
a idéia sobre a interpretação das origens deste nível de diferenciações.
Conhecendo as especificidades das formas assumidas pelas narrativas, prestei
atenção a construção do segundo ponto que surgiu com o índice temático. Esse ponto
está relacionado ao panorama histórico tecido pelos colaboradores para dar dinâmica
às histórias de vida. A existência de semelhanças e diferenças - como aquelas
definidas pela idade e origem do colaborador - esboçou a descoberta de duas
gerações no conjunto composto pelos entrevistados, as quais durante a juventude
estiveram sintonizadas com alguns fatos tão marcantes em suas trajetórias pessoais
quanto na história coletiva.14
A geração mais velha recupera impressões a partir dos anos sessenta, tecendo
referências à contestação cultural vivida tanto no exterior, devido a origem dos
colaboradores nascidos no exterior e dos brasileiros que fizeram seus estudos fora do
país, quanto no Brasil por causa da aproximação dos círculos culturais
especificamente ligados às áreas de cinema e teatro.
O clima experimentado face à ditadura militar brasileira ajuda a delinear
diferentes experiências recuperadas pelos colaboradores. O auto-exílio foi
considerado uma das portas de saída à repressão vivida pelo país, lançando alguns
dos colaboradores na efervescência cultural ocorrida nos Estados Unidos e em países
europeus, onde permaneceram durante o período que estiveram fora do Brasil. Por
outro lado, a permanência de outros gerou histórias que se dividiram entre a

14
Idem, p. 9.

12
perplexidade de alguns face à repressão promovida pela ditadura e a indiferença que
assumiu o tom mais evidente na narrativa de outros. Esses relatos surgem através de
experiências que precedem a abertura do regime ditatorial brasileiro.
A geração mais jovem começa a conjugar os relatos sobre a trajetória pessoal
com a história coletiva a partir do final dos anos setenta, justamente sobre o período
da abertura política, somando suas impressões às da geração mais velha. Desta
forma, o tom da análise busca conjugar as histórias individuais com o panorama
histórico que reflete a história do grupo de colaboradores.
A concentração de elaborações sobre o jornal Lampião da Esquina nas
narrativas constitui a maior parte do índice temático, isso tornou necessário a
inclusão de um capítulo dedicado a essa publicação. Este dado não é surpreendente,
visto que ao dar as referências, falar sobre a idéia original do projeto, os
colaboradores incrementaram sua história de vida neste aspecto, revelando o nível de
relação e a trajetória vivida face ao Lampião. Os colaboradores recuperam
impressões a partir do surgimento da imprensa nanica no país. Neste ponto, o
encadeamento com o capítulo anterior compõe parte importante, pois a história do
grupo aproxima-se da história do Lampião enquanto periódico da imprensa nanica,
revelando suas expectativas em relação a essa publicação. Neste capítulo cortejo as
histórias de vida com a bibliografia referente ao fenômeno da imprensa alternativa e
à trajetória do jornal Lampião.
A próxima confluência está nas considerações sobre a relação ou participação
no movimento homossexual. Este quarto ponto constitui a segunda maior parte do
índice temático. Sob este aspecto, as posições que os colaboradores adotam perante o
movimento homossexual puderam ser retomadas através da lógica das suas
experiências, apreendidas durante as trajetórias e elaboradas nas narrativas. Desta
forma, é possível visualizar que os desdobramentos, relatados pelo conjunto de
vidas, estão ligados aos três pontos elaborados nos capítulos anteriores: a forma
como elaboram sua relação com a identidade homossexual; a história pessoal

13
referendada pelo panorama histórico que dá dinâmica as narrativas e as expectativas
geradas pelo Lampião. Daí é possível buscar entender a trajetória do grupo com a
origem e o desaparecimento do Lampião, os cismas e as aproximações das atividades
de militância adequadas às trajetórias de vida, a crise e a reestruturação dos grupos
homossexuais provocada pelo final da efervescência política vivida pelo Brasil
durante a fase da abertura política e pela origem da AIDS.
Após a elaboração da trajetória deste conjunto de vidas, não pude deixar de
prestar atenção ao diálogo que aparece nas entrelinhas das narrativas. Enquanto
elaborava o índice temático afluiu um debate entre os colaboradores, executado no
plano das narrativas. Este diálogo ocupa o último capítulo, pois somente após a
categorização e a trajetória do conjunto é possível entender a atualidade dessa
discussão que se desdobra no espaço do presente.

Apresentação das Entrevistas Transcriadas.

Na segunda parte da dissertação, desenvolvi dois itens: no primeiro apresento


uma reflexão sobre a origem e a constituição das redes de entrevistas e no segundo
apresento a forma de trabalho com as entrevistas.
No que se refere ao primeiro item, tratam-se de dois processos de formação
das redes que se justificam tomando como base a proposta original do projeto. A
opção em iniciar um segundo ciclo de depoimentos se deve às considerações sobre o
papel que o Lampião ocupa nos relatos elaborados pelos membros da primeira rede.
No final desse item apresento um quadro com as informações técnicas, cuja
elaboração evita a construção de um texto, na maior parte das vezes repetitivo, com
informações sobre o nome do colaborador, local e data do nascimento, idade à época
da gravação, local e data da gravação, tempo da gravação, indicação de nomes para
contatos e notas de rodapé com informações sobre situações específicas
experimentadas durante a gravação e sobre a impossibilidade de alguns contatos.

14
No segundo item faço uma breve reflexão sobre o trabalho com as entrevistas
de história oral de vida, revelando como acontece o processo de transformação da
linguagem oral para a linguagem escrita, assim como faço referência ao
compromisso ético assumido com o colaborador para que a entrevista reflita a
imagem que ele quer deixar para o público leitor. E finalmente surgem as
transcriações organizadas em cinco sub-redes, onde estabeleci um critério de
apresentação baseado na relação que os colaboradores mantiveram com Lampião da
Esquina.

3. No Tocante ao Título...

Diante do universo de experiências recuperadas pelas histórias de vidas -


revigoradas no ato da gravação - os sonhos dos colaboradores refloresceram com um
tom vicenal. Cada vez que debrucei sobre as narrativas, lendo sobre a Contestação
dos anos sessenta, o movimento hippie, a fuga da ditadura militar através do auto-
exílio, as esperanças depositadas na abertura do regime militar e nas páginas do
Lampião... essa idéia de transformar alguns sonhos em realidade tomava conta da
minha imaginação. Esse encontro acabou se conjugando com o próprio trabalho de
história oral de vida, através do qual ouvia as narrativas para reinventá-las através
das transcriações. Foi assim que numa iluminada conversa com o Professor José
Carlos chegamos à uma idéia sobre o título: Reinventando o Sonho: história oral de
vida política e homossexualidade no Brasil contemporâneo.

15
PARTE I

Capítulo 1 - Um Conjunto de Vidas.

1. O Perfil dos entrevistados...........................................................................................19


2. As Trajetórias Profissionais.......................................................................................22
3. A Primazia do indivíduo.............................................................................................28
4. Os Rompimentos com o Absoluto..............................................................................33
5. A Aliança com o Coletivo............................................................................................39
6. Em Tom de Transição.................................................................................................43
7. Os Vínculos Específicos...............................................................................................50
8. O Esboço de uma Trajetória Coletiva.......................................................................55

Capítulo 2 - Um caminho tortuoso até a “Contestação Política”

1. A Revolução dos Costumes.........................................................................................56


2. A Nova Esquerda.........................................................................................................61
3. Repressão Política no Brasil.......................................................................................63
4. Efervescência Cultural & Desbunde..........................................................................67
5. A tolerância retocada: Ditadura & Homossexualidade...........................................71
6. Em defesa da unidade Oposicionista.........................................................................74
7. A Fuga através do Auto-Exílio...................................................................................78
8. As Notícias do Movimento Homossexual..................................................................80
9. A Volta dos Exilados...................................................................................................81
10. Os Frutos do Período................................................................................................82
11. Influência da ‘abertura’............................................................................................84
12. O Percurso está preparado.......................................................................................86

16
Capítulo 3 - Lampião: O Lugar dos Sonhos.

1. As Vozes Telúricas: o papel da imprensa alternativa..............................................88


2. Uma Fraca Cortina de Fumaça...............................................................................92
3. Um Início Difícil: o Estado contra o Lampião...........................................................97
4. Atentados a Bomba: outro reflexo do período..........................................................98
5. Em Nome de Todos: um jornal e duas vozes..........................................................100
6. As Novas Vozes..........................................................................................................102
7. As Vozes se Multiplicam: Lampião e movimento homossexual............................106
8. Os Argumentos Preponderantes..............................................................................108
9. Os Interesses Cruzados.............................................................................................109
10. A reestruturação próxima do fim..........................................................................111
11. Um despertar turbulento........................................................................................113
12. O eixo Rio-São Paulo e o Pêndulo Brasiliense......................................................115
13. O Final do Sonho.....................................................................................................117
14. O Projetor de Sonhos..............................................................................................120

Capítulo 4 - Os Herdeiros do Sonho: trajetórias no movimento homossexual.

1. Antes do Despertar, as Festas...................................................................................122


2. As Vozes Multiplicadas.............................................................................................126
3. A divisão das Vozes...................................................................................................128
4. Duas Versões: Racha ou Retirada?.........................................................................137
5. As Vozes Femininas se despedem.............................................................................139
6. Os Espaços de Silêncio..............................................................................................141
7. Os órfãos do Lampião................................................................................................144
8. Às vésperas do Caos..................................................................................................147
9. A Nova Ordem: as vozes perenes do sonho.............................................................152
10. Lapidar o Sonho até gerar a História....................................................................156
11. As Histórias de Vida conjugam Sonhos.................................................................157

17
Capítulo 5 - Em Razão do Sonho.

1. Os Pólos Positivos.....................................................................................................159
2. Um Debate Pululante................................................................................................161
3. Contra o Mito da Tolerância....................................................................................165
4. Outra Possibilidade de Reflexão..............................................................................168
5. A Identidade de Cristal.............................................................................................170
6. Um Diálogo do Presente............................................................................................174

18
Capítulo 1
Um Conjunto de Vidas

“Do muito caminhar sobrou-me - e sinto que


isto já é alguma coisa - a consciência de saber
que o meu corpo continuará buscando uma
razão para o seu conteúdo. Mas que nome
posso dar, ou de que forma, mesmo abstrata,
posso moldar essa coisa a que chamo de EU?”
Darcy Penteado15

1. O Perfil dos entrevistados.

O trabalho com história oral de vida abriu caminhos ao entendimento dos


valores e significados atribuídos pelos colaboradores às experiências que viveram
em nível individual. O percurso da narrativa tem origem na infância e caminha até a
avaliação contemporânea de suas vidas. A organização preliminar do conjunto de
vidas representa o primeiro passo para a compreensão da forma como os
colaboradores recuperam uma auto-representação com o passado. Essa opção em
compreender os modelos foi fundamental para o entendimento dos desdobramentos
da história do grupo, pois a dinâmica afluiu do diálogo que os colaboradores
exercitam a partir do valor depositado sobre suas trajetórias pessoais.
Do universo de dezessete entrevistas serão apresentadas dezesseis, pois a
textualização de Jean Claude Bernardet ainda está em processo de discussão sobre a
imagem final que ele quer deixar registrada pelo texto. Este número de entrevistas,
contudo, possibilita a análise que será desenvolvida nos capítulos seguintes.
A categorização é necessária para estabelecermos algumas formas que os
entrevistados escolheram para dar sentido à compreensão da própria história,

19
reconstruindo versões que foram evocadas durante o momento da entrevista.16 Cada
narrativa está ligada a um personagem singular, cuja biografia não é uma rígida
transcrição de todos os fatos vividos, mas reinvenções pessoais das próprias
experiências. A pessoa entrevistada seleciona e organiza certos temas que ganham
uma versão particular.17 É preciso prestar atenção à maneira como o colaborador
interpreta, em função da singularidade do depoimento, certos aspectos da realidade
vivida. Deve-se, portanto, empreender uma análise que privilegie a organização
formal da história de vida, reconhecendo nela a importância de determinados fatos, a
valorização de espaços narrativos e a velocidade do discurso narrativo.18
A partir das dezesseis entrevistas analisadas é possível notar o encadeamento
entre a trajetória de vida e a história de vida. A valorização de um determinado nível
paradigmático, como dominante na periodização da narrativa, esteve associada à
origem regional, aos fatos familiares e nacionais vividos pelo colaborador. Esta
escolha de um eixo temático, associada à velocidade e à forma do discurso,
constituem as formas de reconstruir a narrativa.
A relação com a identidade homossexual representa um dos pontos sobre os
quais florescem considerações, não há consenso sobre o referido termo. Aqui é
preciso buscar apoio no trabalho de Marta Gonçalves,19 no qual a autora recupera a
utilização de diferentes termos relacionados à homossexualidade.
Marta Gonçalves dialoga com Sapê Grootendorst, autor ocupado em mapear a
existência de uma literatura gay no Brasil,20 quando este propõe que gay e
homossexual são dois termos quase idênticos no Brasil. Grootendorst recupera a

15
PENTEADO, Darcy. Menino Insone. São Paulo: Ed. Soma Ltda, 1983.
16
GATTAZ, André Castanheira. Op. cit., p. 16.
17
Idem, p. 17.
18
Idem, p. 19.
19
GONÇALVES, Marta. A Folha de S. Paulo e o Projeto 1.151/95 que Disciplina a união Civil
entre pessoas do mesmo sexo. Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do bacharelado em
Sociologia e Ciência política. São Paulo: 1996.

20
idéia que o uso do termo gay nos Estados Unidos refere a ambientes politizados,
enquanto no Brasil o fato da palavra ser facilmente substituída por homossexual
denota que gay não possui a mesma conotação emancipativa.21
Para responder à afirmação de Grootendorst, Marta Gonçalves recupera o
ensaio de Peter Fry e Edward MacRae - O que é homossexualidade -,22 para explicar
que o termo “bicha” era recorrente na linguagem dos primeiros militantes, tanto para
esvaziar seu conteúdo pejorativo quanto para servir à emancipação do movimento
homossexual, enquanto o termo gay foi desprezado por conter uma conotação de
aceitabilidade social.23
A autora reconhece que o termo “bicha” não foi assimilado, fracassou em
seus objetivos, em contraponto ao termo gay que passou a ser amplamente aceito:
tanto pelos sujeitos que prosseguiram no movimento homossexual quanto pelas
pessoas que não eram desse meio, mas o utilizaram como forma de categorização
das relações sociais. Ela atribui esse desdobramento ao processo de normalização da
questão da homossexualidade no decorrer dos anos oitenta.24
A reflexão apresentada por Marta Gonçalves foi importante para expor os
diferentes níveis de relação tecidos para os termos bicha, gay e homossexual. A
utilização dessas palavras também emerge nas narrativas, porém os significados
mudam substancialmente quando expostos à luz das histórias de vida. A organização
das histórias de vida tem como referência as especificidades da vivência do
homoerotismo, cada colaborador possui uma versão sobre a percepção da identidade
homossexual no desenvolvimento de sua trajetória.25

20
GROOTENDORST, Sapê. Literatura Gay no Brasil?: as entrevistas com dezoito escritores
brasileiros sobre a temática homoerótica. Tese de Qualificação do Depto de Português da
Universidade de Utrecht. Setembro de 1993.
21
Idem, p. 8.
22
FRY, Peter & MACRAE, Edward. O que é Homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1983.
23
Idem, p. 24-25.
24
GONÇALVES, Marta. Op. cit., p. 24.
25
Neste parágrafo utilizei o termo Homoerotismo de Jurandir Freire Costa com o objetivo de
preservar a riqueza de significados construídos pelos colaboradores sobre a identidade

21
O nível de relação que os colaboradores tecem em relação ao jornal Lampião,
em cujas páginas escreveram enquanto intelectuais e jornalistas, e as impressões
sobre as origens e o desenvolvimento do movimento homossexual no Brasil sugerem
aspectos que foram retomados em cada um dos depoimentos. A partir destes pontos
pode-se perceber como ocorre essa interligação entre a história vivida e a história
contada. Para contemplá-los é possível estabelecer algumas definições sobre o olhar
que os entrevistados têm sobre a própria vida.

2. As Trajetórias Profissionais.

Há o grupo que orienta a construção da narrativa através da experiência


profissional. Esta caracterização é importante porque o conteúdo destas entrevistas
transmite uma versão exemplar da ascensão e do amadurecimento progressivo com o
ofício. Nestas narrativas o referente espacial é representado pelos locais de trabalho,
o entrevistado organiza os fatos e as datas pautando-se pelos empregos pelos quais
passou. Outro aspecto importante, as realizações enquanto pessoa não estão no
compromisso político, mas acontecem a partir do trabalho individual que
executaram. Nesse grupo estão presentes as narrativas de Celso Curi, Alceste
Pinheiro e José Fernando Bastos.
A história de Celso Curi é a história do movimento e da diversificação no
campo profissional, ao qual é estendida a idéia de trabalhar por prazer e não por
obrigação. O bom humor surge como uma marca enfatizada pelo colaborador. A
idéia de ascensão social também está presente. Ela é construída sobre projetos de
trabalho ligados a homossexualidade que lhe trouxeram muito êxito ao invés de se
tornarem transtornos. A diversificação do ramo de atividades profissionais perdura

homossexual. Porém, é preciso ressaltar que o autor evita utilizar a palavra “homossexual’, pois
considera que o termo carrega uma conotação pejorativa e fomenta a divisão dos seres humanos
em normais e desviantes. COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Vício: estudos sobre o
homoerotismo. Rio de Janeiro; Relume-Dumará, 1992.

22
tanto na forma narrativa quanto na pontuação cronológica de sua história de vida. O
nascimento e a vida familiar têm descrição muito breve, prevalece a idéia do ritmo
do trabalho intenso, principalmente no se que refere a sua relação com o meio
jornalístico desde a adolescência.
Em 1972, Celso Curi partiu para a Alemanha, onde trabalhou como faxineiro,
entre outras atividades que define como as de um “exilado por vontade própria”,
pois optou por esse caminho para fugir à repressão gerada pela ditadura brasileira. O
motivo do seu regresso, antes de completar um ano de auto-exílio, é descrito de
forma cômica: está ligado à perda do passaporte. No Brasil, Celso Curi é
apresentado pelo jornalista Dário Menezes a Samuel Wainer - diretor do jornal
Última Hora - e é contratado para trabalhar como assistente de colunista. Em um ano
ascende à função de editor de um dos cadernos do jornal.
Nesta etapa da história Celso Curi se detém em contar sobre o projeto de uma
coluna sobre homossexualidade no jornal Última Hora chamada Coluna do Meio.
Ele comenta sobre como a idéia foi exposta a Samuel Wainer e sobre a reação de
perplexidade dos colegas de trabalho quando souberam do tema que seria tratado.
Face à aprovação do diretor do jornal, Celso Curi evoca a história de ter consultado
os pais sobre a idéia de tornar-se editor de uma coluna sobre homossexualidade. O
fato dos pais se preocuparem com a possibilidade do filho sofrer execração social é
amenizada pela idéia sobre como conseguiu projeção social com esse trabalho e
através do qual os membros do Lampião vieram a convidar Celso Curi para se tornar
colaborador deste jornal da imprensa alternativa.
“[...]considero-me um privilegiado, pois tudo que tenho
à mão adquire um brilho especial. O principal fator para
meus projetos se concretizarem é o prazer com que os
realizo. A Coluna do Meio levou as pessoas a me
enxergarem de forma diferente. Elas me convidavam
para qualquer evento, formal ou não... o que foi muito
importante. Essa varinha de condão tocava em todos os
meus trabalhos... me proporcionando sempre muito
destaque.”

23
Celso Curi apresenta sua breve relação com o movimento homossexual para
explicar que não se identificava com as discussões encaminhadas, também enfatiza
que não convocava ninguém a fazer o mesmo no Brasil: primeiro por não haver uma
legislação contra a prática homossexual; segundo por considerar que no decorrer dos
anos setenta o problema devia ser trabalhado na esfera íntima. No Brasil, segundo
sua maneira de apreciar a questão, o problema do homossexual era destruir a
repressão interna que acreditava ser maior do que a externa.
O trabalho da Coluna do Meio servia como uma etapa inicial para destruir a
culpa interna, sem este pressuposto ele sugere que não havia como iniciar um
movimento. O espaço que Celso Curi conseguiu no jornal Última Hora foi o
caminho escolhido para fazer esse trabalho, ressaltando seu papel como simples
divulgador de informações sobre o meio de freqüência homossexual:
“Claro que tudo era feito com muito humor, numa
grande farra, porque não era o caso de ninguém ficar
chorando. Nós não tínhamos companheiros assassinados
porque eram homossexuais... não era essa a nossa
realidade. Nem presos políticos por causa da opção
sexual. Eram companheiros presos a si próprios, por
vergonha de assumir a própria sexualidade. Percebi que
se jogava o problema para a sociedade resolver e a
resolução não caminhava neste sentido. Não podia haver
uma vivência homossexual, caso não houvesse um auto-
reconhecimento da própria homossexualidade.”

A história de Alceste Pinheiro é dedicada à comparação entre gerações,


descrevendo transformações observadas no decorrer de sua vida. Aqui também a
experiência profissional é o fio que conduz a construção da narrativa. O
conhecimento sobre o ofício de jornalista é um recurso que o colaborador utiliza
para tecer seus comentários. Grande parte das idéias advém de suas impressões sobre
a carreira profissional.
Alceste Pinheiro dedica grande parte da narrativa à evolução de seu
conhecimento na área profissional. Ele enumera os jornais pelos quais passou,

24
enfatizando a idéia que sempre trabalhou em grandes empresas. Em 1979, afasta-se
da grande imprensa e atua como free lancer na imprensa alternativa, especificamente
no jornal Lampião. Neste tópico, a reflexão se demora sobre o desempenho
mercadológico da publicação: Alceste Pinheiro sugere as preocupações de um
empresário.
“Hoje percebo que nós não possuíamos nenhuma idéia
de mercado. Não nos preocupávamos com isto. Os
jornais que vieram, passaram a utilizar o correio
sentimental como fonte de renda, como percebo nesses
jornais que pego de vez em quando. Então se manda a
carta para lá, pagasse uma quantia e a carta é publicada.
Depois a pessoa que se interessa pelo anúncio escreve
para o jornal, paga outra quantia para receber a carta
desejada. É um negócio que em termos gerais funciona
assim. Atualmente existe uma firma em São Paulo que
faz cadastro para casamento e a vinculação neste serviço
é paga. Desta forma, nós não tínhamos idéia acerca
disso, em parte por causa da formação[...]”

Alceste Pinheiro considera o anarquismo mais atraente às suas convicções


políticas. Ele acreditava ser perda de tempo atuar junto a grupos políticos. Porém,
explica que esteve presente em manifestações públicas que marcaram os anos setenta
e oitenta, mas nunca se juntou a nenhum grupo homossexual ou partido político, por
não se simpatizar com os métodos de atuação das esferas coletivas. No período da
ditadura nunca se sentiu ameaçado porque não estava engajado em nenhuma
organização. Explica que nunca foi preso e nem molestado devido ao fato de ser
homossexual. Os comentários exploram a idéia da inexistência de uma política
pública contra homossexuais. Ao seu modo de ver, eventualmente um homossexual
podia se defrontar com situações atomizadas de preconceito.
A resolução dos problemas sociais enfrentados por homossexuais ganha outra
análise. Alceste Pinheiro sugere que a melhoria da situação do homossexual se deve
a luta desencadeada pela Contracultura. A melhoria de condições para os

25
homossexuais surgiria no âmbito geral de lutas sociais desencadeadas nos anos
sessenta, contra o racismo e pela liberdade sexual.
“A questão da luta homossexual, na verdade, deve
passar por uma luta em favor da dignidade do ser
humano, do direito pleno da pessoa ser como ela é. Não
da defesa de uma especificidade a duras penas. Isso me
parece pouco sério e me leva a não concordar com tal
atitude. Mesmo assim há pessoas que defendem este
propósito, mas não acredito que nenhum movimento
tenha me dado algo, ou tenha feito minha vida mais
feliz, ou tenha melhorado as minhas condições como
homossexual: não fizeram absolutamente nada!!
/Ninguém tem que ser aceito por ser ou deixar de ser
homossexual, tem que ser aceito como um ser
humano.[...]”

O trabalho como jornalista também constitui o principal eixo de organização


da história contada por José Fernando Bastos. A atividade profissional é evocada
para apresentar suas reportagens que causaram mais polêmicas, tanto pelo ineditismo
como pelo fato de colocá-lo em situações conflituosas com o sistema legal brasileiro.
O entrecruzamento com grandes fatos que marcaram a imprensa brasileira é usado
como recurso para dar dinâmica à construção da narrativa.
A história da migração de sua família de Salvador para o Rio de Janeiro serve
de suporte para expor essa característica:
“[...] Na época tinha entre oito e nove anos, quando vi
já estava em Copacabana! No Rio, três fatos marcaram
minha chegada: primeiro, foi a morte da Aída Curi,
quando a jogaram de um prédio, foi o maior escândalo
no Brasil inteiro; segundo, foi a conquista do primeiro
campeonato mundial de futebol do Brasil na Suécia... o
terceiro acontecimento!? Foi qual meu Deus!? Entre
1957, 1958!? No momento só recordo desses dois!! A
morte da Aída Curi aconteceu num prédio em que eu
havia morado... foi parecida com o assassinato da
Claudia Lessin!”

26
Ao categorizar a classe econômica de sua família, explica que pôde receber
um bom estudo. No período de faculdade se refere à primeira vez que foi preso por
ter um breve envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro:
“[...] Fui preso com pessoas bastante conhecidas hoje
em dia, uma delas o ator Buzza Ferraz, filho do armador
Hélio Ferraz, outra o embaixador Hugo Gutier, a cantora
Joyce, a Bali (irmã da Ciça Guimarães), pessoas que
foram presas junto comigo quando a PUC foi invadida.
Nós fomos todos presos na mesma leva.”

José Fernando Bastos forma-se em direito e deixa o Brasil para empregar-se


na BBC em Londres, enfatizando que começou a trabalhar numa rede de notícias
onde as pessoas costumavam acabar a carreira. O retorno ao Brasil é sugerido com
um tom irreverente:
“[...] Durante esse período [em que trabalhava na BBC],
um inglês descobriu que o Ronald Biggs estava no
Brasil. Fizeram uma entrevista com o Biggs, ilustrada
com fotos de Copacabana, Ipanema e Leblon! Na época
desta reportagem, a temperatura estava menos oito graus
na Inglaterra, então, no outro dia, comprei minha
passagem de volta para o Brasil.”

No Brasil, começa a trabalhar em jornais e detém-se sobre as reportagens


responsáveis por polêmicas e repressões que marcaram sua história de vida. Esse
histórico prepara a explicação dos motivos que o levam pela segunda vez à prisão:
“[...] Fui preso pela segunda vez, quando o ministro
Ângelo Calmon de Sá, hoje o famoso ex-dono do Banco
Econômico, viajou para o exterior. Então, coloquei num
jornal: “- Esperando por ele no Brasil estão Ali Babá e
os outros trinta e nove”. A polícia me prendeu, queria
que me retratasse. Desta vez, levei muito soco na orelha
e fui registrado no DOPS.[...]”

O contato com o Lampião acontece através de um convite de Aguinaldo Silva


que conhecia o trabalho de José Fernando Bastos como crítico de teatro e de música.
A narrativa novamente é dedicada à apresentação das reportagens que causaram

27
polêmica ao serem publicadas no Lampião, assim como em categorizar a função
desse periódico como um jornal que defendia as minorias em geral:
“Gostaria de deixar bem claro, embora o Lampião fosse
taxado como jornal gay, na verdade era um jornal que
defendia minorias: o homossexual, a mulher, o negro, o
aleijado. Eu mesmo fiz uma matéria com um anão... foi
a matéria mais difícil que já fiz na vida! [...] O Lampião
era tão porta-voz do movimento homossexual, quanto
do movimento negro, do movimento homossexual, dos
deficientes físicos. [...]”

3. A Primazia do Indivíduo.

Essa expressão tem um significado emblemático, pois caracteriza as


narrativas pautadas pela defesa da individualidade. O confronto pessoal com o
sistema coletivo pode ser observado nas linhas que tecem contrapontos à
participação em grupos ou em partidos. Os comentários ácidos são endereçados aos
limites impostos pelos grupos em nível de atuação política, a primazia do indivíduo
parece o último ponto de resistência à possibilidade de expressão de aspectos da
intimidade. Neste grupo apresento as narrativas de Roberto Piva, Glauco Mattoso e
Peter Fry.
Na origem da construção textual de Roberto Piva está o questionamento aos
discursos elegidos como competentes. A referência ao esoterismo (xamanismo,
candomblé, ufologia) é apresentada para expressar os limites do absolutismo
imposto pela ciência. Outro ponto refere às leituras que o colaborador realizou
durante a vida, a citação das obras e de autores compõe um diálogo que é retomado
para engrossar os argumentos elaborados durante a narrativa:
“Não conseguia me conformar com aquele ensino
positivista. Se eu soubesse até hoje a geografia que
estudei teria de desaprender tudo sobre os países... desde
aquela época eles já mudaram diversas vezes. Os
parâmetros da minha visão de história estão ligados a
Toynbee e Spengler. Eles afirmavam que toda a história
começa com um mito religioso poderosíssimo até o

28
período de cisma das civilizações que coincide com o
período técnico. Assim que as civilizações saem daquela
epifania, elas saem fora do numinoso para cair no
mundo profano. Quando esse mundo não está mais
relegado a uma visão do sagrado, as civilizações
declinam.[...]”

As experiências de Roberto Piva expressam o desconforto face à


intelectualidade brasileira. Ele acredita que o positivismo e o esquerdismo
promovidos no meio acadêmico retardaram os intelectuais brasileiros em chegar na
desagregação da Ciência que entende ser uma das religiões monoteístas. Esse
combate vai se desdobrar num ataque às esquerdas partidárias, definidas como
profanas, e em comentários favoráveis ao regime monárquico, cuja forma de
governo justifica seu posicionamento libertário:
“[...] Eu acredito que o povo brasileiro tem no seu
inconsciente a monarquia. Um regime político que
devido à extrema verticalização da cúpula permite uma
maior anarquia das bases. Na Espanha, por exemplo, um
garoto de treze anos já é considerado maior para
qualquer atividade sexual. A maconha é livremente
consumida. Na Holanda todas as drogas são permitidas.
[...] Apesar da monarquia manter uma maior anarquia
das bases, mantém ao mesmo tempo a imagem do
sagrado. O Brasil é uma civilização jovem e
aristocrática que corre risco caso continue ouvindo os
comunistas... essa sucata que acabou no mundo inteiro e
parece que todos vieram para o Brasil.”

Roberto Piva recupera o avanço da segmentação social quanto comenta sua


visão sobre a sexualidade. O colaborador enfatiza a ausência de modelos para o
comportamento sexual quando tece comentários sobre os anos sessenta, discernindo
a experiência cultural do Brasil em relação aos Estados Unidos. No seu modo de ver,
a comunicação de massa foi a responsável pela imposição de um modelo alheio a
cultura brasileira e que serviria apenas ao consumo de massa: a identidade: gay. No

29
que se refere à instituição desse modelo, Roberto Piva reflete sobre o tratamento
dispensado à pederastia:
“Além de ser perseguido por esse estigma do pessoal de
esquerda, também fui muito perseguido no próprio meio
homossexual pelo fato de gostar de garotos... isso é um
escândalo num mundo onde se gosta de "bofe". O
preconceito contra a pederastia é enorme. Esse pessoal
que me perseguiu em todos os níveis é extremamente
totalitário. Eles chegam ao ponto de determinar que para
ser homossexual tem que gostar não sei de que tipo de
gente./ Eu como os gregos não posso ver pêlos. Eu não
transo com macaco.[...]”

A deficiência visual marca as impressões contadas por Glauco Mattoso.


Desde o início da narrativa, o colaborador ressalta a convivência com o glaucoma e
compõe um eixo coerente que evoca a sucessão de eventos em torno do problema de
visão. A importância dos limites gerados pela doença, assim como a preocupação em
perder a visão, impõe restrições e caracteriza as escolhas que Glauco Mattoso
realizou durante a vida. O olho de Glauco é a principal personagem, quando não
surge em referências explícitas, aparece sublinearmente na tecitura de sua história de
vida:
“A minha memória auditiva e visual é muito boa. Nasci
com um defeito visual grave, o glaucoma. O glaucoma
quando é congênito, como é meu caso, geralmente leva
a cegueira. Estar enxergando ainda hoje é lucro. Já
passei por várias cirurgias. Todas mais ou menos sem
êxito. Perdi a visão do olho direito e o esquerdo está
bastante comprometido. Dessa condição de
glaucomatoso, o portador de glaucoma, tirei o nome de
plume: Glauco Mattoso.[...]”

Enquanto intelectual considera que em nível filosófico é preciso privilegiar o


indivíduo. O relacionamento com o movimento homossexual e com a esquerda
partidária surge através das indagações que faz às esferas coletivas. Ele comenta
como o movimento homossexual nunca chegou à especificidade maior: o indivíduo.

30
Transporta a mesma crítica aos grupos de esquerda que segundo seu entendimento
anula a perspectiva individual. O tratamento desta questão, vista sob o viés
opinativo, ganha forma em seu discurso para advir daí uma conclusão:
“Apesar de ser um intelectual, nunca fui um cara de
esquerda. Nem engajado e nem convicto. Acredito que a
esquerda seja uma espécie de vício intelectual. Uma
vala comum onde os intelectuais caem. E não costumo
cair em valas comuns, pois prezo a individualidade. No
meu entender, a individualidade é quase uma religião.
Minha consciência primeira é a da diferença. Sou uma
pessoa diferente, primeiro porque nasci diferente, nasci
com uma deficiência; segundo porque tendo consciência
dessa deficiência passei a ser diferente por opção. Sou
uma pessoa diferente conscientemente. Não apenas
porque quero ser, mas porque consigo ser. Numa escala
de valores, isso não me torna nem melhor e nem pior
que ninguém. Porém, torna-me distinto das outras
pessoas. Preservo minha individualidade através da
diferença. Como a esquerda privilegia o coletivo, além
de ser um vício intelectual, com o qual a maioria dos
intelectuais está comprometida, distancio-me
criticamente dela.”

Peter Fry conduz a narrativa através de suas experiências enquanto professor


universitário. Após uma breve elaboração sobre sua origem inglesa, organiza um
percurso para explicar a opção pelo curso de Antropologia e privilegia a história da
formação acadêmica. O foco da narrativa é endereçado à primeira pesquisa de
campo que realizou em Zimbabue. Com a observação que os primeiros relatos da
África Central eram de viajantes portugueses, Peter Fry acrescenta a história sobre
sua decisão em estudar português. Os estudos acontecem em Portugal, onde o
colaborador tece uma idealização do Brasil como se fosse uma mistura de Portugal
com a África.
Peter Fry chega ao Brasil em julho de 1970, após constatar que nunca se
adaptara ao próprio país:
“A descoberta pelo Brasil?... foi puro acaso. Surgiu uma
oportunidade de vir para cá. Um dia estava conversando

31
com um amigo, ele é antropólogo - pesquisa índios no
Amapá -, eu estava muito deprimido e perguntei a ele se
era possível dar aula no Brasil. Naqueles dias ele tinha
recebido uma carta dizendo que Campinas estava à
procura de antropólogos. Cortei o cabelo, coloquei um
terno e fui falar com o cônsul geral do Brasil em
Londres. No final das contas, eles me ofereceram um
contrato por dois anos. Larguei tudo na Inglaterra e vim
para o Brasil.”

O segundo ponto tratado na narrativa refere ao trabalho de reflexão sobre a


identidade homossexual. Ele coloca-se a trabalhar como antropólogo e visualiza a
possibilidade de contribuir para a discussão sobre a homossexualidade. Em 1974 vai
aos Estados Unidos participar numa reunião da Associação Antropológica
Americana, conhece intelectuais do mundo acadêmico gay e experimenta virar
militante por um ano, mas descobre que essa atividade em grupo não respeitava suas
perspectivas enquanto indivíduo.
Peter Fry narra como demorou em perceber como não poderia olhar o Brasil
através de sua origem inglesa. No Brasil percebeu uma tolerância que não existia na
Inglaterra. É a partir desse ponto que descreve seu desacordo com os grupos
homossexuais, pois os militantes sustentavam uma postura de identidade sexual sem
prestar atenção às especificidades culturais do país. Com poucas palavras, Peter Fry
elabora com perspicácia a visão que apreendeu no Brasil:
“Os exilados do [hemisfério] norte vêm ao Brasil buscar
um pouco dessa coisa estranha, difícil de apanhar: a
imprevisibilidade, a sutileza, o engraçado e tal; assim
como existem os brasileiros que olham para o
hemisfério norte querendo as coisas mais corretas, mais
organizadas, mais claras, menos ambíguas.”

Quando reflete sobre o período da abertura política, Peter Fry aponta a volta
dos exilados ao Brasil como um fator importante para a transformação da cultura
política. No sentido que uma ampla visão libertária chegava ao país, influenciando o

32
questionamento da legitimidade das posições políticas em relação à luta de classes e
em favor das lutas mais específicas.
A participação das reuniões para a fundação do Lampião é apontada como
uma conseqüência do trabalho que dedicou a reflexão sobre a homossexualidade.
Quando reflete sobre sua participação no tablóide, indica ter considerado
interessante a proposta de um jornal plural que abordasse diferentes campos de
reflexão. Ao seu modo de ver, o Lampião seria um reflexo do que estava
acontecendo em outros países: um jornal brasileiro que acompanhava tardiamente o
movimento mundial de liberação.
O motivo do seu interesse pelo jornal estava no aspecto libertário que afluía
entre as propostas do Lampião. A decepção de Peter Fry surge quando percebe que
esse aspecto libertário não se configurou nos movimentos minoritários, mas na
verdade tornou-se outra forma de opressão. Nesta perspectiva, Peter Fry apresenta-se
como partidário de uma ideologia que dá extrema primazia a liberdade individual e
critica os movimentos com suas palavras de ordem:
“Não sei se escrevi a este respeito no Lampião, mas
publiquei um artigo na Folha de São Paulo que criou
inimizades na época... escrevi um ataque sério ao
stalinismo sexual. Este sempre foi o meu argumento...
estar recusando a cristalização de uma identidade que
arrasava com as outras identidades. Achava que isso não
tinha nada a ver comigo. Essa idéia de criar uma
identidade, a qual elimina ou domina as outras - ao meu
ver - não era interessante. Os outros fazem o que bem
entendem, não quero enfiar nada na goela de ninguém!
[...]”

4. Os Rompimentos com o Absoluto.

As narrativas desse grupo têm em comum a vivência de colaboradores que se


desprenderam da atuação política, pois nenhuma conseguiu ser válida para eles. O
tom de resistência não é misterioso, este grupo suspeita das instituições - partido

33
político, Estado, universidade - depois de passar por experiências no interior dessas
organizações que não contemplaram suas idéias de transformação da sociedade
através da luta política. A reflexão consiste em criticar as organizações e nada pode
existir fora do jogo de considerar-se absolutamente livre. João Silvério Trevisan,
Luiz Carlos Lacerda e João Carlos Rodrigues enunciam aspectos específicos neste
sentido: essas narrativas imprimem um questionamento absoluto a qualquer
estrutura.
O fato de João Silvério Trevisan ter sido seminarista permeia a história de
vida. As experiências vividas no interior de uma instituição educacional religiosa
remetem a dois pontos que são retomados durante a construção da narrativa: a
formação cultural, expressada através da citação dos santos e das passagens bíblicas;
e a referência ao Seminário, cujo espaço narrativo ocupa grande parte de sua história
de vida. O texto de João Silvério Trevisan inicia com a evocação da imagem de São
João da Cruz para contar sobre o nascimento:
“Eu sou de Ribeirão Bonito. Nasci na véspera de São
João, dia 23 de junho de 1944. No hemisfério sul é a
noite mais longa do ano. Eu sou um ser noturno.
Acredito ter alguma coisa a ver com a noite. Não
fisicamente, mas espiritualmente. E também, não no
sentido imediato de ser um temperamento muito lunar,
mas da minha vida ser um pouco esse me debater nas
trevas. A sensação que tenho é a de estar sempre
envolvido na noche oscura de São João da Cruz e de ter
que encontrar os meios de acender os meus palitos, os
meus focos de luz para poder iluminar meu caminho.”

Os questionamentos dos dogmas religiosos ou políticos são importantes para


compreendermos como João Silvério Trevisan re-elabora as decisões adotadas no
decorrer de sua trajetória. A história contada reflete sua crítica ao poder localizado
nas instituições religiosas, partidárias e até mesmo aquelas que ameaçavam se
expressar dentro do movimento homossexual. Ele reflete sobre o fato de que o poder
é algo a ser dissolvido, pensando sobre o direito de apresentar o seu ponto de vista

34
enquanto ser humano que tem uma vivência homossexual. Neste ponto, visualiza o
anarquismo como o meio de expressão do indivíduo contra qualquer agrupamento
instituído:
“[...] eu me rebelei contra a Igreja e contra os partidos de
esquerda - acredito ser absolutamente conseqüente
comigo mesmo -, e me rebelei contra o movimento
homossexual, no momento em que percebi sua
tendência em criar uma crosta de instituição.”

A narrativa de Luiz Carlos Lacerda é marcada em diferentes fases pela fuga à


repressão que os grupos coletivos impuseram à sua individualidade. Essa forma de
apresentar sua história de vida floresce em três pontos: no primeiro quando visualiza
nos grupos de esquerda a repressão da tendência homossexual; no segundo quando
passa a ter experiências com drogas e percebe que estes coletivos dividem o mundo
entre os usuários e os não usuários; e no terceiro quando era participante do Lampião
e tem um artigo recusado por um jornal que ele entendia ser libertário.
O nascimento em 1945, no bairro de Copacabana, onde vivia com a família,
foi palco para o contato com pessoas da área de cinema e literatura. Neste contexto
deu-se sua definição enquanto bissexual. Ao mesmo tempo em que isto ocorria,
estruturavam-se as bases de seu percurso mental consubstanciadas nos três pontos
que organizam a lógica de seu texto. A história do surto esquizofrênico que sua irmã
mais velha sofreu, explica a desestruturação de sua família, lançando Luiz Carlos
Lacerda na solidão. A literatura e a dedicação ao Partido Comunista, por outro lado,
ocupam o espaço aberto com a crise familiar. A participação nessas atividades
caminha paralelamente até Luís Carlos Lacerda lançar seu primeiro conto literário,
num livro apresentado por Walmir Ayala:
“Eu era bem garoto quando fui militante do Partido
Comunista (No livro do Zuenir Ventura eu conto isso!)
Publicaram uma antologia com vários poetas, em que o
Walmir Ayala apresentava a minha parte. Certa vez, saí
de uma reunião do Partido e falei para um dirigente: “-
Saiu um livro de poesias meu. Eu queria te dar!” O cara

35
foi até a casa dos meus pais, meu pai era comunista
também, para eu entregar o livro. Quando ele viu a
apresentação do Walmir, fez um discurso moralista: “-
Ih! Esse cara é um homossexual e não sei o que lá!!!”
Nem falou da minha poesia! Eu fiquei arrasado!!!”

O golpe de 1964 e o desencanto com os grupos de esquerda contribuem para a


elaboração do segundo ponto, cuja história se dedica ao início da carreira
profissional na área de cinema e as experiências que teve com as drogas. Em 1968,
relata que viveu profundamente a Contracultura, morou em comunas com amigos
ligadas à área de cinema. O colaborador destaca o valor da Contracultura como uma
ideologia pautada pela livre expressão do indivíduo. Porém a censura dos membros
da comuna a Luiz Carlos Lacerda, por trazer pessoas que não pertenciam ao grupo,
reforçou sua convicção de que a única saída tinha que ser construída através de uma
maneira própria.
A experiência com as drogas durou de 1968 a 1972, quando Luiz Carlos
Lacerda tem um surto de loucura. Nesse momento revela estar preocupado consigo
mesmo, devido ao caso de esquizofrenia que ocorrera em sua família. A psicanálise
foi apontada como o caminho que o ajudou a estruturar sua personalidade. Nessa
parte da história inicia-se o terceiro ponto, referente à proposta libertária que Luiz
Carlos Lacerda visualiza no Lampião, fator que atraiu sua atenção e o levou a
publicar artigos no jornal. Um desses artigos, contudo, gerou polêmicas com os
membros do Conselho Editorial do Lampião:
“[...] Escrevi um artigo onde colocava que o travesti é a
personificação do preconceito da sociedade
heterossexual com a homossexualidade. Para explicar
melhor, ele se encerra no seu próprio comportamento
sexual, a ponto de chegar a mutilação.”

O artigo elaborado em defesa dos travestis por Darcy Penteado foi


considerado ofensivo por Luiz Carlos Lacerda. Nesse artigo, Darcy Penteado
declarava a inexistência da bissexualidade e a existência do homossexual mal

36
resolvido. Luiz Carlos Lacerda, então, escreve um segundo artigo em resposta a essa
provocação, mas a publicação da réplica foi proibida pelo editor do Lampião:
Aguinaldo Silva. A atitude do principal editor do jornal foi interpretada da seguinte
forma:
“[...] Eles fizeram uma reunião, e o Aguinaldo disse que
não poderia sair porque o jornal também era endereçado
aos travestis. Disse que o pessoal em São Paulo tinha
ficado muito puto e que meu artigo não iria sair de jeito
nenhum. Exatamente como a censura da ditadura, a
censura heterossexual que tanto combatiam. A partir
dessa recusa eu me nego a colaborar com um jornal que
tem um discurso libertário, mas que cerceia a liberdade
de expressão. Por causa disso me afastei, nunca mais
colaborei.”

João Carlos Rodrigues constrói sua narrativa em três fases: na primeira


elabora sua proximidade com os ideais da Contracultura, na segunda recupera esses
ideais através de sua trajetória vivenciada no Lampião; e na terceira reflete sobre sua
produção no período pós-Lampião.
O colaborador conta que à época do nascimento, em 1949, sua família
participava do Partido Comunista Brasileiro, porém a invasão da Hungria, em 1956,
provocou a dissidência de alguns integrantes e os pais de João Carlos Rodrigues
estavam entre as pessoas que saíram do partido. Essa história é retomada para
explicar o nível de relação que o colaborador manteve com essa perspectiva política:
“[...] Ser filho de comunistas é como ser filho de beata,
a pessoa automaticamente é puxada para esta tendência.
Porém, não sou comunista, nem marxista, considero-me
anarquista. Nesse sentido, também tenho um lado de
rebeldia. Sou muito isolado, não gosto de obedecer
nada.[...]”

Os trechos sobre as escolas onde João Carlos Rodrigues estudou são breves.
No curso superior opta por História, mas não conclui a faculdade devido ao receio
do país estar mergulhado numa ditadura militar. Pára os estudos e começa a fazer

37
teatro. Neste ponto, o foco da narrativa incide sobre o movimento da Contracultura.
Em 1972, parte em auto-exílio para os Estados Unidos, onde permanece por um ano
e experimenta a efervescência cultural norte-americana. Quando retorna ao Brasil
atua como crítico de cinema num jornal chamado Crítica. A história do contato com
o Lampião dá inicio a um longo período dedicado a sua trajetória dentro do jornal.
João Carlos Rodrigues retoma os episódios que vivenciou - quando morou em
São Francisco - para explicar que seu objetivo ao escrever no Lampião era baseado
numa postura chamada Coalizão Arco-íris. Nessa perspectiva todos as indivíduos
excluídos do sistema mereciam atenção: mulheres, negros, índios, homossexuais.
João Carlos Rodrigues idealizava a união de todas as especificidades, propagando
uma utopia apreendida em São Francisco. O sonho, contudo, não era suficiente para
anular a existência do preconceito entre os próprios excluídos:
“O Lampião formou opinião sobre várias questões.
Nessa idéia do arco-íris, havia preconceito de umas
cores contra as outras. [...] quando gays e negros
estavam juntos, alguns falavam: “- Ah! Porque nós
temos o mesmo problema!”; então o outro dizia: “Não!
Não temos não!!!” Havia preconceito de preto contra
gay, de gay contra preto, de mulher contra lésbicas.”

A narrativa descreve pontos como a sede do Lampião, as reuniões em que


participou, a função das pessoas que trabalhavam no local, o processo que conduziu
ao desgaste e a extinção das atividades do jornal e, a partir deste ponto, inicia a fase
final sobre sua produção pós- Lampião:
“No Rio de Janeiro, o movimento homossexual sempre
foi gigantesco no passado. Fiz a biografia do João do
Rio, foi o primeiro escritor gay brasileiro, foi publicado
pela Top Books. Assim, levantei toda a obra dele. Desta
forma, é possível vê-lo cobrindo as ruas do Rio de
Janeiro.[...]”

A construção da narrativa se remete aos comentários sobre as atividades


homossexuais desde o começo do século até os anos sessenta. João Carlos Rodrigues

38
sugere que o percurso da identidade homossexual caminha da idéia de maldição para
se tornar um comportamento tolerável. O próximo passo da narrativa é propor a idéia
de que há organizações homossexuais que precedem as dos anos setenta:
“Porém, caso se pense com rigor, será que as pessoas
que se reuniam por causa da Emilinha Borba não
formavam um grupo de gays!? Na verdade era!!
Conheci os membros, fiz um vídeo sobre eles... conheci
Emilinha Borba! São pessoas que se conhecem desde os
anos cinqüenta... até hoje têm clubes! Eles não têm mais
sede, não têm mais nada, mas se reúnem para fazer
festinhas. [...] Do ponto de vista cultural, havia
organizações não politizadas, mas que se formavam com
as características descritas.[...]”

5. A Aliança com o Coletivo.

O próximo modelo identificado nas entrevistas refere aos entrevistados


próximos às instituições, especificamente grupos ligados ao socialismo. Este ponto
requer alguns comentários, pois este posicionamento os afasta dos grupos
apresentados anteriormente. O fio condutor dessas narrativas é a compreensão do
sistema social, tirando dele sínteses para possíveis entendimentos sobre a reserva dos
grupos de esquerda em abordar a discussão da homossexualidade.
Esse grupo relata suas experiências com as organizações de esquerda, numa
reflexão que consiste em criticar suas estratégias não para inviabilizá-las, mas para
apontar problemas em relação ao tratamento da questão homossexual. As narrativas
de Edward MacRae e James Naylor Green compõem esse conjunto.
A história contada por Edward MacRae é marcada pelo ritmo familiar. O
espaço evocado na primeira etapa da entrevista se refere ao ambiente onde cresceu,
quando o colaborador vivia próximo dos avós maternos. A vida dos pais compõe
parte da própria trajetória. Ele inicia a narrativa contando sobre a origem do pai,
escocês que imigra para o Brasil em 1936, e da mãe, brasileira que desde pequena
aprendeu a falar inglês por influência dos pais dela.

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Após essa introdução Edward MacRae elabora a história do nascimento e
explica sua formação bilingüe, a partir desse ponto divide a história em três fases.
Na primeira explica que a questão do bilingüismo o leva a perceber duas esferas
distintas: o ambiente familiar confrontando-se com o ambiente externo. Essa
sensação de divisão reflete sua impressão de viver em dois mundos distintos. Ao
tecer considerações sobre a infância, destaca a dificuldade em encontrar vínculos de
identificação com outras esferas sociais fora do seu lar:
“Quando era pequeno, nós freqüentávamos o clube
inglês. Os ingleses tinham preconceito contra os
brasileiros, falavam mal do povo. Nunca sabia muito
bem aonde me situar. Era brasileiro, minha mãe era
brasileira, meu pai não admitia que se falasse mal da
minha mãe, nem dos brasileiros. Mas neste tempo ele
encapava várias críticas que se faziam aos brasileiros.
Criança é muito conformista, gosta de ser como os
amiguinhos. E eu não era exatamente como os meus
amiguinhos do clube inglês e que estudavam no colégio
inglês em São Paulo. Neste sentido, também tive
problemas porque me sentia um pouco inferior aos
ingleses: “- Era inglês ou não era bem inglês?[...]”

A segunda fase enfoca a fase em que vai estudar na Inglaterra. Nesta parte
conta como se deu a superação dos problemas decorrentes da inadaptabilidade ao
bilingüismo. E a terceira fase é caracterizada pela descoberta da realidade brasileira.
Para tratar a questão homossexual, recorre à época em que foi militante no
SOMOS/SP - primeiro grupo de militância do Brasil -, explica que era simpático ao
anarquismo libertário, contudo, não era anti-socialista, pois acreditava que a questão
homossexual deveria estar ligada a outras questões políticas e de esquerda. Nesta
fase da narrativa explica a postura que adotou em favor da luta contra a ditadura e do
engajamento político. Os comentários de Edward MacRae sugerem um afastamento
crítico, cujo teor fica a meio caminho da posição anti-esquerda:
“Na época em que surgiu a polêmica do SOMOS com os
trotskistas, não pertencia a Convergência Socialista e
sempre desaprovei a intenção de encampar o movimento

40
homossexual. O pessoal da Convergência Socialista
buscava ser aberto, mas nesse procedimento eles
acabavam criando inimizade. Em vez de cooptar, o
efeito era o inverso com os grupos. O pessoal da
Convergência tentava se aproximar porque queria entrar
e dominar. Eu era contra isso, porém ao mesmo tempo
era muito favorável à luta contra a ditadura e ao
engajamento político. Muitas das pessoas do SOMOS
eram completamente anti-políticas e de fato um tanto
quanto politicamente conservadoras.”

Nascido em Baltimore, James Naylor Green desde o início do depoimento


anuncia a importância que os movimentos sociais vão exercer na construção de sua
narrativa. A composição de sua história de vida está intercalada com os grupos de
esquerda nos quais participou. Essa forma de narrar ajuda a compreender o papel que
as atividades de militância ocupam na história modelada pelo colaborador.
Após falar brevemente dos pais e do nascimento, James Naylor Green
recupera um aspecto da infância que, no seu modo de ver, aparece como uma
especificidade em relação às outras pessoas. Trata-se do fato dele ter crescido num
ambiente Quaker:
“Os Quakers faziam parte de um grupo protestante na
Inglaterra, surgido em 1640. As pessoas que o
compunham eram pacifistas, eram a favor da igualdade
social e se recusavam em prestar honra ao rei... por
causa disso, muitos foram presos e sofreram perseguição
religiosa. Posteriormente, fizeram um acordo e
conseguiram terras fora da Inglaterra, fundando uma
colônia nos Estados Unidos - a Pennsylvania - onde,
pela primeira vez, houve liberdade religiosa no Novo
Mundo: qualquer religião poderia ser praticada./ Esse
grupo possuía tradição de se envolver com movimentos
sociais e políticos nos Estados Unidos. [...]”

A próxima preocupação é relatar o conflito que viveu até assumir-se


homossexual. O contato com a politização é um fator preponderante para James
Green escapar dessa circunstância. Ele participa no movimento contra a Guerra do
Vietnã e, posteriormente, toma contato com o movimento feminista e o movimento

41
da Contracultura. A partir dessa época passa a se identificar com as propostas destes
movimentos, adotando o estilo de vida alternativo.
Em 1973 começou a participar do movimento gay. Dirigiu-se para São
Francisco, pois enquanto militante homossexual e de esquerda queria encontrar
pessoas que compartilhassem suas perspectivas ideológicas. Na sua elaboração, o
movimento de Contracultura não poderia ser definido apenas como anarquista, pois
havia organizações influenciadas pela Nova Esquerda internacional, cujo discurso
era referendado tanto pelo marxismo quanto pelo anarquismo.
O interesse pela América Latina se deve a uma idealização: ele acreditava que
um conflito semelhante ao do Vietnã aconteceria em território latino-americano.
Assim, decide aprender espanhol, estabelece contato com pessoas envolvidas com
movimentos sociais e resolve conhecer a América Latina. O colaborador cita sua
breve passagem pela Colômbia em 1976, mas enfatiza os vínculos que estabelece
com o Brasil nesse mesmo ano. James Green só volta aos Estados Unidos quando
expira o prazo do visto de permanência no Brasil.
Em 1978 retorna ao Brasil, onde começa a participar do Núcleo de Ação pelos
Direitos Homossexuais: embrião do grupo SOMOS/SP. Ao mesmo tempo passa a
integrar um grupo trotskista: a Convergência Socialista. Este aspecto foi relacionado
à sua formação de militante nos Estados Unidos. James Naylor Green possuía a
visão de uma transformação real através do socialismo.
Outro ponto - presente na construção da narrativa - está centralizado nas
explicações sobre as posições que adotou em relação ao movimento homossexual
brasileiro. As experiências vivenciadas nos Estados Unidos ajudam a esclarecer sua
dedicação a duas atividades: à politização do movimento homossexual brasileiro; e à
luta contra a homofobia dentro da Convergência Socialista:
“Tinha a visão do diálogo. Insistia com ações concretas
com o Movimento Negro Unificado, para que houvesse
a incidência de diálogo... como ocorreu anos depois na
manifestação do dia de Zumbi. Insistia num diálogo
com o movimento operário, com o movimento sindical,

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com o movimento feminista para que todo mundo se
entendesse nesse diálogo. Fazer isso era uma
proposta.[...]”

6. Em Tom de Transição.

As construções narrativas presentes nesse grupo pautam-se pela transição da


atuação política de um movimento social com perspectiva mais abrangente para
aqueles com perspectiva mais específica. A elaboração da história de vida é
permeada por esta característica, a narrativa consiste em apresentar a emergência de
grupos de atuação mais específicos nos quais os colaboradores começaram a atuar.
Antônio Carlos Moreira, Dolores Rodriguez e Alexandre Ribondi enunciam aspectos
que os aproximam para compor esse conjunto.
A história contada por Antônio Carlos Moreira está apoiada na trajetória de
um militante engajado na atuação junto ao movimento estudantil que passa a
acompanhar e a participar do movimento homossexual. A construção da narrativa
ocupa longos espaços dedicados ao desenvolvimento dos movimentos sociais que
afluíram durante o período da abertura política, para depois compor sua história de
participação nos grupos homossexuais e no Lampião.
Antônio Carlos Moreira nasceu em 1958, na Zona Norte do Rio de Janeiro. A
ênfase que o colaborador coloca sobre a diferença da região onde nasceu em relação
à Zona Sul carioca delineia o percurso de sua trajetória. O primeiro ponto da
narrativa está ligado à formação escolar, para contar suas experiências de estudante
se apóia na idéia da mudança de espaço em nível urbano:
“Resolvi estudar neste colégio na Zona Sul, uma seara
que não a minha.... eu era da Zona Norte!/ No Rio há
uma diferença enorme entre a Zona Sul e a Zona Norte...
isso é muito marcado! Para os habitantes que não são da
Zona Sul costuma-se dizer que é o pessoal do além-
túnel. Há uma forma de comportamento diferente. Isso é
visível no comportamento do adolescente: nos gostos,
no vestuário, no lazer, nas gírias, na forma de andar em

43
grupo, enfim num monte de coisas. Então, consegui
romper com meu espaço onde vivia desde a infância e
comecei a conhecer outras possibilidades, entre as quais
estava a opção profissional.”

Em 1978, inicia o curso superior na área de comunicação e aproxima-se da


MEP - Movimento de Emancipação do Proletariado - que define como uma
organização marxista-leninista. Desde o nível secundário engajou-se em grupos
políticos de esquerda nos locais onde estudou, porém percebia que a questão
homossexual não ser bem aceita nesse meio. Após constatar esse fato, dedica-se a
descrever como conheceu o Lampião, ao mesmo tempo em que ingressou no
primeiro grupo de militância homossexual carioca: O SOMOS/RJ. Nessa fase da
narrativa, Antônio Carlos Moreira intercala as experiências vividas no jornal,
descrevendo sua trajetória de colaborador até redator, com a participação nas
reuniões do grupo SOMOS/RJ. Ao falar sobre a relação do Lampião com o
movimento homossexual, relativiza a discussão da homossexualidade apresentando-
a como um dos temas ao qual o jornal dedicava suas páginas:
“O Lampião surgiu da reunião de pessoas que queriam
se sintonizar com um momento: a “abertura política”.
Ele estava ligado mais na questão do movimento
artístico, da liberação da censura do que a criação do
movimento homossexual. O jornal não articulou os
grupos de militância homossexual porque não era um
espaço para reuniões dedicadas a esse objetivo... ele
nunca promoveu nenhum debate sobre a
homossexualidade. Essa postura era algo que sempre
questionava e achava estranho.[...]”

O depoimento revela uma preocupação que permeia a construção da narrativa:


a falta de registros sobre todo o processo que o jornal e o movimento homossexual
experimentaram durante o processo de “abertura política”. Antônio Carlos Moreira
declara a necessidade dessa história ser preservada e recuperada, comentando as
coleções de documentos sobre a origem dos grupos homossexuais cariocas e do
jornal Lampião que doou a arquivos institucionais:

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“[...] doei tudo que tinha... doei várias coisas do
movimento político para a Fundação Rio, onde tem o
Centro de Cultura Alternativa... na época era
organizado pela Maria Amélia Melo. Doei exemplares
do Lampião, os manuais da campanha da anistia. O
engraçado é que ninguém queria aquele material. Doei
tudo porque já não tinha mais lugar para guardar, era
muita coisa. Sou assim meio traça, adoro papel... vou
recrutando tudo!/ Eu tinha coleções significativas do
jornal. Agora esse material está num lugar onde pode ser
consultado. Fiz questão de fazer uma doação completa
para a biblioteca da ABI, outra para a Biblioteca
Nacional, como forma de se ter o jornal para consulta
em algum lugar.[...]”

A história contada por Dolores Rodriguez também reflete a história de


participação nos grupos homossexuais emergentes, porém destaca um olhar mais
atencioso sobre as mulheres. Dolores Rodriguez orienta a elaboração do texto
lançando idéias sobre a posição que as mulheres ocupam na estrutura social. O
depoimento se apóia em dois pontos: um está ligado à participação minoritária da
mulher no movimento homossexual e no Lampião; o outro refere aos preconceitos
existentes no seio dos próprios movimentos minoritários.
No período da infância e da adolescência recorre à história dos bairros que
morou no subúrbio do Rio de Janeiro, traçando paralelamente alguns comentários
sobre os pais:
“[...] em 1967, meus pais se desquitaram. Durante pouco
tempo, continuei morando em Maria da Graça, porque
naquela época mulher desquitada era vista como
persona non grata!/ Nós nos mudamos de Maria da
Graça e fui morar em Pilares... outro bairro de subúrbio
do Rio. [...]”

Dolores Rodriguez começa a trabalhar aos quinze anos, esse ponto dá


abertura à elaboração sobre a necessidade de independência financeira do lar. O
espaço dedicado a descrição dos locais onde esteve empregada, o relacionamento

45
com os colegas de trabalho, antes e durante a época de faculdade, são aspectos
retomados com o sabor de uma fase agradável das experiências que vivenciou.
No curso superior opta por jornalismo, explica que o hábito de escrever e ler
influenciou sua escolha pelo curso. Quando já exercia a carreira de jornalista foi
trabalhar no Lampião como revisora. No jornal, o contato e o desenvolvimento de
laços de amizade com as pessoas é enfatizado para explicar a atuação no jornal.
A partir deste ponto a colaboradora relata as experiências vividas no
Lampião, assim como reflete sobre o papel do tablóide enquanto órgão gerado na
fase final do ciclo da imprensa alternativa. Dolores Rodriguez vê a tentativa do
jornal como um esforço de se tornar representativo de todas as minorias, mas
considera que o teor de suas páginas direciona-se a um público muito específico.
“A idéia do Lampião era de ser um jornal de minorias,
para discutir a questão do negro, da mulher, da ecologia.
Porém, o jornal não conseguiu conciliar isso, ele se
tornou um jornal voltado só ao homossexual, masculino
e acho que branco.[...]”

A colaboradora apresenta alguns motivos para esse desdobramento, como o


preconceito existente no seio de cada um dos movimentos minoritários. Dolores
Rodriguez observa como as diferenças de classe, de raça, de orientação sexual
inviabilizavam uma prática de alianças dos grupos que surgiram no contexto da
“abertura”. O texto, a partir deste ponto, organiza-se em torno deste problema que no
seu entender estende-se até a contemporaneidade. A experiência dentro do
movimento feminista é convocada para ilustrar suas impressões:
“Infelizmente, uma pessoa que já faleceu, com a qual
militei muito, uma das pessoas mais bonitas que conheci
na vida - se não estou enganada, ela escreveu alguns
artigos para o Lampião -, foi uma professora da PUC
chamada Lélia Gonzalez. Nós participamos de um
encontro feminista no sindicato dos metalúrgicos... na
Ana Neri em São Cristovão!/ Naquela época, lembro
como se fosse hoje, estávamos discutindo a questão da
mulher do campo, da mulher doméstica... da mulher em
tudo quanto é lugar! Entretanto, quando se falava um

46
pouquinho da negra... pronto! nem pensar!! Tanto que
houve uma discussão, num dos grupos, sobre o futuro
das meninas pobres de uma determinada região do Rio
de Janeiro. Uma das mulheres da mesa levantou e falou:
“-Nesse grupo, temos que encaminhar essas meninas
para aprenderem trabalhos manuais, como costurar,
cozinhar...” A Lélia subiu nas tamancas, questionando:
“- Por que? Porque são mulheres pobres!? Por isso é
mais fácil botá-las num curso de corte e costura!? Quer
dizer que se ela é pobre e negra, então vai ser empregada
doméstica!!?” Desta forma, creio que não adianta se
organizar num movimento, caso o mesmo não queira
discutir o problema do outro à sua volta.”

Alexandre Ribondi elabora uma narrativa riquíssima em detalhes, acentuando


tons como a irreverência e a espirituosidade. A história de vida é permeada de fatos
históricos que mantém uma relação com a trajetória pessoal. O depoimento se dedica
as seguintes fases: pais, infância no Espírito Santo, estudos, migração para Brasília,
militância no movimento estudantil, repressão política, exílio (Portugal, França e
Alemanha), retorno do exílio, morte do pai, experiências com o Lampião, reflexão
do preconceito contra Brasília e militância homossexual.
A referência aos pais é elaborada como uma contraposição: o pai representa a
imagem apolínea e perfeita, a qual é retomada em outras fases da sua história de
vida; a mãe representa a imagem desordenada. Na infância, o fato de não ter uma
casa paterna, pois os pais nunca passaram mais de dois anos em cada cidade, sugere
a idéia de desprendimento. Alexandre Ribondi propõe que durante a infância nunca
esteve ligado a uma cidade que ocupasse o ponto de referência, explica que
Cachoeiro do Itapemerim poderia ser tomada como local que mais se aproxima desse
destino.
Após enfatizar a idéia do desprendimento, Cachoeiro do Itapemerim é
localizada para dar inicio a trajetória escolar. Na época dos estudos relata ter sido um
aluno tão inteligente quanto irreverente. O ambiente familiar é retomado para recriar

47
a atmosfera de autonomia que os pais incentivavam em contraponto a disciplina
escolar:
“Dou risadas porque foi o jeito que ensinaram em casa!!
[...] Se o professor falou para fazer, pergunte o por quê!
Se ele não souber explicar, não faça!” Meus pais
ensinavam essas atitudes para nós! Então imagina!!?
Nós chegávamos na escola com a corda toda! O
professor falava alguma coisa, nós dizíamos: “- Não
faço!!”, ele punha de castigo: “- Não fico!!” Isso criava
muita confusão dentro dos colégios.”

Aos quinze anos muda-se para Brasília. A história da mudança para a capital
federal é precedida por uma descrição apologética do ano da fundação da cidade,
assim como pela imagem do pai que romantizava a idéia dos filhos morarem numa
cidade construída a partir do nada:
“Escolhi Brasília porque meu pai sempre foi um grande
poeta. Ele achava a coisa mais linda do mundo uma
cidade construída no meio do nada! Desta forma, filho
dele tinha que morar em Brasília. [...] Quando vim, meu
pai plantou uma árvore e pôs o meu nome nela! Dou
risada porque a árvore existe até hoje!! Vir para Brasília
tinha esse caráter poético... um pouco por causa do meu
pai!”

Em Brasília conclui o curso secundário e entra para o curso de comunicação


na UnB. Começa a fazer teatro, a usar drogas e a fazer trabalho político. A atuação
política, contudo, está mais presente na construção narrativa. Ele sugere que para um
adolescente dos anos sessenta era importante ser de esquerda, envolver-se com uma
atuação política que projetasse uma compreensão maior do contexto histórico e
social. Grosso modo, Alexandre Ribondi enfatiza a idéia do estado de apatia que
recaiu sobre as gerações posteriores às dos anos sessenta e setenta.
Esses recursos de composição da história de vida se tocam e são retomados
com freqüência para demonstrar a heterogeneidade de situações vivenciadas pelo
colaborador. O próximo ponto de considerações de Alexandre Ribondi se refere a

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duas questões: a repressão ditatorial voltada aos opositores do regime; e o
conservadorismo da esquerda no tocante a questão sexual:
“No auge da repressão fui levado para a cadeia, um
lugar comum naquela época... aconteceu tudo! Quando
fui preso nunca me ligaram às pessoas do trabalho
clandestino! Nunca me perguntaram dessas pessoas com
quem trabalhava! Algumas delas viram que eu estava
sendo preso, mas não avisaram ninguém pelo mesmo
motivo: o Alexandre, maconheiro e viado, podia ser
preso, podia ser torturado... não tinha importância!!”

Em 1974 foi libertado da prisão e resolve partir para a Europa, pois passa a
sofrer intimidação da polícia. Alexandre Ribondi relata que teve um choque ao
presenciar a existência de problemas sociais na França. Essa experiência atenua sua
perplexidade com a ditadura brasileira. Depois de passar por Portugal, França e
Alemanha, o colaborador retorna ao Brasil em 1976. Nesse mesmo ano ocorre o
falecimento do pai, cuja dor pela perda altera sua razão de viver. Alexandre Ribondi
larga o jornalismo para dar aulas de inglês:
“[...] Fui dar aula na Cultura Inglesa. Quando o prédio
foi inaugurado, o príncipe Charles estava em visita
oficial pelo Brasil. Ele foi convidado para a inauguração
da escola. Numa hora, fui ao banheiro fazer xixi. De
repente, fui empurrado por um segurança que me
encostou contra a parede!!/ O príncipe foi fazer xixi
naqueles mictoriozinhos. Fiquei olhando o príncipe
mijar, um pouco exprimido contra a parede, mas fiquei
vendo o príncipe mijar enquanto eu fazia xixi. É
engraçado porque isso também é um momento da minha
vida: fiz xixi junto com o príncipe Charles! Ele estava
no mesmo banheiro que eu, ao mesmo tempo, fazendo
xixi!”

Em 1978 estabeleceu contato com o Lampião. A história é elaborada em torno


da descrição do processo de distribuição do periódico nas bancas de Brasília e do
recolhimento dos rendimentos para enviar a Aguinaldo Silva no Rio de Janeiro.
Posteriormente começa a escrever artigos para o jornal, ganha notabilidade e

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conhece os membros do Lampião. A experiência como colaborador no tablóide
prepara sua reflexão sobre o que o Brasil pensa em relação à Brasília:
“Nós que trabalhamos em Brasília - com teatro, com
jornalismo -, não importa o que façamos em qualquer
área humana, rigorosamente não somos aceitos pelo
resto do país!! Não somos mesmo!!! Há um clima de
preconceito que ronda a produção cultural de Brasília, a
qual é considerada de qualidade inferior! Esse
preconceito existe e ao meu ver é muito forte!”

A última fase do depoimento é dedicada a história do primeiro grupo


homossexual organizado de Brasília: Beijo Livre. Alexandre Ribondi enfatiza o
papel de liderança que exercia no grupo, descrevendo as origens do grupo, as
campanhas realizadas durante sua existência e a multiplicidade de pessoas de
diferentes camadas sociais que participavam nas reuniões. A característica mais
ressaltada por Alexandre Ribondi está no teor radical das atitudes do grupo Beijo
Livre:
“Penso que o Beijo Livre era muito radical. O grupo
amedrontava esse equilíbrio precário que existia entre a
sociedade e os homossexuais. Ainda existe uma
tolerância muito precária, aquela do bom gay que as
pessoas dizem: “- Não me conte nada! Eu sei que você
é, mas não me conte nada!!!” O Beijo Livre era contra
isso!”

7. Os Vínculos Específicos.

A elaboração das narrativas, pertencentes a esse grupo, recupera o percurso


das atividades de militância dos colaboradores em um movimento social específico.
A forma de organizar a história de vida baseia-se na postura de enfrentamento com
regras sociais, as quais não observam a diversidade da orientação sexual e tornam-se
responsáveis pela opressão da homossexualidade. Este grupo transmite a idéia de
exaltação com as vitórias conquistadas no plano sócio-histórico. As narrativas de

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Luiz Mott e João Antônio Mascarenhas possuem essa característica, cuja
similaridade permite agrupá-las.
A história de Luiz Mott pode ser dividida em duas fases: a primeira possibilita
recuperar os fatores que o levaram a experimentar a ambigüidade de uma vivência
homossexual clandestina, a narrativa contém o teor da opressão vivida tanto em
nível pessoal quanto social; a segunda esboça os fatos que o conduziram a dedicar
sua vida ao movimento homossexual brasileiro.
No início do depoimento Luiz Mott explora idéias de rebeldia que servirão de
ingrediente e darão a tônica da história de vida. O colaborador relata que desde a
infância possuía um espírito contestador e inquieto, esse aspecto pessoal lhe valeu
um apelido:
“[...] Chico Viramundo. Meus irmãos me chamavam
assim. Não sei se era um personagem que já existia na
época, mas com isso queriam representar um traço
marcante da minha personalidade, ou seja, andar
muito... sou uma pessoa muito curiosa. Já viajei bastante
pelo mundo. Virar o mundo, significava também virar a
mesa. Acredito ter sido sempre uma pessoa
contestadora. Sobretudo, nos últimos vinte anos da
minha vida. Tenho polemizado com uma série de
questões.”

Há dois pontos que sobressaem na primeira fase da narrativa, cujo tom


transparece a descoberta da opressão: o primeiro está centrado na discriminação que
Luiz Mott sofre por parte dos irmãos e também nas atitudes da mãe que o estimula à
atividades ditas masculinas; o segundo é a vivência no seminário - quando decide ser
padre - o que lhe despertará um grande sentimento de culpa no que se refere à
sexualidade. As experiências que Luiz Mott elabora enfatizam a ausência de
modelos durante sua infância e adolescência no tocante à homossexualidade:
“Não tive nenhum modelo homossexual durante toda
minha infância e adolescência. Na minha infância nunca
vi nenhum homossexual. No seminário soube de um
adolescente que fora expulso. Ele foi pego transando
com outro num bananal. De modo que não tive modelos.

51
Lembro do meu professor de história - o ex-ministro
Murilo Ringel - apontar a homossexualidade, ou a
pederastia, como a causa da queda do Império Romano.
Neste sentido, minha visão era de uma homofobia
internalizada.”

Em 1964 altera o projeto de vida inicial, abandona o Seminário, entra no


curso de Ciências Sociais e após concluir a faculdade passa um período na França,
onde fez sua pós-graduação. A vivência homossexual é apresentada como uma
atividade paralela, contudo, declara que ainda não tinha consciência da identidade
homossexual. Na França decide voltar ao Brasil e casar. Esse fato ocorre em 1972. A
partir do quinto mês de casado, morando em Campinas, retoma o que qualifica como
“ uma vivência sexual clandestina”.
Com a aparição do Lampião, começa a ler os artigos sobre homossexualidade
que circulam nas páginas do jornal. Conhece um rapaz numa das aventuras
clandestinas, cujo contato lhe desperta o questionamento sobre a situação de
ambigüidade que vivia e a decisão em mudar de vida: assumir-me exclusivamente
homossexual. Após a separação, cujo processo é apresentado como outra virada que
realiza na vida, ele assume um relacionamento homossexual.
A segunda fase da narrativa inicia-se quando elabora o motivo que o leva a se
tornar militante do movimento homossexual. Com o final do primeiro
relacionamento, decidiu se mudar para Salvador, onde conseguiu emprego como
professor numa universidade federal. Na Bahia foi agredido, próximo ao Farol da
Barra, por estar acompanhado de um namorado. Este fato o deixa profundamente
abalado. Nessa época, conta que continuava recebendo o Lampião com notícias
sobre a formação dos primeiros grupos homossexuais, então tem a idéia de fundar
um grupo em Salvador com a ajuda de conhecidos e utiliza as páginas do tablóide
para publicar um anúncio de convocação.
A partir deste ponto Luiz Mott dedica-se a descrever a trajetória do Grupo
Gay da Bahia, a qual se confunde com sua própria trajetória enquanto liderança do

52
coletivo. O colaborador re-elabora uma grande parte de suas contribuições: tanto
práticas quanto intelectuais. A relação com o movimento homossexual torna-se o
eixo de organização da segunda fase da narrativa:
“[...] Não pretendo abandonar o movimento
homossexual... nunca! Quero ficar até o final dos meus
dias como militante, mesmo quando já tivermos muito
mais direitos conquistados. Isso faz parte do meu
temperamento, da minha maneira de ser... continuar
polemizando e reivindicando os direitos humanos para
essa minoria.”

A narrativa de João Antônio Mascarenhas é elaborada através da história de


transformação de algumas de suas idéias em realidade. O eixo da construção está
centrado no seu olhar sobre o surgimento do movimento homossexual brasileiro e a
aparição do debate sobre homossexualidade nas “esferas pensantes” do Brasil. Duas
construções são elaboradas nesse sentido: o papel que o colaborador desempenhou
enquanto idealizador do jornal Lampião e a história dos objetivos pensados para a
atuação do grupo Triângulo Rosa, no qual João Antônio Mascarenhas atuou
enquanto líder e militante da causa homossexual.
A construção de sua narrativa é permeada por ditados populares associados às
situações que vivenciou. A primeira parte é dedicada às origens gaúchas. O
argumento inicial gira em torno do machismo regional como uma regra perene, uma
expressão cultural que presenciou durante a infância e a adolescência, inclusive no
ambiente familiar.
Em 1950, forma-se em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul e em 1956 decide gerir sua própria vida. Muda-se para o Rio de Janeiro, onde
começa a trabalhar no CAPES. Para explicar a “opção homossexual”, constrói um
raciocínio sobre a possessividade que as mulheres expressavam quando ele falava
sobre seus relacionamentos com homens. A decisão em manter relações sexuais sem
compromisso - visualizadas na “opção homossexual” - surge como o caminho mais

53
indicado para evitar qualquer relação que comprometesse sua liberdade. Porém,
caracteriza essa situação como um desafio:
“No Rio, era possível levar uma vida de liberdade. Eu,
apesar de ter aceitado minha homossexualidade, não
tive, de chofre, a coragem de assumi-la publicamente.
Por prudência, escolhi o processo de soft opening. Já
não mais mentia, não procurava passar pelo que não era,
mas esforçava-me para não me mostrar aos “da outra
banda”, sempre que possível. Entre a faca e a parede,
abria o jogo, mas empenhava-me em evitar a
necessidade de uma definição.”

Em 1972, passou a assinar o jornal Gay Sunshine. Foi assim que estabeleceu
contato com o movimento existente nos Estados Unidos e passou a sonhar com a
aparição de grupos de militância no Brasil. Em 1976, começou a trocar
correspondências com Winston Leyland, editor do jornal Gay Sunshine, quando
surgiu a possibilidade de Leyland vir fazer uma pesquisa sobre literatura com
temática homossexual no Brasil. A vinda de Winston Leyland é apresentada como a
possibilidade do sonho de João Antônio Mascarenhas tornar-se realidade. O
colaborador passa a descrever toda a trajetória da visita de Winston Leyland, assim
como a reunião do grupo de jornalistas e intelectuais que deram origem ao Lampião
em 1978.
O tom da narrativa apresenta o Lampião como um catalisador que ajudou na
criação dos grupos de militância homossexual pelo país. A conclusão da história tem
um parecer positivo, pois João Antônio Mascarenhas entende que esse objetivo foi
atingido. Essa mesma idéia será re-elaborada para explicar a criação do Triângulo
Rosa em 1985 e os objetivos que almejou para esse grupo:
“O Triângulo Rosa era um grupo muito característico...
diferente dos demais! Nós sempre nos preocupamos
com a questão da legislação... vamos dizer assim, com a
parte pensante do Brasil. No caso, seria com aqueles que
poderiam ter influência: intelectuais, meios de
comunicação social e legisladores.[...]”

54
8. O Esboço de uma Trajetória Coletiva.

Estas categorias não se pretendem rígidas, expressam apenas uma


possibilidade preliminar de organização do material. Os depoimentos manifestam
similaridades que permitem agrupá-los pela relação com o perfil profissional,
intelectual e político, apontando características que influenciaram a relação dos
colaboradores com a questão da identidade homossexual e com o desenvolvimento
dos movimentos de emancipação.
A categorização originou-se com o trabalho de audição das narrativas, cujo
processo de elaboração aconteceu na contemporaneidade. Estas distinções são
importantes para os desdobramentos dessa dissertação, pois ajudam a compreender a
trajetória deste conjunto de vidas. O índice temático, através do qual foi realizado o
levantamento de outros pontos presentes nas narrativas, orienta a configuração dos
capítulos que se seguem.

55
Capítulo 2
Um caminho tortuoso até a “Contestação Política”

“Minha geração nasceu quando as cinzas de


Hiroxima ainda estavam quentes.”
Herbert Daniel26

1. A Revolução dos Costumes.

É preciso enfatizar o clima experimentado após a segunda grande guerra, o


período em questão evidenciou o antagonismo político-ideológico e a mútua
desconfiança entre americanos e soviéticos. A década de cinqüenta se caracterizou
pela bipolarização do mundo encabeçada pelos Estados Unidos e pela União
Soviética.27 O estilo norte-americano apresentava o padrão de vida da camada média
da sociedade, exibindo o acesso de seus membros aos bens de consumo, contudo,
despertava a crítica por excluir setores sociais podados do sistema capitalista por
causa do poder aquisitivo. O modelo soviético garantia proteção estatal, fornecendo
emprego, moradia, educação e lazer à população, porém a emergência de uma
burocracia detentora do poder, com o advento do golpe stalinista, restringiu os ideais
propagados pela Revolução de 1917.28
Durante os anos sessenta, pessoas do mundo inteiro se mobilizaram para
questionar ou apoiar um destes modelos, ou contestar a ambos. Os movimentos de
protesto se espalharam por todos os continentes através da difusão de normas,

26
DANIEL, Herbert. Meu Corpo daria um Romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. p. 154.
27
FRASER, Ronald (org). 1968: a student generation in revolt. New York: Pantheon Books, 1988.
p. 15-16.
28
LÖWY, Michael. Para uma Sociologia dos Intelectuais Revolucionários. São Paulo: LECH,
1979. p. 234-235.

56
valores, gostos e padrões de comportamento que ganharam dimensão através dos
meios de comunicação de massa.29
As amarras tradicionais do círculo familiar foram desatadas e os jovens
começaram a organizar suas vidas através de novas redes culturais. Inicialmente o
fenômeno foi caracterizado por sinais mais evidentes: cabelos compridos, roupas
coloridas, misticismo, drogas e a vida em comunas. Um conjunto de hábitos que aos
olhos das famílias de classe média parecia um despropósito.30
Não se tratava de uma revolta que visasse uma redistribuição da riqueza social
e do poder em favor dos despossuídos, mas eram exatamente os jovens dos grandes
centros urbanos que encabeçavam esses movimentos de protesto. Eles tinham pleno
acesso aos privilégios da cultura dominante, tanto por suas possibilidades de entrada
no sistema de ensino quanto no mercado de trabalho. A juventude não rejeitava
apenas os valores estabelecidos, mas também qualquer estrutura de pensamento
vigente.
James Naylor Green e Edward MacRae são os colaboradores que
relacionaram este fenômeno com a história pessoal. Nascido em 1951, James Naylor
Green foi um dos jovens norte-americanos que vivenciou o período da contestação
cultural. Ele anuncia uma opção de vida - que denomina como “estilo alternativo” -
enumerando algumas de suas características:
James Naylor Green - Enquanto estava na
universidade viajei para o México, para a Europa e fui
morar no interior do Estado de Nova Iorque... conheci
algumas pessoas e resolvi morar numa comuna. Quando
concluí o curso universitário não quis retornar para fazer
pós-graduação, nem para me profissionalizar. Como se
dizia naquela época: “- queria viver um estilo de vida
alternativo”. O estilo alternativo representava uma
forma meio anarquista de criar uma nova sociedade
dentro dos padrões sociais predominantes. Depois me
mudei, com sete pessoas, para um bairro operário...

29
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é Contracultura. São Paulo:Brasiliense, 1986.p.18-
19.
30
Idem, p. 20-23.

57
pobre, em Filadélfia, e moramos lá. Então morei numa
comuna, com minha companheira, mas coloquei para ela
o que sentia. Vivemos juntos algum tempo e depois nos
separamos. Assim, foi em Filadélfia onde passei por
todo esse processo e assumi a homossexualidade.

O brasileiro Edward MacRae, nascido em 1948, intercala alguns


acontecimentos dos movimentos de contestação vivenciados durante sua trajetória.
As experiências estão relacionadas com a época em que realizou os estudos na
Europa e com as viagens de férias que fez aos Estados Unidos:
Edward MacRae - [...] entrei na universidade de
Sussex. Assim que entrei para o ensino superior, fui
passar férias com uma prima de um amigo nos Estados
Unidos. Nessa viagem comecei a fumar maconha e
desbundei, se não me engano, entre 1965 e 1966, a
época do grande verão: o Verão do Amor. O movimento
hippie demorou alguns meses para chegar à Inglaterra.
Mas justamente quando começou, assisti aquilo
desabrochar nos Estados Unidos, estava lá e já lia
Timothy Leary. Fiquei muito interessado em
experimentar LSD, mas só experimentei maconha. [...]
Na época em que começaram a chegar as notícias sobre
os hippies, já sabia a respeito, então estava por dentro,
sabia do que se tratava. Em pouco tempo apareceu o
ácido e experimentei. Resolvi que não queria mais fazer
economia, não iria trabalhar com seguros, nem numa
multinacional ou em nada do gênero, optei por outro
curso e me transferi para Psicologia Social. Essa
universidade onde estudava, era muito transada, o
ensino era moderno. Nesta fase meus amigos eram todos
socialistas.

Aos poucos os meios de comunicação começaram a veicular uma nova


palavra: Contracultura. O termo foi considerado adequado por sintetizar as
características de um fenômeno que se expressava através de diferentes formas de
oposição à cultura oficializada. A palavra foi inventada pela imprensa norte-
americana. Servia para designar um conjunto de manifestações culturais que

58
floresceram tanto nos Estados Unidos como em vários outros países - especialmente
os europeus - e com menor intensidade na América Latina.31
Paralelamente à difusão da Contracultura, os jovens de todo o mundo se
engajaram em outros movimentos. Os estudantes universitários de países como os
Estados Unidos, França e Alemanha iniciaram uma grande mobilização social para
demonstrar sua insatisfação. A rebelião dos jovens nas universidades endereçava
críticas contundentes a especialização do saber. Inicialmente, os estudantes
reivindicavam mudanças como a menor tendência ao tecnicismo e a não submissão
do ensino aos interesses do capitalismo ou do burocratismo socialista. Ao longo dos
anos sessenta esses postulados ganharam força e fizeram eclodir a rebelião
estudantil:32
Edward MacRae - Em 1968, aconteceram as
manifestações em Paris. Numa escala menor, a
Inglaterra também foi atingida por esta onda. Alguns
amigos meus foram para Paris. Eu quase fui, mas tinha
uns exames muito importantes e o meu lado “sério”
acabou prevalecendo, porque eram os exames finais da
universidade, lá não havia segunda época, neste caso ou
passava ou não passava. Assim, resolvi ficar estudando
para os exames, não fui para Paris e fui aprovado no
final.

Durante os anos sessenta, a inquietação contra a destruição provocada pelos


conflitos armados gerou outro nível de politização dos estudantes universitários:
James Naylor Green - Realizei o curso superior numa
universidade de origem Quaker... numa cidadezinha no
interior dos Estados Unidos, onde me formei em
Ciências Políticas em 1972. Entretanto, no período entre
1968 a 1972, detive-me conjuntamente em duas
atividades: uma foi minha politização sobre a Guerra do
Vietnã, o meu ativismo constante nas mobilizações
contra esta guerra; a outra foi pensar sobre este conflito
interno que me assolava. O fato de sentir que era
homossexual gerava a sensação de não saber o que

31
Idem, p. 13.
32
MATOS, Olgária. Paris 1968: as barricadas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 25.

59
fazer. Participei muito do movimento contra a Guerra do
Vietnã, cuja mobilização provocou uma grande
mudança social [...]

A partir de 1965, quatro anos após a cisão sino-soviética, a China apontou


novos caminhos para o socialismo durante a Revolução Cultural, cujo significado se
detinha numa mobilização em busca do socialismo com características menos
centralizadoras. Nesse sentido, os sistemas culturais e ideológicos da sociedade
chinesa passariam por um rigoroso processo revolucionário através da politização de
todas as áreas da vida social, desde as mais simples relações de trabalho e de família
até a estrutura do sistema de poder. Um dos objetivos almejados era eliminar o
espírito burocrático do Partido para não esbarrar nos mesmos impasses do modelo
soviético.33
Os ecos da Revolução Cultural chinesa se propagaram em meio à
efervescência do período.34 Edward MacRae, atento aos fenômenos da contestação
mundial, recupera suas impressões sobre a influência dos meios de comunicação:
Edward MacRae - Durante a Revolução Cultural na
China, achei que a imprensa inglesa e francesa foi a
favor deste movimento, parecia-me um caminho para se
destruir a burocracia do partido. Sentia que aquilo
poderia aumentar a liberdade. Mais tarde percebi que
não se tratava disso, mas foram os próprios jornalistas
que propagaram essa idéia errônea. A imprensa liberal
escondeu a barbárie, não mostrou o lado opressivo da
Revolução Cultural. Para os jovens, contudo, havia
pontos de identificação com a Guarda Vermelha, seria
algo parecido com a Revolução das Flores. Havia
pessoas que se consideravam “anarcomaoístas” e eu era
dessa corrente.

O modelo chinês projetou uma alternativa à forma de condução do


movimento revolucionário, cuja estratégia tornou-se atraente a João Silvério

33
REIS FILHO, Daniel Aarão. A construção do Socialismo na China. São Paulo: Brasiliense,
1981. p. 48-9.
34
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Op. cit., p. 78-79.

60
Trevisan e João Carlos Rodrigues por conter uma idéia de anarquia que captou a
atenção de ambos:
João Silvério Trevisan - Quando entrei na Ação
Popular e vi o que era a A.P., fiquei horrorizado com a
piada que era aquilo. Não era nada do que parecia e
resolvi sair da A. P. Então mandei uma carta analisando
os problemas que eu tinha encontrado e os motivos
pelos quais havia saído. Fiz uma severa crítica ao seu
maoísmo que considerava algo absolutamente de
fachada... uma bobagem. Eu me considerava um
maoísta, mas na verdade o que me atraía no maoísmo
era o anarquismo implícito em alguns de seus aspectos.
João Carlos Rodrigues - [...] Hoje em dia, percebo
algo que não tinha me dado conta: eu era anarquista,
mas na época achava que era maoísta. Atualmente,
ainda acredito ser de extrema esquerda. Mas não gosto
de fazer provocação! O esquema não é jogar pedra na
cabeça do Papa, o ideal é fazer com que não exista mais
Papa... na realidade isso é mais conseqüente à longo
prazo. Meu objetivo, basicamente, era esse. Aliás, acho
que fiz o que propus.

2. A Nova Esquerda.

O conjunto de manifestações - que afloraram durante o período da


contestação - produziu novas formas do indivíduo se relacionar com o mundo. Esse
clima contribuiu para a eclosão de novas formas de atuação política, onde a ênfase
recaia sobre a afirmação da liberdade. Os novos movimentos rechaçavam a sisudez
da esquerda tradicional, questionando suas normas de disciplina e de organização.
Esse espírito resvalou críticas sobre todas as estruturas que suprimissem o valor
positivo da liberdade.35
O contorno dos movimentos com caráter fortemente libertário começava a se
delinear. Firmava-se outro universo político com suas regras e valores próprios. Um
reflexo desse fenômeno é contado por James Naylor Green, quando o colaborador

35
Idem, p. 38-39.

61
fala sobre as manifestações da cultura jovem nos Estados Unidos e sobre o
movimento em favor dos direitos civis de mulheres, negros e homossexuais:
James Naylor Green - Em 1969, logo no começo do
curso superior, já havia o movimento feminista e o
movimento da Contracultura. As pessoas usavam cabelo
comprido, os homens se vestiam de uma maneira mais
afeminada... colorida, com jóias. Assim, identificava-me
com as idéias libertárias presentes nestes movimentos.
Elas inexistiam numa sociedade com noções de gênero
bem definidas, altamente polarizadas pela divisão
homem-mulher. O movimento feminista, assim como a
Contracultura me ajudaram a sair desta crise. No meu
modo de agir percebi semelhanças com as idéias do
homem novo, cujos valores eram projetados pelo
movimento feminista. Desta forma, sentia-me à vontade
neste ambiente social. Ao participar das conferências de
mulheres, comecei a perceber o apoio ao novo modelo
masculino. Nestes eventos havia agrupações internas
compostas por homens, entre os quais se encontravam
homossexuais assumidos.

A juventude norte-americana revelava-se mais sensível à contestação cultural


e aos novos movimentos sociais, cuja atuação não encontrava lugar definido em
espaços institucionais como sindicatos e partidos.36 Esses movimentos, contudo,
ampliaram o conceito de política que passou a ser aplicado às relações cotidianas
disseminadas na vida social.37 Os novos ventos anunciaram a renovação do
pensamento teórico de esquerda. A Nova Esquerda começou a despontar com suas
idéias e publicações.38 James Naylor Green recupera essa característica durante sua
narrativa:
James Naylor Green - O movimento da Contracultura,
politicamente, não poderia ser definido como
anarquista. A Contracultura possuía aspectos neste
sentido, mas em São Francisco, por exemplo, existia um
grupo muito grande chamado BAGL - Bay Area Gay
Liberation (Liberação Gay da Área da Baia de São

36
Idem, p. 39-40.
37
COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Os Movimentos Libertários em questão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 11.
38
PEREIRA, Carlos Alberto M. Op. cit, p. 37.

62
Francisco) -, uma das últimas organizações da primeira
etapa do movimento gay-lésbico. Após a rebelião de
Stonewall, surgiram Frentes de Liberação Homossexual
nas principais cidades do país, muito influenciadas pela
Nova Esquerda americana e pela Nova Esquerda
internacional. Eram organizações baseadas num
discurso revolucionário que possuíam uma mescla
interessante do marxismo com o anarquismo.

Por outro lado, a juventude européia trazia às costas o peso de uma longa
tradição de luta política bastante institucionalizada. Edward MacRae recupera esse
aspecto no seu depoimento:
Edward MacRae - Logo que entrei em Essex, tomei
contato com o pessoal de esquerda. Esta universidade
era bem de esquerda. Os grupos que participei na
Inglaterra não eram da esquerda tradicional. Na época,
sempre estive próximo da New Left, cuja posição
parecia mais anarquista. Na Inglaterra presenciei o
início do movimento feminista inglês, no qual
participava e conhecia várias militantes. A minha casa,
em Essex, foi um dos lugares que formou uma das
vertentes do movimento feminista. Estava lá no início
dessa nova onda de socialismo. Devido ao meu contato
com as feministas, conheci também pessoas ligadas ao
Gay Liberation Front. Por isso que quando o
movimento homossexual, muitos anos depois, chegou
no Brasil, já me julgava feminista... era muito favorável
a todo questionamento dos papéis de gênero.

3. Repressão Política no Brasil.

Enquanto na década de sessenta as novas formas de expressão política


estavam crescendo nos Estados Unidos e na Europa, o Brasil caia sob o manto de
uma severa ditadura militar.39 Para compreendermos o sentido da repressão política,
fruto do golpe de 1964, é preciso retomar o papel desempenhado pela Escola
Superior de Guerra. Esta instituição criada em 20 de agosto de 1949 imitava sua

39
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro: Paz e Terra p.19.

63
congênere norte-americana dos anos trinta, a National War College. A ESG foi
destinada a ser um centro de “altos estudos” político-militares, tornando-se desde
cedo um importante núcleo de atividade política e de irradiação ideológica. 40
As idéias anticomunistas geradas na interior da ESG nutriram a formação dos
militares que governaram o Brasil. A doutrina ali ensinada contava com a teoria da
“guerra interna”, segundo a qual a principal ameaça vinha dos sindicatos, dos
intelectuais, das organizações de trabalhadores rurais, do clero e dos estudantes.
Desta forma, todos esses grupos teriam que ser neutralizados ou extirpados.
A história da dualidade ideológica e da posição que o Brasil ocupava no
cenário político internacional ajudam a compreender as posturas dos colaboradores
em relação ao regime militar:
Alexandre Ribondi - Desde o Segundo Grau no
Elefante Branco até na Universidade, já me aproximo
das pessoas contrárias ao regime militar. Quando era
secundarista em Brasília, observava os acontecimentos
um pouco de longe. Na época, tinha uma amiga, cujo
namorado pertencia às lutas clandestinas. Tive outro
amigo que está desaparecido até hoje. Isso durante o
segundo grau!
Luiz Carlos Lacerda - [...] Como eu era militante [do
Partido Comunista], com o golpe de Estado fiquei
desarvorado. Havia largado tudo na minha vida para me
dedicar à política, à construção do Partido e ao
socialismo. Tudo por ideal a uma sociedade que
estávamos construindo, na qual eu acreditava.

O clero brasileiro também viveu um período de grande repressão. A Igreja


Católica Romana sofreu fortes perseguições durante o período ditatorial por
denunciar a miséria das classes populares e as violações dos direitos humanos. A
repressão também decorria por causa dos esforços da Igreja em defender os
membros do clero ou do laicato propensos a choques com o regime militar.41 João

40
Idem, p. 22.
41
Idem, p. 269-270.

64
Silvério Trevisan e Luiz Mott, que realizaram seus estudos em seminários, relatam
as impressões apreendidas no meio eclesiástico:
João Silvério Trevisan - [...] Desde o seminário sempre
fui de esquerda... inclusive na época do golpe militar de
1964, a polícia invadiu o seminário de Aparecida. Desde
aquele período nós tínhamos uma ação política, muito
fascínio pelo socialismo, apesar do socialismo ser
considerado uma coisa perigosa pela Igreja... mas havia
o encantamento. [...] A Ação Popular era um grupo que
no início da ditadura brasileira juntava as áreas
socialistas mais próximas da Igreja. Como continuei
estudando filosofia na Pontifícia Universidade Católica,
estava muito próximo da área de JUC (Juventude
Universitária Católica) e JEC (Juventude Estudantil
Católica). A minha formação política inicial passou por
dentro de tudo isso. Nesse sentido era uma coisa natural
que eu tivesse contato com a A.P.[...]
Luiz Mott - [...] me senti suficientemente forte para
largar o convento. Foi exatamente em 1964, no ano da
“revolução”. Apesar dos dominicanos terem tido uma
participação importante no movimento pré-ditadura,
politicamente eu era bastante alienado. Não me lembro
do 31 de março. [...]

O poder militar exercia um controle dos meios de comunicação. Sempre que


os oponentes do governo pareciam estar ganhando impulso, os generais aumentavam
as restrições políticas e cerceavam a liberdade de expressão. Em 1967, a Lei de
Imprensa reforçou ainda mais o jugo da repressão, prevendo, entre outras coisas, a
prisão de jornalistas culpados por “desacato” às autoridades públicas ou a censura de
filmes que não podiam ser exibidos no Brasil:
Alexandre Ribondi - Neste período, havia censura no
país, devíamos tomar cuidado com o que disséssemos
porque poderíamos ser presos! Porém no jornal onde
trabalhava, Jornal de Brasília, o clima era muito
agradável.
Edward MacRae - [...] Na época do Allende estive no
Chile, viajei uns três meses pela América do Sul, para
Machu Pichu, para Argentina, assistindo os filmes
censurados que não passavam no Brasil, então visitei a

65
Argentina no período entre ditaduras, pois tudo
acontecia lá.

O ano de 1968 marcou uma época em que a rebeldia andou a solta em muitos
países do mundo. No Brasil foi o ano em que os movimentos de protesto contra a
ditadura se intensificaram. Costa e Silva se defrontou com uma série de greves,
manifestações estudantis e declarações de protestos de padres e bispos.42 No mês de
dezembro, contudo, Costa e Silva emitiu a lei mais draconiana desde o início do
governo militar: o Ato Institucional Nº 5. Tornou-se claro que depois do AI-5 os
militares encampados no poder não tolerariam qualquer espécie de oposição. Os
órgãos de repressão foram instrumentalizados para atuar em qualquer nível e sem
qualquer restrição:
Luiz Mott - [...] Na universidade tive uma atuação
política não organizada. Não participava ativamente de
grupos. Embora participasse ativamente em passeatas.
Fiquei preso no DOPS... não sei se duas ou três vezes,
passei uma ou duas noites. Uma vez fui capa de
primeira página do jornal O Estado de São Paulo. Não
com o nome identificado, apenas a fotografia onde era
agarrado por vários policiais para ser colocado num
camburão. Nessa ocasião, rasgaram um lindo suéter de
lã inglesa do meu irmão... até hoje ele reclama! Foi
exatamente esse suéter que saiu no Estado de São
Paulo.
Edward MacRae - No auge da ditadura, no centro da
cidade teve época que havia policiamento ostensivo. A
polícia saía em duplas e eram chamados Romeu e
Julieta: uma policial feminina, um policial masculino e
um cachorro. Eles ficavam dando voltas no quarteirão,
sempre patrulhando os diversos quarteirões. Eles davam
blitz, paravam, fechavam uma rua, revistavam todo
mundo, pediam documento. Isso a qualquer hora. Era
um terror constante. A década de setenta foi uma barra
pesada, muito mais em conseqüência da repressão
política.[...]

42
Idem, p. 166.

66
4. Efervescência Cultural & Desbunde.

No Brasil os movimentos de contestação cultural originaram-se nos setores


mais intelectualizados da sociedade. No caso do cinema, a geração de jovens
cinéfilos dos anos cinqüenta tornou-se a protagonista de um movimento que viria a
ser conhecido como Cinema Novo.43 Durante os anos sessenta, a produção
cinemanovista esboçou uma atitude crítica tanto em nível estético quanto político: os
filmes remetiam à realidade causada pelo subdesenvolvimento econômico, buscando
representar a opressão dos setores populares no Brasil.
Entre 1963 e 1964, o Cinema Novo alcançou o âmbito de melhor produção
cultural do país com: Vidas Secas, dirigido por Nelson Pereira dos Santos; e Deus e
o Diabo na Terra do Sol, dirigido por Glauber Rocha. O golpe militar altera o quadro
político e o Cinema Novo volta-se sobre si próprio para repensar o sentido da prática
de engajamento que o produzira.44
O meio cinematográfico configurava um espaço aberto às novas
possibilidades de expressão. O contexto da época privilegiou um envolvimento
político-social pautado pelas idéias de esquerda, mas não podou a rebeldia dos
costumes presente entre as pessoas que circulavam nesse espaço.45 A narrativa de
Luiz Carlos Lacerda esclarece como esse meio trazia uma dimensão propícia à
revolução dos costumes:
Luiz Carlos Lacerda - Em 1968, já estava meio
desiludido quando tomei meu primeiro LSD. Nesse
momento, entrei muito profundamente nessa experiência
com as drogas. Fiquei tomando LSD durante muitos
anos e fumando tudo. Vivi profundamente a experiência
da Contracultura! Saí de casa para morar em
comunidade com uma porção de gente. Fui pra Parati

43
HOLLANDA, Heloisa B. de & GONÇALVES, Mascos A. Cultura e Participação nos anos 60.
São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 37.
44
Idem, p. 39-41.
45
MORENO, Antônio do Nascimento. A Personagem Homossexual no Cinema Brasileiro.
Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Artes da UNICAMP. Campinas: 1995. p. 61.

67
fazer filmes experimentais. No início o uso de drogas
gerou uma clareza imensa no sentido de seguir a minha
felicidade pessoal. Isso era mais importante do que
qualquer coisa!/ A experiência com as drogas durou de
1968 a 1972, quando aconteceu a morte da Leila... Ela
estava voltando de um festival de cinema! Nós tínhamos
ido com meu primeiro longa-metragem - Mãos Vazias,
uma adaptação do romance do Lúcio Cardoso -, quando
morreu num desastre de avião. Eu fiquei em Londres,
ela resolveu vir antes e o avião caiu.[...]

No meio teatral surgiram novas experiências como a do Teatro de Arena e a


do Teatro Oficina. No decorrer dos anos sessenta, foram montados espetáculos que
desempenhariam um papel renovador e crítico no interior do meio teatral. As duas
perspectivas tinham uma proposta política, porém o Teatro Oficina - marcado pelo
trabalho de José Celso Martinez Corrêa - buscava a instigação do público através de
uma mobilização agressiva.46
O redimensionamento da relação com o público representou um dos aspectos
dentro desse novo espírito, os outros se remetem ao sentido anárquico que o Teatro
Oficina imprimiu com propostas como: a crítica à militância de conscientização e a
valorização das experiências cotidianas.47 Devido a essa disposição em revolucionar
a linguagem teatral, o Teatro Oficina foi invadido pelo Comando de Caça aos
Comunistas em 1968, durante a apresentação da peça Roda Viva.
O meio teatral também aparece como local de referência entre as experiências
de colaboradores como João Carlos Rodrigues e Alexandre Ribondi:
João Carlos Rodrigues - [...] Para entrar na
universidade, prestei vestibular na área de História...
passei! Como foi na época do governo Médici, parei de
estudar e comecei a fazer teatro. Participei da peça Roda
Viva do Zé Celso Martinez Corrêa aqui no Rio.
Inicialmente, atuei na parte técnica, além de atuar um
pouco como ator, durante trinta dias que mudaram
minha cabeça para sempre. Desta forma, passei por este

46
HOLLANDA, Heloisa B. de & GONÇALVES, Marcos A. Op. cit., p. 64.
47
Idem, p.65.

68
percurso, mas não voltei mais aos estudos, pois já
levava uma vida muito definida. Na época, o teatro era
algo de extremissíssima vanguarda, principalmente esse
grupo ligado ao Zé Celso./ O Zé Celso dirigiu Roda
Viva fora do Teatro Oficina. Ele lançou atores hoje
famosos, todos mais ou menos dessa época. Pedro Paulo
Rangel e Zezé Mota foram os que ficaram mais
famosos! Porém, nessa peça havia atores como a
Marieta Severo. Quando a peça foi para São Paulo, não
fui com o elenco, mas um dos atores adoeceu e fui fazer
umas substituições lá, depois não fiz mais... fiquei sem
fazer teatro e cai noutra.[...]
Alexandre Ribondi - Comecei a fazer teatro, ao mesmo
tempo usava drogas e fazia um trabalho político. Droga
não combinava com trabalho político. O trabalho
político era o auge do conservadorismo moral, da
caretice! As drogas eram uma loucura total. E eu fazia
os dois! Além disso, tinha amigos sendo presos! Pessoas
que tinham de tomar cuidado com a atuação política!
[...] No Brasil, era muito difícil não ser de esquerda! Por
isso eu era!! Apesar de tudo apontar para que não fosse
de esquerda!! Não que fosse de direita, mas eu usava
drogas, fazia teatro, fazia suruba!! Eu era mais a tigresa
de unhas negras, que trabalhou no HAIR, do que
trabalho clandestino! O que aconteceu depois com as
pessoas se liberando através do trabalho político, já
acontecia conosco aqui em Brasília, em 1968, 1969. Só
que ninguém nos ouvia, pois éramos muito poucos, mas
já sabíamos que o trabalho político não resolveria nada!
Contudo, era um canal de sobrevivência.

Essa geração propiciou condições ao surgimento de uma contestação, cuja


pauta elencava pontos ligados ao questionamento dos costumes. Nos anos sessenta, o
meio teatral iniciaria ainda a reformulação dos valores no campo da sexualidade.48
Esse modelo de mentalidade quebrava com os esquemas da rígida divisão entre o
masculino e o feminino:
Edward MacRae - O desbunde foi outra página da
história que virei, mas no início era uma coisa restrita,
existia apenas em alguns lugares. [...] enquanto saía
daquela loucura que tinha sido o show do Ney

48
PERLONGHER, Néstor. O Negócio do Michê. São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 74-75.

69
Matogrosso, descendo a Rua 13 de Maio para vir até em
casa, passava por toda essa barra pesada da polícia. Para
quem não viveu esse momento, hoje em dia, realmente,
é impossível dar uma idéia do significado disso: a força
desses shows musicais era a única forma de
manifestação possível... e do lado de fora a barra era
pesada. Então, havia essa loucura, esse desbunde, essa
desmunhecação política. [...] tudo era cínico, sem
esperança e de repente surgiu a andrógina. Na imagem
do genderfucker... um termo norte-americano usado
para definir homens de barba pintados, femininamente,
com purpurina.

O bloqueio que o autoritarismo pós-1964 impôs ao livre fluxo das


manifestações políticas e culturais passou ao largo diante da rebeldia dos costumes.
Essa situação causava espanto dos moralistas e revés de quantos que não aceitavam a
sociedade sem estar estruturada nos rígidos arquétipos do machismo.49 A moral do
regime militar não deu às manifestações de rebeldia o mesmo peso que à ideologia
política:
Glauco Mattoso - Morando no Rio de Janeiro,
exatamente no meio da década de setenta, presenciei um
período em que o regime militar ainda estava bem
fechado. Marginalmente, porém, de uma forma meio
liberada, aconteciam muitas coisas: todo o desbunde,
ocorrido após a mobilização universitária do final dos
anos sessenta e durante os anos setenta, toda a droga, o
hippismo. O A.I.-5 que representou o período mais
repressivo da ditadura, levou camadas da juventude a
uma maior liberalidade nos costumes. O que pode
parecer um paradoxo, com um arroxo tão grande do
ponto de vista político, as pessoas se entregando a uma
vida livre.[...] Era ali [no Rio de Janeiro] que estava
acontecendo a abertura de costumes. Em São Paulo,
ainda era algo que acontecia no gueto, nos bairros
boêmios do centro da cidade, algo da classe teatral.
Como morava muito afastado na Zona Leste, o máximo
que pude me aproximar foi quando estudei
biblioteconomia, perto da Boca do Luxo. Desconhecia
aquela atividade homossexual que existia nos guetos.
Naqueles restaurantes, teatros, bares, mas tudo muito
49
LIMA, Délcio Monteiro. Os homoeróticos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1983. p. 60.

70
discreto. No Rio havia um pouco mais de liberalismo,
porém dentro dos limites do gueto. A coisa começou a
desabrochar justamente na época em que fui morar lá.

5. A tolerância retocada: Ditadura & Homossexualidade.

Quando verificamos o quadro brasileiro, o tratamento dispensado pela


ditadura à homossexualidade provoca a impressão que foi um período mais
permissivo sob inúmeros aspectos.50 O comportamento homossexual parecia não
representar uma ameaça ao regime militar. Nos anos de ditadura, prevaleceu um
misto de tolerância desse comportamento com a sua desaprovação pública. A
expansão do mercado de consumo voltado ao homossexual é um fato que ocorre
durante os anos da repressão política:
Antônio Carlos Moreira - Na minha vivência, quando
comecei a freqüentar as ruas aos quatorze anos, não
sentia a pressão da ditadura. Não tinha consciência do
que existia politicamente na cidade, não tinha a menor
informação, mas não percebíamos a opressão sobre a
homossexualidade.[...]
João Carlos Rodrigues - No período da ditadura
militar, houve uma vida homossexual no Rio muito
ativa. Por incrível que pareça, aumentou o número de
pessoas em atividades homossexuais. É uma questão
que deveria ser estudada. [...] O regime militar parece
que ressalta o lado machista, automaticamente é quando
acontece uma proliferação maior da homossexualidade.
Não só no que se refere ao número de homossexuais,
mas também no que se refere ao número de
bissexuais.[...]
Alexandre Ribondi - [...] Não sou sexólogo, não sou
sociólogo, mas sou uma pessoa que observa. A
homossexualidade na ditadura argentina era um capítulo
importantíssimo dentro da repressão do país. Havia
polícia para detectar homossexuais na rua!! Eles eram
torturados, eram presos por homossexualidade. No
Brasil nunca houve isso. Neste caso é impossível deixar
de fazer paralelo entre esses dois países que se odeiam e
estão de mãos dadas pro resto da vida.
50
Ibidem.

71
No período ditatorial, contudo, houve uma permanente rejeição da
homossexualidade acomodada na ausência de mecanismos oficiais de repressão, mas
presentes em atitudes de variada violência. O fato de não haver nenhuma legislação
ocasionava toda uma ordem de arbitrariedades.51 A contrapartida institucionalizada
vinha na forma das perseguições policiais contra aqueles que não seguiram o
caminho “normal” (casamento, geração de filhos, constituição da família),
referendando o elo quebrado na corrente formadora da sociedade:
Antônio Carlos Moreira - Havia a extorsão da polícia
apesar da ditadura não ter reprimido os homossexuais. A
patrulinha sempre deu em cima e procurou extorquir
dinheiro... acho que isso é normal, a polícia faz esse
jogo em qualquer regime. Entretanto, não tinha relação
direta com o processo político. [...]
Luiz Carlos Lacerda - [...] nessa onda moralista, não
existia uma perseguição explícita, mas a mesma
permitia que as forças policiais perseguissem os
homossexuais, anonimamente, nos lugares de pegação!
Os homossexuais eram presos, apanhavam e eram
torturados. Ninguém tinha coragem de ir para um lugar
de pegação, era perigoso! A polícia, a qualquer
momento, podia prender o indivíduo, levá-lo para uma
delegacia e arrebentá-lo de porrada pelo fato de ser
homossexual. Mas, não tinha uma linha política... como
nos países de esquerda![...] Havia perseguição no
sentido de cargos públicos. O cara que era
declaradamente homossexual não podia assumir cargos
de direção nas repartições do Estado... mesmo na área
da cultura!!! Porque o consideravam um indivíduo com
uma moral facilmente manipulável: “- Esse cara!!! Se
ele ficar na direção desse negócio, vai botar uma
porrada de garotões para trabalhar só porque comem
ele!!” O homossexual sempre foi visto de forma
pejorativa, como se fosse um prostituto.

Para os militares importava conduzir a vida pública de maneira a demarcar o


comportamento homossexual como uma divergência, cujos valores eram diferentes

51
MANTEGA, Guido (org). Op. cit., p. 152.

72
daqueles amplamente aceitos pela sociedade. O silêncio e a discrição dos militares
são elementos-chave para a compreensão da atitude em relação à sexualidade. Os
homossexuais poderiam fazer o que quisessem desde que não invadissem a esfera
pública com debates contundentes sobre o tema As investidas do governo militar
sufocariam qualquer questionamento ao sistema vigente:
Luiz Carlos Lacerda - [...] a ditadura não admitia o
comportamento homossexual. No mundo inteiro já
existiam organizações gays, principalmente nos Estados
Unidos e na Europa. No Brasil, uma organização destas
não seria permitida.[...] No Brasil, não havia essa
pretensão de construir uma nova sociedade ou da
construção de um novo homem, por isso não tinha uma
perseguição oficial. Prevaleceu o propósito de garantir
interesses ameaçados antes do golpe militar. [...]

É preciso desatar o nó dessa discussão, retomando aspectos da cultura


masculinista, para identificarmos outras formas de se isolar grupos estigmatizados da
sociedade global. O que acontecia na prática foi que se tornou necessário afirmar
certos valores culturais, sociais e morais sobre outros:
Luiz Carlos Lacerda - [...] O que existe é um
preconceito machista, mas isso é uma questão cultural.
É um preconceito que tem no Brasil, tem nos países
latinos, onde essa imagem do macho sustenta o totem da
sociedade machista.
Dolores Rodriguez - Durante a ditadura no Brasil, não
acho que os homossexuais foram perseguidos. Acredito
que se houve perseguição, foi porque “desde que o
mundo é mundo” é assim. Não creio que tenha sido uma
posição política assumida: “- Não! Vamos perseguir o
homossexual!”... não foi o que aconteceu!! Esta
perseguição é natural da cabeça das pessoas. Naquele
tempo, a ditadura não estava preocupada com os
homossexuais. Ela estava preocupada em reprimir a
questão política. O/ preconceito contra o
homossexualismo vem neste bojo, pois é inerente às
pessoas. Não acho que seja uma posição premeditada!

73
A política oficial dos militares brasileiros não se destinava a perseguir
homossexuais, mas estes tinham que se manter no limite que lhes foi reservado,
revelando que a chamada tolerância era outra forma de intolerância. Alceste Pinheiro
e Alexandre Ribondi retomam o debate iniciado pela Contracultura, enfatizando
alguns aspectos que indicam a mudança do costumes em relação à
homossexualidade:
Alceste Pinheiro - Não havia repressão política. Ao
contrário do que aconteceu com outros movimentos
sociais. O que melhorou a situação do homossexual foi
a luta pela liberdade, desencadeada pela Contracultura,
em favor da livre expressão sexual, contra o racismo,
enfim uma luta política em outras áreas que permitiu a
aparição dos movimentos em favor da
homossexualidade. O desatamento das amarras não se
deu por causa do movimento gay, pelo menos não foi
assim no Brasil.
Alexandre Ribondi - Não havia uma maior perseguição
dentro da ditadura brasileira pelo fato do sujeito ser
homossexual! Nessa época, justamente, estávamos no
início dos anos setenta e fim dos anos sessenta, havia
muito culto à androginia. Não entre a polícia, mas entre
os moderninhos! Ser homossexual era algo
revolucionário. Havia uma postura de contestação
social, como de resto tudo era contestação social
naquela época.

6. Em defesa da unidade Oposicionista.

Nos anos cinqüenta e sessenta nenhum cidadão ousaria manifestar sua


aprovação à homossexualidade. Havia uma espécie de consenso sobre a rejeição do
homossexualismo calcado na vitalidade do machismo. A homossexualidade não era
bem vista pelo conjunto da sociedade e os grupos de esquerda não escapavam dessa
regra.
É preciso retornar às origens das posições adotadas pela esquerda ortodoxa no
tocante a homossexualidade. As leis soviéticas durante o período revolucionário

74
inicial garantiam o direito de livre expressão da sexualidade e serviam de modelo
para o resto da Europa nos anos vinte. Os desdobramentos da Revolução Bolshevik,
em 1917, provocaram as discussões de natureza política neste campo.
Dennis Altman, em Homossexual, Opressão e Libertação, ao comentar o
paralelismo entre as lutas de libertação de classe e a de libertação sexual, lembra que
- apesar dos desvelos de Lênin em favor da liberdade sexual - as restrições penais à
atos homossexuais foram revogadas.52
Um dos principais problemas, contudo, foi a ausência de questionamentos
acerca da sexualidade na tradição socialista: não ocorreu nenhum avanço teórico
sobre o assunto. Em 1930, o artigo sobre homossexualidade na primeira edição da
Grande Enciclopédia Soviética foi baseado nos estudos de Hirshfeld e, numa
extensão menor, na reflexão de Freud. A perspectiva teórica mais empregada
enfatizava o pressuposto biológico.
Em 1932, Wilheim Reich é categórico ao afirmar que havia liberdade à
atividade homossexual na União Soviética. Esse autor apontava duas causas para
gênese do comportamento homossexual, uma ligada à constituição física e de
natureza biológica, a outra de natureza psíquica gerada na infância por um
“desenvolvimento sexual defeituoso”.53 Nas palavras do autor, as duas causas eram
definidas como “formas anormais do desenvolvimento sexual, uma doença”, uma
vez que o indivíduo sofreria com isso.54 Pouco era feito para se encorajar a aceitação
social da homossexualidade na União Soviética.
É preciso tecer alguns comentários sobre a mudança que ocorre com o
advento do golpe stalinista no que se refere à homossexualidade. A origem dessa
mudança de atitude, segundo Jeffrey Weeks, está ligada a contra-revolução que
subordinou todos os aspectos da liberdade pessoal às prioridades determinadas pela
burocracia que ascendeu com Stalin. O fortalecimento da família era visto como

52
Apud: PUIG, Manuel. O Beijo da Mulher Aranha. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. p. 170.
53
REICH, Wilheim. O Combate Sexual da Juventude. Porto: Dinalivro, 1975. p.103-8.
54
Idem, p. 105.

75
parte fundamental desta nova ordem. Desta forma, ocorreram as revogações de
muitos ganhos legais obtidos no período revolucionário inicial no que se refere a
sexualidade.55
O golpe stalinista provoca a retração dos direitos alcançados no decorrer dos
anos vinte e trinta. Como não houve avanço na discussão teórica sobre o tema, a
crença que o homossexualismo se tratava de uma “degenerescência burguesa” torna-
se uma tradição e toma conta do pensamento socialista:
Luiz Carlos Lacerda - No final dos anos sessenta, já
estava desiludido com a questão da política. Comecei a
ver esse tratamento preconceituoso da esquerda, muitos
amigos entraram para a luta armada, dentro do partido
via essa esquizofrenia moral. Eles queriam fazer uma
nova sociedade - libertária -, e ao mesmo tempo eram
mais reacionários do que a própria direita. Eles diziam
de boca cheia: “- Na União Soviética não existem
homossexuais!” Nesse sentido, indagava: “- Mas o que
tem a ver uma coisa com a outra!? Não consigo
compreender?” Mas depois, na vida, fui perceber que
realmente há! [...] Os países socialistas sempre viveram
a questão da formação de uma nova sociedade, onde
devia haver o “novo homem”, onde estava excluída a
possibilidade da homossexualidade. Esse
comportamento sempre foi considerado pelos ideólogos
das sociedades “novas” como um desvio da sexualidade
“natural”.

Stalin introduziu as leis anti-homossexuais na União Soviética em março de


1934. E devido ao papel central do stalinismo, no movimento comunista mundial, a
crença que a homossexualidade era um produto da decadência burguesa sobreviveu
em vários partidos do mundo. Isto deixou uma porta aberta às intermináveis
acusações políticas que foram aferidas à esquerda nos anos seguintes.
Alexandre Ribondi - A esquerda nunca levantou a
bandeira de liberdade em favor dos homossexuais, em
momento nenhum! Nunca!! Nunca!!! A esquerda não é
tolerante, já tinha dito isso, mas só vou repetir: a
esquerda nunca foi tolerante, de maneira nenhuma, não
55
WEEKS, Jeffrey. Coming Out. London, Melbourne, New York: Quartet Books, 1977. p. 170.

76
lhe interessa ser!!! Cuba nunca tolerou seus
companheiros homossexuais! Che Guevara nunca os
suportou! A esquerda nunca levou a questão assim!

As referências ao tratamento que a esquerda dispensava aos homossexuais


tratam-se de críticas endereçadas às posições stalinistas pós-1934, porém a maioria
não observa as especificidades dentro do pensamento de esquerda. James Naylor
Green é o único colaborador que distingue as correntes existentes no movimento
socialista:
James Naylor Green - [...] eu militava num grupo
trotskista. Em geral, os grupos trotskistas, nos anos
sessenta e no começo dos anos setenta,
internacionalmente eram os que mais defendiam os
direitos dos homossexuais. Enquanto os grupos
stalinistas, ligados ao Partido Comunista da União
Soviética, ou aos grupos maoístas, ligados ao Partido
Comunista da China, eram totalmente homofóbicos,
ostentando idéias que a homossexualidade era um
sintoma da decadência capitalista ou da degenerescência
burguesa, coisas assim, e eram contra a organização do
segmento homossexual.

Esse comentário está de acordo com a prática desenvolvida por uma das
tendências de esquerda nos anos setenta: reconhecer todas as relações mantidas no
nível social enquanto manifestações políticas, inclusive aquelas inauguradas pelos
novos movimentos sociais.56 Por outro lado, a tendência mais conservadora, ligada
às propostas dos partidos comunistas da União Soviética e da China, preferia
combater às reivindicações dos movimentos libertários.
No Brasil, portanto, não havia espaço às reivindicações homossexuais. A
ditadura reprimia qualquer questionamento ao regime militar, enquanto que nos
grupos de esquerda a moral ainda era restrita e as concepções de luta estavam presas
aos esquemas tradicionais.

56
COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Op. cit., p. 22-25.

77
Alexandre Ribondi - Quando quis fugir para Belo
Horizonte, procurei pessoas de luta clandestina que não
me ajudaram em nada, porque era apenas o Alexandre
maconheiro e viado!! Porém, consegui fugir com outro
menino! Fomos para o nordeste. Durante um mês,
ficamos na casa dos pais dele. Depois voltei para o
Espírito Santo, encontrei com a minha mãe e consegui
um passaporte. No dia em que estava preparando tudo
para ir embora para o Chile, fechando as malas, ouço no
rádio a notícia do golpe de Estado. É irônico porque não
pude ir, tive que ficar! [...]

7. A Fuga através do Auto-Exílio.

No início dos anos setenta, o auto-exílio era uma das saídas adotadas pelos
brasileiros para fugir à repressão militar. A questão política foi apontada como o
principal motivo do movimento que levou os brasileiros a partirem para os Estados
Unidos e para a Europa. Esse argumento transparece claramente nas histórias de
João Silvério Trevisan, Celso Curi, João Carlos Rodrigues e Alexandre Ribondi:
João Silvério Trevisan - Enfim, em 1973 não agüentei
mais ficar no Brasil, com gente sendo presa, com a
repressão brutal e fui embora em auto-exílio. Fiquei três
anos fora do país: meio ano viajando, um ano morando
no México e um ano e meio nos Estados Unidos.[..]
Celso Curi - [..] Em 1972, fui embora para a Alemanha.
Passei um período fora do país que não chegou a um
ano. Nesse meio tempo devo ter realizado outras
atividades, cuja lembrança não me ocorre. Fiz um pouco
do que todo mundo fazia. Trabalhei como faxineiro,
entre outras atividades típicas de um exilado por
vontade própria. Nessa época, a situação no Brasil
estava muito complicada.[...]
João Carlos Rodrigues - Em 1972, fui em auto-exílio
para São Francisco nos Estados Unidos. Vivi lá um ano.
Peguei o finalzinho da efervescência da época: a volta
dos soldados do Vietnã. [...] Não quis ir para Londres,
onde todos se refugiaram, apesar de estar num grupo
próximo do Caetano Veloso. Um tio meu morava em
Londres porque teve seus direitos políticos cassados.
Enfim, a tendência seria ir para Londres, mas não
gostava tanto da cidade [...]

78
Alexandre Ribondi - Quando saí da prisão, a polícia
passou a ir na minha casa. Os policiais diziam que eu
era um rapaz muito novo, mas que o Brasil era um país
muito violento, um dia poderia estar atravessando a rua
e ser atropelado, poderia morrer com uma bala perdida
que podia me pegar. Quando saí da cadeia, resolvi ir
embora para a França. Larguei o trabalho no Jornal de
Brasília, larguei a Universidade e fui estudar História
da Arte na França.

Aqueles que partiram para os Estados Unidos mergulharam no clima da


contestação cultural norte-americana. Na década de setenta, os movimentos ligados à
questão das mulheres, dos negros e dos homossexuais eram efervescentes nesse país.
As reivindicações homossexuais, contudo, representavam uma crítica sem
precedentes, advogando uma postura mais radical e questionadora da sociedade.57 O
relato de João Silvério Trevisan ajuda a compreender o clima que o colaborador
experimentou:
João Silvério Trevisan - Em Berkeley, tive meu
primeiro contato com uma série de coisas
importantíssimas, as quais vieram complementar as
descobertas que tinha feito. Lá descobri o movimento
homossexual, descobri os anarquistas, o movimento
feminista, o movimento negro, descobri ecologia... tudo
isso em 1973. Berkeley era - acredito que não seja mais,
parece que atualmente ela é uma cidade meramente
universitária -, mas naquela época ela era uma ponta de
lança ideológica contra o sistema americano: o
American Way of Life. Uma espécie de caldeirão onde
experiências novas, bem no bojo da década de setenta,
estavam sendo trabalhadas.[...] Em Berkeley comecei a
tomar consciência não apenas de ser o que eu era, mas
de batalhar para poder ser o que eu era. Foi um
momento muito revelador e particularmente privilegiado
do movimento homossexual americano... porque ainda
era um desabrochar de algo muito juvenil, muito
encantado, muito cheio de brilho. Acho que depois o
movimento homossexual americano tornou-se muito
guetoizado, ficou uma coisa de levantar bandeiras,
prendeu-se a objetivos tais como conquistar o poder.

57
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 20.

79
8. As Notícias do Movimento Homossexual.

O desenvolvimento da cultura urbana no decorrer da década de setenta esteve


sintonizado com os acontecimentos políticos, sociais e culturais de outros países. Os
efeitos da evolução global tiveram extrema importância para a transformação da
categorização das preferências sexuais, tanto por razão de seu desenvolvimento
como pela assimilação de valores gerados nos grandes centros urbano-industriais.58
No Brasil, João Antônio Mascarenhas teve acesso às informações sobre o Gay
Liberation através da imprensa e da literatura inglesa e norte-americana. Ele relata
como conseguiu textos referentes ao movimento homossexual em países anglo-
saxões:
João Antônio Mascarenhas - Em 1972, fui passar
férias em Porto Alegre. Os meus pais moravam lá e
costumava visitá-los. Eu continuava tendo alguns
amigos em Porto Alegre e quando ia à cidade também os
visitava. Um deles tinha morado alguns anos na
Inglaterra. Neste período, em que estive lá, ele tinha
recebido de um amigo dele, um inglês, duas
publicações: um jornal que se chamava Gay Sunshine,
era americano de San Francisco na Califórnia; e um
outro jornal inglês, não lembro se chamava Gay News
ou Out... não lembro exatamente do nome. O jornal
inglês era semanal ou quinzenal, enquanto o americano
aparecia de três em três meses. Devido a periodicidade,
o Gay Sunshine era completamente diferente.[...] Por
volta de 1972 ou 1973, voltei ao Rio e passei a assinar
esse jornal. Ele trazia uma seção sobre livros. Comecei a
encomendar livros dos Estados Unidos.[..] Quando
comecei a ler o jornal Gay Sunshine e conheci os
principais jornais gays ingleses... passei a ler tudo o que
podia sobre o tema. Assim, tomei conhecimento do
movimento existente nesses países, do Gay Liberation,
de Stonewall. Li um livro muito importante que se
chamava “Homosexual, Opression and Liberation”...
era a tese de Dennis Altman, professor da Universidade

58
FRY, Peter. Para Inglês Ver. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982. p. 108.

80
de Sydney, na Austrália. A partir de então, fiquei
interessado no movimento homossexual, nos
fundamentos que nunca tinha racionalizado antes... e
fiquei a sonhar com o aparecimento do movimento no
Brasil.[...]

9. A volta dos Exilados.

O gradual desgaste político do regime militar e o esgotamento do modelo de


desenvolvimento econômico, por ele implantado, deu vazão a um processo de
redemocratização e a uma reorganização das forças políticas democráticas, até então
reunidas num bloco comum de oposição. Os problemas decorrentes da retração
econômica vivida pelo Brasil com o final do "Milagre Econômico" anunciam o
definhamento da repressão política.59 A camada média da população ao ser atingida
em cheio pela recessão econômica começa a reclamar por liberdade e democracia.
Frente a estes problemas é preciso observar que só restava à ditadura
reconhecer que suas possibilidades políticas e econômicas estavam esgotadas e que a
sua base de sustentação tinha-se enfraquecido. Estrategicamente era hora dos
militares prepararem sua retirada através da abertura política, lenta e gradual.
Com o declínio da ditadura, o processo de retorno dos exilados fez afluir a
visão mais libertária. É interessante notar como Peter Fry - que emigra para o Brasil
em 1970 - acompanha essa transição:
Peter Fry - Outro fator muito importante [enquanto
reflexo do final da repressão política] foi a volta dos
exilados ao país... com o Gabeira e companhia voltando.
Não no sentido de homossexualidade em si, mas no
sentido de uma visão mais libertária. Esse processo de
“abertura” contribui para mudar a legitimidade das
posições em relação à questão de classe, de pobreza e
tal. Isso volta com esse pessoal que levanta todos esses
assuntos. Fazia parte do mundo nessa época. Acho que
naquela fase havia diferentes preocupações no mundo.

59
SKIDMORE, Thomas. Op.cit. p. 354-356, 402.

81
O próprio Lampião era reflexo do que estava
acontecendo em outros países... não há dúvidas!

10. Os Frutos do Período.

A modernização dos meios de comunicação provoca uma notável mudança, a


qual estimula a aparição de informações sobre temas nunca tratados pela grande
imprensa. As notícias sobre os locais de perambulação homossexual ganharam
espaço no jornal Última Hora. Em 1976, o jornalista Celso Curi toma a iniciativa de
publicar uma coluna com informações diárias sobre o meio homossexual. Só a partir
deste ano se iniciou a abertura pública de uma matéria pré-cultivada e encerrada no
ambiente urbano brasileiro. O colaborador Celso Curi comenta sobre sua idéia em
produzir a Coluna do Meio:
Celso Curi - Antes do Samuel sair do Última Hora,
propus a ele fazer uma coluna, a qual deveria ficar entre
duas outras: uma coluna machista do Plínio Marcos e
uma coluna feminista... no meio, eu escreveria uma
coluna sobre homossexualidade. Foi um escândalo... as
pessoas me achavam louco. Elas diziam: " - Imagina,
ninguém faz isso! Não existe em nenhum lugar do
mundo uma coluna que fale desse assunto!". Assim
criamos a Coluna do Meio. Exatamente porque ela
estava no meio da página. Não era nem coluna um, nem
coluna dois... era a Coluna do Meio. Neste sentido
existia toda uma conotação de sacanagem, além do que,
havia a idéia original da localização da coluna no meio
da página.

A aparição dessa coluna não significava que o sistema deixara de policiar o


que era publicado. Havia instrumentos legais que poderiam ser acionados para
silenciar a aparição de certos temas. A tolerância ao que era publicado pela imprensa
tinha limites, era seletiva e sofisticada. No Brasil o pretexto de enquadrar contra
atentado à moral e aos bons costumes - conforme o artigo nº 17 da Lei de imprensa -

82
funcionava como uma anestesia coletiva.60 Naturalmente o regime militar podia
fazer isso porque dispunha de sanções que poderia utilizar em nome da manutenção
da moral e dos bons costumes:
Celso Curi - Nas primeiras semanas recebi ameaças
escritas com sangue. Logo em seguida fui processado
pela União Federal "por atentado à moral e aos bons
costumes pela união de seres anormais". Este é o título
do processo. Assim mesmo, continuei escrevendo. A
princípio acreditavam que Celso Curi fosse pseudônimo
e intimaram o jornal. O jornal informou que se tratava
de um nome verdadeiro. Neste caso o processo era
contra Celso Curi. Não observei nenhum problema. Não
havia escrito nada que não fosse verdade ou não pudesse
assumir. Procurei o advogado do grupo Folhas para me
defender. Na época ele se recusou, apesar da acusação
ser por causa da coluna. Disse simplesmente que não o
faria, pois não defendia “esse tipo de gente”. Procurei,
então, um advogado amigo meu e ele aceitou fazer
minha defesa./ O processo durou três anos, só recebi a
absolvição em 1979, quando não escrevia mais a coluna.
Ela durou três anos, mais ou menos o mesmo tempo do
processo. Nessa época, já estava trabalhando na Abril
Cultural quando recebi a notícia da absolvição. Porém,
durante o processo continuei escrevendo. O promotor
recolhia todas as colunas. Nesse percurso de três anos o
mais difícil foi abrir caminho. No final estava
completamente solto e a vontade, escrevendo sobre o
que era absolutamente importante.

Celso Curi foi processado com base na Lei de Imprensa. A absolvição do


jornalista ocorreu após três anos, já no período da “abertura política”. O veredicto
favorável foi considerado importante, pois representava um sinal que a
homossexualidade começava a ter suas reivindicações reconhecidas.61 É importante
ressaltar essa relação com o processo ditatorial, pois isso possibilita afastar a idéia
que a homossexualidade foi domesticada sob o regime militar. O comentário de
Celso Curi ressalta essa situação:

60
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 162.
61
Idem, p. 163.

83
Celso Curi - O movimento homossexual já existia antes
da "abertura política". Em 1976, não existia "abertura".
Estávamos num momento complicado, por causa das
dificuldades próprias do período... acredito até que fosse
o mais delicado de todos. No meu entender a "abertura
política" veio a facilitar alguns pontos. Os diálogos, por
exemplo, começaram a existir no país tanto em nível
nacional quanto internacional. Assim a Coluna do Meio,
durante muito tempo, noticiou o que ocorria no
movimento homossexual norte-americano e europeu.
Naquela época eu não passava de um menino... além de
estar sozinho para pensar sobre movimento
homossexual. Porém, tinha o espaço do jornal a meu
favor, podendo publicar o que estava acontecendo lá
fora.

11. Influência da ‘abertura’.

No período da "abertura" a inspiração advinda dos movimentos de


Contracultura tornou nítido o desinteresse pela política como ela vinha sendo
entendida até então. Este processo de pluralização das oposições à ditadura
impulsionou o desenvolvimento de novos discursos políticos. Aos poucos a
sociedade começou a atuar de múltiplas formas e sob diferentes perspectivas
ideológicas que lutavam contra a repressão e a censura, deflagrando o processo que
anunciava o fim do regime militar:62
James Naylor Green - Segundo meu ponto de vista, a
transformação deste estado [referente à repressão
militar] aflui com os movimentos contra a carestia, o
movimento estudantil e depois com o movimento
operário. Quando esse conjunto de forças começa a
enfrentar o governo, através das greves, passeatas,
coisas até então proibidas, exigindo uma maior
expressão política no lugar da repressão, ainda presente
naquele período, isso permite que mais homossexuais se
disponham a integrar algum tipo de grupo.
Antônio Carlos Moreira - Em 1977, todos os
movimentos sociais começavam a se organizar: o
movimento estudantil, o movimento negro - sendo
62
Idem, p. 19-20.

84
estruturado ao longo dos anos setenta -, o movimento
feminista - já estruturado -, havia um trabalho com os
índios, assim como a atuação das Comunidades
Eclesiais de Base... isso tudo já existia! Porém, ainda
estávamos sob censura, não havia um veículo onde se
pudesse colocar essa questões.
Dolores Rodriguez - [...] todos os movimentos sociais
começaram a se posicionar politicamente: as mulheres
começaram a se organizar, assim como os negros, nos
bairros e nas favelas começaram a se criar associações
de moradores, o empresariado. Tudo estava muito
disperso, então a sociedade começou a se organizar e o
movimento homossexual também, pois eram pessoas
que participavam dessa sociedade como participam até
hoje. Afinal, nada disso ficou esquecido, apenas estava
adormecido: guardado na gaveta!

É na virada dos anos setenta para os anos oitenta que a ação destes grupos
começa a se fazer presente. O movimento feminista ganha um novo impulso, a
questão ecológica explode com intensidade, os negros exigem o direito de existência
a sua cultura e os homossexuais - mantidos sob o signo do preconceito - começam a
se organizar segundo as questões colocadas pelo momento:
Edward Macrae – O Gay Liberation Front surgiu no
final da década de sessenta, mas foi no início da
“abertura política” no Brasil, com passeatas estudantis e
coisas semelhantes, que começamos a ver a
possibilidade de fazer alguma coisa. Há muito tempo já
ocorria toda uma movimentação no meio homossexual
brasileiro. O Celso Curi discutiu a distância entre
“movimento” e “movimentação” homossexuais. Neste
sentido, a “movimentação” homossexual era a ferveção
do segmento que já acontecia.
James Naylor Green - A abertura para a sociedade
começa em 1975, mas os seus efeitos se dão realmente a
partir de 1977. Ao meu modo de ver, a “abertura”
alimenta o movimento homossexual. O próprio Lampião
é reflexo deste período. É um jornal da imprensa
“nanica”, publicado para lutar contra a censura. O
Lampião realmente abre caminho para os grupos. Na
verdade, o próprio jornal já é um grupo composto por
editores... não dava para fazer um grupo político.

85
12. O Percurso está preparado.

Esse percurso foi iniciado com as experiências dos colaboradores que


nasceram ou estudaram em países do hemisfério norte, cujas histórias de vida
refletem o fenômeno da efervescência cultural como algo que compõe suas
trajetórias. O palco revelado pelas narrativas ajuda a estabelecer uma relação dos
colaboradores com os desdobramentos culturais e políticos iniciados na década de
sessenta. Essa retomada esclarece a origem dos movimentos libertários nos Estados
Unidos e na Europa. No caso dos colaboradores que viviam no Brasil, o período da
repressão militar é evocado em passagens que se referem ao silenciamento obtuso
promovido pela ditadura, assim como em passagens que apresentam as
manifestações de rebeldia juvenil como o único espaço possível à livre expressão.
O auto-exílio surge como uma resposta à repressão política, além de
revelarem o contato que os colaboradores tiveram ao mergulharem na efervescência
cultural existente no exterior. Porém, se por um lado há aspectos como vivência
internacional, por outro há as notícias que chegam através da literatura norte-
americana e inglesa. Esses relatos revelam como os colaboradores estabeleceram
contato com o movimento homossexual em países estrangeiros.
Outro aspecto que compõe as narrativas refere aos efeitos não aparentes da
ditadura brasileira no meio homossexual, para a qual a homossexualidade não teria o
mesmo peso que foi dado às ideologias políticas de esquerda. Essa tolerância aos
homossexuais, contudo, era seletiva e tinha limites demarcados através das
investidas policiais ou de leis que faziam cumprir os preceitos da moral e dos bons
costumes. A desaprovação moral também é convocada para recuperar a relação dos
grupos de esquerda com a questão homossexual.
Para concluir este capítulo é preciso ressaltar que as narrativas expressam
considerações sobre a atmosfera de liberdade experimentada com o definhamento da
ditadura. Nos relatos o processo de “abertura política”, ao permitir a volta dos

86
exilados políticos, fez afluir a visão libertária como reflexo de um movimento
mundial que acontece mais tarde no Brasil. Este clima propiciaria a eclosão pública
de temas ainda não explorados no campo político, entre os quais o debate sobre a
homossexualidade.

87
Capítulo 3
Lampião: O Lugar dos Sonhos

“Sou jornalista, [...] agora marcado (para


mim, motivo de satisfação) por ter sido um dos
editores-fundadores do jornal LAMPIÃO,
alternativo que deu, durante quase três anos,
de 78 a 81, voz ativa às minorias eróticas,
raciais, às mulheres e oprimidos em geral”
Antônio Chrysóstomo63

1. As Vozes Telúricas: o papel da imprensa alternativa.

O controle sobre tudo o que era publicado na grande imprensa tornou-se uma
prática legal desde a instalação do regime militar. Em reposta a censura advinda
desse cenário de forte repressão, alguns jornalistas resolveram fundar pequenos
jornais para escapar aos rigores impostos aos meios de comunicação. Segundo
Bernardo Kucinski,64 durante o período da ditadura militar no Brasil, entre 1964 e
1980, nasceram e morreram cerca de 150 periódicos que tinham como traço comum
a oposição ao regime militar. Eles ficaram conhecidos como imprensa alternativa ou
imprensa nanica.
Podemos dividir os tablóides em duas categorias: a primeira pode ser
identificada pelo discurso predominantemente político, cuja pauta apoiava-se nos
ideais de valorização nacional e popular dos anos cinqüenta e no marxismo dos
meios estudantis dos anos sessenta; a segunda estaria mais voltada à recusa do

63
CHRYSÓSTOMO, Antônio. Caso Chrysóstomo: o julgamento de um preconceito. Rio de
Janeiro: Ed Codecri, 1983. p. 91.
64
Nesta introdução foi essencial o conhecimento do trabalho de Bernardo Kucinski sobre a
imprensa alternativa. Essa pesquisa foi muito consultada para a compreensão desse fenômeno no
Brasil. KUCINSKI, Bernardo. Jornalista e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa.
São Paulo: Scritta Editorial, 1991. p. XIII.

88
enfoque sobre o discurso político em favor de uma crítica dos costumes e da ruptura
cultural, apoiando-se assim nos movimentos de Contracultura norte-americanos.65
Estes aspectos são retomados por Glauco Mattoso como uma introdução ao
período em que começa a participar do Lampião:
Glauco Mattoso - Na segunda metade dos anos setenta
começou a desaparecer a censura, possibilitando o
aparecimento da imprensa alternativa. Nesse período, a
grande imprensa ainda estava amordaçada. Os grandes
jornais estavam comprometidos com o regime. Eles não
possuíam a mobilidade necessária para cobrir certas
áreas. Assim, tablóides independentes começavam a
entrar por essa brecha. Tudo começou com o Pasquim,
depois vieram os jornais políticos, Opinião, Versus,
Movimento, e por fim os jornais mais específicos, de
minorias, como os de negros, mulheres e o Lampião.

Com atraso de alguns anos chegou ao Brasil uma nova forma de ativismo
político, uma nova combinação de idéias que contribuiu para o processo de
abandono do paradigma clássico de desejos de luta baseado exclusivamente no
conceito de “luta de classes”.
Os alternativos pregadores da importância do prazer surgiram em reação ao
dogmatismo dos grupos de esquerda e à sua moral conservadora, abrindo um espaço
de discussão tão importante – tanto à crítica dos costumes quanto à necessidade da
liberdade política - que fora sufocada durante o período da ditadura militar.66
O Pasquim instituiu o debate da cultura underground norte-americana e
detonou um movimento de Contracultura, transformando a linguagem do jornalismo,
mudando hábitos e empolgando os jovens dos anos setenta. A publicação direcionou
suas críticas não só aos aspectos econômicos do regime ditatorial, mas também em
fazer uma contestação cultural mais ampla. A palavra “bicha” apareceu pela primeira
vez na edição de número três do jornal. O Pasquim introduziu o palavrão na
linguagem jornalística através de termos que foram rapidamente incorporados no

65
Idem, p. XIV-XV.

89
cotidiano do público leitor. Em tom de sátira, o Brasil começava a presenciar
matérias ligadas à homossexualidade através do trabalho do Pasquim.67
Paradoxalmente o Pasquim era machista, fazendo um gênero de humor que o
denunciava como falsamente libertário na questão da homossexualidade. As
posições do jornal deixavam transparecer uma visão do mundo machista, ao mesmo
tempo em que ousavam tratar de forma irreverente os assuntos abordados de forma
moralista pela grande imprensa.68
Peter Fry reconhece esse característica do jornal fazendo um breve
comentário:
Peter Fry - Na época, quais os outros jornais que
havia!? Opinião, Movimento... que era um contraponto
ao Pasquim. O Lampião não era tão radical como o
Pasquim, mas noutra direção procura enfrentar o
machismo do Pasquim... o qual todo mundo conhecia...
ou seja, o Lampião também representava outra
alternativa interessante.[...]

Neste ponto é preciso ressaltar o encontro de dois autores ao analisarem o


trabalho do Pasquim: Edward MacRae e Bernardo Kucinski. MacRae aproxima-se
de Kucinski quando demonstra como o Pasquim, forçado a conviver no espaço
permitido à oposição, reunia a crítica política com a crítica dos costumes.69 Por outro
lado quando Bernardo Kucinski se refere ao processo de perseguição do regime
ditatorial ao jornal, o autor considera que a censura e a repressão dos militares
reforçou o encontro das duas vertentes críticas em suas páginas.70
Em 1977, João Antônio Mascarenhas reuniu um grupo de intelectuais e
jornalistas para entrevistar Winston Leyland e a matéria foi publicada no Pasquim.
Leyland era editor do jornal norte-americano Gay Sunshine e visitou o Brasil à

66
Idem, p. 51.
67
Idem, p. 158.
68
Idem, p. 159; ver também MACRAE, Edward. Op. cit., p. 69-70.
69
MACRAE, Edward, Op. cit., p. 70.
70
KUCINSKI, Bernardo. Op. cit. p. 52-53.

90
procura de material para uma antologia de contos homossexuais latino-americanos.71
A visita de um editor responsável por uma publicação gay nos Estados Unidos foi
considerada um evento importante para o pequeno grupo de intelectuais e jornalistas
do eixo Rio-São Paulo.72
João Antônio Mascarenhas que recepcionou Winston Leyland fala sobre
como aconteceu a possibilidade de recepcionar o editor da Gay Sunshine:
João Antônio Mascarenhas - Em 1976, recebi uma
segunda carta deste Winston Leyland... ainda como
dono do mesmo jornal. Ele dizia ter apresentado um
projeto a National Endownment for the Arts, para uma
antologia de artistas plásticos e escritores gays
brasileiros, e que esse projeto tinha sido aprovado. Isso
significava que ele receberia uma pequena ajuda
financeira... Esse National Endowment for the Arts é um
órgão, um instituto criado pelo Congresso Americano -
Senado e Câmara Federal de deputados dos Estados
Unidos -, que dá prêmios a projetos aprovados em todos
os campos das artes: teatro, cinema, música, literatura e
assim por diante. Ele dá pequenos prêmios que ajudam
financeiramente e dão certo prestígio às iniciativas
selecionadas. [...] Escrevi a ele dizendo que minha
garçonnière estava à disposição para ele se hospedar... e
que podia fazer as refeições com a minha mãe e comigo
em Copacabana, pois ficava próximo. E ele aceitou. [...]
Quando o Winston chegou, eu já tinha conseguido uma
série de entrevistas. [...] Houve uma primeira página no
suplemento literário do JB, outra no Segundo Caderno
do Globo e em muitos outros jornais. Houve uma
entrevista de quatro ou cinco páginas no Pasquim... no
período era um jornal alternativo muito vendido.[...]

João Antônio Mascarenhas propôs então a idéia de produzir uma publicação


séria e destinada a promover a discussão sobre a homossexualidade no Brasil:

71
LEYLAND, Winston. Op. cit, p. 5.
72
Esta história está presente em três obras que me levaram a prestar atenção nos seus
desdobramentos e posteriormente elaborar um projeto de pesquisa ao conhecer este fato. As obras
são Devassos no Paraíso- p. 203-, de João Silvério Trevisan;Manual do Pedólatra Amador - p. 112,
de Glauco Mattoso; e A Construção da Igualdade - p. 71 -, de Edward MacRae.

91
João Antônio Mascarenhas - Também estabeleci
contato com vários escritores. Como conhecia
Gasparino Damata, procurei ter mais contato com ele.
Os outros foram aparecendo através deles ou, ao ver
meu nome no jornal, telefonavam, dizendo estar
interessados em participar desta antologia. O contato
pessoal com alguns desses escritores e jornalistas, fez-
me pensar: “- Bom! Se o Winston conseguiu fazer um
jornal destes nos Estados Unidos, onde há tanta
concorrência... Se ele pode desenvolver esse trabalho há
tantos anos, nós aqui poderíamos fazer algo igual ou
melhor!?”[...] Desta forma, refletiu-se muito sobre a
idéia. Na mesma ocasião, parece-me que o Aguinaldo
Silva disse o seguinte: “- Mas... por que nós não
fazemos um jornal?” Eu disse: “- Não! Um jornal é uma
coisa muito cara!” Eu imaginava que o jornal tinha de
ter o prédio, a impressora e outras coisas. Ele disse: “-
Não! Não é necessário.” Na época, ele era copy-desk de
o Globo. Além disso, começaram a circular alguns
jornais alternativos. Havia um periódico, mensal, que se
chamava O Beijo... surgiu pouco antes do Lampião. O
Aguinaldo disse: “- Tem esse jornal O Beijo que foi...” e
falou sobre a quantidade de capital necessário... não me
lembro qual era o valor, mas era uma quantia mínima.
Depois, acho que era levado ao Jornal do Comércio
para ser impresso. Então eu disse: “- Ah! Bom, sendo
deste modo... está ótimo”. Assim, nasceu a idéia do
Lampião.

2. Uma Fraca Cortina de Fumaça.

Em abril de 1978 foi editado o número zero do Lampião da Esquina. A


publicação durou três anos com tiragens mensais de doze a quinze mil exemplares.
Segundo MacRae, o Lampião atingiu um público maior devido à distribuição do
jornal pelo país inteiro e essa prática assegurou a divulgação de suas idéias em nível
nacional.73
A edição experimental - número zero - contém um artigo de meia página
chamado “Saindo do Gueto”, no qual é discutida a idéia da abertura de um espaço

73
MACRAE, Edward, Op. cit., p. 192.

92
através do qual se encaminharia a apresentação dos homossexuais como uma entre
as outras minorias: todas com direito à voz para poderem lutar pela plena realização
de suas carências, reforçando a posição de colocar a discussão da homossexualidade
dentro de um contexto social mais amplo que acompanhava os ventos da abertura.74
Na mesma página foi publicado o artigo “Senhores do Conselho”, onde era
feita uma breve descrição dos onze responsáveis pela perspectiva defendida pelo
jornal. Os nomes eram: Adão Acosta, Aguinaldo Silva, Antônio Chrysóstomo,
Clóvis Marques, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata, João Antônio
Mascarenhas, o pintor Darcy Penteado, o crítico de cinema Jean Claude Bernardet, o
escritor e cineasta João Silvério Trevisan e o antropólogo Peter Fry.75
Uma das características apontadas por Bernardo Kucinski refere ao fato dos
jornais da imprensa alternativa montarem um conselho editorial formado por
personalidades de prestígio. Essa composição tinha a finalidade de legitimar a linha
editorial, ampliar a base de sustentação dos jornais frente às investidas da repressão
e identificá-lo com correntes expressivas de opinião.76
Os depoimentos de Celso Curi, Edward MacRae e Peter Fry revelam essa
característica presente na montagem do conselho editorial do Lampião:
Celso Curi - Já fazia algum tempo que escrevia a
coluna quando surgiu o Lampião... acredito que em
1978. O Aguinaldo Silva e o Darcy Penteado me
procuraram. Nesse encontro, eles me convidaram para
ajudar no Lampião. Naturalmente fiquei super feliz,
tanto que aceitei. Formou-se assim o Conselho Editorial.
Entretanto, eles não me convidaram para ser Senhor do
Conselho, porque eu era considerado pouco sério. Esse
assunto, costumo dizer, é engraçado porque sempre fui
muito bem humorado. E na verdade me considero
“pouco sério” até hoje. Sou uma pessoa super séria, mas
pouco sério... gosto de brincar com o sentido das

74
O Conselho Editorial. “Saindo do Gueto” in: Lampião da Esquina. Edição Experimental, No. 0,
abril de 1978. p. 2.
75
O Conselho Editorial “Os Senhores do Conselho” in: Lampião da Esquina. Edição
Experimental, Nº 0, abril de 1978. p. 2.
76
KUCINSKI, Bernardo, Op. cit., p. XX.

93
palavras. Acredito que ainda hoje não tenho autoridade
para ser senhor de coisa alguma, apesar de estar
trabalhando há anos na Secretária da Cultura do Estado
de São Paulo.
Edward MacRae - A história do jornal Lampião
aconteceu na época que morava com Peter, quando
começávamos a nos conhecer. Na época, houve uma
reunião de um grupo de intelectuais e jornalistas
homossexuais no Rio de Janeiro. Ele participou para
ajudar a começar o jornal. [...]
Peter Fry - [...] O jornal dava vazão... dava
legitimidade! Modéstia parte, naquele jornal nós
tínhamos gente boa... tínhamos muita legitimidade! O
Aguinaldo estava começando sua carreira, acho que já
tinha publicado dois livros. Ele já era apontando como
grande escritor brasileiro. O Darcy era pintor da society,
bem estabelecido, muito respeitado... acho que já tinha
um livro quando começou no jornal. Tinha o Jean
Claude, respeitadíssimo no campo dele! De fato, era um
grupo interessante... muito heterogêneo. Desta forma,
acho que o Lampião prestou uma certa legitimidade.

Glauco Mattoso não compõe o núcleo fundador, porém mantinha uma relação
próxima com os membros do conselho editorial. Ele faz considerações a respeito das
preocupações iniciais que cercavam alguns dos membros ligados à elaboração do
Lampião:
Glauco Mattoso - Um pouco antes do Lampião surgir,
havia um círculo de intelectuais, tanto no Rio quanto em
São Paulo, preocupados em aglutinar pessoas
preocupadas em pensar a questão homossexual fora da
badalação do gueto. O gueto, se por um lado era
interessante enquanto ponto de encontro, por outro não
refletia, não teorizava e nem polemizava a questão,
somente a folclorizava. Do ponto de vista desses
intelectuais, eles buscavam uma nova abordagem do
problema. Queriam politizar a questão. A única forma
de politizá-la era: tirá-la do gueto primeiramente, para
em seguida questionar a postura da esquerda tradicional.

94
Desde o início do jornal, contudo, a reunião do grupo revelou a existência de
diferenças de opinião entre os participantes.77 O antagonismo referente ao tratamento
da questão homossexual aflorou em meio às posições defendidas.
Alceste Pinheiro relata suas impressões sobre como os membros do Conselho
discutiam a orientação que o jornal deveria adotar:
Alceste Pinheiro - Havia uma divergência, devido a
proposta de João Antônio Mascarenhas. Ele queria fazer
um jornal prestador de serviços, para esclarecimento de
homossexuais. Neste sentido, o jornal seria produzido
para aquele homossexual do interior, ele poderia ler um
livro e se esclarecer... a minha posição não era esta.
Possuía uma visão mais anarquista que a dele. Achava
que o jornal devia ter uma atuação mais ampla.
Propriamente, não deveria ter uma ação política
centrada neste meio. Politicamente, o jornal devia ser
mais conseqüente.

O Lampião superou essa divergência ao adotar os valores dos movimentos


minoritários e optar por dar voz às lutas políticas dos setores oprimidos da
sociedade. O tratamento da homossexualidade aparecia em suas páginas como um
fenômeno social problematizado, tanto quanto a questão dos negros, dos indígenas,
das mulheres. Os artigos publicados abriram um fórum que tomava todas essas
discussões como referencial.78
Antônio Carlos Moreira expressa essa convicção quando comenta sobre o
início de suas atividades no jornal. O colaborador apresenta argumentos que
questionam a função do Lampião como um órgão exclusivamente voltado ao
movimento homossexual:
Antônio Carlos Moreira - Da reunião do núcleo
fundador do Lampião surgiu essa vontade de criar um
jornal, cujas páginas pudessem dar voz a todas essas
tendências... isso foi importante para aquele momento
do processo de abertura democrática. [...] O Lampião
fez a primeira grande entrevista com o Gabeira, falando

77
MACRAE, Edward. Op. cit. p. 71.
78
Idem, p. 75-76.

95
sobre a tanguinha que ele usara, falando sobre
comportamento e coisas do gênero... tudo fora trazido
pelo chamado “Verão da Abertura” [...] Depois de um
certo tempo, começaram a surgir alguns grupos
homossexuais. O jornal passa a falar sobre os grupos,
mas não abre suas páginas... não dedica artigos! Na
verdade, ele até falou do SOMOS da Argentina, mas não
era um jornal voltado à militância homossexual.[...]

Porém, segundo o próprio Antônio Carlos Moreira, os outros movimentos -


movimento negro, movimento feminista - não queriam se comprometer com um
grupo homossexual: os homossexuais eram os únicos que falavam sobre as minorias.
Havia matérias sobre o movimento feminista, sobre o movimento negro, mas não
havia a discussão da questão homossexual nesses movimentos. Desta forma, o jornal
não conseguia agregar todos os setores minoritários.
Essa proposta do tablóide dar voz a todas as minorias acabou na metade de
sua existência, então a publicação se tornou basicamente homossexual.79 Para
Dolores Rodriguez, o Lampião tentou fugir dessa perspectiva, mas sua proposta não
conseguiu extravasar as delimitações colocadas pelos diferentes movimentos
minoritários:
Dolores Rodriguez - Naquela época, essa atitude era
ainda mais acentuada. Havia os movimentos, para
discutir a negritude: “- Enquanto negro, somos todos
submetidos ao preconceito das pessoas, mas enquanto
negro e homossexual...!? Nem pensar!!” A Lecy
Brandão apoiava muito o jornal. Ela falava por
exemplo: “- Eu sou mulher, sou negra e sou
homossexual.” Nós costumávamos brincar que ela sofria
três vezes com o preconceito, primeiro por ela ser
homossexual, depois por ser negra e por último por ser
mulher... acredito com certeza nessa hierarquia! Se sou
mulher e sou negra, sou discriminada. Porém, se sou
mulher, negra e homossexual, então está tudo acabado!
Pode trancar a pessoa no armário e esquecer que tem
alguém ali dentro. E o Lampião, apesar de ter o Adão,
não escapava deste problema.

79
Idem, p. 76-77.

96
3. Um Início Difícil: o Estado contra o Lampião.

Os problemas internos somavam-se aos problemas externos. Como aconteceu


com Celso Curi, o pretexto de enquadrar o jornal por atentado à moral e aos bons
costumes - conforme o artigo nº 1077 da Lei de Imprensa - foi utilizado contra os
editores do Lampião. Em agosto de 1978 os membros do conselho editorial foram
informados que o Departamento de Polícia Federal do Rio de Janeiro abrira inquérito
com base no referido artigo.80 Esse processo foi arquivado, em outubro de 1979, sob
o parecer da justiça que o conceito de moral, usado contra a publicação, era relativo
e não absoluto, portanto não havia como utilizá-lo em nome de todos os membros da
sociedade.81
A história do inquérito foi relatada pelos colaboradores que responderam ao
processo - estes compunham o conselho editorial -, e pelo colaborador que convivia
com um dos membros fundadores: no primeiro caso, João Silvério Trevisan, Peter
Fry e João Antônio Mascarenhas; e no segundo, Edward MacRae.
João Silvério Trevisan - [...] o ministro da justiça, na
época o Armando Falcão, instaurou um inquérito contra
o Lampião, por atentado à moral e aos bons costumes
através da imprensa, por veicular matéria atentatória.
Era o Estado contra o Lampião./ A matéria escolhida
fora feita pelo João Silvério Trevisan sobre o jornalista
Celso Curi. Basicamente era uma matéria que contava
como o Celso Curi estava sendo perseguido pelo
sistema judiciário brasileiro por ter criado uma coluna
gay no jornal Última Hora de São Paulo, e quem
publicou essa matéria para defender o Celso Curi
também entrou no rolo, então nós sofremos esse
inquérito já a partir do número zero. A punição foi
exemplar, veio rápida e não havia diálogo. [...] Esse
inquérito nunca deu em nada. Na verdade, era um
inquérito para ver se havia condições de instaurar um
processo contra nós, por atentado à moral e aos bons
costumes.

80
Idem, p. 162.
81
Idem, p. 169.

97
João Antônio Mascarenhas - [...] fomos processados
por ofensa à moral e aos bons costumes. De uma
maneira genérica, eles processaram todo o corpo
editorial do Lampião. Éramos onze, acho que disse o
nome de todos: Darcy Penteado, Peter Fry, Jean Claude
Bernardet [...], Antônio Chrysóstomo, Aguinaldo Silva,
João Silvério Trevisan, Francisco Bittencourt,
Gasparino Damata, Adão Acosta, e Clóvis Marques [...]
Peter Fry - [...] Não era um mar de rosas, tanto que
fomos processados... ou indiciados! Lembro que fui
chamado na Polícia Federal... uma coisa
engraçadíssima!! Aliás!! Nada engraçado! Nada
engraçado!! Estava sozinho quando fui chamado, os
outros já haviam deposto... acho que estava fora!
Quando voltei tive que ir à Polícia Federal. [...] Depois
daquele depoimento, eles me mandaram tocar piano
numa outra dependência... foi muito desagradável! Não
vou esquecer dos policiais me chamando de gringo,
acusando-me de corromper o Brasil... de estar poluindo
a pureza brasileira.
Edward MacRae - O Lampião sofreu sérias
perseguições. Inicialmente, todos os diretores, incluindo
Peter, foram fichados pela polícia. Peter, quando foi
fichado, voltou arrasado porque sofreu humilhação. Na
época da ditadura, só de imaginar a idéia de enfrentar
aqueles policiais e milicos horrorosos, e ainda por cima
estar numa posição de defensor de uma causa gay, era
um tal de piadinha, risadinha e não sei o que... essas
pessoas não eram consideradas sérias. O Peter tinha um
nome respeitável, era uma pessoa com status muito
elevado, muito respeitado porque fez muita coisa dentro
do mundo acadêmico. Porém, nesse momento nada
tinha importância. De repente, ele foi obrigado a entrar
num quartel ou numa delegacia, não me lembro agora,
onde a pessoa era tratada com desprezo, era
humilhada.[...]

4. Atentados a Bomba: outro reflexo do período.

Em meados de 1977, começaram os atentados à bomba nas sedes dos jornais


alternativos e nas bancas que vendiam essas publicações. Os atentados eram mais
uma ação para asfixiar a imprensa alternativa durante o período da “abertura”. Em

98
setembro de 1978, o CIEX (Centro de Investigações do Exército) prepara um dossiê
sobre a imprensa nanica que lançava as bases para ações legais contra os jornais. O
Lampião foi atingido por perícias contábeis em julho de 1979.82 No bojo desta
situação, a imprensa alternativa também era acusada de dar proteção aos
“subversivos.”83
João Silvério Trevisan e Antônio Carlos Moreira tocam nesta questão durante
suas narrativas:
João Silvério Trevisan - O Lampião pretendia trabalhar
nesse contexto, com esses dados [dos movimentos da
abertura democrática]. Ironicamente, já no primeiro
número fomos incluídos por um grupo paramilitar, que
estava estourando bombas em bancas de revistas, na
lista de jornais subversivos que não poderiam ser
vendidos.
Antônio Carlos Moreira - Entre 1977 e 1978, havia
uma movimentação política: as organizações estavam
voltando às ruas, havia passeatas, começou a campanha
da anistia e surgiram jornais alternativos como:
Movimento, Versus, O Fato, Em Tempo. Nesta época,
começaram a explodir bombas nas bancas de jornal...
assim instaurou-se no Lampião um clima de terror: “-
Ah! Nós também temos um jornal alternativo!!
Queiramos ou não também falamos de política! O que
vamos fazer então!?!”... não era sobre política
institucional, mas não deixava de ser política!

Durante um longo período de tempo os atentados persistiram, porém a partir


de junho de 1980 assumiram um caráter mais trágico. O apogeu aconteceu em
agosto, quando os incêndios das bancas que vendiam jornais alternativos tornaram-
se uma forma freqüente de represália. A partir de então os jornaleiros começaram a
recusar os tablóides.84
Alceste Pinheiro recupera a história dos atentados quando se refere às
reuniões que participou como representante do Lampião:

82
KUCINSKI, Bernardo. Op. cit., p. 119.
83
Ver também: MACRAE, Edward. Op. cit., p. 163-164, 170.
84
KUCINSKI, Bernardo. Op. cit., p. 119.

99
Alceste Pinheiro - Recordo que ocorreu o problema das
bombas em bancas de jornal, também participávamos
destas reuniões. Bastava as bancas venderem os jornais
alternativos para serem estouradas. Desta maneira, as
bancas começaram a recusar o produto. Para resolver
esse problema, fui a duas ou três reuniões com esses
jornais, para organizar uma manifestação contra esta
atitude. Eu representava o Lampião naquele núcleo de
jornais que estavam sofrendo atentado: o Pasquim, O
Repórter, Em Tempo; este último funcionava no mesmo
prédio da redação do Lampião e tinha sido alvo de
atentado. Enfim, vários jornais estavam sendo vítimas
de terrorismo.

5. Em Nome de Todos: um jornal e duas vozes.

Com o desenvolvimento da história do Lampião alguns dos membros passam


a ocupar uma posição mais funcional dentro do jornal, enquanto outros passam a não
exercer quase nenhum papel.85 No Rio de Janeiro Aguinaldo Silva e Francisco
Bittencourt destacaram-se devido ao trabalho junto à redação, enquanto em São
Paulo João Silvério Trevisan e Darcy Penteado sobressaíram-se aos demais. Este era
o principal grupo de editores do jornal. É importante dizer que os conselheiros não
se reuniam para fazer reuniões de pauta do jornal, pois a idéia se tornou inviável por
causa do número de pessoas divididas entre Rio e São Paulo.
O poder de decisão, contudo, estava concentrado nas mãos de Aguinaldo
Silva que praticamente tornou-se o principal editor do Lampião:
João Antônio Mascarenhas - [...] o Aguinaldo tomou o
jornal. Não há dúvida nenhuma que o Aguinaldo é um
homem muito trabalhador, mas o que tinha sido
proposto deixou de ser. Ele ficou com a direção do
jornal, com as assinaturas, com a distribuição, com a
pauta... dou risadas quando questiono o que sobrou!![...]
Peter Fry - Aquilo não teria acontecido se não fosse o
Aguinaldo... todo mundo deve ter dito isso!!! O

85
Este aspecto é interessante, pois esclarece a polarização final entre as posturas de João Silvério
Trevisan e Aguinaldo Silva, num desentendimento que se estabelece entre Rio de Janeiro e São
Paulo. MACRAE Edward, Op. cit., p. 91.

100
Aguinaldo juntava tudo e levava até à gráfica. Naquela
época não havia computador. Era tudo na base de fazer
o texto caber na página. Isso sempre dava brigas porque
havia cortes nos textos... acusação de censura prévia.
Coitado! O Aguinaldo sofreu muito. Ele é a pessoa mais
importante. Foi ele que juntou os trapos, levou-os à
gráfica e fez aquilo acontecer. Sem Aguinaldo nada teria
sido feito. Mesmo assim, quando alguém assume a
responsabilidade, os outros sempre acham defeito.
Antônio Carlos Moreira - [...] o Aguinaldo editava o
jornal, ele levava o Lampião nos braços até o Jornal do
Comércio para ser impresso... no carro dele! O jornal
não tinha como sustentar o aluguel apesar do Lampião
ser uma empresa. O Aguinaldo alugava uma sede para o
Lampião no Rio... com esta estrutura ele dava o tom que
queria ao jornal.[...]
João Carlos Rodrigues - [...] Acredito que o jornal
aconteceu porque o Aguinaldo era um jornalista. Ele era
a pessoa que sabia a rotina de jornal: “- Tem de fechar
no dia tal! E o fotolito!? E não sei mais o que!!?” Ele
tinha todas essas preocupações [...]
Alceste Pinheiro - O Aguinaldo Silva praticamente
sustentava economicamente o jornal. Na época que
cheguei, ele ainda trabalhava no jornal O Globo. Ele
saiu depois porque não pretendia permanecer naquele
jornal. Muita gente acredita que ele saiu por causa da
televisão, não é verdade, ele saiu do Globo e foi se
dedicar intensamente ao Lampião. Então, ele saiu antes,
até já havia feito alguns trabalhos para a televisão. Mais
tarde, ele conseguiu um contrato efetivo com a TV
Globo.
Dolores Rodriguez - [...] Ele [o Lampião]
simplesmente acabou por falta de vontade das pessoas.
Acho que pelo cansaço do Aguinaldo, ele era o
maquinista desse trem! Peguei o jornal numa fase mais
assentada, sem a presença dessas figuras famosas, mais
reconhecidas no meio social, enfim, mais badaladas!
Porém, as pessoas que se identificavam com a linha do
jornal, não queriam que ele acabasse.

Aguinaldo Silva e Francisco Bittencourt, segundo o texto A Construção da


Igualdade de Edward MacRae, estavam ativamente envolvidos com o jornal no Rio

101
de Janeiro.86 Em São Paulo destacavam-se João Silvério Trevisan e Darcy Penteado.
Darcy Penteado, contudo, aparecia numa posição secundária. João Silvério Trevisan
foi considerado um dos principais ideólogos do movimento homossexual e do
Lampião.87 Ele é apresentado como o principal divulgador dos ideais da
Contracultura.
Edward MacRae, além de reconhecer a importância de João Silvério Trevisan
em seu trabalho de pesquisa, retoma essas considerações durante a narrativa, as quais
também são enfatizadas por João Antônio Mascarenhas:
Edward MacRae - O Trevisan escrevia coisas
fascinantes. Ele via os homossexuais como a parte podre
da sociedade, os responsáveis pela destruição do aparato
social. Eles iriam apodrecer uma sociedade que já era
completamente demoníaca e horrorosa. Parecia que toda
essa estrutura seria corrompida por dentro. Esta era a
imagem que o Trevisan passava muito no Lampião.[...]
João Antônio Mascarenhas - No que se refere ao
movimento homossexual, houve o seguinte... quem
tinha vontade daquele movimento era eu... quem estava
a par do movimento era eu. O João Silvério Trevisan era
o único que tinha alguma noção além de mim. Ele havia
morado nos Estados Unidos. O Trevisan possuía a idéia
do Gay Liberation... que é uma atitude filosófica de
contestação plena, completa e radical. Algo um pouco
diferente da minha posição... nunca fui do Gay
Liberation. Nesse meio tempo, já conhecia bem o Gay
Liberation porque estava com uma bibliotecazinha
sobre o assunto. Os outros nunca tinham ouvido falar
em movimento, nem o Aguinaldo... o Darcy também
não.

6. As Novas Vozes.

O Lampião publicou um número considerável de matérias durante seus três


anos de existência, atraindo a atenção de muitos colaboradores. Ao ouvir as

86
Idem, p. 88.
87
Idem. p. 85.

102
narrativas, observamos como muitos dos futuros membros foram à redação do jornal
após tomar conhecimento de suas páginas ou ouvir referências através de amigos.
José Fernando Bastos foi convidado por Antônio Chrysóstomo e Aguinaldo
Silva pelo fato de fazer crítica de teatro e música. João Carlos Rodrigues conheceu
os membros do Lampião quando trabalhava na Embrafilme, através de Adão Acosta
que procurava por pessoas que pudessem enviar artigos para publicação. João Carlos
Rodrigues aceitou o convite e começou a participar das reuniões, ajudava a
conseguir entrevistas, mas optou em manter-se como um participante eventual. A
proposta libertária do Lampião atrai Luiz Carlos Lacerda, amigo de João Carlos
Rodrigues, que sentia necessidade em dar seu testemunho sobre experiências
próximas dos ideais divulgados pelo tablóide.
Na inicio do jornal, Aguinaldo Silva, Francisco Bittencourt e Adão Acosta
permaneciam na redação diariamente. Depois agregaram-se Antônio Carlos Moreira,
Alceste Pinheiro, Aristides Nunes e Dolores Rodriguez, participantes que iniciaram
suas atividades como colaboradores na redação e passaram a ser redatores do
Lampião. Isso ocorre quando o Aguinaldo Silva começa a se afastar do jornal para
trabalhar como roteirista para a televisão. Nesse período, ele deixa o jornal por conta
do grupo que o ajudava na redação:
João Carlos Rodrigues - Duas pessoas trabalhavam
muito na redação: Alceste Pinheiro e Antônio Carlos
Moreira. [..] Eles faziam esse rame-rame da redação:
“- Pega o fotolito! Pega não sei o que! Faz a revisão!
Leva não sei pra onde! Vai ver na gráfica se está
pronto!?” Essa mão de obra, quando comparada com os
dias de hoje, parece trabalho da Idade da Pedra...
atualmente tudo é feito pelo computador... [...] O
Francisco Bittencourt e a Dolores também ficavam
muito no local. Basicamente, esses quatro ficavam na
redação: Francisco Bittencourt, Dolores, Alceste e
Antônio Carlos. O Aguinaldo era o editor, ele
supervisionava esse lado todo.[...]

103
Durante o ano de 1979, Antônio Carlos Moreira ingressa no grupo
SOMOS/RJ ao mesmo tempo em que começa a trabalhar no Lampião. Ele visita a
redação do jornal no decorrer do curso de comunicação, conhece Aguinaldo Silva,
começa a colaborar com artigos e com o tempo passa a ocupar o cargo de redator do
jornal:
Antônio Carlos Moreira - No dia a dia comecei a
absorver as atividades do jornal porque tinha muito
trabalho a fazer. Primeiro fui colaborador, depois me
tornei redator. O jornal não tinha dinheiro para pagar
ninguém, mas fui ficando ali... era como um bar que
comecei a freqüentar todo dia. Então, fui fazendo os
amigos... e naquele dia se não fosse a redação para
conversar, parecia que não tinha feito nada. A visita ao
Lampião diariamente era quase um vício.[...] o João
Carlos Rodrigues que escrevia de vez em quando - era
uma pessoa que colaborou muito com o jornal através
de idéias, sugerindo muitas pautas... foi um cara
importante para o jornal.

Alceste Pinheiro recupera o fato de conhecer previamente Aguinaldo Silva -


pois foram colegas de trabalho um pouco antes do lançamento do Lampião - e que
eventualmente podia comprar jornal e lê-lo. Porém decide ajudar Aguinaldo Silva no
ano de 1979. À época, ele encontra Antônio Carlos Moreira, um amigo de
adolescência, que o convida para ir à redação:
Alceste Pinheiro - Nós fazíamos um bom produto, mas
tínhamos um mercado muito limitado. Não se pagava
pelo trabalho dos colaboradores, as pessoas não
recebiam basicamente nada. No final do jornal recebi
alguma colaboração, mas durante muito tempo trabalhei
sem receber nada. Eu e o Antônio Carlos, por uma série
de fatores podíamos trabalhar no jornal. Eu possuía
algum dinheiro, estava com vontade de fazer aquilo e
depois voltei a trabalhar em outro lugar, mas o jornal
conseguiu se sustentar por um bom tempo. Até que
finalmente chegou um momento que não dava mais.

104
A história de Dolores Rodriguez é semelhante, Aristides Nunes um amigo em
comum dela e de Antônio Carlos Moreira indica-lhe um trabalho como revisora do
Lampião. O tempo e a convivência com as pessoas a fez permanecer na redação. O
caso de Dolores Rodriguez é singular, pois ela foi a única mulher, lésbica, que
trabalhou na redação do jornal como colaboradora permanente. Leila Míccolis
escreve muitos artigos, mas não mantinha a mesma relação de freqüentar a redação e
as reuniões de pauta como Dolores Rodriguez:88
Dolores Rodriguez - Depois que comecei a me
envolver com o jornal, passei a viver uma rotina quase
diária. Independente do que fosse fazer, tinha um
compromisso, mesmo que não fosse trabalhar passava
lá. Era legal estar com as pessoas. O Aguinaldo é
bastante espirituoso, muito engraçado. Era legal ir ali,
pois caso estivesse de baixo astral, iria rir ao chegar lá.
Era um ambiente de trabalho para cima. Por mais
problemas que todo mundo tivesse, tinha sempre alguém
fazendo uma gaiatice. Nas piores fases que o jornal
passou, havia desânimo, mas sempre aparecia alguém
para levantar o astral de todo mundo.

Em 1978, Alexandre Ribondi tomou contato com o Lampião: os membros do


jornal lhe escrevem convidando-o para ajudar. Alexandre Ribondi recupera suas
atividades falando sobre como recebia o jornal em Brasília, o distribuía nas bancas,
depois recolhia as sobras e o dinheiro para mandar ao Aguinaldo Silva no Rio de
Janeiro. Alexandre Ribondi enfatiza o fato que sempre permaneceu em Brasília:
Alexandre Ribondi - Em 1978, tomo contato com o
Lampião. Nesse período, eles me escreveram,
perguntando se queria participar!? Comecei escrevendo
um artigo, depois assinava uma coluna no jornal. [...]
Recebia o Lampião, distribuía nas bancas, depois
recolhia as sobras do jornal, recolhia o dinheiro e
mandava para o Aguinaldo./ Não conhecia nenhuma das
pessoas do jornal. Algum tempo depois, comecei a

88
Como indica Edward MacRae, além de Leila Miccolis, colaboraram Mariza Correa, Lélia
Gonzalez, entre outros nomes que enriquecem as páginas do jornal. MACRAE, Edward. Op. cit.,
p. 75.

105
escrever! Passei a ser um nome com certo destaque no
Lampião. [...]

7. As Vozes se Multiplicam: o Lampião e o movimento homossexual.

No ano de 1979 - durante a discussão sobre homossexualidade, promovida na


semana de debates sobre minorias na USP - constatou-se o quanto as posições do
Lampião eram difundidas e encontravam respaldo no meio homossexual. A
divulgação de certas posições ideológicas, presentes no jornal, acirravam ou
tornavam justificável as posições autonomistas dos grupos minoritários.89
Durante um certo período o Lampião foi considerado importante, pois
funcionava como uma espécie de órgão do movimento homossexual. Não havia
como evitar, visto que a publicação veiculava diferentes discussões sobre a
homossexualidade, inclusive propostas de militância.90 O jornal Lampião era o único
lugar onde se podia publicar cartas de protestos, além de divulgar os endereços de
grupos. Segundo a narrativa de Luiz Mott, quando o Grupo Gay da Bahia foi
fundado sua existência foi divulgada através do Lampião: 91
Luiz Mott - Nessa época [em que se mudou para
Salvador], eu continuava recebendo o jornal Lampião.
Foi o período em que tinham se fundado alguns grupos:
O SOMOS de São Paulo, do Rio de Janeiro e de
Sorocaba. Assim, tive a idéia de fundar um grupo em
Salvador. No fim do ano de 1979, escrevi um anúncio
no jornal Lampião dizendo: “Bichas baianas, rodem a
baiana... tudo bem! Mas deixem de ser alienadas.
Vamos fundar um grupo de discussão sobre
homossexualidade... me escrevam!” Como não tinha
caixa postal, botei o endereço do meu apartamento.

89
Idem, p. 108-110.
90
Idem, p. 76-77.
91
Após fazer o levantamento de artigos do Lampião, encontramos o artigo de Luiz Mott chamado
“Histórias de gente humilde.”, o que sugere um dos aspectos do jornal ligado à divulgação das
atividades e dos endereços dos grupos de militância existentes no Brasil. in: Lampião da Esquina.
Rio de Janeiro março de 1981. ano III, Nº 34, p.3.

106
O jornal publicava as notícias de grupos como SOMOS/SP, Beijo Livre de
Brasília, Grupo Gay da Bahia; UVA - União dos Viados de Alagoas.92 O Lampião
tornara-se um veículo de referência para os grupos de militância que começaram a se
formar no Brasil. Podemos ler sobre essa expectativa nas seguintes narrativas:
James Naylor Green - O Lampião provocou a
formação de um grupo de militância homossexual em
São Paulo. Quando cheguei ao Brasil, em começos de
setembro de 1978, integrei imediatamente este grupo.
Fui bem vindo às reuniões que se realizavam na casa das
pessoas. Quando integrei o grupo, ele ainda não tinha o
nome SOMOS. No início, durante três ou quatro meses,
o grupo ainda tinha outro nome: Núcleo de Ação pelos
Direitos Homossexuais. O nome SOMOS foi adotado
em dezembro de 1978. [...] Em 1978 quando o SOMOS
surgiu, fundado logo depois do lançamento do Lampião,
passou por um grande processo interno, fazendo
anúncios na imprensa alternativa. No verão de 1979, o
grupo resolve assumir-se publicamente durante um ciclo
de debates sobre minorias ocorrido na USP. Tratava-se
de um evento promovido pelo DCE. A proposta era
debater as influências mais libertárias e anarquistas,
assim como apresentar críticas aos grupos marxistas-
stalinistas. [...] Neste caso, quando se faz uma
cronologia dos nomes de todas as pessoas que
começaram no ativismo nos anos oitenta, muitas delas
pegaram o jornal Lampião, onde souberam do trabalho
que nós fizemos inicialmente no PT. Havia aquelas que
ouviram falar através de um amigo que era do
SOMOS... era uma tradição que infelizmente a história
não tem documentada.
Luiz Carlos Lacerda - No que se refere à possibilidade
do Lampião ajudar a aglutinar as organizações
homossexuais para lutarem politicamente pelos seus
direitos!? No meu caso, por exemplo, quando ouvi falar
nesse jornal, fui logo correndo para colaborar. O
exemplo de um jornal defensor de idéias
comportamentais de minorias criou condições para que
outros grupos se organizassem. É possível se organizar,
é possível lutar, é possível levantar bandeiras, ele foi
super importante.

92
O grupo divulga um roteiro gay da cidade de Maceió. in: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro,
abril de 1980, ano II, Nº 23, p. 15.

107
Alexandre Ribondi - O Lampião vai articular grupos
diretamente. [...] Mesmo não querendo, o Lampião criou
grupos homossexuais por todo o Brasil! Em Brasília
tinha o Beijo Livre, em Alagoas tinha o UVA - União
dos Viados de Alagoas... é engraçado porque o nome era
tão bonitinho!! Aquele moço da Bahia, o Luiz Mott
também surgiu nessa época! [...] Enquanto os outros
jornais esbarravam no preconceito, falavam com chacota
que as bichinhas estavam reunidas!! O Lampião
mostrava as discussões sérias... é imprescindível: o
Lampião foi o pai de todos esses grupos que surgiram!
[...] O SOMOS se forma um pouquinho antes, ou quase
na mesma época do Lampião, mas é a mesma idéia
brotando no mesmo momento, com a mesma
necessidade! O Lampião não pode ser isolado dos
movimentos homossexuais organizados e os
movimentos homossexuais organizados não podem ser
isolados do Lampião! Tanto que uma maneira de um
grupo se comunicar com o outro era publicando as
Caixas Postais ou os endereços no Lampião. Era
inevitável, o Lampião era o arauto e não podia ser de
outra forma! [...] No Lampião há um artigo sobre uma
carta foi entregue ao Papa, eu e o Tom, um amigo que
mora em Goiânia - ele era padre na época -, fomos
encontrar com o Papa e levar essa carta... aqui em
Brasília!! Caso não existisse o Lampião, para que nós
iríamos fazer isso!? Quem iria contar para o resto do
Brasil que fizemos isso!? [...]

8. Os Argumentos Preponderantes.

O Lampião sob a orientação de Aguinaldo debatia-se com as exigências dos


grupos homossexuais de militância. Neste ponto, os membros que trabalhavam na
redação apoiavam a posição adotada por Aguinaldo Silva: o Lampião não era um
jornal exclusivamente voltado à militância homossexual, apenas cobria e divulgava
as atividades dos grupos que começaram a surgir:
Alceste Pinheiro - O Lampião não queria ser porta-voz
dos grupos homossexuais. Não era o perfil do jornal, ele
tinha um objetivo mais amplo, discutir diversas questões
e não ser apenas um jornal de homossexuais. O que
ocorreu, é que havia esta idéia, compartilhada por um

108
grupo bastante expressivo, que fizeram os números
iniciais lhe dando este caráter. E foi um jornal com
bastante êxito, embora não fosse um jornal
perfeitamente profissional, visto que era feito por
amigos, mas que obteve um grande sucesso.
Dolores Rodriguez - O Lampião teve uma participação
na movimentação política dos anos setenta e oitenta,
mas ele não foi o piloto. Parece que foi mais uma
questão das pessoas que viveram naquele contexto. Na
época, estávamos saindo de uma ditadura, começávamos
a respirar a “democracia”. Era a época de abertura
política. Nesse sentido, a sociedade começou a se
posicionar como um todo, exigindo direitos que estavam
guardados na gaveta na época da ditadura. [...] o jornal
ajudou a mostrar a cara desses grupos, a divulgar suas
idéias, porém também mostrava que não era
exclusivamente voltado ao público gay. Esse segmento
estava mais preocupado em discutir sua sexualidade,
estava se organizando. Nem era o caso de uma
reorganização, pois até então não existia - pelo menos
não tenho informação -, de que antes dessa década já
houvesse grupo homossexual. [...] A proposta não era
esta, mas era mostrar que existiam gays em todas as
áreas de atividade. Pessoas que estavam batalhando no
seu trabalho, pessoas não-gays, parecidas com essa
proposta do GLS -hoje são chamadas de simpatizantes -,
que estavam na vida.[...]

9. Os Interesses Cruzados.

Na Semana Santa de 1980 aconteceu o Primeiro Encontro de Grupos


Homossexuais Organizados em São Paulo: I EGHO.93 A convocação para o evento
foi divulgada pelas páginas do Lampião. O jornal cobriu o Encontro Nacional,
publicou os principais acontecimentos e divulgou as reivindicações tiradas pelos
grupos que participaram. O número 24 do jornal é quase todo dedicado a cobertura
do evento:94

93
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 197.
94
Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, maio de 1980, Nº 24.

109
Luiz Mott - [...] Na Semana Santa de 1980, aconteceu o
Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais em São
Paulo. Tive conhecimento dessa realização porque eu li
no Lampião. O Grupo Gay da Bahia fora fundado uma
semana antes, mas não participamos. Na ocasião, não
tínhamos condição de ir a São Paulo. Porém, soubemos
das atividades, recebemos o material... até hoje temos o
cartaz. Ele está emoldurado na sede do Grupo Gay da
Bahia. O cartaz do Primeiro Encontro nem foi
impresso... foi do tipo artesanal.

As narrativas projetam duas tendências que referem as expectativas dos


participantes nos grupos de militância e à posição adotada pelos redatores do
Lampião:
Antônio Carlos Moreira - O jornal foi cobrir o
Encontro Nacional de Grupos Homossexuais
Organizados (EGHO) que ocorreu em São Paulo,
através de militantes que colaboravam com o jornal
como eu, João Silvério Trevisan, Dolores Rodriguez e o
Francisco Bittencourt... este último era o representante
do Lampião. Entretanto, o jornal não estava ali
organizando, dando patrocínio ou apoio. Não existia
isso no Lampião, em momento nenhum isso pode ser
observado... o jornal não organizou nada! Ele
participava como jornal mesmo, abrindo espaço onde
tinha que abrir [...] O Primeiro Encontro ocorreu em São
Paulo, por volta de 1980. Parece-me que foi a única vez
que o jornal, como um todo, dedicou suas páginas para o
movimento, mas ele não se mobilizou... isso que queria
deixar claro!!
Dolores Rodriguez - O Lampião divulga o Primeiro
Encontro Nacional de Homossexuais nas suas páginas.
De uma certa maneira, ele ajuda os grupos a se
organizarem. Nesse Primeiro Encontro, ele era um órgão
aberto para passar as informações dos grupos, mas
autônomo para poder trabalhar tranqüilamente. Se não
me engano, para a cobertura desse Encontro, o jornal
não pagou ninguém para cobrir, a pessoa foi porque
militava. Lá, ela aproveitou para fazer a cobertura e
mandar ao jornal. O que é diferente do jornal que paga
um correspondente. Neste caso, o correspondente tem
um compromisso com aquele órgão. Não foi isso que
aconteceu! As pessoas o fizeram por livre e espontânea

110
vontade. Não havia compromisso oficial com o jornal.
Não era o caso de mandar alguém específico para ir ao
Encontro.
Alexandre Ribondi - [...] Caso o Lampião não
existisse, não haveria o primeiro Encontro de Grupos
Homossexuais Organizados: I EGHO. Ele aconteceu em
São Paulo, naquele Hospital das Clínicas em frente ao
Cemitério. O segundo Encontro aconteceu no Rio de
Janeiro. Foi um bafafá com porrada para todos os
lados!!![...] Com isso, não quero dizer que o Lampião
fez a cabeça dos sujeitos!! Porém, o Lampião foi a
desculpa necessária para que os grupos se formassem!
Ele foi o motivo, a luzinha que se acende para o Brasil
inteiro começar a formar os grupos. O Lampião,
contudo, não era o porta-voz, não se fazia representar,
mas era o jornal que estava presente nos
acontecimentos, fazendo todas as matérias, dando
cobertura completa, refletindo![...]

10. A reestruturação próxima do fim.

Com os desdobramentos da “abertura política”, o Lampião se encontrava


numa fase mais definida quanto à reflexão sobre a homossexualidade, porém o
processo contra Antônio Chrysóstomo - um dos membros do conselho editorial -
iniciou uma crise que provocou uma reestruturação do jornal. O jornalista foi preso e
processado porque uma vizinha o denunciou por maus-tratos a uma garota que ele
adotou.95
Antônio Chrysóstomo era homossexual declarado e militante, redator do
Lampião e assumia tanto sua orientação sexual como contra-atacava os preceitos da
falocracia dominante. No pedido de prisão preventiva o promotor usou como
“prova” a sua participação Lampião, definindo a publicação como um “pasquim
imoral contrário aos bons costumes”.96 Essa crise aconteceu no último ano de
existência do jornal:

95
CHRYSÓSTOMO, Antônio. Op. cit., p. 57-61.
96
Idem, p. 77.

111
Antônio Carlos Moreira - Até hoje acredito que os
membros não tenham um consenso sobre o fato,
confesso que também não tenho uma opinião formada
sobre essa história, mas alguns acusavam o
Chrysóstomo e outros o defendiam... alguns membros
tinham medo de ser envolvidos nesta situação/ O
Chrysóstomo era um jornalista de temperamento muito
forte, tanto que brigou com uma parcela significativa do
pessoal envolvido com a produção da MPB.
Pessoalmente, ele escrevia artigos críticos no jornal O
Globo... pixando mesmo!! Às vezes, ele extrapolava em
relação ao comentário sobre um trabalho, atacando
diretamente a pessoa responsável por sua produção e
com isso ele amealhou uma ordem de inimigos
enorme.[...] Com o processo começou o inferno, o
Chrysóstomo foi preso e depois processado. Nessa
época, pessoas como Francisco Bittencourt, Clóvis
Marques, Darcy, ficaram preocupadas. [...] A partir daí o
jornal basicamente era do Aguinaldo. Isso aconteceu no
último ano de existência do jornal... foi no final de
1980.
João Carlos Rodrigues - [...] Creio que o processo
começou quando Lampião ainda não tinha acabado. O
Chrysóstomo era um dos donos do jornal. Por causa
disso, houve uma ameaça concreta, ou um conselho de
advogados ameaçou, não sei ao certo, de acusar o jornal
por pregar a corrupção de menores. As penas por
corrupção de menores são gigantescas!! Nesse caso,
para o Chrysóstomo sair do Conselho seria preciso
dissolver a sociedade. Não era possível tirar um sócio e
os outros ficarem. Assim, os sócios aproveitaram a saída
do Chrysóstomo e decidiram acabar com o jornal. Não
tenho certeza desta história, o Aguinaldo nunca abriu o
jogo, foram questões que notei e todos os fatos
começaram a coincidir.

O fato é que, independente da saída de Antônio Chrysóstomo, os nomes de


Conselho Editorial são retirados da ficha técnica da publicação. Podemos observar
que houve uma manutenção dos demais cargos no jornal a partir do número 32.97
Alguns dos nomes que compõe o Conselho Editorial desaparecem, permanecem na
ficha técnica os nomes de Aguinaldo Silva como coordenador da edição, Francisco

112
Bittencourt, Darcy Penteado, João Silvério Trevisan como redatores, junto com os
nomes de Alceste Pinheiro, Antônio Carlos Moreira e Aristides Nunes.

11. Um despertar turbulento.

A dificuldade de relacionamento entre os membros do jornal e os grupos gays


desperta outros problemas. As expectativas dos grupos começam a se confrontar
com a proposta defendida pelo corpo mais ativo do conselho editorial.98 Essa crise
de relacionamento passa a ser estampada nas páginas do jornal. Os membros ligados
ao jornal, especificamente no Rio de Janeiro, se desentenderam com o movimento
homossexual carioca e começaram a publicar artigos contra os militantes
homossexuais.99
João Carlos Rodrigues ao comentar sobre esse problema reflete da seguinte
forma:
João Carlos Rodrigues - Por incrível que pareça, o que
atrapalhou o jornal foi o surgimento dos grupos de gays
organizados... depois do tal congresso!! Claro, no
movimento gay tem que ter isso! No momento em que
houve o congresso gay, esses grupos começaram a
pressionar o jornal! Não recordo o ano em que
aconteceu... isso tem no jornal. Inclusive, esse é um dos
motivos pelo qual o Aguinaldo não está querendo falar.
O Aguinaldo sempre foi contrário aos grupos, hoje em
dia ele é ainda mais. Ele acredita que os grupos não são
representativos. Essa era uma das acusações que se
fazia. Quando aparecia uma pessoa e dizia: “- Eu
represento os homossexuais da Paraíba”, sem nunca
termos conhecido nenhum grupo de lá, não podíamos
dizer se era verdade ou não. [...] O problema é que os
grupos queriam que o jornal fosse porta-voz deles...
quando não era!!! [...] Os grupos estavam enchendo o

97
Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, janeiro de 1981, ano III, Nº 32 p. 19.
98
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 88.
99
Podemos acompanhar esta questão através dos artigos publicados por Aguinaldo Silva como:
“Lampiônicos, ativistas, astronautas?”. in: Lampião da Esquina. dezembro de 1980, ano III, Nº 31.
p. 12.

113
saco, chegavam cartas chamando-o de traidor da causa,
cartas exigindo: “- Ah! Vai botar isso...!!!”, e ele
comunicando: “- Não vou botar matéria nenhuma!!!”
Havia esse lado irritante das divergências! [...]

Embora durante a maior parte de sua existência o Lampião tenha colaborado


com a militância, a partir de um determinado momento a posição do jornal tornou-se
agressiva em relação aos grupos, manchetes e artigos serviram para divulgar para o
país inteiro uma grande desconfiança a respeito de qualquer política homossexual. O
papel do jornal no processo de desintegração do movimento homossexual não
deixou de ser menos considerável.100
Em dezembro de 1980 foi realizada uma reunião de vários grupos
organizados no Rio de Janeiro. Alceste Pinheiro e Aristides Nunes participaram
como representantes do Lampião:101
Alceste Pinheiro - Em determinada época se fez uma
reunião de vários grupos organizados no Rio de Janeiro.
Eu fui como representante do Lampião, com mais outra
pessoa da qual não me recordo. Nessa reunião o pessoal
do Lampião foi intensamente execrado por essas
organizações. Inclusive circulou um número em que
atacávamos essas organizações. Foi quando aconteceu a
ruptura. Este período é caracterizado pelo rompimento
com os grupos. [...] O Aguinaldo queria o rompimento,
o que acabou acontecendo logo depois, embora o jornal
continuasse dando notícias dos grupos de militância.

Com o despertar dessa crise de relacionamento com os militantes, James


Naylor Green observa como o Lampião não buscou outra forma de conseguir apoio:

James Naylor Green - [...]Particularmente acho que o


Lampião cometeu um erro, no sentido dele se tornar
anti-ativista, isso desmoralizou totalmente os grupos que
queriam trabalhar. No final o jornal se tornou muito

100
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 88.
101
NUNES, Aristides “Jogaram bosta no II EGHO.” Lampião. Rio de Janeiro, fevereiro de 1981,
ano III, Nº 33, p. 18.

114
agressivo ao ativismo. Ele não buscou outra maneira de
conseguir apoio, ou seja, tinha uma visão duvidosa: não
era pró-ativismo, nem pró-consumismo... ficava entre os
dois e não tinha grande espaço para isso.[...]

Neste aspecto, a observação de Alceste Pinheiro caminha na mesma direção:


Alceste Pinheiro - [...] Por um lado, perdemos o apoio
desses grupos que de alguma forma sustentavam o
jornal, por outro lado não conhecíamos o mercado
“etéreo”. Hoje em dia, trabalho paralelamente com o
conceito de mercado e o de segmentação. Foi depois
desta fase que comecei a estudar mais profundamente a
questão do jornalismo, entre outras coisas, enveredando
pela sua produção, administração do jornal, foi assim
que pude perceber os fatos e chegar a algumas
conclusões. [...] Quando se olha para aquele período
com uma visão mercadológica, de fato a posição
sugerida por João Antônio Mascarenhas parecia a mais
correta. Nós tínhamos que fazer um jornal
especialmente para aquele público, cujo interesse era ler
sobre homossexualidade. Exclusivamente, o jornal era
visto como algo dedicado às bichas. Naquele momento,
estas questões não nos preocupavam. Não havia
interesses neste sentido. Assim, esta perspectiva já havia
sido eliminada, nem era considerada por mim.

12. O eixo Rio-São Paulo e o Pêndulo Brasiliense.

Além desses problemas, havia ainda fatores de desagregação interna entre os


próprios membros fundadores do jornal. Desde o início surgira uma rivalidade entre
os conselheiros de São Paulo e os do Rio. Essa crise começa a se acentuar com o
passar dos anos.102 João Silvério Trevisan reflete sobre o fato de Aguinaldo Silva
não abrir mais espaços para os artigos enviados de São Paulo:
João Silvério Trevisan - Várias vezes mandei matérias
de São Paulo que não saíam publicadas. Certa vez,
mandei uma matéria a respeito de comida
vegetariana.[...] Fiz uma introdução bastante irônica à
comida vegetariana, muito brincalhona, até dava
102
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 91

115
receitas, dentro da matéria, mas o artigo não foi
publicado... e não houve explicação. Quando telefonei
para perguntar sobre o motivo, alegaram falta de espaço.
Nesse mesmo número do Lampião, onde não havia tido
espaço para o meu artigo, gastaram-se quatro páginas
inteiras sobre a Praça Tiradentes no Rio de Janeiro - mas
não havia sobrado espaço para um artigo sobre comida
vegetariana. Estavam claras as divergências, não entre
mim e Aguinaldo, mas entre Rio de Janeiro e São Paulo.

Antônio Carlos Moreira, por outro lado, acompanha esses desentendimentos


de dentro da redação do Lampião:
Antônio Carlos Moreira - Nessa mesma época, a briga
entre o Aguinaldo e o João Silvério Trevisan se acirra.
O Aguinaldo passa a não publicar mais os artigos do
João Silvério, dizendo que eram coisas que não tinham
o menor interesse e que ninguém queria ler... até chegar
ao ponto de ataques pessoais!!! O João Silvério achava
aquilo um absurdo e mandava mais artigos, alguns
chegavam a ter dez laudas... dou risadas porque eram
verdadeiros ensaios! O Aguinaldo não publicava e
começava a briga pelo telefone. Isso aconteceu até o
ponto de torrar o saco e todo mundo acabar desistindo.

Como o jornal tinha uma penetração nacional, os colaboradores de outros


estados também sofriam os impactos dessa situação. O envio de artigos e a
publicação das matérias com parecer positivo de um dos lados poderiam implicar no
parecer reservado do outro. Distante do eixo Rio-São Paulo, Alexandre Ribondi
elabora uma explicação sobre as desavenças existentes entre os dois pólos
metropolitanos:
Alexandre Ribondi - [...] sempre permaneci em
Brasília. Era importante permanecer na cidade, na
medida em que o Brasil permita que Brasília seja
reconhecida. Esta é outra questão da minha vida, pela
qual tenho uma certa luta, mas também sinto uma certa
preguiça. [...] A matéria sobre masturbação tem a ver
com meu período na Europa, com essa época que
conheci algumas pessoas. [...] voltei com a idéia que
tudo podia ser transformado num questionamento social

116
e político. Reuni um grupo de pessoas com um gravador
para falar de bater punheta! Um ano antes, havia lido
que Mick Jagger preferia bater punheta a trepar, ele
tinha acabado de dizer isso para as pessoas naquela
época! Então, vendi a idéia ao Lampião! O Aguinaldo
Silva adorou! Então, mandei essa matéria da punheta.
Ela foi publicada no Lampião./ Depois fiquei sabendo
que São Paulo odiou! Achou de mal gosto, aquilo era
coisa fuleira. Ainda questionei: “- O que é isso!? Trata-
se de uma discussão da pessoa que tem prazer sozinho!!
Com o próprio corpo!!!” Porém, o Rio tinha achado
maravilhoso!! Isso foi a gota d’água para o grande
estopim que acabou com o Lampião, para a grande cisão
entre Rio e São Paulo!/ Imagina!!! Um jornal, com a
seriedade do Lampião, sucumbir ao que há de mais
provinciano, mais pequenininho, mais mesquinho nesse
país: a briga entre Rio e São Paulo!! Uma bobagem,
uma coisa de matar a gente de vergonha!!! Como um
jornal com a finalidade do Lampião sucumbe a uma
briga entre Rio e São Paulo!!? Havia mesmo!! Não se
suportavam!! E para mim, em Brasília, mais uma vez
não era nada grave! Como tudo na minha vida! [...]

13. O Final do Sonho.

As piores fases que os tablóides enfrentaram se devem à história da imprensa


alternativa no país, pois era difícil manter um jornal desse estilo: principalmente
quando se tratava da manutenção das finanças. Segundo o trabalho de Bernardo
Kucinski, a maioria dos alternativos sobrevivia até o terceiro mês, sendo que alguns
não conseguiram chegar à edição do segundo número.103
No caso Lampião, a sobrevivência da publicação foi enorme quando
comparada à maioria dos tablóides que existiram na época.104 Nos anos setenta e
oitenta, segundo Dolores Rodriguez, um jornal alternativo voltado para o público
homossexual era difícil de ser mantido:

103
KUCINSKI, Bernardo. Op. cit., p. XXIV.
104
Ibidem.

117
Dolores Rodriguez - [...] É muito difícil manter um
jornal alternativo. Aliás, já está difícil manter grandes
jornais, como o Jornal do Brasil que está numa séria
crise, O Globo é outra questão, ele não tem só o jornal,
mas todo um aparato por detrás dele, entretanto, há
jornais com grandes dificuldades em se manter. Nesse
sentido, se um jornal grande já tinha esse problema, um
jornal alternativo sofria muito mais. Principalmente no
que se refere a manutenção dos assinantes, à
publicidade, mesmo às finanças... porque é muito
dinheiro que envolve a manutenção do jornal! [...] um
jornal alternativo voltado para o público gay era muito
difícil de ser mantido. Alguns assinantes foram
progressistas, mas havia dificuldade em conseguir
assinaturas, pois as pessoas têm medo de assinar uma
publicação gay. Elas não sabiam como o jornal chegaria
na casa delas, não queriam que os outros soubessem sua
preferência sexual, ou às vezes nem eram gays. [...]
Hoje em dia, quando alguém me chama, visto que já
conheço o meio: “- Ah! Você não quer conhecer a
editora de um grupo e tal?” Eu digo: “- Se for
alternativo tô fora!!!” Não é que não acredite nele, mas
a verdade é que não tenho mais ânimo! Todo mês é
aquela história: “- Meu Deus! Não vai ter dinheiro pra
botar o jornal na rua!!” Assunto não falta, mas
infelizmente não temos essa característica de contar com
o apoio das pessoas, para elas comprarem o jornal. Um
mês conseguimos um ou outro cliente, depois o cara já
não quer renovar o contrato para fazer a publicidade. Na
verdade, acho que é mais o medo de comprar uma idéia,
vestir aquela camisa. Pelo menos no momento, não
estou querendo fazer trabalhos nessa linha... pode ser
que amanhã mude de idéia!!

Também é preciso considerar que no período final da “abertura” os jornais


alternativos foram acabando. Em sua gênese, esses tablóides estavam ligados às lutas
contra a ditadura e pela redemocratização do país. Com o final do processo de
repressão não havia sentido para sua existência.105 Desta forma, o Lampião - assim
como as primeiras organizações homossexuais - também herdou a dissensão advinda

105
Idem, p. XXIX.

118
desse cenário, cujo efeito o leva ao desgaste nos anos seguintes e a extinção em
junho de 1981:106
Alexandre Ribondi - Historicamente já não cabia mais
o Lampião. Nós estávamos entrando num tempo em que
nada mais era pensado, mas era dito. Parece que
coincide com um grande bode das pessoas! Ninguém
pensa, ninguém mais quer refletir, ninguém mais quer
comprar jornal alternativo. Os jornais alternativos foram
acabando, enquanto que nos anos setenta não tinha só
um número, mas era uma enxurrada!! Nos anos oitenta,
o jornal Lampião infelizmente se tornou demodé, old
fashion.

As avaliações sobre o que fazer com o jornal se iniciaram no primeiro


semestre de 1981. As narrativas indicam que era um jornal que não possuía recursos
financeiros e dependia da boa vontade das pessoas em trabalhar para sua existência.
Aguinaldo Silva decide por fim a carreira do tablóide em junho de 1981 e montar
uma revista chamada Homo-Pleiguei.107 Alceste Pinheiro chegou a participar deste
projeto:
Alceste Pinheiro - O Aguinaldo ficou com o local,
quando se encerraram as atividades do jornal. Ele ainda
tentou fazer uma revista. Editou uns dois ou três
números, mas também não conseguiu encontrar o tom.
Ao meu ver a revista poderia ter dado certo. Ele já
possuía uma visão de mercado, sabia o tipo de revista
que queria, conhecia o público para o qual seria dirigida,
porém não tinha pessoas capazes de ajudá-lo neste
projeto. Por exemplo, eu tentava, mas não conseguia
fazer o que ele queria./ Era uma revista que publicava
foto de homem nu e eu não sabia fazer aquilo. Acho que
poderia ter dado certo sob o aspecto mercadológico, mas
também não funcionou muito bem. Era uma revista na
qual eu assinava o horóscopo como Madame Urânia, ela
tinha forma de revista de bolso, pequena, com fotos de
rapazes nus. A idéia era que a capa motivasse a compra

106
“Os Movimentos Homossexuais no Brasil: Texto elaborado pelo Centro Disciplinar
de Estudos Contemporâneos, da Escola de Comunicação da UFRJ”. In: ENT&. 17a.
Conferência Mundial da ILGA. Guia Oficial. Rio de Janeiro. Nº 9, 1995, ano 1, p. 14.
107
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 92.

119
e, depois, o conteúdo, o correio sentimental, por
exemplo, motivasse mais a compra, assim o processo
cresceria em escala geométrica.[...]

14. O Projetor de Sonhos.

As especificidades projetadas por cada trajetória, em relação ao jornal,


anunciam diferentes expectativas que enriquecem aspectos ligados à história do
Lampião. Os relatos sobre a conjuntura da época iluminam fatos, aprofundados com
as experiências dos colaboradores, como os problemas que o jornal enfrentou por ser
uma publicação da imprensa nanica: os inquéritos públicos e a repressão paramilitar;
a instabilidade econômica; e, com a instalação da ordem democrática, a perda de sua
função enquanto órgão de resistência. Outro aspecto que deve ser ressaltado, após a
audição das narrativas, refere ao vácuo no qual o jornal mergulha: o Lampião
abandona o teor contestatório e não consegue assumir as características de uma
publicação voltada ao consumo.
A bipolarização dos colaboradores em relação à história sobre o papel
idealizado para o jornal apóia-se em duas versões: por um lado, na existência de um
espaço que priorizasse o debate sobre a homossexualidade; e, por outro, na proposta
de um fórum mais amplo de discussão. Essas expectativas desdobram-se em
considerações sobre o nível de interesse dos demais movimentos minoritários pelo
Lampião, para daí advir as conclusões de que os demais movimentos mantinham
reservas à questão homossexual e do porquê o jornal assumiu um perfil homossexual
masculino mais evidente.
O papel de Aguinaldo Silva enquanto editor surge como o principal motivo do
tablóide não suprimir suas páginas aos interesses da militância homossexual, porém
as narrativas revelam como o jornal abriu espaços para suas discussões e as veiculou
em nível nacional; apesar da reserva dos colaboradores - que trabalharam com
Aguinaldo Silva na redação -, a publicação gerou uma idéia de militância,

120
recuperada através dos depoimentos, de quem fazia parte de grupos homossexuais à
época. Essa influência será retomada para compor uma parte dos sonhos projetados
pelo jornal.

121
Capítulo 4
Os Herdeiros do Sonho: trajetórias no movimento homossexual.

“Pretendiam uma revolta para que todos aos


poucos conseguissem condições para
desprogramar-se, programando-se segundo
sua vontades individuais e segundo um mínimo
de exigência do grupo, visando à ordem dentro
da desordem absoluta e primitivismo
consciente e sobretudo amor de mãos dadas”
Caio Fernando Abreu108

1. Antes do Despertar, as Festas.

Alceste Pinheiro - Antes do Lampião havia alguns


grupos, há um antiquíssimo, cuja sede ainda funciona no
centro da cidade do Rio de Janeiro. Acredito que é
grupo homossexual mais antigo do Brasil, mas que
nunca teve este caráter de movimento político. Trata-se
da Turma OK. Hoje em dia o grupo mantém as mesmas
características. Nunca teve nada a ver com o movimento
gay. As pessoas que o compõe fazem bailes, fazem
shows de música. Porém, elas nunca quiseram fazer um
movimento atuante no processo de reflexão social. Elas
visam muito mais a busca do prazer. Neste sentido, os
considero mais interessantes. Muitas pessoas conhecem
esse grupo que não tem nada a ver com política. Nunca
participaram de nenhuma central comum operária.

Antes de iniciar o capítulo dedicado ao movimento homossexual - tema ao


qual os colaboradores tecem o segundo maior fluxo de comentários -, não pude
deixar de prestar atenção às histórias sobre os grupos que precedem à militância gay.
Os relatos possuem um forte vigor em comprovar que antes dos anos setenta havia

108
ABREU, Caio Fernando. O Ovo Apunhalado. São Paulo: Siciliano, 1992. p. 115.

122
pessoas que formavam coletivos onde poderiam expressar sua homossexualidade.109
Tradicionalmente isso acontecia na forma de festas, fãs clubes de cantoras de rádio e
tinham como único objetivo a diversão.
David I. Gottlieb possui uma reflexão sobre a preferência dos indivíduos pela
companhia dos iguais. O autor sugere que a primeira preocupação dos homossexuais
é encontrar alguém semelhante para a convivência. Esta situação se daria porque é
mais fácil criar vínculos de identificação social. Assim, quando um homossexual se
encontra com outros tem condições de experimentar e explorar aspectos relacionados
à convivência social.110
Em face dessa constatação, o autor concebe o termo: homossociabilidade.111
Gottlieb acredita que a “homossociabilidade” tratar-se-ia de uma necessidade
comum a qualquer ser humano, independente de sua orientação sexual. Neste caso, o
autor sugere a idéia de que existem indivíduos “homossociais”.
Os colaboradores recuperam histórias sobre espaços de convivência
homossexual parecidos com as características esboçadas por Gottlieb. João Carlos
Rodrigues foi o colaborador que dedicou o maior espaço de sua narrativa à descrição
de grupos com essas características:
João Carlos Rodrigues - [...] caso se pense com rigor,
será que as pessoas que se reuniam por causa da
Emilinha Borba não formavam um grupo de gays!? Na
verdade era!! Conheci os membros, fiz um vídeo sobre
eles... conheci Emilinha Borba! São pessoas que se

109
Esta questão é tratada por Néstor Perlongher quando o autor acompanha as transformações nos
espaços de convivência homossexual em São Paulo. Perlongher, Néstor. O Negócio do Michê. São
Paulo: Brasiliense, 1986. p. 68-107. Peter Fry também deve ser citado, pois refere-se a maneira
como Di Paula, por volta de 1962, manufaturava um jornalzinho satírico chamado FOTOS E
FOFOCAS que dava notícias sobre os homossexuais da Bahia e que ajudou a criar vários grupos
exclusivos com um interesse em comum pela homossexualidade. FRY, Peter. “História da
Imprensa Baiana” in: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro: setembro de 1978, ano I, Nº 4, p. 4. Há
ainda a tese de doutorado de James Naylor Green que contém um levantamento minucioso dos
espaços de convivência homossexual nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro desde o final do
século XIX até a década de setenta do século XX. GREEN, James Naylor. Beyond Carnival:
homosexuality in Twentieth-Century Brazil. UCLA: Los Angeles, 1996.
110
DAVID I. GOTTLIEB, M. D. The Gays Tapes. New York: Day Books, 1977. p. 165.
111
Ibidem.

123
conhecem desde os anos cinqüenta... até hoje têm
clubes! Eles não têm mais sede, não têm mais nada, mas
se reúnem para fazer festinhas. Uma vez perguntei a um
membro, não me lembro o nome dele agora, mas ele
falou que nos anos cinqüenta o único lugar onde se
podia dar pinta, dar gritos - e não acontecia nada -, era
no fã clube da Emilinha Borba. Na platéia da Marlene
também. Embora a Marlene tenha mais fãs mulheres do
que homens. A Emilinha é esmagadoramente o
contrário, quase todos são gays de classe média baixa.
Talvez, isso tenha sido um embrião de algo mais
organizado. Dar festas periodicamente, reunir-se, é algo
organizado. Na época, talvez eles não tivessem a noção
de que eram organizados, mas no meu modo de ver eles
eram. [....]

A conjuntura de forte repressão que precede os anos setenta, contudo,


conduzia os homossexuais a levarem uma vida mais discreta, não podendo ter
liberdade de expressão, nem manifestar publicamente sua sexualidade, pois não
havia condições que lhes possibilitassem ser aceitos pela sociedade.
Luiz Carlos Lacerda, José Fernando Bastos e João Antônio Mascarenhas
recuperam fatos para falar sobre a repressão dos homossexuais:
Luiz Carlos Lacerda - Estava acostumado a ver os
garotos que apedrejavam a bicha louca na rua. Nos anos
cinqüenta assisti linchamento de gays em Copacabana -
terríveis -, pelo fato do cara ser efeminado ou ter um
brinquinho. Às vezes, um travesti, ou mesmo uma bicha
louca que morava por ali era arrebentado. Chegavam
uns machões e começavam a dar socos na cara até tirar
sangue!! Algo parecido com A Farra do Boi... só que
com um homossexual.
José Fernando Bastos - No Brasil, há um fato que não
cheguei a presenciar, mas havia um delegado no Rio de
Janeiro chamado Padilha. Na época que as calças eram
justas, ele usava uma laranja para fazer um teste. Ao
parar duas pessoas na rua, ele botava a laranja na calça
da pessoa, caso a laranja não descesse, então ele prendia
a pessoa porque não se podia usar calças justas.
João Antônio Mascarenhas - No Rio, era possível
levar uma vida de liberdade. Eu, apesar de ter aceitado
minha homossexualidade, não tive, de chofre, a coragem

124
de assumi-la publicamente. [...] Entre a faca e a parede,
abria o jogo, mas empenhava-me em evitar a
necessidade de uma definição./ A situação faca/parede
aconteceu poucas vezes, pois, há, no Brasil um modo de
viver muito hipócrita: a filosofia do “você-faz-que-se-
esconde-e-eu-faço-que-não-vejo”. Isso, pessoalmente,
àquela época, favoreceu-me, pois sou - ou penso ser - do
tipo “homossexual discreto”.

No Brasil, apesar dos limites impostos a expressão da homossexualidade, os


indivíduos organizaram espaços ou formaram grupos que tinham a
homossexualidade como fator de aglutinação. A grande novidade, segundo Edward
MacRae, foi o surgimento de uma atitude que deixava de lado um certo sentimento
de culpa - bastante comum entre os homossexuais até metade da década de setenta -,
e que preparou o debate público que transformou as concepções referentes à questão
da homossexualidade.112
Nesse aspecto, é importante ressaltar as impressões de João Antônio
Mascarenhas no tocante as transformações que lhe pareceram mais sensíveis:
João Antônio Mascarenhas - [...] não observo
nenhuma diferença entre os anos cinqüenta, sessenta e a
contemporaneidade. Havia boates gays, bailes gays...
havia pessoas que davam festinhas. Nunca fui à
festinhas porque não é do meu temperamento, mas era
muito comum. No Brasil, noto uma única diferença em
relação aos homossexuais - superficial, mas importante -
, não pelo o que ela é atualmente, mas pelo que foi e
ainda está se semeando: o tratamento do tema nos meios
de comunicação social e nos meios intelectualizados. A
diferença está nesse nível, aparecem assuntos nos
jornais que seriam inconcebíveis naquele tempo. A
mídia... como gostam de dizer hoje em dia, e os
intelectuais - macaqueando os americanos -, acreditam
ser de bom tom não ter preconceito. Antes não havia
essa reserva, as pessoas podiam ter preconceito
abertamente... até descaradamente! Ele era aceito com a
maior naturalidade, às vezes era considerado como uma
atitude elogiável. Porém, no que se refere à massa... não
observo qualquer diferença!/ Quando digo “a massa”,
112
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 49-50.

125
não estou falando no sentido político... na questão do
operário, mas, sim, da maioria da população, em geral.
A situação continua igual, somente uma partezinha da
sociedade... esse pessoal dos meios de comunicação
social, os intelectuais e alguns políticos - em geral
pessoas de classe média - esses mudaram... mas isso não
é muito. Naquela época, não havia nenhuma
possibilidade de trabalhar com a homossexualidade no
Brasil. Isso era uma coisa que nem me passava pela
cabeça. No Brasil de quarenta anos atrás não havia
clima para um jornal como o Lampião [...]

2. As Vozes Multiplicadas.

Para Louis Wirth, numa comunidade composta por um grande número de


indivíduos, que não se conhecem intimamente, torna-se necessário efetuar a
comunicação por meios indiretos e articular os interesses individuais. Parte da
organização dos habitantes das grandes cidades é retirada da influência exercida
pelos meios de comunicação sobre os indivíduos. 113
Esta idéia é importante para compreendermos a influência dos meios
comunicativos para a estruturação dos grupos homossexuais, tanta no final dos anos
setenta como no início dos anos oitenta.
Celso Curi, editor da Coluna do Meio, apresenta-se como precursor da
liberação homossexual mais interna, com propostas de afastar o sentimento de culpa
em nível de vivência pessoal:
Celso Curi - Acredito que hoje consiga ver claramente a
importância da coluna... porque na época estava
visceralmente ligado ao trabalho. Não possuía a
compreensão necessária para saber o que fazia. Anos
depois, em 1986, quando dei um depoimento para uma
matéria comemorativa aos dez anos do movimento
homossexual brasileiro, perguntei ao entrevistador: "-
Tudo bem, mas em que você está se baseando para
definir esse dado?". Ele respondeu sem hesitar: "- Na

113
WIRTH, Louis.“O Urbanismo como Modo de Vida.”In: VELHO, Otávio Guilherme (org.) O
Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. p. 102.

126
publicação da Coluna do Meio". Ele considerava a
Coluna do Meio o ponto que deu início ao movimento
no Brasil. [...] No Brasil, as pessoas fingiam que o
problema não era delas. Uma visão completamente
diferente da existente nos Estados Unidos. Lá, as
pessoas possuíam consciência que o governo atuava
contra a orientação homossexual delas. Aqui era o
oposto... ninguém assumia essa consciência. Desejava-
se a liberação da homossexualidade, mas se a mãe
soubesse era motivo de vergonha. Quanto a essa
problemática, uma de minhas discussões, feita no
decorrer da "abertura política", refere-se a Família e a
Igreja enquanto emperradores da libertação do
homossexual./ Havia um grande controle para o não se
assumir. No caso da Igreja não podia porque era
pecado... e no caso da Família porque a mãe não podia
saber. Essas duas instituições emperravam a vivência do
homossexual [...] Não era uma questão política, nem de
regras e nem de leis: era uma questão puramente interna
e pessoal. A Coluna do Meio tentava formar a
consciência de que a liberação só ocorreria depois da
própria libertação. Não há movimento homossexual de
cima para baixo. Isso não significa que se deva gritar ao
mundo a própria opção, mas assumir internamente...
sem este pressuposto não havia como iniciar um
movimento.

A imprensa alternativa, como já foi descrito no capítulo anterior, multiplica-se


rapidamente no decorrer dos anos setenta. Em meio a esse processo surge o jornal
Lampião da Esquina, publicação que adotou os valores da Contracultura com o
objetivo de enfocar a questão das minorias, mas que na prática voltou-se ao debate
sobre a homossexualidade. 114
Outro aspecto, que também já foi abordado, refere à importância do jornal em
publicar matérias que vieram a politizar a questão homossexual, apesar dos desvelos
do corpo de editores em relação aos grupos de militância. Um jornal do tipo
underground, segundo as características descritas por Sue March, representa um
meio útil à troca de informações, assim como ao despertar da consciência dos

114
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 75-77.

127
leitores.115 Enquanto órgão crítico, o Lampião caminha nesse sentido. O jornal
incrementa um público leitor, semeando idéias sobre atuação política e
homossexualidade no Brasil.

3. A divisão das Vozes.

João Silvério Trevisan ajudou a formar o SOMOS/SP baseado nas idéias que
trouxe do auto-exílio, também conseguiu sucesso ao projeta-las como membro do
Conselho Editorial no jornal Lampião. Ele exercia uma grande influência sobre o
público leitor, escrevendo artigos onde defendia a dissolução de todas as formas de
poder. Apesar de ter sido militante de organizações ligadas à esquerda (Ação
Popular, POLOP), estas o deixaram desiludido.116 Esse sentimento de desencanto
está presente nas narrativas que recuperam experiências negativas ou de desilusão
com as posturas esquerdistas. Entretanto, os grupos homossexuais originalmente
eram organizados por pessoas que passaram por esses movimentos.
Para compreendermos a reserva que uma parte dos militantes passa a
expressar, podemos apontar algumas causas que estão na origem dessa dissidência,
como: preconceito em relação à homossexualidade; impossibilidade de expressão da
própria identidade sexual; e discordância com a estrutura centralizadora dessas
organizações.117
A leitura de Fernando Gabeira é importante, pois ajuda a esclarecer este
descontentamento. Por ocasião de uma visita dos redatores do Lampião para uma
entrevista, o autor escreve suas impressões, sendo meio irônico ao achá-los

115
MARCH, Sue. Libertação Homossexual. São Paulo: Nova Época Editorial. p. 75.
116
MACRAE, Edward. Op. cit., p.186.
117
Além da obra de Edward MacRae, (idem, p. 90), podemos observar a origem destes argumentos
nas narrativas dos colaboradores que são dissidentes das organizações de esquerda e vão buscar
nos movimentos minoritários uma forma de expressão de suas necessidades, tendo como
preocupação comum a homossexualidade.

128
desconfiados de um ex-guerrilheiro urbano que se comprometera profundamente
com a esquerda.
Gabeira lembra que a experiência dos homossexuais com as organizações do
período os colocavam de sobreaviso pelo fato delas considerarem prioritárias as
revoluções econômica e política, achando que a questão sexual só poderia ser tocada
com o tempo, assim mesmo cuidadosamente. Nesse sentido, a esquerda apresentava
uma fórmula sutil de colocar sua censura sobre a discussão do assunto.118
A narrativa de João Silvério Trevisan é emblemática, pois sua trajetória
elucida os motivos do desencanto com os grupos de esquerda e nutre sua
argumentação. Ele conta como vivenciou a contestação cultural e o Gay Liberation,
quando foi em auto-exílio para os Estados Unidos, e após seu retorno ao Brasil como
se confrontou com uma esquerda que ainda não aceitava a discussão da
homossexualidade, visto que na prática ela priorizava o debate sobre a “luta de
classes”.
A crítica de João Silvério Trevisan se endereça à centralização e ao valor que
a esquerda depositava no proletariado:
João Silvério Trevisan - A “luta maior” era a luta do
proletariado que não podia sofrer nenhum tipo de
ruptura... e nós estávamos ameaçando sua unidade. A
nossa reflexão era a seguinte: "- Se você é proletário ou
não, sendo preto, você vai ser discriminado. Se você é
proletário ou não, pobre ou não, você sendo mulher,
você vai ser discriminada. É verdade que se você for
pobre, mulher e preta, você vai ser ainda mais
discriminada, porém existem muitas mulheres burguesas
que apanham do marido, ou seja, são problemas que
ultrapassam a questão da classe. Deste modo, a luta de
classes não pode ser uma varinha mágica que explique
todas as questões da sociedade e ponto final". O nosso
problema era esse: os problemas da sociedade moderna
não se esgotam na questão da luta de classes. Com essa
reflexão nós dizíamos que o movimento homossexual
não tinha que se filiar ao movimento proletário: os

118
GABEIRA, Fernando. Entradas e Bandeiras. 13a. ed. Rio de Janeiro: Ed. Codecri, 1981.p. 97-
99.

129
homossexuais são donos da sua própria voz. Os que
quisessem poderiam ser de esquerda, mas o nosso
tratava-se de um movimento autônomo.

Desde que surgiram, os grupos “minoritários” possuíam pontos em comum


com as organizações populares do período da “abertura”. Edward MacRae busca o
texto “Movimentos Sociais: a construção da cidadania” de Eunice Duhram,
publicado em 1984, para recuperar a forma como essas organizações começaram a
aparecer na periferia das grandes cidades, consagrando-se à exigência da resolução
de suas carências coletivas. Os grupos relacionados às questões “minoritárias” ou às
organizações populares - apesar da composição heterogênea -, procuravam enfatizar
a igualdade de seus integrantes, ocultando em seu seio as distinções de classe,
denominação religiosa e filiação partidária.119
Alexandre Ribondi retoma essas características quando descreve as
experiências com o primeiro grupo de atuação homossexual em Brasília:
Alexandre Ribondi - No Beijo Livre não importava se
era de direita, se era de esquerda, se era rico, se era
pobre, se era preto, se era branco!!! Nós tínhamos de
tudo no grupo! Havia pessoas do movimento organizado
clandestino, havia resquícios disso! Militares que não
apareciam uniformizados na reunião, mas sabíamos que
eram militares de direita! Pessoas da Igreja Católica - a
mais conservadora possível -, que nunca poderiam
imaginar estar com um comunista porque senão
estrebuchava de pavor da idéia, derretia feito o diabo
dentro da Igreja!!![...] Nós tínhamos todas essas pessoas
no grupo! Não fazia sentido falar de partido político,
nem era saudável! Senão, nós perderíamos muita gente.
[...] No grupo tínhamos algumas pessoas de classe A,
mas a grande maioria era pessoas de classe média-média
e classe média-baixa, chegando à classe pobre: pessoas
que nunca poderiam ir à universidade. É incrível como
conseguíamos reunir uma gama tão variada de pessoas!
Isso criava problemas dentro do grupo. Nas festinhas, as
bichas da classe A odiavam quando chegava a pretinha,
feinha, que morava lá longe no Gama. O Gama é um

119
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 111-112.

130
bairro bem pobre de Brasília. Então, nós que éramos a
cabeça do grupo, ficávamos nos esforçando para ser
simpáticos, mas aquela situação cansava muito!!/
Nunca passou pela cabeça dos membros do Beijo Livre
entrar para um partido, nem nada parecido com isso!
Éramos absolutamente autônomos porque o
denominador comum era a homossexualidade! Não era
essa a proposta do Beijo Livre, porém, enquanto
organização talvez precisássemos aprender com um
partido! Não tínhamos organização nenhuma... era uma
bagunça!! [...] Entretanto, o partido seria a nossa morte,
seria o nosso fim!! Talvez tenhamos deixado de existir
porque o grupo era autônomo demais!!

A década de setenta presenciou o crescimento de um outro caminho para a


atividade política. Os movimentos sociais deste período surgiram com o propósito de
resolver problemas específicos, desenvolvendo formas de convivência e participação
que eram consideradas positivas por si mesmas. Podemos indicar ainda que havia
uma insistência na autonomia destas lutas em relação às organizações de cunho
político-partidário, assim como à atuação fora dos partidos políticos e dos sindicatos.
Para tanto, os movimentos sociais dos anos setenta procuravam evitar qualquer
interferência de agentes externos e se encontravam em estado de permanente
desconfiança a respeito de qualquer tentativa de manipulação. O SOMOS/SP surgiu
no curso desse período e no início de sua história adotou essas características. 120
Durante o ano de 1979, ocorreu a semana de debates sobre as minorias na
USP. As discussões centravam-se nos grupos que lutavam contra a discriminação no
Brasil: negros, mulheres, índios e homossexuais. Os debates foram realizados no
Depto. de Ciências Sociais, sendo que a questão homossexual foi tratada no dia 8 de
fevereiro de 1979.121
João Silvério Trevisan conserva o tom de satisfação quando narra esta
passagem:

120
Idem, p. 125-126.
121
Idem, p. 108-109; ver também TREVISAN, João Silvério. Op. cit., 206-207.

131
João Silvério Trevisan - Na verdade, o que aconteceu
foi que o Centro Acadêmico resolveu abrir pela primeira
vez o debate sobre as tais "minorias" - outro termo que
nos fazia rir porque reduzia as mulheres a uma minoria;
apesar da sociedade brasileira estar todinha perpassada
pela negritude, os negros também eram “minoria” - mas
isto aqui não seria o Brasil se não houvesse o samba,
todo o gingado negro na cultura brasileira produzido
pela "minoria". Em todo caso, era a palavra usada na
época. Havia uma noite para a discussão com os negros,
uma noite para a discussão com as mulheres, uma noite
para a discussão com os índios e uma noite para
discussão com os homossexuais. Lembro que na noite
anterior à nossa os negros tinham sido massacrados,
justamente por essa defesa da sua autonomia. O
auditório estava lotado por gente que queria nos
massacrar, acabar logo com essas “minorias”. Eu conto
isso no Devassos no Paraíso. Essa noite foi um embate
claro e aberto, a “luta menor” contra a “luta maior”.
Davi lutando contra Golias. O debate foi absolutamente
brilhante porque a esquerda viu-se confrontada a partir
de um ponto-de-vista de esquerda.

Nesse corpo de relatos, as narrativas são marcadas por críticas aos grupos
com orientação stalinista, porém certas vezes ganham um tom que atinge
indistintamente todas as tendências esquerdistas:
Glauco Mattoso - Numa conjuntura de direita, a
questão homossexual não teria espaço para ser
discutida. [...] Por sua vez, a esquerda ainda estava
ortodoxa demais para permitir a inserção desse tipo de
discussão. Nesse sentido, era uma oportunidade
interessante desses intelectuais reverem os conceitos da
esquerda.[...] Lembro-me que questionava-se muito a
especificidade, uma palavra muito usada na época,
primeiro para colocar a esquerda contra a parede, como
quem diz: "- Vocês não são a parcela mais progressista
da sociedade? Não são vocês que apontam para o futuro
mais igualitário e menos opressor da humanidade? Não
são vocês que levantam essa bandeira? Então, vocês
terão que admitir a causa homossexual e digeri-la de
alguma forma. Não só a causa homossexual, pois terão
de reconhecê-la enquanto causa específica de uma
determinada 'minoria' ". Usava-se esse termo, ainda que

132
entre aspas. Assim, como existia a "minoria"
homossexual, existia também a dos índios, como a dos
negros que não se trata de uma "minoria" tanto quanto
as mulheres. Essas eram as chamadas "minorias" que se
resumiam na palavra especificidade./ Achava ótimo o
questionamento da ortodoxia da esquerda. Ela merecia
ser escarmentada, visto que os maiores massacres de
homossexuais ocorreram sob regime de esquerda [...]

Enquanto uma parte abandona a chamada “luta maior”, a outra procura


reavaliar as estratégias da esquerda. James Naylor Green também tinha passado pela
militância esquerdista, mas ao contrário de Trevisan nunca se desiludiu.122 Esta
dualidade aponta duas perspectivas políticas - compreensíveis quando ouvimos as
trajetórias de vida -, cuja contraposição ajuda a entender a cisão que veio a ocorrer
no grupo SOMOS/SP.
No depoimento James Green revela que não ignorava o destino reservado aos
homossexuais nos países sob orientação stalinista, porém conservou elos com os
grupos trotskistas que se contrapunham às práticas adotadas pela União Soviética e
por Cuba. Antônio Carlos Moreira tece um comentário que reflete a posição adotada
pelos trotskistas no que se refere ao interesse dessa tendência esquerdista pelas lutas
minoritárias:
Antônio Carlos Moreira - Sobre o fato da esquerda
querer cooptar os homossexuais, havia a Convergência...
os trotskistas sempre se interessavam pelas causas
minoritárias. Neste caso, não só homossexuais, como
negros, mulheres. Eles apoiavam a idéia trotskista da
revolução permanente. Quando Trotsky era parceiro de
Lênin, ele já colocava essas questões./ No Brasil, a
Convergência Socialista tentava fazer isso. Tanto é que
dentro da Convergência tinha uma facção gay, tinha um
núcleo feminista. Era engraçado porque no grupo
SOMOS de São Paulo existia uma facção que chegou a
sair: a Facção Gay da Convergência Socialista. Tratava-
se de um grupo trotskista que editava um jornal
chamado Versus... muito bom! Nos dez primeiros
números foi o melhor jornal de cultura editado no final
122
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 186.

133
dos anos setenta. Parece que isso foi transferido para o
PT... a Convergência era uma das organizações que
compunham a colcha de retalhos deste partido.

James Green era ativista tanto do movimento homossexual quanto de grupos


com orientação trotskista. Ele idealizava a construção de um movimento
homossexual que lutasse pelos seus direitos - como no caso do movimento negro e
do movimento feminista -, porém defendia a aliança com outros setores como
sindicatos e partidos políticos. Na sua visão, quanto maior fosse o leque de alianças
maior seria a possibilidade de uma transformação global da sociedade.
No decorrer da trajetória do SOMOS/SP há um período em que James Green
passa a fazer algumas propostas. Porém, ele considera que três delas foram as mais
importantes. A primeira, em 1979, referente à formação de uma comissão de defesa
do Lampião, quando o Conselho Editorial foi enquadrado na Lei de Imprensa. Nesse
caso, a aliança com Lampião não seria uma novidade: o jornal ainda era simpático
aos grupos.
A segunda refere à participação do grupo na manifestação do dia de Zumbi
dos Palmares (ou Dia Nacional da Consciência Negra), em 20 de novembro de 1979,
quando os membros do grupo foram participar em uma mobilização convocada pelo
Movimento Negro Unificado: este fato é importante, pois foi a primeira aparição
pública do SOMOS/SP. Nesta passeata os ativistas do SOMOS portavam uma faixa
onde se lia “Pelo fim da discriminação racial - SOMOS - Grupo de Afirmação
Homossexual”.123
Porém, a terceira proposta representou o prenúncio da divisão do grupo
SOMOS/SP: a participação dos homossexuais nas comemorações do 1º de Maio em
apoio à greve dos metalúrgicos do ABC.124 Esta proposta foi apresentada durante a
realização do Primeiro Encontro, junto com a proposta de criação de uma comissão
para coordenar o movimento homossexual brasileiro: as duas foram indeferidas.

123
Idem, p. 188-189.

134
É importante esclarecer que James Green tinha interesse na criação de
alianças com outros movimentos, contudo, durante sua narrativa sempre procurou
reavaliar o significado das posições que adotou naquele período:
James Naylor Green - Sempre reivindiquei essa
posição dentro do SOMOS... [do diálogo com os outros
movimentos sociais] batalhava por este ponto de vista.
Isso causou divergências no próprio movimento
homossexual... inclusive uma ruptura total com
Trevisan. Ele possuía uma visão bem distinta sobre os
rumos do movimento, assim como uma grande crítica
tanto da esquerda em geral, quanto das pessoas que
participavam no movimento homossexual e nos grupos
de esquerda. Tínhamos perspectivas diferentes dentro do
ponto de vista político./ Quando faço um balanço do
meu trabalho naquela época, penso que talvez não
valorizasse suficientemente o que se chamava
“autonomia do movimento homossexual”. Entretanto, a
chamada autonomia significava que nenhum grupo da
esquerda poderia participar, mas os simpatizantes de
outras ideologias - fossem de cunho religioso, ou
simplesmente porque considerassem o PMDB um
partido legal, ou ainda possuíssem uma ideologia
anarquista - não havia problemas... poderiam freqüentar
a vontade! Porém, caso fosse uma visão de cunho
marxista, a admissão era vetada. O argumento era que a
esquerda poderia manipular ou dirigir o movimento[...]
Cada proposta que fiz, eu a fiz claramente ao grupo: “-
Que tal fazermos tal coisa?” Eram as pessoas que
decidiam. [...] Sempre pensava comigo: “- Como
podemos avançar o movimento? O que podemos
fazer?”... antes de tudo eram propostas. Por exemplo,
propus a criação de uma associação nacional de grupos
gays e lésbicos. Esta foi uma proposta que levei ao
Primeiro Encontro, fui altamente criticado porque
achavam que seria uma maneira de manobrar o
movimento, um discurso de poder ou uma forma de
algumas pessoas tomarem o poder do movimento.
Então, nem toquei mais no assunto, foi uma proposta
que foi para o lixo. [...]

124
Idem, p. 208-212.

135
Essa polarização ganha corpo durante o Primeiro Encontro de Grupos
Homossexuais. Basicamente, pode ser explicada através do debate em torno de duas
posições: uma delas acreditava que a emancipação homossexual dependia da
autonomia dos grupos perante as organizações político-partidárias de esquerda; a
outra se opunha a primeira por sustentar que a emancipação poderia ocorrer através
da aliança junto a essas organizações.125
Posteriormente, James Green levou a proposta de participação no ato de apoio
à greve dos metalúrgicos aos membros do SOMOS/SP. O Grupo SOMOS/SP que
inicialmente buscava evitar o aparecimento da heterogeneidade - uma característica
identificada na origem dos movimentos que surgiram durante os anos setenta -,
começa a perder sua constituição original e a apresentar posições ideológicas
antagônicas entre seus integrantes.126
No tocante a esta questão, Alexandre Ribondi reflete sobre a divisão das
vozes no grupo SOMOS/SP fazendo uma comparação com o grupo Beijo Livre de
Brasília:
Alexandre Ribondi - [...] O SOMOS/SP emanava a
imagem de um grupo muito antipático! Gostava muito
das pessoas que estavam no grupo, mas chegou um
momento que o SOMOS/SP se tornou um partido
político. [...] O grupo tinha necessidades próprias para
se manter, as quais não eram as necessidades de seus
membros! O SOMOS/SP ficou muito parecido com um
partido, enquanto que os outros grupos eram mais
humildes. O próprio Beijo Livre estava mais preocupado
com o bem-estar das pessoas que participavam do
grupo, com a alegria das pessoas irem se reunir, bater
papo e dar boas gargalhadas lá dentro, do que com a
própria existência do Beijo Livre. O SOMOS/SP era
muito preocupado com a própria imagem dele: SOMOS.
Ao meu ver, essa era a característica do SOMOS/SP.

125
Idem, p. 199.
126
Idem, p. 187.

136
4. Duas Versões: Racha ou Retirada?

A leitura das narrativas esboça o nível de relações que existia entre os


integrantes do SOMOS/SP. Apesar dos objetivos políticos serem díspares, os
membros permaneceram juntos até o fracionamento do grupo em maio de 1980.127
Na contemporaneidade, ao ouvimos as narrativas - dedicadas a recuperar os
acontecimentos sobre o processo de divisão das vozes -, podemos sentir o peso das
experiências dos colaboradores quando compreendemos suas trajetórias individuais.
Os argumentos refletem diferentes situações de confronto com o autoritarismo e com
os momentos de silêncio que vivenciaram:
João Silvério Trevisan - Continuo acreditando que a
grande responsável por toda essa situação foi a esquerda
brasileira, uma esquerda absolutamente autoritária e
centralizadora, uma esquerda que usa como referencial
algo que ela diz odiar: a Igreja Católica. Eu, que saí de
um seminário, sei muito bem como certos valores da
instituição eclesiástica continuam - talvez apenas com
novos nomes - dentro da esquerda. [...] somente a
máscara é trocada, mas continuamos a ser vítimas da
mesma repressão secular... que vem caindo sobre os
homossexuais por motivos que continuam os mesmos.
[...] Nesse sentido, eu me rebelei contra a Igreja e contra
os partidos de esquerda - acredito ser absolutamente
conseqüente comigo mesmo -, e me rebelei contra o
movimento homossexual, no momento em que percebi
sua tendência em criar uma crosta de instituição.

Edward MacRae acompanhou todos estes fatos como membro do


SOMOS/SP, assim como pesquisador participante do movimento homossexual. À
época, ele produzia uma pesquisa que veio a ser publicada com o título “A
Construção da Igualdade”. Sob os limites da investigação científica, ele reserva-se a
manter a postura de antropólogo, suprimindo sua participação enquanto membro do

127
Idem, p. 214-215.

137
grupo. Porém, durante sua narrativa - livre do compromisso acadêmico -, deixa afluir
aspectos sobre sua posição enquanto militante do SOMOS/SP:
Edward MacRae - Embora eu fosse amigo do Jimmy,
percebi que ele realmente queria manipular o SOMOS,
havia documentos que falavam a esse respeito, e fiquei
indignado. Porém, a forma como as pessoas propuseram
o racha também era manipuladora. Eles colocavam o
Jimmy e pessoas afins como demônios. Desta forma,
também não concordava porque eu não era anti-
socialista. No fundo, tive toda uma vivência a favor do
socialismo, fiz parte de muitos grupos com tradição
socialista na Inglaterra. Na época da guerrilha no
Araguaia, era simpático aos guerrilheiros. Escrevia
boletins para a faculdade onde estudava na Inglaterra
quando ocorreu a luta armada no Brasil [...] Naquele
momento, nós ainda vivíamos numa ditadura, a qual era
o cúmulo. Realmente, a primeira questão era lutar pela
liberdade sexual, pela liberdade homossexual, talvez
fosse até a mais importante... concordava com isso.
Porém, colocar-se contra a esquerda, contra a luta para
dissolver o poder daquele sistema autoritário, era
demais para minha compreensão... também não
concordava com esta posição, era contra isso.

Apesar da existência de sérias discordâncias que levam a divisão do grupo,


tanto em nível pessoal quanto político, James Naylor Green procura justificar suas
posições, enfatizando que as prioridades ideológicas não provocaram um “racha”
(expressão utilizada para categorizar a cisão do SOMOS/SP), mas viabilizaram uma
“retirada”:
James Naylor Green - Não houve manipulação, em
determinados momentos fiz minhas propostas, chamei
as pessoas por telefone para defender minhas posições,
mas isso é normal em qualquer associação. Com certeza
outras pessoas fizeram a mesma coisa... certeza porque
eles resolveram se retirar do SOMOS. Para mim é
importante deixar claro: não foi um racha, mas uma
retirada. As pessoas se retiraram do grupo porque
tinham outro projeto e o SOMOS seguiu com seu
projeto.

138
5. As Vozes Femininas se despedem.

O movimento homossexual, como vimos, surgiu no seio de uma ampla


contestação, cuja efervescência alterou as concepções de prática política e criou
condições para a reunião de indivíduos com diversos perfis. As diferenças - como as
de classe, religião, raça, sexo -, eram suprimidas entre os participantes desses
grupos. Essa composição reunia homens e mulheres, apesar do número de mulheres
não ser equivalente ao de homens. Elas formavam um coletivo menor dentro de um
movimento que permaneceu predominantemente masculino.128
Dolores Rodriguez reconhece esse problema durante sua narrativa:
Dolores Rodriguez - Se fizermos uma pesquisa sobre
os grupos homossexuais daquela época, perceberemos
que a participação da mulher era minoritária. No
SOMOS/RJ tinha 98% de homens e 2% de mulheres.
Hoje em dia o movimento feminista cresceu muito, mas
a participação das militantes homossexuais ainda é
muito pequena. A mulher não tem o histórico do
discurso, estamos aprendendo isso agora. É recente a
história das mulheres irem a luta, brigar, estar
participando do mundo masculino... O mundo que
temos, é um mundo masculino.

O sexismo não desaparecera e a tensões se desenvolveram ulteriormente,


provocando as críticas das mulheres que militavam nesses grupos. As lésbicas se
sentiram suficientemente diferentes e começaram a apontar as limitações das
estratégias adotadas pela militância homossexual. Quando o movimento conseguiu
respeitabilidade política entre os setores progressistas, a questão passou a ser
encarada de forma mais positiva pelo movimento feminista que passou a aceitar a
questão da homossexualidade feminina.129
Posteriormente, o efeito da aliança entre as lésbicas e o movimento feminista
conduziu a separação das mulheres homossexuais para a composição de grupos

128
Idem, p. 252.
129
Idem, p. 264-265.

139
específicos. Elas buscavam escapar do machismo dos homens para trabalhar suas
condições específicas. Surgiu assim uma personagem que era discriminada por
questão de sexo e de orientação sexual.130
Dentro do grupo SOMOS/SP, especificamente, as lésbicas acabaram
assumindo as posturas feministas e se cimentou uma possibilidade de unanimidade
em volta da luta contra o “machismo”. O grupo de mulheres surgiu na época em que
se reuniram para publicar um artigo sobre lesbianismo para o Lampião. Dessa
reunião surgiu a idéia de formar um subgrupo dentro do SOMOS/SP que veio a se
chamar Grupo Lésbico Feminista.131
Luiz Mott, em sua narrativa, reconstrói a questão do separatismo das
mulheres após um incidente ocorrido durante a gravação da entrevista:
Luiz Mott - [...] Na única reunião do grupo SOMOS
que participei, há quinze anos atrás... se não me engano
na Politécnica da USP, fiquei chocado com o
separatismo lésbico./ Nessa reunião, estava a Alice do
Coletivo das Feministas Lésbicas de São Paulo... aquela
que a poucos instantes interrompeu esse depoimento,
reclamando pelo fato de estarmos ocupando uma mesa
no cantinho de um salão - enorme - de exposição sobre
visibilidade lésbica... para ela nós estaríamos
atrapalhando a exposição. É lastimável a incompreensão
desta pessoa, presente desde o começo do movimento
homossexual. Porém, nessa reunião também estavam o
Edward MacRae, o Jorge Beloqui e outros líderes. Eu
era um dos mais novos, mas já era uma pessoa mais ou
menos visível. O GGB já havia sido fundado, era um
grupo que estava se salientando... talvez já tivesse um
ano de existência! As lésbicas se colocavam numa
posição de se acharem mal contempladas... diziam ser
alvo de discriminação. Queriam se separar para ter
maior visibilidade. De fato, elas se separaram do
SOMOS para fundar o GALF (Grupo de Atuação
Lésbico-Feminista)... o primeiro grupo lésbico.

130
FACCHINI, Regina. Ativismo Social e Sexualidade no Brasil: a militância e prestação de
serviços. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado para a obtenção do bacharelado em
Sociologia. Escola de Sociologia e Política: São Paulo, dezembro de 1995. p. 68-69.
131
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 246-247.

140
As mulheres decidem sair do SOMOS/SP no período das divergências que
surgiram entre os homens, com exceção de duas, uma delas era Alice que aparece na
narrativa de Luiz Mott.132 A questão das disputas ideológicas, entre os homens, era
vista como algo que não as atingia enquanto mulheres. É importante dizer que elas
estiveram presentes na manifestação do 1º de Maio, em apoio à greve dos
metalúrgicos, pois haviam se comprometido com o movimento feminista.133 Desta
forma, optaram por sair do grupo e formar um coletivo independente. Essa separação
dá origem a trajetória do movimento lésbico brasileiro.134
Edward MacRae baseado nas experiências nutridas por sua trajetória comenta
como não se surpreendeu perante o fato:
Edward MacRae - Quando as mulheres do SOMOS
decidiram sair para formar o Grupo Lésbico-Feminista,
houve muita reação contra, fiquei chateado porque havia
algumas mulheres das quais gostava muito, não poderia
vê-las com freqüência, mas entendia a postura delas.
Estava acostumado com essa idéia do feminismo
separatista na Inglaterra... isso se deve muito à minha
formação inglesa.

6. Os Espaços de Silêncio.

É importante explicar que nem todas as especificidades foram abordadas. O


que começou como processo de libertação amplo, acabou enfatizando o debate sobre
determinadas questões enquanto inviabilizava a menor menção de outras. Isso ficou
claro com as brigas que surgiram no seio do SOMOS/SP. Apesar do grupo
preocupar-se em questionar os padrões impostos pela sociedade tradicional, a
perspectiva individual de alguns participantes ficou obnubilada em função do
coletivo.

132
Idem, p. 215-216.
133
Idem, p. 253.
134
FACCHINI, Regina. Op. cit., p. 09.

141
Essa questão retornou durante a narrativa de Glauco Mattoso. O colaborador
recuperou um tema que não mereceu espaço de debate dentro do SOMOS/SP,
embasado por um teor crítico perspicaz relatou a experiência em consentir o silêncio
sobre algumas questões:
Glauco Mattoso - [...] Os grupos homossexuais por
mais que trabalhassem a especificidade dentro da
especificidade, por exemplo a questão lésbica dentro da
questão homossexual, entre outras, nunca chegaram
àquilo que realmente interessava à especificidade maior:
o indivíduo./ Não poderia ser injusto com o movimento
homossexual, exigindo-o além das condições que
poderia proporcionar. Levando em consideração a
mentalidade da época, foi o máximo que se pôde
oferecer... também me incluo nesse grupo. Apesar de
termos colaborado, escrito, formado grupos de debate,
participado de passeatas e seminários, enfim, de tudo o
que foi possível. Do ponto de vista pessoal muita coisa
deixou a desejar. O grupo não respondeu a todas as
indagações. No meu caso, por exemplo, a especificidade
se voltava a um tipo de desejo que tive pouca chance de
encontrar dentro do universo gay: a pedolatria.

Os grupos homossexuais, segundo Glauco Mattoso, por mais que


trabalhassem a especificidade, não conseguiram encaminhar a discussão de temas
minoritários dentro da própria questão homossexual. A pedolatria e o
sadomasoquismo ficaram aquém desse debate e até foram alvo de discriminação,
porém não havia escapatória para esse caso específico através da formação de
grupos:
Glauco Mattoso - Como isso [pedolatria e
sadomasoquismo] é extremamente minoritário,
acontecia uma discriminação, algo que os homossexuais
tanto condenavam nos heterossexuais. Contudo, eles
também discriminavam. Enquanto estive nesses grupos,
nunca me manifestei totalmente. Sabia que seria
discriminado. Teoricamente não levantei de forma
explícita a questão da pedolatria, mas gostaria de tê-lo
feito. Não havia espaço para essa discussão, por causa
das questões consideradas mais candentes e prioritárias.
Sentia que os homossexuais não queriam ser

142
discriminados pela maioria heterossexual, porém
discriminavam a minoria dentro do próprio segmento. A
minoria que gostava de alguma coisa diferente.[...]

Glauco Mattoso ocupou o espaço literário para falar sobre os temas que não
eram tratados pelo movimento homossexual, preferindo uma abordagem mais
humorística e irônica das questões cobertas pelo silêncio. Nos anos seguintes
continuou sua luta apresentando temas sérios através de obras como O Manual do
Pedólatra Amador135 e Glaucomix:136
Glauco Mattoso - Na minha poesia e literatura sempre
abordei a questão do pé. Isso porém sempre foi visto de
uma forma caricatural, satírica, nunca se levou
suficientemente a sério. As pessoas tomavam esse tema
por motivo de riso. Por um lado, estava correto porque
sou também um humorista, procurei provocar o riso nas
pessoas. Por outro, gostaria de ter sido levado um pouco
mais a sério. Ressinto-me de morar num país latino-
americano. Nessas horas é difícil, porque não se
encontra diálogo com as pessoas. Num país anglo-saxão
existe uma palavra que realmente é expressiva:
"Excêntrico". Caso morasse lá, seria um cara excêntrico
porque gosto de algo menos praticado. Embora a
excentricidade seja tachada assim, acredita-se nela. As
pessoas qualificam de excêntrico, mas não duvidam...
esse problema existe aqui. O fato de uma preferência ser
muito diferente pode até gerar a qualificação de
excêntrico, mas as pessoas não a levam a sério. Não
acreditam, acham que trata-se de uma brincadeira. Em
alguns momentos estive brincando, mas havia horas que
não queria brincar.

A literatura conseguiu romper as vozes que não se sobressaíram no seio do


movimento homossexual. Face às leis brasileiras, alguns assuntos permaneceram
num silêncio maior, como foi o caso da pederastia. Roberto Piva nunca participou

135
Este livro está presente na bibliografia. Ele compõe o corpo de leituras que fiz para esboçar o
projeto, junto com Devassos no Paraíso de João Silvério Trevisan e A Construção da Igualdade de
Edward MacRae.
136
MATTOSO & MARCATTI. As Aventuras de Glaucomix: o pedólatra. São Paulo: Ed.
Expressão, 1986.

143
dos grupos de militância, pois sustentava uma visão do prazer baseada na
valorização do modelo greco-romano de relacionamento entre homem e rapaz.137
Essa forma de conceber uma relação não se aproximava dos ideais propagados pelos
grupos homossexuais de militância:
Roberto Piva “[...] prevalecia aquele modelo
Bofe/Bicha e meu universo nunca foi isso./ Nunca fui
atrás dessas bobagens de querer bofe.[...] Apesar de que
nessa comunidade, especificamente, quem gosta de
garoto é banido. Passa a compor uma minoria dentro da
minoria porque fala uma outra linguagem. [...] O João
Silvério Trevisan foi um dos poucos que me incluiu na
literatura homossexual brasileira, porque a maioria não
inclui. [...]”

7. Os órfãos do Lampião.

A imprensa alternativa sofre uma transformação substancial com o final do


processo da “abertura”. Jornais de resistência política, por exemplo, passam a ser
institucionalizados junto aos sindicatos e aos partidos, outros têm sua linguagem
apropriada pelas grandes empresas jornalísticas.138 O Lampião da Esquina encerra
suas atividades em junho de 1981.139 Porém, as discussões encaminhadas pelo
tablóide somente ganham as páginas da grande imprensa no final dos anos oitenta.
Com o processo de democratização, o público homossexual não encontra
respaldo do debate realizado pelo Lampião em nenhum jornal. Este aspecto foi
recuperado pelas narrativas que prestam atenção ao fato da imprensa não abrir suas
páginas ao tema:

137
A definição pederastia que aflui da narrativa de Roberto Piva está associada a própria origem da
palavra grega: Paed significa menino e Erasta significa Amante. O termo tem origem na Grécia do
século IV a.C., onde os adolescentes púberes eram amados por homens adultos para serem
introduzidos nos ramos do desenvolvimento moral, intelectual e militar. BUFFIÈRE, Félix. Eros
Adolescent. Paris: Societè D’Edition, 1980.
138
As características foram apresentadas nas narrativas, porém com a leitura da obra Jornalistas e
Revolucionários de Bernardo Kucinski pude visualizar o tratamento que o autor elabora sobre o
processo de transição. KUCINSKI, Bernardo. Op. cit. p. 121-127.
139
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 92.

144
João Silvério Trevisan - Acredito que o aspecto mais
triste do Lampião foi não ser ouvido nas discussões
políticas mais importantes que se faziam na época. Nós
não pudemos entrar na conversa, e a nossa discussão
tinha elementos da maior importância, tanto que hoje
[1994] uma série de temas abordados no Lampião são
encontrados em qualquer jornal do país. [...]
Antônio Carlos Moreira - O Lampião morreu antes do
tempo! No que diz respeito à discussão política, naquele
tempo a grande imprensa estava tomando o espaço da
imprensa alternativa. O que aparecia nas páginas do
Opinião, do Movimento passaram para as páginas
políticas do JB e da Folha de São Paulo, ou para os
suplementos especiais desses jornais. Porém, a questão
do comportamento, em relação à homossexualidade, só
começa a aparecer no final dos anos oitenta. [...]
Alceste Pinheiro - O mercado não conseguiu absorver
um jornal com as características do Lampião. Houve
várias expressões presentes na imprensa alternativa,
como o jornalismo de oposição, tipo social democrata
ou centro esquerda, esse era o caso do Movimento, que
foram perfeitamente incorporados com o processo de
democratização. [...] Agora nos anos noventa, a Folha
de São Paulo desenvolveu formas de se dirigir ao
público homossexual.[...]
Luiz Carlos Lacerda - Quando o Lampião pára de ser
publicado, os grandes jornais não se apropriaram do
estilo do jornal. Acho que demorou muito para a grande
imprensa, incluindo a televisão, absorvê-lo. [...]
Alexandre Ribondi - No que se refere ao final do ciclo
da imprensa alternativa, enquanto as publicações de
outros jornais alternativos serão absorvidas pela grande
imprensa, o mesmo não acontece com o Lampião. Não
houve essa absorção.

A idéia de que o jornal contribuiu à afirmação da identidade homossexual,


enquanto debate promovido pelos grupos de militância, possui o efeito contrário
quando acontece a extinção do Lampião. Antônio Carlos Moreira comenta sobre o
esvaziamento dos grupos após o término do jornal, porém mantém muitas reservas
sobre essa relação:
Antônio Carlos Moreira - Assim que terminou o
Lampião, o movimento começou a se fracionar. É

145
engraçado porque o Lampião não tinha uma gerência,
mas quando o jornal acaba, começa o fracionamento dos
grupos. No Rio, o SOMOS/RJ se esvazia
assustadoramente, em São Paulo o SOMOS/SP se
extingue. Parece-me que era o momento, talvez pudesse
ser alguma coisa conjuntural, mas que não sei precisar!
Talvez com a “abertura”! Acho forçado dizer que o fim
do jornal tenha provocado o esvaziamento dos grupos...
jamais diria isso! Formalmente, esse jornal não adotava
essa postura. O jornal e o movimento estavam
distanciados. Nesse final do Lampião, nem notícia de
grupo tinha mais! O Aguinaldo não queria saber de
grupo nem pintado na sua frente. [...]

Apesar dos desvelos do jornal em relação aos grupos homossexuais,140 o


ativismo perde o único veículo nacional que, entre outras coisas, divulgava
informações sobre as atividades dos grupos existentes no país. Alexandre Ribondi é
enfático ao considerar o que o final do Lampião representou para o movimento
homossexual:
Alexandre Ribondi - Quando o Lampião acabou, o
Beijo Livre ainda conseguiu se reunir. O grupo acabou
naturalmente. As pessoas foram se dispersando,
continuaram amigas. [...] Quando o Lampião deixa de
existir, ele deixa muita gente órfã. Todo mundo ficou
órfão porque acabou tudo! Todo mundo se recolheu, os
grupos deixaram de existir. Não se passou mais a
discutir homossexualidade. [...] Quando o Lampião
deixa de existir, os grupos deixaram de existir e os que
existiam, nós não tínhamos como saber deles!! Desta
forma, era como se eles não existissem. Eles não tinham
efeito, não tinham importância. Nesse sentido, o Brasil
ficou órfão quando o Lampião acabou!!! O Lampião foi
um jornal muito importante da minha vida,
extremamente importante!!

140
Esses aspectos foram tratados no capítulo anterior e servem como referência para
compreendermos o clima das expectativas pessoais quanto ao papel que o Lampião deveria ocupar

146
8. Às vésperas do Caos.

Na época em que o país estava saindo da ditadura militar as notícias sobre a


AIDS chegaram ao Brasil, poucos anos depois dos grupos homossexuais emergirem
no cenário político. Isso provocou um refluxo: a questão homossexual começou a ser
atropelada pela crise da AIDS. A síndrome coincidentemente fazia suas primeiras
vítimas nesse meio. Em abril de 1983, foi divulgada a existência de dois casos no
Rio de Janeiro, mas com a divulgação morte de Marcos Vinícius Resende
(Marquito), vitimado pela AIDS no mês de julho, a epidemia foi anunciada para os
brasileiros.141
Qualquer discussão mais sofisticada sobre o modo de vida homossexual
passou a ser associada ao perigo de propagação do vírus. Todo o debate resultante do
período da contestação sobre liberdade parecia estar comprometido.142 Tudo
começava a mudar: a AIDS transformava a homossexualidade numa questão de
saúde.
A AIDS entra no mercado de informações como uma “peste gay”, sendo
divulgada de forma exaustiva e sensacionalista. Era percebida como uma doença
exclusivamente homossexual, o que estabeleceu um grupo de altíssimo risco e
transformou-se num elemento de discriminação. O tom das notícias criou pânico
entre a população que se via ameaçada pelo risco de contaminação pelos
homossexuais.143
No decorrer dos anos oitenta preponderava um clima que anunciava o
desaparecimento da homossexualidade. Não no que se refere às práticas sexuais, mas
de sua saída do cenário público através de “um declínio manso e quase

141
SILVA, Lindinalva Laurindo. AIDS e Homossexualidade em São Paulo. Dissertação de
Mestrado em Antropologia, PUC: São Paulo: 1986. p. 02.
142
POLLAK, Michael. Os Homossexuais e a AIDS. São Paulo: Estação Liberdade, 1990. p. 11-12.
143
SILVA, Lindinalva Laurindo. Op. cit., p. 02.

147
imperceptível”.144 As análises acerca desse processo, assim como as notícias
divulgadas pelos meios de comunicação, sugeriam “uma coincidência mórbida entre
um maximum de atividade sexual e a emergência da AIDS que utilizava o contato
entre os corpos para se expandir”.145
Numa viagem realizada aos Estados Unidos, logo na origem da AIDS,
Edward MacRae vivenciou o processo de descoberta dos grupos homossexuais
norte-americanos em face da doença:
Edward MacRae - Em 1982 ou 83, um velho
conhecido, editor da Revista Ícaro, me telefonou
perguntando se queria passar uns três ou quatro dias em
Nova Iorque. Era para cobrir um congresso de agências
de viagem para a revista. [...] Quando cheguei à Nova
Iorque, toda a defesa em nome do desbunde que li a
respeito já não estava mais do mesmo jeito. [...] Na
imprensa gay americana se lia “A Festa Acabou”. Em
questão de um ano havia mudado tudo, estava diferente
do que tinha lido antes. Parece-me que o vírus ainda não
tinha sido isolado. O movimento gay estava todo
voltado à questão da AIDS. Então percebi que era uma
coisa séria.[...]

O Lampião deixou de circular dois anos antes do surgimento da AIDS, mas


suas idéias estavam vivas na consciência dos leitores que visitaram suas páginas. Na
fase inicial da síndrome, os homossexuais recebiam as informações sobre a AIDS
com desconfiança. Temia-se que o discurso médico se re-apropriasse da
homossexualidade e passasse a exercer sobre os indivíduos seu controle
institucional:146
Edward MacRae - Quando voltei ao Brasil, a idéia era
que se tratava de mais um complô médico. A questão
da AIDS era vista como outra fórmula pseudocientífica
para oprimir os homossexuais, fazê-los retornar às
margem. Muitos dos antigos militantes defendiam esse

144
PERLONGHER, Néstor. “O Desaparecimento da Homossexualidade”. In: Saúde e Loucura,
Nº 3, 1992, p. 38.
145
Idem, p. 40.
146
SOUZA, Pedro de. Op. cit., p. 28-30.

148
parecer. [...] houve momentos em que ocorreram
algumas discordâncias entre eu e os militantes, mas eles
eram pessoas inteligentes e logo começaram a perceber
os perigos que estavam correndo.[...]

Quando esta síndrome começou a fazer suas vítimas no segmento


homossexual - apesar das divergências entre os militantes -, os grupos brasileiros
também começaram a se dedicar à prevenção e ao tratamento da doença. A
organização dos ativistas foi a forma de reação adotada para fazer frente à AIDS.
Os homossexuais antevêem a onda de discriminação com o aparecimento da
síndrome. O enfraquecimento do movimento não impediu o Grupo Outra Coisa - a
dissidência que saiu do SOMOS/SP - de inaugurar, em conjunto com as autoridades
de Saúde de São Paulo, em julho de 1983, a prática de distribuição de panfletos para
o esclarecimento população e a prevenção comunitária:147
James Naylor Green - Não soube o que aconteceu com
Outra Coisa quando saí do país... em dezembro de 1981.
Depois descobri que o grupo Outra Coisa - que se
retirou do SOMOS - fez duas coisas extremamente
positivas: um guia gay que não era sectário, o grupo
publicou os nomes de todos os outros... neste ponto
achei excelente, gostei muito deste trabalho. Foi um dos
primeiros grupos a divulgar um panfleto sobre AIDS no
gueto.

Após o advento da AIDS, até a passagem dos anos oitenta para os anos
noventa, o movimento homossexual mostrava-se tímido e recolhido. Fundados nos
anos oitenta, O GGB, Grupo Gay da Bahia, e o GALF, Grupo de Atuação Lésbico-
Feminista, foram as únicas organizações homossexuais que restaram. Elas se
mantiveram durante todo esse período. O SOMOS/SP - primeiro grupo de militância
homossexual - encerrara suas atividades em 1983.148

147
SILVA, Lindinalva Laurindo. Op. cit., p. 3.
148
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 238.

149
O GGB, especificamente, protagoniza um trabalho que será retomado por
outros grupos que surgiram após a origem da AIDS:149
Luiz Mott - Fiz uma pequena bibliografia sobre AIDS
no Brasil. Modéstia parte, em 1982 o Grupo Gay da
Bahia foi a primeira ONG a iniciar a prevenção da
AIDS. Escrevi a primeira bibliografia sobre este tema.
Além disso, considero que meu trabalho sobre a
prevenção da AIDS no candomblé é pioneiro no Brasil...
se não me engano de 1990! No que se refere ainda ao
trabalho sobre a prevenção da AIDS, há o primeiro texto
em braile. Durante muito tempo, foi o único material
destinado especificamente aos cegos no Brasil.

A maioria dos homossexuais apresentava-se dispersa frente ao receio de ser


estigmatizada pela AIDS, porém aqueles que aceitaram os aspectos positivos da
identidade homossexual empenharam-se em campanhas de prevenção e tratamento
da doença. Neste ponto, é importante retomar uma das questões levantadas por
Jurandir Freire Costa. O autor, ao discutir o impacto da AIDS no imaginário social,
reconhece que as experiências iniciais de aceitação e revalorização da “identidade
homossexual” representam uma novidade cultural que o surgimento da AIDS veio
ajudar a consolidar.150
Em 1985 surgiu a primeira Organização Não Governamental ligada à AIDS: o
Grupo de Apoio e Prevenção à AIDS (GAPA). O GAPA/SP era composto por
profissionais da área de saúde e por militantes de grupos homossexuais:151
Edward MacRae - Havia outras pessoas preocupadas
em pensar formas de prevenção à AIDS e de luta pelos
direitos dos homossexuais. Logo se formou o GAPA.
Também participei das primeiras reuniões deste grupo.
Face a AIDS, houve preocupações como as de um

149
TERTO JR, Veriano. “Homossexuais Soropositivos e Soropositivos Homossexuais: questões da
homossexualidade masculina em tempos de AIDS.” in: PARKER, Richard; BARBOSA, Regina
Maria (orgs) Sexualidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996. p. 94.
150
COSTA, Jurandir Freire. Op. cit. p. 167.
151
VALLINOTO, Tereza Christina. A Construção da Solidariedade: um estudo sobre a resposta
coletiva à AIDS. Dissertação de mestrado apresentada à escola Nacional de Saúde Pública da
Fundação Oswaldo Cruz: Rio de Janeiro Dezembro de 1991. p. 35.

150
ataque às conquistas conseguidas pelo movimento
homossexual. A intenção era manter o terreno que já
tinha sido ganho.

James Naylor Green ressalta os nomes das pessoas que passaram pelos grupos
de militância e que depois se dedicarem ao trabalho de prevenção e tratamento da
doença. Elas atravessaram os anos oitenta como ativistas do movimento
homossexual:
James Naylor Green - Nos anos oitenta, os ativistas do
SOMOS e do grupo Outra Coisa - que rachou e fez mil
calúnias -, reivindicam sua militância e participaram do
movimento de esclarecimento e prevenção à AIDS. Há
pessoas participando ainda hoje, como Veriano que era
do grupo SOMOS/RJ, Jorge Beloqui que era do
SOMOS/Rio e São Paulo, John MacCarthy que estava
na fundação do SOMOS, outras pessoas como Míriam,
Alice e Mariza que eram do primeiro grupo lésbico e
ainda estão ativas. [...]

As ONGs-AIDS foram ocupando o cenário brasileiro a partir de meados dos


anos oitenta. Esses grupos emergem em um contexto que reflete o surgimento da
vida democrática no país. As ONGs-AIDS acompanham um processo de luta pela
cidadania em curso no Brasil.152 O segundo momento do movimento homossexual
brasileiro acontece na mesma época. Neste período a rigidez da ditadura militar não
existia mais, porém a chegada avassaladora da AIDS fomentava a discriminação.153
No início da propagação da epidemia, a AIDS se tornou parte da identidade e da
história dos homossexuais masculinos.
Celso Curi e Alceste Pinheiro, colaboradores que pautam suas narrativas pelo
perfil profissional em detrimento da militância, ao comentarem suas impressões
sobre a atuação do movimento homossexual brasileiro definem a crise da AIDS da
seguinte maneira:

152
Idem, p. 25.
153
SILVA, Cristina Luci Câmara da. Triângulo Rosa: a busca pela cidadania dos homossexuais.
IFCS-UFRJ: Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, 1993. p. 53.

151
Celso Curi - [...] Caso não houvesse movimentos em
torno da AIDS, não haveria nenhum movimento
preocupado em pensar sobre a homossexualidade no
Brasil. Parece que o movimento homossexual brasileiro
sempre está ligado a algum problema.
Alceste Pinheiro - Atualmente, observo algum sentido
no movimento homossexual por causa da AIDS. A ação
do Luiz Mott no Grupo Gay da Bahia. Ele tem uma ação
específica como o combate à AIDS... mas na grande
maioria do movimento não observo nenhuma discussão
relevante.[...]

Essa situação só foi transformada quando ocorreu uma mudança substancial


do quadro de infectados, isso gerou a alteração dos discursos que buscaram des-
homossexualisar a AIDS.154 Os discursos sobre a prevenção re-elaboram a noção de
“grupos de risco”, para apresentar a noção de “comportamento de risco”.155 O ponto
mais interessante, contudo, permanece sobre o acúmulo de forças e a reestruturação
dos grupos de militância após a crise da AIDS.

9. A Nova Ordem: as vozes perenes do sonho.

A compreensão de alguns aspectos da primeira onda do movimento


homossexual ajudara a construir uma distinção entre o ativismo praticado pelos
antigos grupos em relação à proposta elaborada pelos novos: os primeiros militantes
percebiam a questão homossexual como o estopim para uma revolução social mais
abrangente, enfatizando o lúdico, o inconformismo e a soberania das especificidades.

154
VALLINOTO, Tereza Christina. Op. cit., p. 102.
155
Segundo Ideraldo Luiz Beltrame, a noção de “comportamento de risco” ainda não representaria
o modelo eficiente para a educação e prevenção da AIDS, pois a mesma não comporta a
compreensão da diversidade de grupos e de comportamentos individuais que compõe o conjunto da
sociedade. O autor propõe que em termos de pensar sobre “práticas de risco”, torna-se possível
reconhecer o amplo leque de ações que possam predispor os indivíduos ao contato com o HIV.
Nesse sentido, as “práticas de risco” não estariam associadas a nenhuma predisposição atribuída a
grupos específicos e nem a comportamentos considerados desviantes. BELTRAME, Ideraldo Luiz.
Do Risco das Práticas às Práticas de Risco: em busca de uma nova categoria explicativa para a

152
Os grupos defendiam os ideais libertários, tanto explicitamente, através do
questionamento das relações sociais, quanto implicitamente, através dos seus ideais
de organização não-hierárquica.156
Edward MacRae e Alexandre Ribondi recuperam as características iniciais do
movimento homossexual, sobretudo quando falam da contestação das regras sociais:
Edward MacRae - O movimento homossexual
questionava a normalização do ato sexual. Existia até
um Slogan: “O Sexo Anal derruba o Capital”. A partir
do questionamento dos papéis de gênero se queria fazer
uma grande revolução, para implodir toda a estrutura,
minar por baixo a sociedade.[...]
Alexandre Ribondi - A homossexualidade era uma
forma de questionar os relacionamentos sociais: a
família, a herança! Havia um slogan dos homossexuais
que era: “O coito anal derruba o capital” Parece uma
grande piada, mas também foi um ponto sério porque o
coito anal não gera herdeiros, então não é possível
transmitir os bens. O coito anal abala a transmissão da
herança que deve circular dentro de uma família.
Acreditava-se também que o coito anal era uma das
grandes ameaças dos homossexuais ao sistema
capitalista... ao sistema de acumulação de bens! Desta
forma, as pessoas faziam propostas geniais através da
homossexualidade. Por exemplo: usar a
homossexualidade como arma de luta social.[...]

É preciso retomar Guy Hocquenghem para compreender os desdobramentos


vividos pelos militantes que continuaram a perseguir esse sonho. Segundo o autor, o
movimento homossexual postulava uma transformação íntima de uma personagem,
para libertá-la de seus temores, de sua marginalidade e finalmente ser inserida no
Estado.157 Para Hocquenghem, o movimento homossexual se viu pai de uma nova

prevenção da AIDS no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentado a FSP-USP: São Paulo, julho
de 1997.
156
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 303.
157
HOCQUENGHEM, Guy. A Contestação Homossexual. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 18.

153
normalidade, cuja justificativa se apóia na inexistência da igualdade formal em nível
de direitos.158
Na medida em que esses grupos foram se transformando em organizações
institucionalizadas, cujo itinerário conduz à discussão pelos direitos baseados nas
carências - identificadas no seio dos novos movimentos sociais que começaram a
surgir -, os sucessos não devem ser concebidos como inclusão no poder estatal
(reforma), mas como outra alternativa que afluiu das experiências vividas em nível
histórico. Portanto, reforçar novas categorias ou identidades não seria simplesmente
uma normalização, mas - neste aspecto é preciso retomar Guattari -, uma tática
inteligente de resistência para fazer valer suas exigências.159
Ao longo dos anos oitenta o Grupo Gay da Bahia e o Grupo Triângulo Rosa,
formado em 1985, exigiram que o Estado os reconhecesse como agremiações
declaradamente homossexuais.160 O surgimento destas entidades pode ser observado,
em nível histórico, como uma mudança em relação aos grupos homossexuais da
primeira onda.
Nesse processo, a apropriação da identidade homossexual marcaria um
vínculo entre duas vidas: a aproximação de João Antônio Mascarenhas e Luiz Mott.
Ambos cimentam uma admiração mútua e cada um reconhece o trabalho realizado
pelo outro durante suas narrativas.
No caso de João Antônio Mascarenhas, a emergência da identidade
homossexual no cenário público brasileiro foi inspirada na literatura norte-americana
e inglesa. Este contato dá conhecimento do movimento homossexual nos países
anglo-saxões, então Mascarenhas passa a pensar sobre as perspectivas do
aparecimento de um movimento similar no Brasil. A primeira tentativa de execução
desse projeto foi através do Lampião, porém a preponderância da posição de
Aguinaldo Silva levou João Antônio Mascarenhas a sair do jornal. Com esse

158
Idem, p. 146.
159
GUATARI, Felix. Revolução Molecular. São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 40-41.
160
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 301.

154
afastamento e a inexistência de grupos no Rio de Janeiro com os quais tivesse
afinidade, passou a colaborar com o Grupo Gay da Bahia.161
É dessa forma que João Antônio Mascarenhas relata como conheceu Luiz
Mott:
João Antônio Mascarenhas - Certa vez, fui a um
congresso... acho que era na Casa do Estudante
Universitário - CEU-, lá no morro da Viúva, e vi uma
sujeito do qual gostei. Ele me impressionou. Achei-o
uma pessoa séria: Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia.
Entrei em contato e passei a trabalhar com ele. Porém,
eu atuava no Rio de Janeiro e ele em Salvador. Eu
fazendo pesquisas e escrevendo cartas para ele, dando
palpites sobre orientação... essas coisas todas. Quando
foi em 1985, aproximava-se a questão da Constituinte,
assim achei melhor me desligar do Grupo Gay da
Bahia... no sentido de criar um grupo aqui no Rio. Foi
assim que nasceu o Triângulo Rosa.

Luiz Mott, por sua vez, faz avaliações sobre o trabalho que realizou enquanto
militante, mas reconhece que a origem do movimento homossexual brasileiro deve
ser atribuída a João Antônio Mascarenhas:
Luiz Mott - [...] Atualmente, sou o homossexual que
durante mais tempo, ininterruptamente, participa do
movimento homossexual. Era o João Antônio
Mascarenhas. Em 1977, ele foi o primeiro a ter a idéia
de organizar os homossexuais em nosso país, trazendo o
Winston Leyland ao Brasil - diretor da editora Gay
Sunshine - para fazer conferências sobre liberação
homossexual. [...] João Antônio Mascarenhas, considero
uma personalidade importantíssima, apesar de sua
personalidade elitista, pelo fato de ser uma pessoa que
possui bens, o seu perfeccionismo... mas é muito
generoso! Ele deu uma contribuição fundamental na
organização do Grupo Gay da Bahia, assim como em
outras atividades do movimento homossexual. [...]

161
SILVA, Cristina Luci Câmara da. Op. cit., p. 61.

155
10. Lapidar o Sonho até gerar a História.

O processo de luta foi em busca de outras saídas para diminuir a


discriminação contra os homossexuais, dialogando com partidos políticos,
instituições e organizações da sociedade civil. O poder jurídico passou a ser visto
como outra possibilidade de alterar a realidade, indicando um caminho que
perseguiu a mudança dos códigos e das leis.162
Ao adorarem a causa homossexual, João Antônio Mascarenhas e Luiz Mott
aliaram-se para fazer campanhas através dos grupos que representavam. Os trechos
das entrevistas de Luiz Mott e João Antônio Mascarenhas dedicados à atuação
enquanto militantes ocupam uma parte significativa de seus depoimentos. As
propostas apresentadas ainda em 1980, durante o Primeiro Encontro de Grupos
Homossexuais Organizados,163 foram retomadas para compor a trajetória de Luiz
Mott:
Luiz Mott - O Grupo Gay da Bahia, logo que foi
fundado, tomou como primeira campanha a luta contra o
parágrafo 302.0 - da classificação internacional de
doenças, da Organização Mundial de Saúde -, o qual
considerava o homossexualismo como desvio e
transtorno sexual. A partir de 1981, começamos a
campanha nacional. Conseguimos dezesseis mil
assinaturas, assim como o apoio de políticos
importantes: Franco Montoro, Ulisses Guimarães, Darcy
Ribeiro, entre outros; e o apoio de cinco associações
científicas - a favor da despatologização da
homossexualidade - que finalmente redundou na
principal vitória do movimento homossexual até agora.
Em 1985, o Conselho Federal de Medicina retirou a
homossexualidade da classificação de doenças.
Internacionalmente, esta alteração pela Organização
Mundial de Saúde só ocorreu no ano passado, em 1994.
Neste sentido, o Brasil se antecedeu em vários anos a
essa conquista internacional. [...]

162
Idem, p. 116.

156
João Antônio Mascarenhas, particularmente, dedica-se a relatar todo o
processo junto a Assembléia Constituinte em 1987-88,164 quando temas inéditos,
referentes à homossexualidade, foram debatidos no Congresso Nacional. Ele
reconhece a relevância desses fatos quando os recupera como parte da história
pessoal:
João Antônio Mascarenhas - Em 1987, pela primeira
vez - até agora a única! -, o Triângulo Rosa conseguiu ir
à Câmara Federal... ao Congresso Nacional Constituinte.
Lá, fiz exposição a duas subcomissões... parece que
isso foi em abril. O assunto foi levado a plenário e
fomos derrotados... a última votação na Assembléia
Nacional Constituinte foi em fevereiro de 1988. Fui à
Brasília... nunca um ativista gay tinha entrado no
Congresso Nacional como tal. Muito menos para fazer
uma exposição e ser sabatinado pelos parlamentares...
isso foi um escândalo! [...] Houve a votação no início de
1988, acho que foi janeiro ou fevereiro... fomos
derrotados. Nos fins de fevereiro e princípios de março
de 1988, saiu o primeiro projeto da Constituição
Federal. Por essa época, eu me afastei do grupo
Triângulo Rosa. Depois retomei quando se aproximava
a Revisão Constitucional. Porém, dizia que voltaria até
terminar a Revisão... qualquer que fosse o resultado. Na
Revisão, também fomos derrotados. Desta vez não
houve esse sucesso de escândalo... Com este nosso
trabalho, não conseguimos ser contemplados na
Constituição Federal, mas conseguimos em duas
Constituições estaduais: a de Sergipe e a de Mato
Grosso; e em 27 leis orgânicas municipais... inclusive
do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.

11. As Histórias de Vida conjugam Sonhos.

As narrativas elucidam experiências que problematizam a atmosfera


divulgada pelos movimentos libertários. Os colaboradores expõe aspectos referentes
a formação política que permitem comparar a razão das diferenças e o motivo dos

163
MACRAE, Edward. Op. cit., p. 204.
164
SILVA, Cristina Luci Câmara da. Op. cit., p. 213.

157
esclarecimentos presentes nas narrativas. Neste ponto ainda, há a revelação do
silêncio que existia no seio do movimento homossexual em relação a determinados
temas. As narrativas com essa característica exploram a idéia de preponderância de
modelos de sexualidade que excluem outras possibilidades de expressão do prazer.
No que se refere as ações do movimento homossexual, é importante ressaltar
que os colaboradores esclarecem como os grupos sempre estiveram presentes e
realizando atividades. Neste ponto, em meio aos avanços e recuos, a
institucionalização e a luta contra a AIDS constituem etapas de um processo iniciado
na década de setenta. É interessante notar como as narrativas elucidam as posições
adotadas pelos colaboradores, enfocando como os conflitos e as ações que
realizaram durante suas trajetórias provocam um reflorescimento do movimento
homossexual brasileiro.

158
Capítulo 5
Em Razão do Sonho.

“Houve um silêncio embaraçoso, mas depois


conseguiram estabelecer o diálogo, comunicar-
se outra vez”165
Gasparino Damata

1. Os Pólos Positivos.

As histórias de vida sugerem um diálogo entre os colaboradores quando estes


refletem sobre suas posturas políticas e/ou acadêmicas. A produção científica ligada
à antropologia representa uma retomada importante. No Brasil, verificamos que no
campo da História Contemporânea nota-se a carência de trabalhos desenvolvidos a
partir da perspectiva do historiador. Exceção à regra, Celeste Zenha Guimarães
possuí o único trabalho que foge a esse contexto. Homossexualismo: Mitologias
Científicas, sua tese de doutorado, trata-se de uma rica reflexão sobre a produção
médico legal brasileira. A tese de Celeste Z. Guimarães recupera a implantação da
categoria “homossexual”, traçando uma relação com as origens do discurso
científico no país.166
Para tanto, identifica no Brasil republicano, pós-escravista, a qualificação da
competência científica, erigida em detrimento dos “saberes não científicos”. O saber
médico, segundo sua análise, ganha a hegemonia da ação - perpassado pela teoria da
organicidade -, para garantir o bom funcionamento social. A autora descreve como
até a metade do século XX o espaço das instituições médico-jurídicas brasileiras irá
além dos limites dos discursos sobre “homossexualismo”, transformando corpos em

165
DAMATA, Gasparino. Os Solteirões. Rio de Janeiro: Pallas, 1975. p. 198.
166
GUIMARÃES, Celeste Zenha. Homossexualismo: Mitologias Científicas. Tese de doutorado
apresentada ao Depto. de História da IFCH-UNICAMP, em maio de 1994.

159
espécimes aprisionadas em sanatórios e hospitais. Fato que compreendia a atuação
médica em conjunto com as instituições jurídicas e veio a exilar do contexto social
sujeitos, apresentados a luz da medicina, com tendências à prática criminosa e anti-
social. Nesse sentido, a medicina-legal elegia alguns “tipos” para atuar
exemplarmente contra o que entendia ser as causas da “degenerescência do sistema
social”.
Os limites de uma produção na área de História Contemporânea do Brasil,
contudo, não impediram o tratamento do tema com vistas a uma contextualização
histórica em outras áreas, cujas produções permitem fazer esse trabalho. A alusão à
época recente recai sobre os estudos antropológicos dos anos oitenta. A produção em
nível universitário, aqui cortejada, não pode ser apresentada como um mero reflexo
das histórias contadas por Luiz Mott, Peter Fry e Edward MacRae. Ela aparece como
um ponto significativo para outros colaboradores. O recurso em citar a mudança
ocorrida no meio universitário sobre a produção ligada à homossexualidade, tanto
em nível de teor qualitativo quanto quantitativo, realça a narrativa de João Antônio
Mascarenhas:
João Antônio Mascarenhas - Os livros sérios eram
sempre muito moralistas. No Brasil, somente de uns
quinze ou vinte anos para cá... especialmente nos
últimos dez anos, começou-se a se escrever mais sobre a
homossexualidade. Inclusive mais homossexuais
começam a escrever sobre a homossexualidade. Naquela
época, especialmente os homossexuais não se atreviam,
pois não queriam aparecer de peito aberto. [...] Na
universidade, de uns dez, vinte anos para cá, é muito
grande o número de teses, cujo núcleo se concentra no
tema homossexualidade.

Outro ponto significativo que permeia as narrativas refere ao papel dos


colaboradores em colocar suas vidas a serviço da perspectiva acadêmica:

Dolores Rodriguez - Surge assim uma literatura mais


voltada para o público gay, as universidades passam a

160
discutir a questão, as pessoas do Lampião são
convidadas para discutir o papel do jornal, os
movimentos sociais convidam membros do movimento
homossexual para debates nas faculdades, realmente,
começamos a discutir a homossexualidade. [...]

2. Um Debate Pululante.

Nas universidades, contudo, o debate teórico sobre a homossexualidade


gravitou em torno de duas perspectivas teóricas que se distinguem substancialmente:
uma delas ligada ao pressuposto do construcionismo social; e a outra ligada ao
pressuposto de essencialismo Neste item apresentarei a primeira perspectiva como
uma das posturas que as narrativas externam, assim será possível compará-las com
as trajetórias de colaboradores que não estão protegidas pelo véu acadêmico, mas
externam uma sintonia com o primeiro pressuposto quando falam de suas
experiências de vida. Essa sintonia aflora em considerações sobre a negação de uma
identidade específica que dê conta da realidade brasileira.
É preciso retomar alguns textos acadêmicos para recuperar esta perspectiva
teórica. Eles começam a ser produzidos a partir de 1982. O teor crítico não poupa
sequer o uso da palavra “homossexual”, apesar do uso do termo ser recorrente em
meio a diversas linhas preocupadas em dissipar a idéia de perenidade da palavra.
Esta perspectiva teórica insiste que a sexualidade deve ser compreendida enquanto
um fenômeno sócio-cultural e histórico.167

167
Segundo David Halperin, em 1992 fez cem anos que Charles Gilbert Chaddock recebeu os
créditos do Oxford English Dictionary por haver introduzido a palavra “homo-sexuality” na língua
inglesa. Os termos “homossexual” e “Homossexualidade”, contudo, apareceram impressos pela
primeira vez em 1869, em dois panfletos anônimos publicados em Leipzig. Compostos,
aparentemente, por Karl Maria Kertbeny. No que se refere ao período que precede 1892, não havia
recorrência ao termo homossexualidade, mas à expressão “inversão sexual”. Noutras palavras a
preferência sexual por uma pessoa do próprio sexo não era distinguida de outras formas de
inconformismo aos papéis sexuais. Halperin acredita que o desenvolvimento da cultura urbano-
industrial influiu no processo de formação das identidades sexuais modernas, recusando qualquer
possibilidade da existência de um gene que determine a orientação sexual. HALPERIN, David M.
One Hundred Years of Homosexuality. New York: Routledge, 1990. p. 15, 49.

161
Preocupações ligadas às transformações sócio-políticas, vividas pelo Brasil,
após a afluência dos movimentos de militância homossexual levaram Peter Fry e
Jean Claude Bernardet a produzirem artigos questionadores à perspectiva que
defende a gênese natural do comportamento homossexual. O primeiro autor reflete
sobre a contextualização local, cultural e histórica da sexualidade, contrapondo-se ao
modelo anglo-saxão que estabelece noções estanques como: heterossexualidade,
bissexualidade e homossexualidade.168 Enquanto Jean Claude Bernardet escreve
sobre a condição do “ser homossexual”, distinguindo-a do “estar homossexual”. Ele
procura discutir a inexistência de fronteiras neste sentido.169 Estas posições
contribuem à percepção crítica da palavra “homossexual”, quando discutem a
generalização que o termo propiciaria a percepção do fenômeno.
Esta postura é retomada durante a construção narrativa de Peter Fry, quando o
colaborador reflete sobre seu “olhar” estrangeiro - enquanto imigrante inglês e
antropólogo -, e sobre a forma como percebeu a vivência da sexualidade no Brasil:
Peter Fry - Eu achei o Brasil mais capaz de fazer vistas
grossas à homossexualidade, enquanto naquela época
era barra pesada ser homossexual na Inglaterra... basta
ver que o Brasil nunca teve uma legislação contrária à
homossexualidade. No Brasil atacava-se pelo argumento
da moral e dos bons costumes, mas não havia nenhum
artigo no código penal contra a homossexualidade... não
havia nenhuma legislação proibindo a
homossexualidade como na Inglaterra e nos Estados
Unidos.[...] Na década de setenta, há uma identidade
nítida na Inglaterra e nos Estados Unidos que se chama:
Homossexual. No Brasil a sexualidade masculina ainda
corre solta... precisa de muito menos para ser
comprovada. Não sei como é hoje em dia, mas era
perfeitamente comum o homem casado, com filhos,
transar com meninos e achar totalmente normal. Num

168
FRY, Peter. “Ser ou não ser homossexual, eis a questão”. in: Folhetim, Suplemento da Folha de
São Paulo, 10 de janeiro de 1982. Essa elaboração crítica ainda pode ser lida com todos os seus
argumentos quando escreve um prefácio apresentando o livro O Negócio do Michê de Néstor
Perlongher. PERLONGHER, Néstor. Op. cit., p. 11-15.
169
BERNARDET, Jean Claude. “Os homossexuais no momento de sua definição” in: Folhetim,
Suplemento da Folha de São Paulo, julho de 1982.

162
Brasil mais ou menos popular, estou convencido que era
outra coisa. No Brasil, um rapaz poderia manter relações
sexuais com outro homem sem deixar de ser homem...
achei isso interessante!

Alceste Pinheiro não é imigrante, mas sustenta a mesma posição no tocante a


inadaptabilidade da identidade homossexual à realidade brasileira. Essa sintonia é
fruto das expectativas dos colaboradores que não desejam abrir mão de aspectos
referentes à sua vida privada:
Alceste Pinheiro - No Brasil não houve política pública
contra homossexuais. Aqui existem posições
preconceituosas individuais, com sérias conseqüências
sobre a vida do indivíduo. Não me lembro de nenhuma
política repressiva à homossexualidade, nunca soube
que houvesse, na minha vida não assisti a qualquer
repressão acentuada, por exemplo, agressões físicas
como ocorreram nas unidades norte americanas, como
Stonewall em Nova Iorque./ Os ecos das idéias sobre
movimento homossexual são transportadas de um país
com legislação contra a homossexualidade. As formas
de luta norte-americanas acabaram se transferindo e as
preocupações são expressas assim: “- Ah! Se nos
Estados Unidos é assim porque então não trazer para o
Brasil”. Pelo simples fato que no Brasil não havia este
tipo de problema. [...]

Essas considerações arregimentam argumentos para a defesa de que a


tolerância da conduta homossexual sempre foi verificada na sociedade brasileira. Os
colaboradores expressam que a sexualidade no Brasil não comportaria normas, nem
valores capazes de solidificar segmentos como os que provêm dos países anglo-
saxões:
Roberto Piva - O Brasil é muito poligâmico, muito
bissexual. Essas divisões são muito esquisitas, muito
rígidas. Elas não cabem para o país do carnaval, onde
homem casado se veste de mulher... um escândalo para
determinados países protestantes. No Brasil predomina a
característica bissexual do orixá que o rege, Logun-Edé.
Esse orixá rege um povo do qual ele possui o arquétipo.

163
Um fator determinante à convivência pacífica com as regras sociais refere à
postura que adotam em nível pessoal:
Alceste Pinheiro - [...] Não me lembro na vida de ter
tido problema nenhum neste sentido. Todas as vezes que
fui discriminado, por ser homossexual, tinha muito mais
pena da pessoa que me discriminava. Nunca me senti
prejudicado e também não fico discutindo a minha
sexualidade. Não preciso dizer para ninguém que sou
bicha, mesmo porque ninguém tem nada a ver com isso.
Eu trepo com quem quero e não tenho que explicar isso
a ninguém.

Uma das conclusões que pode ser tirada dessa postura é que a vida privada
não é um artefato social supérfluo. A defesa da individualidade é uma operação
simples, pois ela é verdadeira e necessária em suas vidas.170 Uma segunda conclusão
está relacionada a auto-preservação. O teor crítico dedicado à imposição do processo
de assumir-se homossexual não condiz com suas expectativas pessoais e gera
respostas em diferentes níveis:
Peter Fry - Não sei se escrevi a este respeito no
Lampião, mas publiquei um artigo na Folha de São
Paulo que criou inimizades na época... escrevi um
ataque sério ao stalinismo sexual. Este sempre foi o meu
argumento... estar recusando a cristalização de uma
identidade que arrasava com as outras identidades.
Achava que isso não tinha nada a ver comigo. Essa idéia
de criar uma identidade, a qual elimina ou domina as
outras - ao meu ver - não era interessante. Os outros
fazem o que bem entendem, não quero enfiar nada na
goela de ninguém!... mas tenho muita raiva daqueles que
querem enfiar na minha... MUITA!!!
Alceste Pinheiro - Esta questão beira o ridículo,
acreditar na existência de um homossexualismo comum
a todos... isto não existe. Cada pessoa representa sua
própria vontade de trepar. Não dá para reunir este
universo de visões de mundo, de humanidade, da
própria sexualidade, de prazer sexual, de afetividade,
contido em cada ser humano, juntar tudo e dizer: “- Ah!
Homossexualismo é isso tudo”... isto não tem nem

170
COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1986. p. 144.

164
sentido teórico.[...] Para as pessoas que participam
destes grupos deve ser ótimo. Algo parecido com uma
terapia. Deve haver um bom espaço de atenção e até de
ação. Entretanto, os resultados sempre serão limitados,
mesmo porque boa parte das pessoas não se sente
representada, nem gostaria de ter aquela representação...
às vezes nem gostaria de saber que ela existe. Eu não me
sinto representado por nenhum grupo deste tipo.[...]

O que chama a atenção nessas narrativas é a denúncia da identidade


homossexual como incapaz de contemplar a variedade de situações presentes na
vida. Não obstante, essas considerações refletem sobre o posicionamento político,
afluem argumentos contra o controle social que caminham para um senso crítico em
relação à categorização da sexualidade:
Peter Fry - No fundo também sou contra a divisão do
mundo através da criação de identidades estanques...
sou contra mesmo! [...] Se questiona como se resolve a
questão política, num mundo que caminha para a
estandardização... com representantes disso ou daquilo
no Congresso Nacional!! Na verdade, não tenho uma
posição que sustente... somente a da autonomia do
indivíduo. Provavelmente vou sustentar uma bandeira já
quase extinta. Assim, sou de uma posição muito anti-
popular e muito anti-natural. Vou carregar essa bandeira
do indivíduo. Para falar a verdade, acho que é uma
batalha perdida.
Roberto Piva - [...] Eu costumo dizer que a minha
revolução sexual foi feita aos cinco anos de idade.
Quem não fez sua revolução nessa idade, não vai fazer
nunca mais! Não faz sentido esperar que o governo,
através da constituição, garanta esse tipo de proteção.
Eu espero que isso não aconteça, porque senão tudo
quanto é gente vai achar que tem direito a usufruir de
um prazer celebrado pelos deuses. [...]

3. Contra o Mito da Tolerância.

A idéia da tolerância possui outra configuração quando é tratada pelos


colaboradores que não acreditam na sua existência. Para eles a população brasileira -

165
pretensamente liberada, permissiva e tolerante -, necessariamente não possuiria
valores como o respeito à aceitação do outro em sua diferença. Essa falsa tolerância
estaria fundamentada num silêncio que tende a obscurecer a existência real dos
conflitos sociais. Essas considerações tornam-se interessantes quando conduzem ao
desvelamento do silêncio que os defensores da individualidade parecem justificar.
João Carlos Rodrigues consegue cristalizar esse sentimento de impotência
diante dos mitos que apóiam a idéia de tolerância e que ainda não foram tratados
com rigor:
João Carlos Rodrigues - O mito da democracia racial
brasileira, acabou servindo para democratizar as
relações acerca da orientação sexual. Esse mito tem de
ser posto abaixo, tem de ser rediscutido. A sociedade,
muitas vezes, aceita mais facilmente um travesti do que
outro tipo de homossexual. É mais definido para a
cabeça de quem é careta, um homem que quer ser
mulher. Na verdade, o travesti pertuba menos o
ambiente do que um homem que quer ser gay. Neste
caso, apesar de tudo, o travesti é mais aceitável. Mulher
adora travesti, principalmente aqui no Rio. Programas
femininos, como da Hebe Camargo, sempre têm
travestis falando: “- Como cozinho para o meu marido.
Como faço não sei o que!? Os vestidos que minha mãe
costura!” Isso acabou sendo meio que aceito pela mídia.

A contrapartida à idéia de tolerância também vem na forma de apresentar


relatos sobre expressões do preconceito pelos quais os colaboradores passaram
durante a vida, em diferentes locais e por diversas razões:
Edward MacRae - Houve uma época que abriu uma
vaga para antropólogo na USP. A minha tese havia sido
apresentada lá, com nota dez foi e tudo ótimo, assim
candidatei-me. Eram vagas abertas em todos os níveis.
O primeiro teste era de currículo, para averiguar a
documentação. Fui excluído em nível de documentação,
o que era um absurdo porque possuía um doutorado,
sendo que pessoas com mestrado não tinham sido
excluídas... e isso para mim era óbvio, tratava-se de
puro preconceito. Fiquei profundamente irritado, além
de não entender.

166
Luiz Carlos Lacerda não acredita que a tendência à segregação seja o
caminho mais apropriado, porém recupera situações inusitadas com as quais se
deparou:
Luiz Carlos Lacerda - Por duas vezes, já levei porrada
na cara em boates. Uma vez foi num bar em Parati
porque estava beijando um cara. Achava que tinha esse
direito, pois ele vivia comigo. Estávamos dando um
beijo na boca, levantou um sujeito e me deu um soco na
cara. Mesmo assim, nunca abri mão de tentar exercer
esse direito. Outra vez foi numa boate heterossexual.
Todas as pessoas estavam dançando e fui dançar com
um cara que vivia comigo. Um segurança disse que não
podia. Questionei, afinal não estava fazendo nada. Virou
uma discussão, que foi uma loucura! Nesse sentido,
sempre fui um criador de caso. Sempre quis exercer
minha liberdade de ser, onde quer que estivesse. Ao
meu ver, esses guetos sempre foram um curral permitido
pela sociedade, para nós ficarmos ilhados e podermos
exercer essa liberdade permitida.

Do que foi dito podemos inferir que as experiências re-elaboradas pelos


colaboradores revelam uma desproporção: as atitudes que adotaram os
condicionaram a apreender e reproduzir a idéia de tolerância ou de rejeição. É
possível enumerar uma série de trechos referentes às manifestações de preconceito,
porém João Antônio Mascarenhas dá conta do significado da lenta evolução da
história política da homossexualidade no Brasil:
João Antônio Mascarenhas - A situação faca/parede
aconteceu poucas vezes, pois, há, no Brasil um modo de
viver muito hipócrita: a filosofia do “você-faz-que-se-
esconde-e-eu-faço-que-não-vejo”. Isso, pessoalmente,
àquela época, favoreceu-me, pois sou - ou penso ser - do
tipo “homossexual discreto”./Cabe notar que, no meu
entender, a referida hipocrisia é o fator que mais
prejudica o movimento de defesa dos direitos dos
homossexuais, pois mascara a realidade. Oprimido e
opressor concordam tacitamente em participar de um
jogo de esconde-esconde. Obviamente, quem perde é o

167
oprimido, o qual, por medo, é até capaz de agradecer ao
opressor. Lamentável, mas...

4. Outra Possibilidade de Reflexão.

Neste item é preciso retomar a outra perspectiva teórica, cuja reflexão


sustenta que os homossexuais compartilham da mesma “essência natural”.171 Essa
postura é importante posto que a história é evocada para afirmar a perenidade dos
homossexuais. A retomada e o continuum dessa idéia toma o preconceito como a
marca mais evidente da perseguição.172
A trabalho acadêmico de Luiz Mott é significativo, pois compreende a
importância da produção sobre a história da homossexualidade tanto em nível
acadêmico quanto político:
Luiz Mott - Com Peter Fry, tenho uma posição
extremamente crítica. Os trabalhos dele sobre
homossexualidade no Brasil pecam por uma falta de
visão política... na medida em que ele considera que a
pessoa está homossexual e que não é homossexual. Não
existe o ser homossexual, mas o estar homossexual.
Acho um equívoco! Se ele tem dúvidas quanto à
homossexualidade ser um definidor de sua própria
existência, para mim, assim como para milhões de gays
e lésbicas, o ser homossexual implica numa existência
distinta, não separada... numa alternativa a essa
sociedade heterossexista.

A alternativa, portanto, é classificar a homossexualidade como uma condição


que difere o indivíduo por causa de sua preferência por um parceiro do mesmo sexo.

171
Para aprofundar essa idéia é preciso retomar um dos argumentos do historiador John Boswell.
Na visão do autor é certo que não há palavras específicas na Grécia ou em Roma para designar as
categorias sexuais modernas, porém não cabe inferir que não houver outras formas de designação.
BOSWELL, John. “Hacia un enfoque amplio. Revoluciones universales y categorías
relativas a la sexualidad”. In: BOYERS, Steinery Robert. Homosexualidad: Literatura y
Politica. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p. 53-54.
172
MOTT, Luiz R. B. O Sexo Proibido: escravos, gays e virgens nas garras da Inquisição.
Campinas: Papirus, 1988.

168
Nesse caso, as relações de preconceito são consideradas opressivas e anacrônicas -
por não respeitarem essa diferença -, e exigem mudanças radicais dos valores
sociais.173 A proposta de inserção dos homossexuais na sociedade se funda em
processos de integração junto às universidades, meios de comunicação, ações legais,
pois segundo esse posicionamento é importante fornecer respostas aos silêncios
fundados em todos os níveis institucionais:
Luiz Mott - A minha colaboração para o movimento
homossexual foi tanto prática, quanto intelectual. No
sentido de resgatar as histórias no passado, de realizar
bio-bibliografias de personagens célebres que
praticaram o homoerotismo. Em relação à história do
lesbianismo, descobri personagens, literatura, episódios
que até agora não tinham sido revelados. Para os
travestis também, na medida em que descobri o primeiro
travesti na história do Brasil. Francisco Manicongo, na
cidade Salvador em 1591. Portanto, em termos da
história da homossexualidade o meu trabalho serve de
fonte e servirá de inspiração para muitos outros
trabalhos.

A descoberta da relação pessoal/social, que caracterizou a contestação


homossexual, acabou produzindo a politização de uma escolha em nível de
existência. A apropriação de uma identidade sexual marcaria a distinção entre os
“grupos sujeitos” e os “grupos sujeitados”. O “grupo sujeito”, segundo Guattari,174
seria aquele que tem vocação para ser gerente de suas necessidades e se esforça para
ter um controle sobre sua conduta, enquanto o “grupo sujeitado” sofreria
hierarquização por causa do seu acomodamento à estrutura. Neste nível de
discussão, o “grupo sujeito” foge ao aprisionamento das normas conforme o acesso
que tem à fala.
João Carlos Rodrigues mantém uma distância crítica do movimento
homossexual, contudo, deposita nele seus anseios por instrumentos que garantam a

173
MISSE. Michel. O Estígma do Passivo Sexual. Rio de Janeiro: Achiamé, 1979. p. 11.
174
GUATTARI, Félix. Op. cit., p. 92.

169
manutenção de todos os membros do sistema social, eliminando as carências que
ainda existem:
João Carlos Rodrigues - O Estado não persegue o
homossexual, mas também não o protege, nem toma
conhecimento. No Brasil, uma das provas que não existe
preconceito oficial contra homossexual, é a inexistência
de leis proibindo a prática Porém, uma das provas que
existe preconceito de grande parte da população, é o
número de pessoas assassinadas, ou roubadas, que ainda
acham que está tudo bem. [...] A reivindicação por uma
delegacia gay, inspirada na delegacia da mulher, poderia
ser algo reivindicado por estes grupos. Tendo em vista o
número de assassinatos existentes e que ninguém
soluciona!!! [...] O gay que é assaltado em sua casa não
tem lugar para dar queixa. Vira chacota de delegado./
Isso nunca foi pedido em nível de direitos, nem sequer
pensaram nessa idéia! Seria uma conquista política.
Parece algo maluco, um anarquista falar sobre a criação
de uma delegacia. [...] Acredito, porém, que se há um
serviço a fazer - não sou eu quem vou fazer -, é o desta
delegacia especializada, além de uma série de questões
essenciais. Só grupo consegue fazer, uma pessoa só,
duas ou três não adianta nada! Isso é: só grupo com
advogado! [...]

5. A Identidade de Cristal.

A categorização da sexualidade coincidiu com um universo que passou a ser


normalizado, independente das intenções dos atores em assumirem uma identidade
sexual. O capitalismo passou a invadir áreas cada vez mais extensas da sociedade e
conduziu a uma intensa comercialização da vida social, ganhando espaço nos meios
de comunicação e na indústria de divertimentos.175 A identidade homossexual foi
acompanhada por um estrato que se autonomizou através do consumo, promovendo

175
Delcio M. de Lima apóia-se no paradigma do Poder, teorizado por Foucault, para discutir como
a relação do capitalismo com o sexo criaram instrumentos mais sutis do que a repressão pura e
simples, recuperando como esse processo acontece no Brasil. LIMA, Delcio Monteiro de, Op. cit.
p. 56-58.

170
uma padronização do comportamento e produzindo mecanismos mais eficientes de
controle.
João Silvério Trevisan chama a atenção para este fenômeno já na década de
oitenta, quando fala sobre os resultados de comercialização do Lampião:
João Silvério Trevisan - [...] O Lampião tratava de
temas muito sérios, como a relação entre a Igreja e a
homossexualidade, mas esse sobre Cuba foi o mais
sério... porque era muito comprometedor [...] esse foi o
número que menos vendeu. No número seguinte saiu na
capa um homem pelado e esse foi o número que mais
vendeu.... então fiquei muito preocupado./ Eu já vinha
fazendo a crítica do meio homossexual. E isso foi mais
uma evidência de que o meio homossexual, tal como
acabou sendo socialmente constituído, foi feito para
consumir sexo e nada mais. Infelizmente, não há espaço
para outra coisa que não seja a putaria. Na época, já
desconfiava disso e acabei confirmando esse fato várias
vezes. Acredito piamente que ainda hoje temos os
mesmos problemas daquela época.[...]

As histórias de vida esboçam comentários sobre a expansão dos espaços


específicos de freqüência homossexual, traçando uma trajetória que caminha das
propostas de liberação individual - divulgadas no decorrer dos anos sessenta e
setenta -, e que foram seqüestradas pela massificação.
Alexandre Ribondi busca compreender como o direito de exercício da
individualidade se impôs com força particular através dos hábitos de consumo:
Alexandre Ribondi - Trata-se de um momento que
quinze anos depois podemos observar. O homossexual
de classe média ganha dinheiro, sabe que pode gastar
com sua homossexualidade, sem pedir licença a
ninguém!! [...] Acho que se trata de um subproduto de
uma discussão iniciada há muitos anos, da qual o
Lampião faz parte! Desta forma, o homossexual saber
que tem direito a ser homossexual, inclusive a gastar seu
dinheiro com a essencialidade dele. Penso que,
indiretamente, esses jornais criam uma maior
consciência, uma maior “vontade homossexual”, uma
maior abertura [...]

171
A idéia de liberdade ligada a uma economia de consumo é cortejada por
imagens que provêm dos meios de comunicação. A publicidade, neste caso, torna-se
uma referência que é retomada para exemplificar suas posições. É nesse sentido que
Antônio Carlos Moreira comenta sobre o hedonismo divulgado pelas revistas gays,
diferenciando essas publicações do Lampião, e sugerindo que face às exigências do
mercado qualquer compromisso com a história e com a sociedade são suprimidos:
Antônio Carlos Moreira - [...] O viado é mais um
consumidor do pedaço, mais um potencial de consumo a
ser explorado. A revista Sui Generis é isso: “- Somos
Consumidores”. Ao invés de ocorrer um movimento de
cidadãos, ocorre um movimento de consumidores. Não
interessa se inserir no plano social como indivíduo, mas
interessa se inserir no mercado enquanto consumidor.
Basta ler as pesquisas que indicam: “-Ah! Os
homossexuais não se casam, então, tem uma reserva de
dinheiro melhor para poder gastar consigo e com seus
namorados”./ É claro que isso acontece só para a parcela
de classe média para cima. [...] Não, o jornal e o
movimento não contribuíram para isso. Parece que isso
tem a ver com a questão da conjuntura atual [...] As
certezas políticas ruíram um pouco, abrindo-se espaço
para a questão do mercado. Hoje em dia, o mundo
inteiro fala em mercado. Ninguém fala mais em
cidadania, em país, a questão é o mercado. Como
fazemos parte do todo, nós também somos pegos por
esta forma mais hedonista.

Conforme o posicionamento que os colaboradores adotam, eles deixam


transparecer suas compreensões acerca da formação de um mercado “rotulado” e
dedicado a um público específico. Roberto Piva - que defende uma postura
contraposta à imposição de identidades estanques - revela-se profundamente crítico:
Roberto Piva - [...] Nos anos oitenta, a invenção do
modelo gay caracterizou o estilo americano da
homossexualidade. Esse modelo degradou a cultura
ritualística. As características da iniciação se perderam e
transformaram-se em algo amorfo, numa cultura de
massa. [...] O modelo gay norte-americano serve ao
consumo de massa, para poder fazer lobby de sauna,
refrigerante, marca de carro, jeans e tudo que possa ser

172
consumido. Eu acredito que essa divisão é fomentada
pela imprensa, fomentada pelos donos de boates
voltadas à clientela gay.

Podemos ler outras formas de compreensão sobre o uso da liberdade


individual. Neste aspecto ainda é possível visualizar que as trajetórias pautadas pelo
perfil profissional dedicam um franco incentivo a expansão do mercado gay:
Alceste Pinheiro - Nos Estados Unidos há agências de
viagens preparadas para um mercado segmentado. No
Brasil é uma burrice não haver isso. [...] As publicações
visando exclusivamente o mercado homossexual são
mal feitas. Tecnicamente são muito ruins porque não há
grana para fazê-las. As grandes editoras brasileiras
poderiam investir, como fazem as grandes editoras
americanas, detentoras de um mercado magnífico. E os
brasileiros não aproveitam este grande mercado. Estou
falando de um grande mercado de informação. Ninguém
absorveu esta área, não soube trabalhar ou não soube
fazer, talvez não se interessou, provavelmente por
razões de ordem moral e cultural.
José Fernando Bastos - O Grupo Gay da Bahia, por
exemplo, achava um absurdo eu escrever espetáculos de
travestis, os quais fizeram muito sucesso como: Gays
Girls, Hoolywood Gay. Eram espetáculos no auge do
Teatro Alaska, com Nélia Paula, a vedete Rogéria: os
melhores travestis do Brasil. O grupo achava que era
exploração! Na verdade, os artistas queriam se vestir de
mulher para trabalhar, então não havia nenhuma
exploração em fazer um texto para o espetáculo. Nós
tivemos alguns atritos, mas depois ficou tudo bem.[...]

O fato é que a identidade homossexual foi acompanhada por uma


padronização do processo de consumo no Brasil.176 Para Peter Fry esse
desdobramento parece não causar surpresas, no seu modo de apreciar a questão isso
já era algo previsível:

176
NASCIMENTO, Júlio César Cordeiro. “Ser homossexual no Brasil e não o “ser” homossexual
brasileiro” in: Revista Brasileira de Sexualidade Humana. SBRASH (Sociedade Brasileira de
Sexualidade Humana). vol. 7, 1996. p. 44-56.

173
Peter Fry - [...] o comércio sempre acompanha a
diferenciação social. Neste caso, sempre que se cria uma
nova identidade, logo vem um comércio atrás. O
comércio ajuda a cristalizar essas identidades... é muito
esperto! O bom produtor, junto com seu homem de
marketing, percebe os novos nichos sociais e dirige
produtos para aqueles nichos. Ao produzir esses
produtos, aparentemente consumidos nesses nichos, ele
vai reforçando-os./ O comércio ainda não o faz, mas irá
produzir bens visivelmente específicos para os negros,
por exemplo... é uma forma de reificar e cristalizar essa
idéia que o negro é diferente. [...] Aliás! O processo de
consumo, a produção e a concentração de identidades
estanques merecem mais estudos. As diferenças sociais -
sem dúvidas - sempre são marcadas pelas coisas que nos
pertencem.[...]

6. Um Diálogo do Presente.

No decorrer desse capítulo emerge um diálogo entre os colaboradores


referente às relações com a identidade homossexual. Primeiramente surgem as falas
que redargüem à categorização do comportamento sexual, baseadas em
considerações sobre o encarceramento inadequado de uma personagem sexual no
interior da cultura brasileira. A situação do país possibilitaria a expressão da conduta
homossexual desde que com recato e discrição.
O debate é incrementado pelos colaboradores que não acreditam no mito da
tolerância, visto que comportamento homossexual representaria uma divergência que
produz normas e valores diferentes daqueles amplamente aceitos. Por essa razão os
homossexuais constituiriam um grupo à parte, apesar da tolerância seriam
discriminados através de uma permanente rejeição acomodada na ausência de
mecanismos institucionais e presentes em atitudes de variada violência.
A classificação da preferência sexual surge como a possibilidade de definição
de uma causa, a qual acaba por produzir uma politização em nível de existência. A
contrapartida, porém, vem através do questionamento aos valores promovido pela

174
sociedade de consumo: a instituição da identidade daria origem a um mercado que
massifica hábitos e estabelece uma nova ordem de controle.
Esse diálogo é interessante porque sugere diferentes lições de vida sobre a
relação com a identidade homossexual. O fato dos colaboradores contarem relatos,
mais completos, da história de vida enriqueceu as peculiaridades de cada trajetória,
assim foi possível compreender a disparidade dos posicionamentos. Após recuperar
a trajetória do grupo é possível compreender que se trata de um debate pautado pelas
experiências de cada colaborador e que ainda se desdobra no tempo presente.

175
Conclusão
Considerações finais

Essa dissertação se insere numa postura de pesquisa - que abrange a área de


estudos históricos -, dedicada à História Oral. A História Oral expressa uma
possibilidade de trabalho com entrevistas gravadas que se inicia com a elaboração do
projeto e se desenvolve até a devolução pública do texto final. Esta postura foi
inspirada na produção acadêmica de pesquisadores como José Carlos Sebe Bom
Meihy, Daphne Patai, Dante M. C. Gallian, André Gattaz e Cristina Ferez, cujas
obras foram importantes para fecundar as idéias e o corpo dessa dissertação.
Na História Oral pode-se identificar as seguintes variações: História Oral
Temática, baseada em entrevistas direcionadas a um determinado assunto; Tradição
Oral que busca uma composição acerca das práticas culturais de uma determinada
sociedade; e História Oral de Vida que procura um depoimento mais completo sobre
as experiências individuais dos colaboradores. A terceira variação foi empregada
para a realização do texto que foi elaborado. O processo de confecção dos relatos de
história de vida passa por três etapas de trabalho com as palavras: transcrição,
textualização e transcriação, além dos cuidados éticos que são tomados na fase de
conferência dos textos com os colaboradores.
A parte mais importante da dissertação repousa nas próprias histórias de vida,
sem as quais não seria possível realizar a tabela de assuntos que dão substancia ao
texto. Este posicionamento frente à riqueza dos relatos de vida contribuiu ao recorte
temático, respeitando os depoimentos e privilegiando o valor que repousa nas
experiências vividas por cada colaborador. A opção por esse caminho tornou
possível relativizar e comparar as trajetórias individuais. Só então foi possível
compor a trajetória desse conjunto de vidas.

176
O trabalho com história oral de vida veio engrossar a idéia que o debate sobre
a homossexualidade é complexo, principalmente quando nos deparamos com a
heterogeneidade de imagens reveladas pelos colaboradores. Nesse sentido, é
importante enfatizar que quando compreendemos a singularidade de cada trajetória
mergulhamos na generalização que flutua acima do termo homossexual. Através da
audição das narrativas foi possível constatar que os colaboradores tecem diferentes
níveis de relação com essa identidade no que se refere à aceitação ou negação da
mesma, possibilitando a afluência de um debate que tem continuidade no presente e
cujo processo histórico não está acabado.
É importante concluir essa dissertação com dois comentários feitos durante os
depoimentos. O primeiro reflete a importância do trabalho com história oral e foi
mencionado quando Antônio Carlos Moreira fez a seguinte afirmação:
Antônio Carlos Moreira - O que lamento é que se
brigou muito, tanto no jornal quanto no movimento. As
brigas para ser a liderança é que matavam. Acho que
isso fez com que se realizasse pouco. Hoje todo mundo
comenta que foi importante: “- Ah! fantástico! Ainda na
ditadura teve um grupo com cem pessoas... Fizemos um
encontro!” Mas entendo que fez pouco e quase nada foi
registrado.

O segundo refere ao próprio espírito que move o oralista a ouvir os


depoimentos de história de vida. Alexandre Ribondi surpreendeu-me ao indagar
porque uma pessoa de São Paulo se deslocaria até Brasília para coletar seu
depoimento:
Alexandre Ribondi - [...] existe um preconceito
promovido pela história recente, pelo abuso de Brasília
existir com apenas trinta e cinco anos, pelo abuso de
Brasília ter se tornado a capital da República e tirado
esse título de outra grande cidade brasileira, pela tristeza
da história porque Brasília começa e, quatro anos
depois, se torna a capital de uma ditadura!!! [...] Nós
que trabalhamos em Brasília - com teatro, com
jornalismo -, não importa o que façamos em qualquer
área humana, rigorosamente não somos aceitos pelo

177
resto do país!! Não somos mesmo!!! [...] Quando você
me ligou para pedir: “- Como você foi do Lampião. Eu
queria te entrevistar!” E eu disse: “- Eu!? Mas cá tão
longe!? Por que eu!?” Não sei se você entendeu? Nós
mesmos de Brasília, acabamos incorporando o que o
resto do Brasil pensa sobre os brasilienses! Escrevia no
Lampião, ajudei a pensar, ajudei a formar os grupos
homossexuais organizados!! Participava de todas as
porras das reuniões!!! Apesar da distância, de todas as
dificuldades, eu existia dentro do jornal, participando,
mandando matérias, ajudando a pensar e discutindo!!

Ouvir os colaboradores constitui a tarefa mais agradável do trabalho com


história oral de vida. Os relatos envolvem o pesquisador num universo que lhe é
revelado durante o tempo da gravação e que tem o poder de transformá-lo ao final de
cada entrevista.
O trabalho com História Oral de Vida está além dos critérios metodológicos e
teóricos, das exigências acadêmicas, do envolvimento do pesquisador com o que
estava sendo produzido, pois possibilita uma experiência singular: os envolvidos,
pesquisador e colaborador, movem-se em direção a um horizonte comum, alcançado
através do acordo em torno do texto.
A sintetização desse processo de pesquisa possibilitou o percurso através de
alguns dos principais acontecimentos que marcaram a história contemporânea,
enriquecidos com as histórias de vida dos colaboradores que especificaram suas
experiências perante a generalização dos fatos históricos. Esperamos que nossa
proposta de trabalho tenha contribuído à compreensão de um capítulo da recente
história política brasileira.

178
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192
“Bem, acho que não adianta dizer mais nada,
pois a realidade não é feita somente de
palavras e sim dos atos diários de cada
pessoa”
Sandra Mara Herzer

193
PARTE II

1. Os critérios para a coleta e trabalho com as entrevistas

Reflexão sobre a Constituição das Redes........................................................196


O Processo, da Transcrição até a Conferência...............................................211

2. Os Membros do Conselho do Lampião.

João Silvério Trevisan......................................................................................220


João Antônio Mascarenhas..............................................................................256
Peter Fry............................................................................................................278

3. Autores Coligidos pelo Lampião.

Roberto Piva......................................................................................................301
Edward MacRae...............................................................................................327
James Naylor Green.........................................................................................361

4. Os Colaboradores do Lampião (Rede I).

Glauco Mattoso.................................................................................................389
Celso Curi..........................................................................................................427
Luiz Mott...........................................................................................................444

194
5. Os Membros da Redação do Lampião.

Antônio Carlos Moreira...................................................................................475


Alceste Pinheiro.................................................................................................506
Dolores Rodriguez.............................................................................................533

6. Os Colaboradores do Lampião (Rede II).

João Carlos Rodrigues......................................................................................555


Luiz Carlos Lacerda.........................................................................................594
José Fernando Bastos.......................................................................................615
Alexandre Ribondi............................................................................................629

195
1. Os critérios para a coleta e trabalho com as entrevistas.

Reflexão sobre a Constituição das Redes. 177

O conjunto de entrevistados se refere a escritores, jornalistas e a intelectuais


ligados às áreas acadêmicas preocupados em redimensionar a questão homossexual a
partir dos anos setenta. A existência dessa colônia indicou um traço comum: a
produção de textos sobre homossexualidade. O contato com as obras do grupo foi
preparado pela leitura de Now the Volcano: an anthology of latin american gay
literature, de Winston Leyland. Neste livro, o autor ressalta sua preocupação em
fazer um trabalho sobre o florescimento de uma literatura gay na América Latina.
O conhecimento dessa colônia, contudo, exigia alguns critérios para viabilizar
a montagem da rede de entrevistas. Desta forma, foi preciso realizar o levantamento
dos títulos publicados pelos autores brasileiros apresentados por Leyland. Eles eram:
Adolfo Caminha, Gasparino Damata, Caio Fernando Abreu, Aguinaldo Silva,
Edilberto Coutinho, Darcy Penteado e João Silvério Trevisan. A leitura do material
escrito foi realizada com o objetivo de obter o máximo de informações sobre a
produção desses escritores. Com exceção de Aldolfo Caminha, os outros eram todos
contemporâneos, sendo que alguns já haviam falecido - como Gasparino Damata e
Darcy Penteado -, a descoberta dos textos desenhou algumas possibilidades. O
contato com a produção de João Silvério Trevisan, por exemplo, teceu uma rede de
leituras que conduziu a pesquisa elaborada por Edward MacRae e, posteriormente,
ao romance autobiográfico de Glauco Mattoso.

177
MEIHY, José Carlos Sebe Bom.
________________ A Colônia Brasilianista: história oral de vida acadêmica. São Paulo: Nova
Stella, 1990;
____ ___________ Canto de morte Kaiowá: história oral de vida. São Paulo: Loyola, 1991.

196
Os três escritores forneceram uma pista fundamental para estabelecer quem
poderia ser o primeiro entrevistado: a referência ao Lampião da Esquina. Minha
atenção foi despertada para esse jornal, então procurei tomar contato com suas
páginas.
O Lampião encontra-se no Fundo Funcional Movimento Homossexual do
Arquivo Edgard Leunroth - IFCH - UNICAMP, onde está reunida a coleção
completa do periódico. Há uma categorização dos autores no editorial que surge da
seguinte forma: Membros do Conselho, Colaboradores e Redatores. João Silvério
Trevisan, cujos escritos teceram a rede de leituras que conduziu ao jornal, era
apresentado como um dos Membros do Conselho editorial.
Face ao trabalho literário e jornalístico que desenvolveu, João Silvério
Trevisan aparecia como o nome mais indicado para dar origem a rede de entrevistas:
entrei em contato com o escritor. Neste ponto, é preciso esclarecer que o contato
prévio, onde me apresentei como interessado em ouvir sua história de vida,
explicando como cheguei até ele, contribuiu à organização da narrativa.
João Silvério Trevisan apresentou uma série de indagações sobre a pesquisa,
entre as quais declarou sua reserva ao tratamento que a universidade dispensava aos
homossexuais. Perguntou qual era o meu objetivo com esse trabalho, disse-lhe que
não pretendia assumir a posição de observador, mas de alguém interessado em ouvir
suas experiências de vida. Feito esse esclarecimento expliquei o processo de
elaboração do documento como algo que realizaríamos juntos, a partir de então fui
presenteado com a atenção do escritor.
Durante a gravação, ele dedicou um espaço maior a vivência enquanto
homossexual, perspectiva a partir da qual começou a construir sua relação com os
partidos de esquerda, com o movimento homossexual e com o jornal Lampião.
A entrevista com João Silvério Trevisan pôde ser denominada como ponto
zero, pois o colaborador contou, com riqueza de detalhes as experiências que viveu
tanto individualmente quanto em nível coletivo. É preciso esclarecer, também, que

197
esta caracterização não se deve apenas ao fato de João Silvério Trevisan indicar os
próximos entrevistados, mas ele sugere a história de um grupo.178
Concluída a gravação, João Silvério Trevisan perguntou se poderia indicar
qualquer pessoa. Disse-lhe que tinha plena liberdade para apresentar os nomes que
quisesse. Ele indicou Glauco Mattoso, Celso Curi e sugeriu o nome de Roberto Piva
como o de alguém que não pertencia ao Lampião.
Seguindo o critério para formação da rede de entrevistas, contatei Roberto
Piva. Ele concordou em conceder a entrevista, reafirmando que enquanto poeta
nunca fora convidado para escrever no jornal, ressaltou, porém, que Glauco Mattoso
chegou a publicar artigos sobre sua produção literária no tablóide. Entretanto, após
concluir o catálogo de autores com artigos no Lampião, fiquei surpreso ao constatar
que o nome de Roberto Piva fora captado pelas páginas do jornal: ele era um dos
autores coligidos. O escritor realmente nunca escrevera um poema para o jornal, mas
contribuiu escrevendo um artigo. Essa constatação veio reforçar a idéia inicial que
apreendi durante as leituras prévias: o Lampião fora um periódico importante.
Muitas pessoas ao escreverem para o jornal, mesmo não estando
organicamente vinculadas, nem aparecendo como escritores constantes, enviaram
seus artigos e eles foram publicados no Lampião. Desta forma, foi possível
reconhecer a existência de diferentes níveis de relacionamento dos sujeitos que
contribuíram com a publicação.
Ao final da entrevista, Roberto Piva indicou José Celso Martinez Corrêa e
Antônio Bivar, nomes que aventavam a possibilidade de recolher depoimentos de
pessoas que, definitivamente, não apareciam nas páginas do Lampião. Os indicados,
contudo, não retornaram o contato para fazer a gravação. Levei em consideração o
trabalho com os outros indicados, que prosseguiu sem demoras, assim como os
limites dos prazos assumidos com o compromisso acadêmico: os nomes indicados
por Roberto Piva ficaram em aberto.

178
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 54.

198
Ao entrar em contato com Glauco Mattoso soube que ele havia sido avisado
sobre a entrevista por João Silvério Trevisan. Entre um comentário e outro, Glauco
falou sobre sua aproximação de um grupo interessado em veicular uma discussão
sobre a homossexualidade, contando como veio a tomar contato com o Lampião.
Entre os nomes que considerou importante indicar estavam: Jorge Schwartz, Jean
Claude Bernardet e Edward MacRae. Destes, um, posteriormente, disse não ter
interesse em colaborar.
Nestas três entrevistas iniciais não quis realizar perguntas. Ao ouvir o
resultado das gravações, montei um pequeno roteiro com questões bem amplas, e
nem um pouco rígidas, para que os futuros entrevistados falassem sobre suas
impressões. Atento aos comentários tecidos pelos entrevistados, aproveitava o
espaço aberto durante o depoimento, solicitando que contassem mais acerca daquele
assunto. Caso algum item não fosse tocado, solicitava explicações.

Infância: Aonde nasceu? Relação com os pais? Como foram os


estudos?

Ditadura Militar: Qual a impressão sobre o período: Governo


Militar, Abertura Política, Movimentos Sociais, Imprensa Alternativa?

Jornal Lampião: Como entrou em contato? Que participação teve no


jornal?

Momento Atual: Impressões sobre a AIDS e sobre o mercado de


produtos e serviços voltados ao gay.

No primeiro telefonema a Celso Curi fui convidado a visitá-lo em seu


escritório. Ele ocupava o cargo de Diretor do Departamento de Formação Cultural da

199
Secretaria Estadual de Cultura do Estado de São Paulo Nesse contato conversamos
sobre o projeto. Ele adiantou seu desejo em passar um material sobre uma coluna na
qual fora editor responsável no jornal Última Hora: Coluna do Meio. Posteriormente
recebi o material citado e fiz a leitura.
Quando retornei, ele falou sobre seu envolvimento com o Lampião, porém o
fio condutor da narrativa era o trabalho que desenvolveu com a Coluna do Meio, por
causa da qual sofreu um processo por atentado à moral. Esse mesmo processo levou
os membros do Lampião à procurá-lo. Caio Fernando Abreu - que fora um dos
escritores citados no editorial do Lampião -, foi indicado por Celso Curi. Quando
Caio Fernando Abreu foi contatado, ele disse que estava passando por um momento
muito difícil e que não sabia se aquela seria a melhor hora para contar sua história de
vida.
Após algumas tentativas, contatei o professor Edward MacRae prestes a
assumir a vaga de docente na UFBA. Na entrevista, sugeriu que não participava do
Lampião, mas que pelo fato conviver com Peter Fry, com o qual chegou a escrever
um artigo no Lampião, estava a par das atividades do jornal.
Encerrada a gravação, ele indicou o nome de James Naylor Green, Peter Fry e
fez sugestões para que as entrevistas fossem feitas com pessoas que trabalhavam
com a questão da AIDS: Veriano Terto Júnior, Richard Parker, Áurea Abade, Jorge
Beloqui. As últimas indicações abriam possibilidades à elaboração de um novo
projeto com história oral de vida. Nesse sentido, considerei que a proposta original
da pesquisa já apresentava um perfil, então decidi prosseguir fazendo as entrevistas
com James Naylor Green, cujo nome aparece entre os autores coligidos, e com Peter
Fry que era um dos membros do Conselho Editorial do Lampião.
O gravador não registrou uma palavra na primeira entrevista com Jean Claude
Bernardet. A segunda gravação também foi realizada no escritório do professor, na
Escola de Comunicação e Artes da USP. O professor concedeu a entrevista sob
condição que seria breve. Ele buscava dar respostas objetivas a perguntas que

200
deveriam ter o mesmo tom, pelo meu lado tentava repetir o roteiro que propusera
antes. Porém, o tempo da entrevista foi menor e isso refletiu sobre o depoimento de
história oral de vida: não foi tão completo como o que havia realizado antes.
Jean Claude Bernardet quando fala sobre sua relação com o Lampião diz que
considerava interessante compor um grupo constituído por nomes respeitados, por
isso acabou entrando no Conselho Editorial do jornal. Para a seleção dos próximos
entrevistados limitou-se a indicar o nome de Aguinaldo Silva: pessoa a qual atribui o
fato do Lampião ter existido.
Já havia conversado com James Naylor Green em São Paulo, mas a entrevista
ocorreu no Rio de Janeiro, durante a Conferência da International Lesbian and Gay
Association, novamente a questão sobre o relacionamento com o Lampião afluiu. Na
mesma situação de Roberto Piva e Edward MacRae, James Green se apresentou
como alguém que sabia sobre o jornal, mas que não era ligado organicamente,
tratava-se, porém, de outro autor captado pelas páginas do jornal. Após a gravação
ele indicou o nome de Luiz Mott e de João Antônio Mascarenhas.
A entrevista com Luiz Mott também ocorreu durante a International Lesbian
and Gay Association Conference. O depoimento foi bastante organizado
cronologicamente, o colaborador discorreu sobre temas específicos e gerais enquanto
contava a história de vida. Praticamente não foi necessário retomar nenhum dos
pontos, visto que Luiz Mott tecia comentários previamente. O contato com o
Lampião, num primeiro momento, surge como o de alguém que recebia o jornal,
depois como o de um escritor que enviava artigos, contudo, a declaração sobre a
idéia de fundar um grupo de militância em Salvador, convocando os baianos através
das páginas do Lampião, anuncia a idéia que o jornal contribuía a discussão política
da questão homossexual. Ao concluir o depoimento, o nome de João Antônio
Mascarenhas foi sugerido como sendo de fundamental importância para compor o
conjunto de entrevistas.

201
João Antônio Mascarenhas organizou todo o depoimento disposto a falar do
Lampião. Contou toda a história de articulação do jornal, explicando seus anseios
por um órgão que pudesse discutir a questão homossexual. Um dos aspectos mais
interessantes desta entrevista foi o cuidado que João Antônio Mascarenhas teve em
citar as pessoas do núcleo fundador, esclarecendo, depois, quais membros exerceram
papel um preponderante para a existência do jornal. Este depoimento foi rico em
referências ao jornal. Em nível de indicação para uma próxima entrevista, João
Antônio Mascarenhas, repetiu o nome de muitos que já tinham sido entrevistados,
forneceu pistas sobre a localização de Francisco Bittencourt, as quais não deram
conta da localização do escritor no Rio Grande do Sul, e de Clóvis Marques, citando
o jornal onde poderia localizá-lo. Ao ligar para Clóvis Marques, ele simplesmente
preferiu não fazer a entrevista.
Desde o primeiro contato com Peter Fry, o professor demonstrou uma gentil
disposição em colaborar, a única reserva era acerca da dificuldade em recordar
alguns fatos. Os dois primeiros encontros coincidiram com as atividades acadêmicas
do professor: no primeiro, acertado pelo telefone, ele participava da apresentação de
uma pesquisadora que trabalhava com a comunidade de Vigário Geral; no segundo,
marcado após a impossibilidade do primeiro, Peter Fry fora participar de uma
reunião extraordinária na reitoria da UFRJ.
A gravação aconteceu espontaneamente, dois meses depois, quando passei na
faculdade para perguntar sobre a possibilidade de fazer a entrevista: naquele
encontro Peter Fry pôde fazer a gravação. Antes, porém, fez perguntas sobre o
processo de trabalho com história oral e apresentou uma certa reserva, mas concedeu
o depoimento colocando muitas questões a respeito dos fatos que viveu.
Ao falar do Lampião, sugeriu que o jornal tinha legitimidade por causa dos
nomes que compunham o Conselho Editorial. Aguinaldo Silva também foi indicado
por Peter Fry como uma pessoa que poderia ajudar bastante.

202
Esse depoimento conclui a primeira rede de entrevistas, iniciada em janeiro de
1994, com o depoimento de João Silvério Trevisan, e finalizada em outubro de 1995,
com o depoimento de Peter Fry. A experiência com as entrevistas da primeira rede
sugeriu uma questão: o papel desempenhado pelo colaborador para a execução do
projeto de história oral.
Essa questão foi despertada devido a predisposição de todos os entrevistados
em colaborar. Os depoimentos que não passaram por nenhum imprevisto, como a
perda da gravação ou o desencontro para a entrevista, foram mais tranqüilos. Isso
contribuiu para um relato mais completo de história oral de vida. Nesses casos, os
colaboradores aceitaram com maior intensidade a proposta de compartilhar suas
experiências.
Noutros casos, porém, o contato revelou algumas situações que escaparam ao
campo da previsibilidade, mas que não chegaram a comprometer os depoimentos.
Nesse sentido, a parte que coube aos colaboradores - concordar em participar do
processo - compôs o principal elemento para o prosseguimento da pesquisa e da
superação dos desafios iniciais.
A segunda rede de entrevistas foi iniciada em agosto de 1995, com o
depoimento de Antônio Carlos Moreira, e foi finalizada em novembro de 1995, com
o depoimento de Alexandre Ribondi. Aqui é preciso esclarecer o motivo de sua
origem, quando o professor Edward MacRae sugeriu que a pesquisa se estendesse a
pessoas ligadas ao trabalho com a AIDS, deixei a possibilidade em aberto, pois, além
das proporções que o trabalho poderia assumir, tal sugestão configurava uma
temática que abria possibilidade a um novo trabalho com história oral.
A indicação de Veriano Terto Júnior, contudo, aparecia no grupo de pessoas
que trabalham com AIDS. Tive oportunidade de conhecê-lo durante a 17a. ILGA.
Ele estava interessado em conversar sobre o trabalho com a história oral de vida.
Falei sobre meu projeto e Veriano Terto Júnior fez uma sugestão, disse que Antônio
Carlos Moreira fora um dos jornalistas que atuara no Lampião da Esquina.

203
Considerando o nível de relação que os entrevistados da primeira rede
teceram em relação ao jornal, resolvi fazer o contato que deu início a uma segunda
rede de entrevistas. O perfil da segunda rede apresentou pessoas organicamente
ligadas ao Lampião, algumas das quais, segundo a definição dada pelo editorial do
tablóide, vieram a atuar como redatores. Tratavam-se de pessoas que trabalhavam e
freqüentavam cotidianamente a redação do jornal. Desta segunda rede surgiu ainda a
indicação de novos colaboradores, também listados pelo jornal.
Antônio Carlos Moreira demonstrou um interesse imenso em colaborar.
Durante a narrativa, começou a narrar suas experiências enquanto estudante de
jornalismo, depois contou sobre os movimentos sociais aos quais pertenceu. Pude
notar que o entrevistado representava uma outra geração, cuja história de vida era
pautada pela efervescência do período da abertura política.
O colaborador anunciou outra percepção acerca do jornal. Ele não
economizou detalhes para falar sobre o Lampião: fez a descrição do bairro onde era
a sede do jornal, como era o espaço físico na redação, contou detalhadamente o
processo de trabalho na redação. Após concluirmos a gravação, ele mostrou a
coleção encadernada do Lampião e fez as indicações para as próximas entrevistas:
João Carlos Rodrigues, Alceste Pinheiro, Dolores Rodriguez e Alexandre Ribondi.
Em seu depoimento João Carlos Rodrigues contou sobre as formas como
conseguiu colaborar com o Lampião, enfatizou a idéia de utilizar as páginas do
jornal para escrever sobre os movimentos minoritários - idéia que trouxe consigo dos
Estados Unidos -, porém o espaço que dedicou ao reflexo cultural produzido pelo
Lampião prevalece entre os comentários.
Quando João Carlos Rodrigues comentou sobre o trabalho de Antônio Carlos
Rodrigues, Alceste Pinheiro e Dolores Rodriguez na redação, o fez ressaltando o
aprendizado prático dos três. Na compreensão de João Carlos Rodrigues, Aguinaldo
Silva surge como o grande responsável pelo Lampião, a pessoa que deveria ser

204
contatada para uma entrevista. Além de Aguinaldo Silva, foram indicados mais dois
nomes: Luiz Carlos Lacerda e José Fernando Bastos.
Alceste Pinheiro e Antônio Carlos Moreira pertencem à mesma geração que
foi atingida pelos ventos da abertura. Alceste Pinheiro, contudo, declarou que por
causa do seu temperamento nunca se adequou a nenhum movimento, associação ou
grupo organizado. O colaborador sempre buscou ressaltar sua opinião pessoal
através de críticas contundentes aos grupos organizados. Ele também contou, com
riqueza de detalhes, o que se passava na redação do Lampião. Alceste Pinheiro
destaca, sobretudo, a inexperiência deles, enquanto redatores, no que se refere ao
desconhecimento do mercado que o jornal atendia. Após a gravação, perguntou os
nomes de quem já havia sido entrevistado e de quem seriam os próximos, quando
respondi suas questões ele decidiu não fazer indicações.
Luiz Carlos Lacerda sempre buscou justificar o equilíbrio adequado entre o
indivíduo e o coletivo em sua entrevista. A proposta libertária do Lampião o atraiu,
foi assim que decidiu escrever para o jornal. Porém, ao ter um de seus artigos
censurados, percebeu que a liberdade de expressão dentro do jornal também era
limitada. Por essa causa, decidiu abandonar o Lampião. Luiz Carlos Lacerda
forneceu pistas sobre Francisco Bittencourt que também não foram suficientes para
localizá-lo.
A entrevista de Dolores Rodriguez acabou com uma grande expectativa da
minha parte. Depois de ouvir tantos homens foi a primeira mulher a falar. Ao
comentar sua presença na redação do jornal, explicou que foi “por puro acaso”. Ela
contou que começou a trabalhar como free lancer no Lampião, gostou do jornal e foi
se ambientando com os membros da redação. Durante sua juventude, Dolores
Rodriguez, assim como Antônio Carlos Moreira e Alceste Pinheiro, viveu a
afluência dos movimentos sociais e da abertura política. Ela também era estudante
de jornalismo quando foi trabalhar na redação do Lampião.

205
Depois da gravação, Dolores Rodriguez contou sobre os falecimentos de
Adão Acosta, membro do Conselho Editorial, e Aristides Nunes, escritor que
chegara a ser redator do jornal. Ela também forneceu pistas para a localização de
Leila Míccolis, que abriam a possibilidade de compor uma nova rede, mas ao
considerar o prazo de entrega da dissertação decidi não perseguí-las por causa da
quantidade de trabalho a ser realizado.
Para José Fernando Bastos, o compromisso com a crítica cultural e o convite
de dois membros do núcleo fundador do jornal - Aguinaldo Silva e Antônio
Chrysóstomo - foram os principais motivos que o levam a fazer parte do Lampião.
José Fernando Bastos revelou que escrevia seus artigos em casa, depois os enviava à
redação. Esses artigos foram elegidos para contar histórias sobre como conseguiu
fazer entrevistas inéditas, assim como produziu artigos contundentes sobre o período
político que lhe deram destaque. José Fernando Bastos não indicou ninguém.
Quando contatei Alexandre Ribondi senti sua surpresa pelo tom de voz ao
telefone. Na sua compreensão, Brasília sofre de um preconceito que provém de
outras partes do país. O fato de viver nessa cidade fazia Alexandre Ribondi
questionar meu interesse pelo seu depoimento. Ao conversarmos em sua residência,
ele retomou essa questão, para depois compartilhar suas experiências de vida.
Alexandre Ribondi, ao falar sobre o Lampião, conta que inicialmente não
conhecia os membros, mas recebia o jornal em Brasília, distribuía nas bancas e
depois recolhia o dinheiro e as sobras para enviar à redação no Rio de Janeiro. A
história da permanência em Brasília foi ressaltada como parte fundamental para
compreender sua trajetória no Lampião. Alexandre Ribondi enfatizou que era um
habitante daquela cidade, alguém que a partir de lá contribuiu para o panorama
cultural do país. Essa entrevista concluiu a segunda rede de depoimentos.
Não foi possível conseguir o depoimento de Aguinaldo Silva, apesar de sua
importância para este projeto, visto que seu nome é invocado na maior parte dos
depoimentos. A imagem de Aguinaldo Silva cintila sob as palavras das entrevistas,

206
tanto na primeira rede quanto na segunda. Ao considerarmos o que foi dito sobre
Aguinaldo Silva, fica a impressão que ele representa o “gomo da corrente” que
poderia unificar as duas redes de entrevistas. Em linhas gerais, Aguinaldo Silva é
apresentado como o escritor irreverente, profissional e responsável pela presença
mensal do Lampião nas bancas.
No decorrer do mês de outubro de 1995, tive oportunidade de conversar por
telefone com Aguinaldo Silva sobre a possibilidade dele conceder um depoimento de
história de vida, mas ele declarou não ter nenhum interesse em retomar o assunto.
Entretanto, decidi enviar uma carta registrada, onde expliquei sumariamente o
projeto de pesquisa, expus a visão que os depoentes teceram a seu respeito, esclareci
detalhes do trabalho com a história oral de vida e enfatizei os motivos de tal
insistência. Porém, não houve nenhum parecer no tocante a essa carta.
As duas redes, divididas em subgrupos, obedeceram aos critérios apreendidos
durante o trabalho de campo. Para pensar a apresentação das histórias de vida,
preservei categorização original existente no próprio Lampião: Membros do
Conselho, Colaboradores e Redatores. Defini a relação de três entrevistados, com
artigos captados pelo jornal como: autores coligidos.
No caso específico de Edward MacRae, o entrevistado aparece como
membro-colaborador do Lampião, mas, durante seu depoimento, ele não se
reconhece como participante da publicação, então priorizei a relação com o jornal
recuperada pela narrativa. Os outros entrevistados que compõe esse grupo não são
citados pelo editorial do jornal, contudo, a contribuição na forma de artigos aparece
impressa nas páginas do Lampião. A decisão por fazer essa opção se refere à origem
e ao desenvolvimento desse trabalho, pois durante as gravações os entrevistados
sempre procuraram esclarecer o nível de participação nas atividades do Lampião.

207
Primeira Rede:
A) Entrevistas com os Membros do Conselho do Lampião.
Nome do Local e data de Idade à época Local e data da Tempo de Indicação de
colaborador nascimento da gravação gravação gravação nomes para
contatos
João Silvério Ribeirão 49 anos Na residência do 2hs e 15 min. Roberto Piva;
Trevisan Bonito-SP. Em escritor em São Glauco Mattoso;
23/06/1944. Paulo. Em e
29/01/1994 Celso Curi
Jean Claude Bélgica. Em (58) anos179 No escritório do 40 min. Aguinaldo
Bernardet 1936. professor180 em Silva.
São Paulo. Em
15/10/1994.
João Antônio Pelotas-RS. Em 67 anos Na residência do 1h e 20 min. Francisco
Mascarenhas 24/10/1927. advogado no Bittencourt
Rio de Janeiro. e
Em 24/08/1995 Clóvis Marques
Peter Fry Inglaterra. Em (54) anos No escritório do 1h e 10 min. Aguinaldo
outubro de professor.181 Em Silva.
1941. 23/10/1995.

B) Entrevistas com os Autores Coligidos pelo Lampião.


Nome do Local e data de Idade à época Local e data da Tempo de Indicação de
colaborador nascimento da gravação gravação gravação nomes para
contatos
Roberto Piva São Paulo-SP. 56 anos Na residência do 1h e 40 min. Antônio Bivar; e
Em 25/09/1937. poeta em São José Celso M.
Paulo. Em Corrêa.
21/02/1994
Edward MacRae São Paulo-SP. (48) anos Na residência do 2hs e 10 min. James Green;
Em 1946. professor em Peter Fry; e de
São Paulo. Em pessoas que
30/08 1994. trabalham com
AIDS.
James Naylor Estados Unidos. (44) anos No Salão 1h e 15 min. João Antônio
Green Em 1951. Botafogo do Rio Mascarenhase
Palace Hotel.182 Luiz Mott.
Em 20/06/1995

179
As idades colocadas entre parênteses indicam que os colaboradores não informam a data de nascimento
precisa. Pude contatar outra curiosidade entre os colaboradores vindos do hemisfério norte que informam só
o país de origem.
180
Na Escola de Comunicação e Artes da USP.
181
No Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.
182
A gravação aconteceu durante os intervalos das oficinas realizadas pela 17a. Conferência da International
Lesbian and Gay Association.

208
C) Entrevistas com os Colaboradores do Lampião (Rede I).
Nome do Local e data de Idade à época Local e data da Tempo de Indicação de
colaborador nascimento da gravação gravação gravação nomes para
contatos
Glauco Mattoso São Paulo-SP. 42 anos Na residência do 2hs e 45 min. Jorge Schwartz;
Em 29/06/1951. escritor em São Jean Claude.
Paulo Em Bernardet; e
24/02/1994 Edward
MacRae.
Celso Curi São Paulo-SP. 44 anos No escritório do 50 min. Caio Fernando
Em 07/06/1950. jornalista183 em Abreu.
São Paulo. Em
06/08/1994.
Luiz Mott São Paulo-SP. 49 anos No saguão do 1h e 20 min. João Antônio
Em 06/05/1946. Rio Palace Mascarenhas.
Hotel. Depois
nos transferimos
para o Salão Rio
de Janeiro I. Em
22/06/1995

183
A gravação foi feita à época que ele ocupava o cargo de Diretor de Formação Cultural da Secretaria
Estadual de Cultura de São Paulo.

209
Segunda Rede:
A) Entrevistas com os Membros da Redação do Lampião.
Nome do Local e data de Idade à época Local e data da Tempo de Indicação de
colaborador nascimento da gravação gravação gravação nomes para
contatos
Antônio Carlos Rio de Janeiro - 37 anos Na residência do 1h e 40min. Alceste
Moreira RJ. Em Editor no Rio de Pinheiro;
23/08/1958 Janeiro. Em Alexandre
26/08/1995 Ribondi;
João Carlos
Rodrigues; e
Dolores
Rodriguez
Alceste Pinheiro Rio de Janeiro- 43 anos Na residência do 1h e 40 min. Não fez
RJ. Em professor no Rio indicações para
22/03/1952 de Janeiro. Em entrevistas.
20/10/1995.
Dolores Rio de Janeiro- 38 anos Na residência da 1h e 20 min. Forneceu pistas
Rodriguez RJ. Em jornalista no Rio para a
07/05/1957. de Janeiro. Em localização de
23/10/1995. Leila
Míccolis.184

B) Entrevistas com os Colaboradores do Lampião (Rede II).


Nome do Local e data de Idade à época Local e data da Tempo de Indicação de
colaborador nascimento da gravação gravação gravação nomes para
contatos
João Carlos Rio de Janeiro- 46 anos Na residência do 1h e 30 min. Luís Carlos
Rodrigues RJ. Em escritor no Rio Lacerda;
11/07/1949. de janeiro. Em José Fernando
20/10/1995. Bastos; e
Aguinaldo Silva
Luiz Carlos Rio de Janeiro- 50 anos Na residência do 1h e 20 min. Forneceu pistas
Lacerda RJ. Em escritor no Rio à localização de
15/07/1945. de Janeiro. Em Francisco
22/10/1995. Bittencourt185
José Fernando Salvador-BA. 47 anos No gabinete do 40 min. Não fez
Bastos Em 11/03/1948 jornalista - indicações para
Teatro Rival - entrevistas.
Rio de Janeiro.
Em 23/10/1995.
Alexandre Mimoso do Sul- 42 anos Na residência do 2h e 20 min. Não fez
Ribondi ES. Em jornalista em indicações para
12/12/1952. Brasília. Em entrevistas.
19/11/1995.

184
Ao final da gravação fui informado por Dolores Rodriguez sobre o falecimento de Adão Acosta e de
Arístides Nunes.
185
As pistas não foram suficientes a localização do crítico de artes no Rio Grande do Sul.

210
O Processo, da Transcrição até a Conferência.

A seguir apresento as entrevistas “transcriadas”. Antes se faz importante


lembrar que história oral de vida indica duas situações: uma se refere à reflexão
sobre a palavra e a outra está ligada à valorização da experiência humana. Pressupõe
também uma mudança de estado do oral para o escrito, por intermédio de técnicas
que sistematizam os discursos. O trabalho com história oral de vida transforma o
depoimento e, como faço nesse item, explica esse processo de elaboração a fim de
evidenciar o método, a disciplina e a compreensão teórica empreendidos durante
esse processo.186
As transcrições procederam à repetição detalhada da gravação, representaram
o início do processo de passagem da fala gravada para a escrita. Esse processo gerou
três níveis de percepção sobre o trabalho: o primeiro ligado ao registro da fala do
depoente; o segundo refere ao ambiente onde foram realizadas as entrevistas; e o
terceiro buscou compreender a interferência de uma terceira pessoa no depoimento.
Há duas possibilidades ligadas ao primeiro nível: uma delas refere aos tons de
voz que não apresentaram problemas à compreensão - a gravação era clara, pausada
e de fácil entendimento -, a outra refere a problemas simples como a velocidade das
frases emitidas, por vezes acompanhadas de um tom de voz mais baixo ou por
risadas, gerando palavras que se aglutinavam. Nesse caso, a compreensão da frase
inteira ajudava a decifrar os termos prejudicados durante o registro, porém os
colocava entre colchetes para não perder a idéia sobre como consegui recupera-los.
Era comum repassar uma fala diversas vezes quando o registro possuía algum dos
problemas descritos. Não obstante, esse cuidado consumia um período de tempo
maior para a transcrição, pois a atenção era redobrada em função do sentido das
frases.

186
MEIHY, J. C. S. B. “No camarim das palavras” in: A colônia Brasilianista: história oral de
vida acadêmica. São Paulo: Nova Stella, 1990. p. 15-33.

211
Há palavras que ficaram entre colchetes durante a transcrição porque se
referiam a expressões locais, citações em língua estrangeira ou mesmo nomes de
cidades e pessoas que geraram dúvidas sobre a grafia correta. Eram palavras
específicas que compunham o depoimento do colaborador e - quando não eram
esclarecidas no decorrer da própria gravação - foram transcritas da forma mais
próxima para que fossem reconhecidas pelo entrevistado e corrigidas. A fase de
conferência das entrevistas, explicada mais abaixo, contribuiu para a resolução
dessas dúvidas que afluíram no decorrer da primeira fase.
A entrevista possuía limites relacionados à gravação, como os gestos ou
expressões faciais que os colaboradores expressavam enquanto forneciam o
depoimento: a transcrição pura e simples das palavras não daria conta desses
aspectos. Foi preciso escrevê-los logo após a entrevista para que não se perdessem,
mesmo porque algumas frases foram acompanhadas por expressões corporais que
imprimiam outro sentido às palavras. Durante o processo de transcrição coloquei
essas anotações junto das frases que eram referendadas pela gesticulação, assim
poderia recompor o sentido que o colaborador queria expressar no momento do
depoimento.
O segundo nível de impressão está relacionado ao ambiente no qual o
depoimento foi realizado. Houve casos em que o local era adequado, não havia o
menor ruído e nem qualquer interferência nos registros, o que facilitava o trabalho
de transcrição. Entretanto, houve situações que não configuravam essa possibilidade.
As entrevistas realizadas em locais públicos ficaram repletas de registros
sonoros, aparecendo em intensidade menor à voz do colaborador. O cuidado em
manter o gravador próximo ao entrevistado e com o volume do aparelho no máximo
- técnica que garante um bom resultado à gravação - contribuiu para o registro do
depoimento e garantiu uma audição mais clara na fase de transcrição. O caso mais
complicado refere a um ambiente onde era realizado um ensaio musical. José
Fernando Bastos concordou em conceder o depoimento, mas enfatizou que somente

212
poderia fazê-lo no local de trabalho. Concordei em fazer a entrevista e fui
surpreendido pela situação.
O colaborador procurou ficar no espaço mais distante e reservado que podia,
mas o registro da música e das pessoas que circulavam na área entravam em franca
concorrência com a voz do colaborador. O trabalho com essa gravação exigiu muitos
cuidados. Porém, a certeza que não houvera mudanças no sentido das frases somente
ocorreu quando José Fernando Bastos se reconheceu no texto - na fase de
conferência da entrevista - aprovando-o para a divulgação.
Fazer entrevistas em diferentes locais - propícios ou não propícios à gravação
- revelou que nem sempre era possível manter a aura de envolvimento entre o
entrevistado e o entrevistador. Aqui é possível apresentar o terceiro nível de
impressão que se refere à interferência de uma terceira pessoa no momento da
gravação. A interrupção do depoimento ocorreu poucas vezes, mas foram suficientes
para gerar duas considerações.
Por um lado, houve casos de entrevistados que após serem interrompidos -
para assinar um papel, ou para atender um telefonema - pediam para ouvir o último
trecho que fora gravado e retomavam o depoimento a partir daquele ponto, então
anotei apenas os motivos ligados à interrupção.
Por outro, a interrupção estimulava o colaborador a elaborar mais aspectos
que eram acrescidos ao seu depoimento. Houve um caso em específico - ligado à
entrevista de Luiz Mott -, onde o depoimento caminhava para as considerações finais
quando ocorreu uma interrupção. Essa quebra resultou num enriquecimento da
entrevista, antes de finalizá-la o colaborador esclareceu os motivos que levaram à
interrupção do registro.
Essas quebras aconteceram com mais freqüência em locais públicos. Nos
ambientes privados as entrevistas foram interrompidas quando o colaborador
precisava atender ao telefone, mas não ocorreu nenhum caso de interferência de uma

213
terceira pessoa no depoimento, o que contribuiu para um vínculo maior entre quem
contava e quem ouvia a história de vida.
Durante a transcrição foi possível concatenar o exercício de audição das fitas
e passagem para o texto escrito com as anotações que realizei após a gravação. Esse
trabalho preparou a próxima fase: a textualização das entrevistas.
Essa etapa implicou na filtragem dos ruídos, correções, definições de
palavras-chaves que revelaram a temática dada à fala. Foi o estágio em que se
reorganizou os discursos, obedecendo a estrutura requerida para um texto escrito,
contudo, preservando o tom dado pelo colaborador. O trabalho com as textualizações
apoiou-se profundamente na etapa anterior.
As transcrições mantinham as características da fala oral passada diretamente
para o texto escrito, incluíam também as perguntas que foram postas aos
colaboradores. Elas ainda possibilitaram a pontuação dada pela fala dos
entrevistados, além de permitir que o texto fosse marcado por barras colocadas antes
das frases que inseriam um tema diferente. Esses apontamentos ajudaram a
configurar o texto escrito e a criar a divisão dos parágrafos.
A primeira textualização gerou um enorme receio da minha parte - inclusive
na hora de retirar as perguntas que fiz -, queria conservar tudo que ocorrera na
entrevista. No início dessa etapa, apesar das leituras teóricas que orientavam o
processo, as conversas com meu orientador ajudaram-me a compreender que a partir
do momento em que passei o discurso oral para o papel já havia feito uma alteração,
então deveria buscar melhorar a entrevista através do texto escrito. Esse receio em
mexer nas transcrições começou a diminuir quando comecei a ver o resultado das
textualizações, a partir da terceira fiquei mais à vontade com o trabalho.
As transcrições forneceram ainda duas características que foram trabalhadas
durante a textualização: uma delas referiu aos colaboradores que salpicavam um
mesmo tema em diferentes fases do depoimento; e a outra estava ligada aos
colaboradores que apresentavam uma narrativa linear e organizada.

214
As transcrições que apresentavam a primeira característica foram re-
arranjadas, sendo organizadas com o objetivo de manter uma linearidade ligada à
trajetória de vida. Buscava-se primeiro a história do nascimento, depois a da
infância, em seguida a dos estudos até chegar às considerações que o colaborador fez
sobre sua vida à época da entrevista.
No caso das transcrições de colaboradores com um depoimento mais linear, o
trabalho referiu a retirada das perguntas e da descrição dos ruídos. Essa organização
prévia, presente na fala dos entrevistados, viabilizou um trabalho mais rápido.
Em ambos os casos, contudo, era preciso estar atento para não descaracterizar
as narrativas, pois em todos os depoimentos os colaboradores utilizaram palavras ou
imprimiram um tom pessoal, característico em suas falas, isso os ajudaria a se
reconhecer no texto durante a fase da conferência.
Paralelamente a textualização era possível trabalhar com a transcriação dos
depoimentos. O conceito de transcriação, segundo José Carlos Sebe Bom Meihy, foi
emprestado do poeta Haroldo de Campos e refere ao espírito da entrevista. Ele indica
que o texto foi definido plasticamente e a atmosfera da entrevista foi recriada. Isso
não seria possível caso se reproduzisse somente o que foi gravado.187
A transcriação pode ser observada através da elaboração textual de atos ou
expressões que não foram captados pela transcrição - risadas, gestos com as mãos,
voz baixa, exaltação -, e através das janelas que precedem a entrevista concedida
pelo colaborador. Elas foram elaboradas com as impressões que anotei a partir dos
seguintes casos: quando fazia o pedido para uma entrevista; no momento do
encontro com o colaborador; e do comportamento do entrevistado durante e após a
gravação.
No entanto, o reconhecimento desse processo dependia da fase de conferência
das entrevistas com as pessoas que concederam o depoimento. Só então o resultado

187
MEIHY, J. C. S. B. “Transcrever, textualizar, transcriar”. In: Canto de morte Kaiowá:
história oral de vida. São Paulo: Loyola, 1991. p. 31.

215
final do processo de transcrição, textualização e transcriação poderia ser
considerado válido.
Para evitar utilizar a datas e locais referentes à fase de conferência optei por
colocá-las nos quadros que precedem as entrevistas dos colaboradores.
Após concluir as transcriações entrei em contato com os colaboradores para
iniciar o processo de conferência. Durante as conversas enfatizei que eles tinham
completa autonomia para alterar qualquer coisa que quisessem, pois a legitimação do
texto deveria passar pela aprovação deles.
Durante os primeiros contatos fui questionado sobre a possibilidade de enviar
o texto pelo correio, antes do encontrá-los para a conferência, decidi acatar a
sugestão e a idéia se revelou profícua. No momento em que me reuni com os
colaboradores, eles faziam a releitura junto comigo e apontavam as alterações que
deveriam ser feitas.
Glauco Mattoso preferiu que a conferência fosse feita por outra pessoa,
dizendo que me entregaria depois. A preferência do colaborador se deveu ao
problema de visão e por não saber com certeza quando haveria uma pessoa com
disponibilidade para ler o texto. O parecer do colaborador foi positivo.
James Naylor Green à época não se encontrava no país, retornara aos Estados
Unidos e não tinha perspectivas de vir ao Brasil, pois estava administrando um curso
na California State University. A única possibilidade viável foi enviá-la para sua
residência em Los Angeles. Assim que o colaborador conferiu o texto da entrevista,
mandou um comentário sobre o resultado e a aprovou para a divulgação.
No contato com João Carlos Rodrigues fui avisado pelo colaborador que não
poderíamos nos reunir para a conferência. Na mesma semana em que eu fui ao Rio
de Janeiro, ele estaria em Campinas palestrando sobre seu trabalho com a biografia
de João do Rio que acabara de ser lançada. Não tive tempo de propor outra data, pois
o colaborador antecipou-se e mandou o texto conferido e autorizado para a
divulgação.

216
Houve também três casos - Roberto Piva, Peter Fry e Antônio Carlos Moreira
- em que os colaboradores receberam o texto com antecedência, mas não tiveram
tempo para lê-lo, pois estavam assoberbados com os compromissos profissionais e
intelectuais. Perguntei-lhes quando poderia retornar para encontrá-los, então eles
sugeriram fazer a leitura, comentar por escrito e depois enviar pelo correio. Diante
da impossibilidade, decidi acatar as sugestões. Posteriormente recebi os textos
conferidos, comentados e aprovados.
Os encontros que fiz com os outros colaboradores foram fundamentais, pois
cimentavam a relação que se iniciou ainda no pedido para a entrevista. A
impossibilidade de encontrar cinco entrevistados foi perfeitamente compreensível,
não influiu no processo de conferir, alterar e autorizar o texto, mas não representava
a forma ideal de conclusão do processo e só foi aceita devido à exigência das
circunstâncias.
O trabalho de história oral com um grupo seleto de escritores revelou duas
formas de avaliação do texto por parte dos colaboradores: uma aceitou o processo
fazendo pequenas alterações como a exclusão ou a inclusão de frases e nomes, o
esclarecimento das palavras que estavam entre colchetes e a correção de datas e
fatos; a outra também realizou essas pequenas alterações, porém ressaltou que no
caso de elaboração do texto adotariam seus respectivos estilos.
As dezessete entrevistas foram transcriadas. Uma delas, porém, feita com
Jean Claude Bernardet, não recebeu parecer favorável durante o processo de
conferência. O professor sugeriu a realização de outra gravação para um novo
rearranjo do texto. Nesse caso, o tempo para redação final dessa dissertação
concorreu com o processo de trabalho com história oral. A decisão em não incluir a
entrevista de Jean Claude Bernardet obedece a uma questão de ética posta pelo
trabalho com história oral de vida, pois o texto do colaborador ainda não contém a
imagem que ele quer deixar de si. O compromisso ético assumido com Jean Claude

217
Bernardet ainda não está encerrado, continuara até a conclusão do processo de
trabalho com sua entrevista.
As outras dezesseis entrevistas foram autorizadas para a divulgação.
Considerei adequado preservar a categorização que refere a origem das duas redes,
assim como a divisão interna da primeira em três sub-redes: membros do conselho,
autores coligidos e colaboradores; e da segunda em duas sub-redes: redatores e
colaboradores.

218
Primeira Rede:

Os Membros do Conselho do Lampião.

Nome do Data e Idade à Local e data Textos Local e


colaborador local de época da da conferidos Data de
envio do conferência conferência enviados autorização
texto pelo correio do texto
João Silvério Osasco-SP 53 anos Na São Paulo-
Trevisan188 em residência SP
21/03/1997 do escritor ________
. em São 16/05/97
Paulo. Em
16/05/1997
João Antônio Osasco-SP 69 anos Na Rio de
Mascarenhas em residência Janeiro-RJ
189
20/03/1997 do advogado ________
. no Rio de 09/04/97
Janeiro. Em
10/04/1997
190
Peter Fry Osasco-SP (56) anos Rio de Rio de
em Janeiro-RJ Janeiro- RJ
21/03/97 ________
em 23/06/97

21/06/97

188
Membro do Conselho Editorial a partir de lançamento do jornal em abril de 1978 (Nº 0); passa
a ser apresentado como Editor em janeiro de 1981 (Nº 32) e permanece com essa denominação até
a extinção da publicação (Nº 37)
189
Surge como Membro de Conselho Editorial a partir do lançamento do jornal em abril de 1978
(Nº 0), permanece até setembro de 1978 (Nº6).
190
Surge como Membro de Conselho Editorial a partir do lançamento do jornal em abril de 1978
(Nº 0), permanece até setembro de 1980 (Nº 27).

219
. Nasceu em Ribeirão Bonito, São Paulo,
em 23 de junho de 1944.

. Escritor, roteirista e diretor de cinema,


dramaturgo, tradutor e jornalista.

. Estudos acadêmicos: Filosofia no


Seminário Maior de Aparecida/
Lorena, SP e na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.

. Autor, entre outros: Testamento de


Jônatas deixado a David, 1976; Em
Nome do Desejo, 1983; Vagas
Notícias de Melinha Marchiotti,
1984; Devassos no Paraíso, 1986; O
Livro do Avesso, 1992; Ana em
Veneza, 1994.

João S. Trevisan.

220
A entrevista foi realizada no
apartamento do escritor J. S.
Trevisan. No decorrer de uma
recepção, formal e muito
agradável, cruzaram-se várias
apresentações, como os motivos
para a visita, o trabalho de
pesquisa, o contato com o escritor
e suas idéias. Conversamos um
pouco antes de iniciarmos a
gravação. Havia um clima de
curiosidade, afinal, essa foi a
primeira entrevista do projeto.
Longa o suficiente para um breve
intervalo, a pedido do escritor.
Num falar tranqüilo e paciente, ele
contou sua vida. Disse que era um
ser noturno. Coincidentemente, ou
não, a entrevista começou na hora
do crepúsculo e fomos envolvidos
pela sombra da noite.

São Paulo, SP,


29 de janeiro de 1994.

221
"... toda a minha história se insere neste contexto: eu estou o tempo
todo lutando com Deus..."

Eu sou de Ribeirão Bonito. Nasci na véspera de São João, dia 23 de junho de


1944. No hemisfério sul é a noite mais longa do ano. Eu sou um ser noturno.
Acredito ter alguma coisa a ver com a noite. Não fisicamente, mas espiritualmente. E
também, não no sentido imediato de ser um temperamento muito lunar, mas da
minha vida ser um pouco esse me debater nas trevas. A sensação que tenho é a de
estar sempre envolvido na noche oscura de São João da Cruz e de ter que encontrar
os meios de acender os meus palitos, os meus focos de luz para poder iluminar meu
caminho.
Eu nasci à uma hora da tarde, é um horário do qual eu gosto muito... acho um
horário bonito. Nasci numa cidadezinha de sete mil habitantes, ao lado de São
Carlos. Passei a minha infância, até quase dez anos, em Ribeirão Bonito. Depois fui
para um seminário de padres em São Carlos. A minha relação com Ribeirão Bonito
foi muito conflituosa.
Venho de uma família de classe média muito baixa... de imigrantes. Eu tenho
três dos meus avós italianos e uma avó espanhola... acredito que absolutamente
analfabetos. Meu avô paterno veio do Vêneto e provavelmente nem falava o italiano,
falava o vêneto. Minha avó paterna veio de Málaga, era malaguenha. Os dois avós
maternos, que vieram da Calábria, eram Aiello. De uma maneira, mais ou menos
rápida, os Trevisan conseguiram fazer um pézinho de meia e compraram uma
padaria, daí o por quê da "classe média". Só que no momento em que entrei em cena
tudo isso estava em decadência. Papai já havia se separado dos irmãos, a partilha da
herança já havia sido feita, muito conflituosa inclusive, algumas irmãs foram
injustamente deixadas de lado. Os homens, eu acho que eram quatro, engalfinharam-

222
se por causa disso. Além da padaria, havia também terrenos. Mas a padaria era o
"filé mignon" e eu não sei por que cargas d’água meu pai acabou ficando com o
"filé mignon", contra a pretensão dos outros, sobretudo do mais velho... ele se tornou
um grande rival do meu pai.
Na verdade, papai era o filho predileto da mãe e aparentemente a pessoa mais
afável da família. Acho que era uma família muito difícil, os Trevisan, pelo que
conheço da história particular desses Trevisan. Na lista telefônica de Veneza há
várias páginas de Trevisan. É uma família muito antiga, acho que é um tronco só,
mas enfim com várias ramificações que não têm nada a ver umas com as outras.
Trevisan tem desde patriarca de Veneza e doge de Veneza (governador da cidade-
estado), até analfabetos como o meu avô. Meus tios eram pessoas apenas com
instrução básica. Quem lê Vagas Notícias de Melinha Marchiotti, meu segundo
romance, percebe muito dos Trevisan... é em parte sobre a minha família.
Tenho um grande conflito interior com os Trevisan. Eu sou um Trevisan que
briga com os Trevisan que conheci, a começar pelo meu pai. O papai que conheci já
não era mais a pessoa afável que dizem ter sido. Tenho a impressão que meu pai
começou a beber desvairadamente depois da morte da vovó e da separação dos
bens... talvez durante mais de vinte e cinco anos. Isso o tornou um alcoólatra. Então
o pai que eu conheci, do qual me lembro, sempre foi um alcoólatra, um homem que
me tratou com muita frieza, quando não com muita brutalidade.
Eu era o mais velho de quatro irmãos (três homens e uma mulher). Em nome
disso tinha uma série de compromissos que tornaram a minha infância muito infeliz.
Eu tinha que tomar conta de uma padaria que era um fantasma, praticamente não
aparecia ninguém... papai tinha poucos fregueses. Uma padaria totalmente
decadente. O pão do meu pai era muito ruim, detestado pela cidade. Apareceram
outras padarias concorrentes, não me lembro se uma ou duas, que faziam um pão
muito melhor.

223
Além de estudar e ficar tomando conta da padaria - porque meus irmãos eram
pequenos - eu entregava pão com meu pai, era uma espécie de empregado dele e a
princípio era tratado como tal. Eu entregava pão num carrinho com um cavalo. Meu
pai ficava no carrinho e eu descia para entregar o pão. Então ouvia as reclamações,
os xingos e as humilhações das pessoas contra meu pai.
Tudo isso era muito duro para mim, tanto que com oito anos de idade - eu
acredito - já pensava em suicídio. São as primeiras lembranças que tenho a respeito
de minhas fantasias de suicídio. Eram fantasias bem típicas de criança, nas quais eu
queria cortar os pulsos para ser amado. Obviamente, havia nisso um componente de
chantagem emocional muito claro. Eu sofria muito, era muito solitário e tinha muito
pouco contato com as crianças. Também era muito isolado na escola.
Não creio que fosse uma criança exatamente tímida, acho que era um pouco
tímido, mas o meu afastamento era um pouco tácito. Primeiro, porque eu era filho do
bêbado da cidade... e isso era muito duro para mim. Segundo, porque eu era
diferente... tenho a consciência de ser diferente desde as primeiras lembranças da
infância. E eu era diferente porque tinha um desejo sexual que os outros meninos
não tinham, ou pelo menos eu não podia compartilhar claramente com eles. Às vezes
em que isso aconteceu foi de uma maneira muito sub-reptícia, muito proibida,
quando não reprovada na prática.
Lembro-me, por exemplo, de uma vez em que minha mãe me apanhou no
fundo do quintal fazendo troca-troca com o filhinho da lavadeira, uma preta que
lavava roupa lá em casa... até me lembro que o menino se chamava Carmo. Eu tomei
uma surra violenta, não me lembro a idade, eu era pequenino, porém já sentia muito
claramente um desejo sexual diferente. Eu não sabia classificar, mas sabia que era
apaixonado por um tio, por colegas, por atores de cinema. Lembro-me, por exemplo,
do Tyrone Power, que me deixava absolutamente deslumbrado. Quando eu via seus
filmes passava semanas sonhando com ele. A minha solidão era compensada por

224
fantasias enormes. Vivia num mundo de fantasias enquanto era obrigado a tomar
conta da padaria.
Às vezes saia escondido, então eu apanhava porque o meu pai não me
encontrava lá. Arranjava cera de abelha, muito comum na época, e ficava
construindo um circo com pequenos personagens. Eu desenhava muito bem. Tinha
um traço correto, desenho comum, nada de excepcional... isso de copiar as pessoas,
o rosto, os traços. Ficava construindo trapezistas de cera. Eu tinha um prazer enorme
em detalhar os peitos e as coxas tanto dos trapezistas como das trapezistas. Lembro
que construía meus pequenos trapézios e ficava na padaria brincando com esses
trapezistas de cera.
Além de entregar pão no carrinho, também entregava pão mais longe - nos
arredores da cidade -, montado no lombo de um cavalo chamado Parabelo. Lembro
que montava no lombo sem arreio e vivia com a bunda em carne viva... por causa do
suor do cavalo. Eu tinha muito medo. Uma vez cheguei a cair. Ele era um cavalo
manso, mas muito cismado, que ao mesmo tempo eu amava e temia. A coisa piorou
quando o cavalo morreu... passei a entregar pão no seu lugar. Carregava um cesto
enorme, entregando aqueles pães mirrados que meu pai fazia.
Os pães do papai não cresciam. Não sei se ele não sabia fazer pão direito... se
por desleixo, ou pelo fato de ter perdido o contato com a realidade enquanto
alcoólatra. No meio disso tudo tinha as surras que além do papai dar em mim, ele
dava em minha mãe... era algo extremamente doloroso. Havia também o testemunho
do meu tio mais velho. Ele morava parede e meia e era um cara muito mais esperto,
tinha mais senso de negócio. Ele era mais rico e abriu um bar... ao lado da padaria e
bar do meu pai, para concorrer. Eu ouvia ele gritando: "- Mata esse pai, mata esse
desgraçado!"... sempre que havia briga e na casa dele se ouvia a gritaria do meu pai e
o choro da mamãe.
Essas são as lembranças que tenho da minha infância. Foi uma infância muito
triste, não tenho nenhum pejo em dizer. Papai me dava chutes e murros. Eram surras

225
muito violentas. Durante toda a minha vida foi muito difícil recuperar afetivamente
a figura do meu pai.
Com quase nove anos de idade, fui para o seminário em São Carlos... queria
ser padre. Não sei como essa idéia apareceu na minha cabeça, mas a verdade é que
eu era muito ligado à igreja. Era coroinha, membro da cruzada eucarística e mamãe
era muito religiosa. Eu tinha um contato muito estreito com minha mãe. Mamãe
sempre me admirou muito. Apesar dela não ter completado o grupo escolar - quando
morreu estava fazendo o quarto ano do grupo escolar no Mobral - era uma pessoa
extraordinariamente sensível... a ponto de perceber muito cedo quem eu era.
De certo modo, foi um alívio ir para o seminário. Escapei do papai e daquela
vida muito difícil para mim. Mas saí do buraco e caí no abismo. Os primeiros anos
no seminário foram muito dolorosos. A disciplina era muito rígida. A minha solidão
tornou-se ainda mais dolorosa, pois era uma solidão no meio de cem ou cento e vinte
meninos... de boa parte dos quais tinha que me defender. Alguns se tornaram
dolorosamente objetos dos meus amores e eu não tinha nenhum acesso a eles. Então,
era um amor retraído, um amor muito escondido e muito solitário. O único canal de
expressão desse amor eram os meus colegas, os meus iguais... esse foi o lado
compensatório da situação: encontrei vários meninos homossexuais como eu. Isso
foi um pouco redentor. No meio de toda aquela dor, tinha confidentes que sentiam a
mesma coisa que eu... e nós trocávamos confidências a respeito de nossos amados.
Em Nome do Desejo é um livro que se refere exatamente a esse assunto.
No primeiro ano de seminário, tentei ficar doente várias vezes para poder
voltar para casa. São Carlos é uma cidade relativamente fria. Tenho lembrança de
ficar na chuva tentando pegar uma pneumonia, tal a situação paradoxal em que vivia.
Ou seja: eu, que havia ficado aliviado ao ir para o seminário e deixar minha casa,
agora estava fazendo de tudo para tentar voltar para casa e deixar o seminário. Eu
tinha uma saudade insuportável da minha casa, sobretudo da mamãe.

226
Fui um aluno absolutamente exemplar. No grupo escolar tirava os primeiros
lugares, as melhores notas, era realmente brilhante. Inclusive as minhas redações
eram lidas pelos professores. Mas nesse primeiro ano de seminário estava um pouco
em estado de pânico lá dentro. Cheguei a tirar média cinco, acho que passei com
cinco virgula quatro... o que significa que quase repeti de ano. Eu não conseguia
estudar nada e o meu aproveitamento escolar foi bastante medíocre.
No segundo ano comecei a me aclimatar um pouco melhor, mas o paradoxo
aumentou. Nas férias, quando estava indo para casa, tinha uma felicidade enorme,
mas ao mesmo tempo sofria demais por estar deixando os meus amados. Então eram
momentos em que a minha felicidade era vivida ao mesmo tempo que a minha dor...
não conseguia distinguir as duas coisas. Eu não tinha nenhuma coragem de fazer
declaração de amor aos amados... que ora eram mais velhos, ora eram mais novos.
A partir de um determinado momento houve uma revolução no seminário.
Acho que três anos depois de minha entrada, entraram padres jovens, com
orientações do Concílio Ecumênico Vaticano II, que modernizaram completamente o
seminário. Houve uma mudança radical nos valores e passei a ser uma personagem
de primeira importância em todo esse contexto. Passei a ser considerado um líder,
uma pessoa extremamente criativa e comecei a estudar cinema. Freqüentava o
cineclube da cidade, trouxe um padre especialista em cinema para fazer o curso
sobre cinema no seminário, via filmes e comecei a dirigir peças de teatro.
Lembro de ter dirigido uma peça, grande sucesso em toda a cidade, chamada
Pluft o fantasminha... de Maria Clara Machado. O ator principal da peça era um dos
meus amados. Esse menino estava à beira de ser expulso do seminário. Como as
regras do jogo haviam mudado, caso os alunos não apresentassem nenhuma
qualidade especial eram considerados medíocres e mandados embora... antes era ao
contrário, os mais quietinhos não corriam esse risco. Foi a partir dessa revolução que
as pessoas mais interessantes para esses padres passaram a ser os donos de maior
iniciativa. Esse menino só não foi expulso do seminário porque eu revelei uma

227
grande qualidade sua: ele foi considerado um grande ator. Lembro também de ter
tido a ousadia de colocar um coleguinha meu no papel de menina... com a maior
tranqüilidade, botei uma roupa feminina nele e ele ficou sendo a Maribel. Quando
lembro disso, em 1959, acho uma ousadia... inclusive os padres aceitaram tudo muito
bem. A peça era apresentada na cidade com aquele menino travestido e eu fui muito
elogiado.
Eu também era um grande declamador de poesia... ganhei vários prêmios.
Mas me considerava um péssimo ator, tenho essa impressão por causa das peças em
que atuei. Mas como declamador gostava muito do que fazia. Viajava muito ao
declamar, criava meus personagens. Quando havia concursos no seminário,
fatalmente ganhava todos. Já a partir desse momento tive um bom contato com a
literatura. Por exemplo, eu declamava Jorge de Lima, Carlos Drummond de
Andrade, enfim tinha um contato razoável com a literatura.
Vivi dez anos no seminário. Estudei em São Carlos durante sete anos, fiz o
ginásio e o colégio... que considero de alto nível. Estudava grego. Estudei latim
durante muito tempo. Amava o grego tanto quanto odiava o latim. Lembro do
trabalho final no terceiro ano de grego - que infelizmente se perdeu -, nunca
consegui lembrar se fiz sobre a Ilíada ou a Odisséia... nele eu fazia citações, em
grego, de Homero. Depois fui para o seminário de Aparecida. Era o Seminário
Maior, onde se estudava filosofia... o Seminário Menor era onde se fazia o ginásio e
o colégio.
O ambiente no Seminário Maior era um pouco mais fechado que em São
Carlos, mas ainda assim eu tinha umas brechas. A relação com meus amores
começaram a ficar um pouco mais abertas e um pouco mais claras. No último ano de
seminário tive um sério namoro com um colega. Nós ficamos muito apaixonados um
pelo outro e namoramos com o beneplácito do diretor espiritual, um padre jovem
que considerava muito importante a relação que nós dois tínhamos. Ele achava que
nós nos completávamos interiormente. Eu e esse rapaz tivemos uma relação muito

228
bonita, de declaração de amor, onde tudo o que tínhamos era dos dois, tanto o
dinheiro quanto os livros e a roupa. Eu me sentia mal porque ele era de uma família
mais rica, então sentia que o estava injustiçando nessa junção de bens, mas nós
tínhamos um prazer enorme nisso.
Só que começou a aparecer um problema na história: eu não conseguia
resolver a questão sexual. Ficava excitado o tempo todo ao lado dele... e isso não
entrava na minha cabeça. Eu tinha um grande amor por ele e não sabia o que fazer
com a minha excitação sexual que realmente estava interferindo no meu amor. O
seminário sempre deixou muito clara a questão da Pérola das Virtudes: a castidade.
Sabia que era pecado a relação sexual entre nós dois. Foi uma situação muito
dramática, onde tive que me confrontar com algo que me atormentava física e
espiritualmente... não sabia o que fazer. Quando conversava com os padres, eles
diziam: "- Isso passa, é coisa da adolescência, não se preocupe"... isso desde o
Seminário Menor. Nunca passou, até chegar ao ponto onde me vi numa encruzilhada
brutal.
Nunca tive uma relação sexual com esse rapaz. Ele era muito mais ingênuo do
que eu, mas saímos juntos do seminário... decidi sair do seminário. Não só porque
queria resolver a questão da minha sexualidade, fundamental para mim - e achava
que o seminário não me dava condições - mas também para decidir se eu realmente
queria ser padre. Só conhecia o seminário e não o outro lado, assim não tinha
elementos de escolha. Então saí para eventualmente voltar, mas nunca mais dei as
caras. Aliás, intuía que nunca mais iria voltar. Quando saí, esse rapaz fez a proposta
de nós transarmos e eu não quis. Nesse último ano de seminário tive muita
dificuldade para resolver essa questão.
Com toda essa história de amor, a minha cabeça sofreu uma pressão muito
grande. Ao mesmo tempo, no meio de tudo isso, a figura do meu pai emergiu como
um problema a ser resolvido. Lembro que participei de um concurso promovido pelo
grêmio do seminário... um concurso de contos. Estava muito revoltado com a

229
literatura. Eu tinha dezenove anos de idade quando constatei que havia uma grande
parte da literatura baseada na mentira: era preciso mentir para escrever. Não sei
como percebi isso, mas desde aquele tempo queria fazer exatamente o oposto na
minha literatura. Eu queria que a minha literatura e a minha vida fossem parte de um
mesmo movimento, de modo que para esse concurso escrevi um conto que se
chamava Um Caso. Era a história do escarro do meu pai nas minhas madrugadas.
Um conto datilografado em uma página que guardo até hoje... gosto muito dele. É
um conto despojado, em que minha única pretensão era chegar ao coração da minha
vida... passar poeticamente o meu problema. Claro que havia a intenção poética, mas
uma intenção poética que não fosse mentirosa.
O conto é basicamente sobre um menino que passa a madrugada ouvindo o
escarro do pai que está trabalhando na padaria. O menino busca encontrar uma saída
no meio dessa realidade arruinada e atormentada. Papai escarrava pela janela
enquanto fazia pão durante a madrugada. No final do conto o dia está amanhecendo
e digo que havia vários tons de vermelho, mas ainda que só um pouquinho, havia
também o verde. A epígrafe do conto é uma frase do Paul Claudel, mais ou menos
assim: "Toda dor que existe no mundo não é dor de morte, mas dor de parto".
Eu tinha dezenove anos quando comecei a fazer terapia... ainda estava no
seminário. Vinha uma vez por semana a São Paulo fazer terapia com a madre
Cristina. Essa freira era uma psicóloga muito famosa no Colégio SEDES
SAPIENTIAE, onde era superiora. Depois que saí do seminário, decidi reiniciar a
terapia com outro terapeuta, doutor Soeiro. Fiz durante um bom tempo, talvez mais
de um ano. Primeiro fiz terapia individual e depois em grupo. Foi então que chequei
de fato toda a relação com meu pai e ao mesmo tempo a minha homossexualidade.
O tema da primeira terapia foi o meu pai. Ironicamente, nessa terapia, falando
do meu pai eu consegui aceitar a minha homossexualidade: mais ou menos aos vinte
e um ou vinte e dois anos de idade. Ao mexer com meu pai veio à tona, de maneira
muito clara e direta, a questão, a aceitação do meu pai e da minha homossexualidade.

230
Descobri que todo problema estava ligado ao fato de amar profundamente papai e
não ser amado por ele. Aceitei isso como uma tragédia da minha vida... nunca
consegui corrigir, mas aceitei como sendo uma parte muito importante da minha
vida. Com essa aceitação veio a aceitação do meu desejo... que tenho desde que me
conheço.
As sessões individuais de terapia foram muito duras. Tive sorte de encontrar
um terapeuta que era muito honesto, além de não cobrar quase nada ou talvez nada...
porque a minha família se tornou muito pobre. Papai praticamente teve que vender a
padaria para pagar as dívidas... ele estava completamente endividado. Desde o início
o terapeuta foi extremamente honesto consigo mesmo e comigo. Eu poderia ter caído
nas mãos de um pilantra qualquer que pudesse tentar me "transformar" em
heterossexual.
Não consigo entender terapias que tentam transformar homossexuais em
heterossexuais... acho que são equívocos extremamente perigosos. Conheci grandes
tragédias pessoais por causa de terapeutas que tentaram criar esse tipo de situação,
cujo processo acaba desenvolvendo uma profunda culpabilidade no homossexual
que obviamente não consegue se transformar num heterossexual, apesar de todas as
aparências, casamento, filhos, etc. Enfim, encarei frente a frente com a minha
homossexualidade.
Foi muito duro passar da terapia individual para a terapia em grupo e
conseguir falar em público sobre isso... já dando nome ao meu desejo. O processo
terapêutico foi tão bonito e tão profícuo que acabei me apaixonando por um colega
do grupo. Assim, vivi toda a problemática dentro do grupo e foi o que me curou para
todo o sempre das minhas angústias relacionadas à minha homossexualidade. A
partir de então, em nível social, sempre me encontrei em situações muito
complicadas, enquanto homossexual. Nesse período não podia, nem perante a minha
família, nem perante os meus colegas de faculdade, deixar clara essa situação. Eu
tinha consciência de que estava vivendo uma repressão, mas tinha consciência

231
também de que o problema não era meu, mas da sociedade onde eu estava inserido.
Então essas descobertas foram muito importantes para mim.
Em mil novecentos e sessenta, provavelmente, toda a minha família se mudou
para São Paulo... fomos morar num porão da periferia. Naquela época era quase
limite da cidade, um bairro chamado Itaberaba... depois da Freguesia do Ó. Nós
morávamos de favor no porão da casa de irmãos da minha mãe. Com o tempo e o
trabalho de todos fomos construindo uma casinha. O papai continuava alcoólatra,
sistematicamente era mandado embora dos trabalhos... o que era muito humilhante
para ele. Isso provavelmente colaborou para acelerar ainda mais seu alcoolismo. Ele
chegou a São Paulo e foi trabalhar como servente de pedreiro, tal a pobreza em que
nos encontrávamos. A mamãe era o grande sustentáculo de toda essa situação. Ela
trabalhava como costureira, além de cuidar da educação dos filhos, três meninos e
uma menina, porque meu pai era completamente ausente.
Há um fato que considero absolutamente marcante na minha vida e que tem a
ver com o tipo de formação que tive. Desde a formação com os padres, costumava
abrir o peito e enfrentar as situações... por isso digo que era tímido até certo ponto.
Na minha evolução pessoal, há um dado muito importante... no Seminário Menor,
eu disputava o primeiro lugar da classe com um colega meu. Ele era exatamente o
oposto de mim. Tinha um Q. I. mais alto do que eu, mas a sensibilidade dele estava
aquém da minha... então eu compensava com a minha sensibilidade. Nós vivíamos
disputando o primeiro lugar e éramos rivais, acredito que ele era mais rival meu do
que eu dele... porque eu sabia das minhas limitações.
Eu era um desastre em matemática, tinha problemas sérios em física. Assim
tinha que me esforçar muito nessas matérias... sabia exatamente das minhas
insuficiências em certos terrenos. Esse rapaz não tinha nenhum problema, sua
memória era prodigiosa, enfim era o que se chama de alto Q. I. Só que ele estava
desesperado, não conseguia entender porque eu gostava de certos filmes. Eu devia
ter uns quinze anos, nunca me esqueço, quando foi apresentado no seminário - talvez

232
até por minha própria interferência - um filme do John Ford chamado: Depois do
Vendaval. Uma comédia muito divertida e inteligente que amei. Enquanto o resto do
seminário achou o filme algo absolutamente comum, eu achei uma obra-prima...
fiquei deslumbrado com o filme. Desde muito cedo realmente tive contato com o
cinema.
Esse rapaz não conseguiu entender porque eu tinha gostado, mas ficou
intrigado em descobrir o motivo porque sabia que eu era inteligente. Ele começou a
me provocar sem parar. Isso durou até o dia em que havia um Ford estacionado na
frente do seminário, ou passando... Era durante um recreio onde nós, às dez ou dez e
meia da manhã, comíamos um lanche - um pãozinho seco com uma banana. Eu
estava comendo essa banana e o cara começou a me provocar dizendo: "- Ah! Tem
gente que gosta de Ford a torto e a direito. Olha aí um Ford. Por que não gosta desse
aí?"... percebi que estava me provocando. Então chegou uma hora em que não
agüentei mais: peguei a banana que estava comendo e esfreguei inteirinha na sua
cara, com toda a raiva do mundo, a ponto de tirar sangue do seu nariz.
Esse fato é muito marcante porque sempre tive esse traço de bondade da
mamãe e de sua família, os Aiello... são pessoas muito doces e contidas em relação à
violência. A mamãe, por exemplo, morreu de implosão: o coração dela explodiu. A
sua doçura era tão grande que todo mundo que a conhecia amava seu jeito de ser. Ela
era uma pessoa deliciosa, mas incapaz de dizer uma palavra pesada contra alguém...
e morreu do coração aos cinqüenta anos de idade. Foi nesse momento, quando
comecei a mexer com a minha agressividade, que me desliguei da minha mãe.
O reitor, que possuía uma enorme admiração por mim, chamou-me para dar-
lhe explicações do que tinha ocorrido. Então contei-lhe toda a história e disse: "- Se
o senhor quiser me castigar me castigue, mas se for necessário... faço tudo de novo!"
Ele não me deu castigo nenhum, Reconheceu o que tinha acontecido e sua admiração
por mim cresceu ainda mais.

233
Quanto ao rapaz nos tornamos grandes amigos. Foi o grande amigo da minha
vida. Nunca mais tive um amigo tão radical quanto ele para uma amizade que durou
apenas esse período de colegial. Era uma amizade verdadeira, não tinha nada a ver
com paixão... inclusive nós compartilhávamos todas as nossas necessidades, a nossa
evolução interior, os nossos amores. Foi o meu grande amigo desse período de
adolescência.
Estranhamente, quando fomos para o Seminário Maior, nós nos afastamos. Eu
peguei o caminho da noite escura, sempre dando de cara com os problemas: a minha
sensibilidade era grande demais para poder fazer de conta que os problemas não
existiam. Eu quebrava a cara mesmo e sofria muito, enquanto que com esse rapaz foi
o oposto. Tanto que ele não saiu do seminário e foi para Roma... os melhores eram
escolhidos para ir para Roma. Lá, ele enlouqueceu e tentou suicídio várias vezes.
A minha adolescência é muito singular. Gosto muito mais da minha
adolescência do que da minha infância. Nessa época, apesar de tudo, comecei a
tomar a minha vida nas mãos. Quando decidi sair do seminário, estava com a cabeça
completamente estropiada. Sabia disso porque tinha uma série de problemas a
resolver e não conseguia. Lembro que certa vez chamei esse amigo e lhe disse:"- Em
nome da nossa antiga amizade, que não sei por que não continuou, eu queria te dizer
uma coisa que acho muito séria: tome cuidado na tua vida. Você é o tipo de pessoa
que quando encontra um obstáculo é inteligente o suficiente para contorná-lo. E eu
sou frágil o suficiente a ponto de precisar subir pelo obstáculo e sair do outro lado. É
muito duro, mas eu acho que estou aprendendo alguma coisa quando eu subo esse
obstáculo. Você está deixando de aprender e acho que isso vai ser muito ruim para
você".
Depois de três ou quatro anos, após eu ter saído do seminário, certa vez às
quatro da madrugada alguém toca a campainha da minha casa em Itaberaba, um
bairro distante, de difícil acesso. Era ele, esse meu amigo. Ele conhecia a mamãe, já
tinha ido a minha casa várias vezes, mas nessa época mantínhamos pouco contato.

234
Chegou dizendo que precisava falar comigo: "- Você se recorda daquela frase que
você me disse? Você tinha toda a razão. Eu... estou vivendo problemas muito sérios
na minha vida, porque não subo os obstáculos. Eu peguei uma gonorréia com uma
moça!". Ele ainda estava no seminário.
Bem mais tarde soube que ele fazia terapia de grupo com seus colegas de
seminário e o grande problema era essa moça. Ele foi para Roma e lá teve um surto
brutal de psicose maníaco-depressiva. Começou a ter crises de paranóia brutais e
teve que voltar para o Brasil. Ele morreu numa estrada vazia, de uma maneira muito
suspeita, como se tivesse atirado o carro para cima de um barranco... na entrada da
minha cidade, ele era vigário ali perto. Só muito depois soube que a mulher, à qual
ele se referia o tempo todo na terapia, era na verdade um rapaz. Ou seja, ele
realmente não tinha condições de subir o obstáculo de maneira alguma. Até ao
contar para mim, ele mentiu.
Então são dois caminhos. A história desse meu amigo, que acho muito
dolorosa, deixa muito claro o que eu tive de enfrentar, mas também o que ganhei
com esse enfrentamento. Ao sair do seminário, fui ajudado por um trecho do Velho
Testamento, a Bíblia, justamente a luta de Jacó e o Anjo. Eu acho que a minha vida é
um pouco isso: uma luta com Deus. Parte dessa noite escura é lutar com Deus, lutar
com o mistério, desvendá-lo. O mistério e toda a minha história se inserem nesse
contexto: eu estou o tempo todo lutando com Deus, naturalmente não sem efeitos
colaterais.
O Anjo na Bíblia é sempre uma metáfora de Deus, aliás não só uma metáfora
mas é a idéia de Deus. Quando o Anjo pede para Jacó soltá-lo, Jacó diz: "- Eu só o
solto se você me abençoar". Então o Anjo fez duas coisas muito importantes: tocou o
nervo da coxa de Jacó, que a partir desse dia ficou coxo - o estar manco foi o sinal
da divindade; e o Anjo o abençoou, dando-lhe o nome de Israel que significa "aquele
que luta com Deus". Desse modo abençoou-o devolvendo o seu gesto... e abençoou-

235
o tornando-o coxo. Eu acho que a minha benção é a minha homossexualidade. Eu
acho que a minha benção é a luta com Deus.
Em 1973, fui embora do Brasil. Desde o seminário sempre fui de esquerda...
inclusive na época do golpe militar de 1964, a polícia invadiu o seminário de
Aparecida. Desde aquele período nós tínhamos uma ação política, muito fascínio
pelo socialismo, apesar do socialismo ser considerado uma coisa perigosa pela
Igreja... mas havia o encantamento. Eu tive participação em vários grupos políticos.
Participei inclusive na Ação Popular, mas tenho muita dificuldade para me sentir
conivente com partidos. A minha consciência ultrapassa a conivência do partido e
esse é um outro problema da minha vida.
A Ação Popular era um grupo que no início da ditadura brasileira juntava as
áreas socialistas mais próximas da Igreja. Como continuei estudando filosofia na
Pontifícia Universidade Católica, estava muito próximo da área de JUC (Juventude
Universitária Católica) e JEC (Juventude Estudantil Católica). A minha formação
política inicial passou por dentro de tudo isso. Nesse sentido era uma coisa natural
que eu tivesse contato com a A.P. Quando entrei na Ação Popular e vi o que era a
A.P., fiquei horrorizado com a piada que era aquilo. Não era nada do que parecia e
resolvi sair da A. P. Então mandei uma carta analisando os problemas que eu tinha
encontrado e os motivos pelos quais havia saído. Fiz uma severa crítica ao seu
maoísmo que considerava algo absolutamente de fachada... uma bobagem. Eu me
considerava um maoísta, mas na verdade o que me atraía no maoísmo era o
anarquismo implícito em alguns de seus aspectos.
Enfim, em 1973 não agüentei mais ficar no Brasil, com gente sendo presa,
com a repressão brutal e fui embora em auto-exílio. Fiquei três anos fora do país:
meio ano viajando, um ano morando no México e um ano e meio nos Estados
Unidos. Saí do Brasil para ir para Berkeley, na Califórnia, onde haviam ocorrido as
lutas estudantis. Na época tinha uma fantasia parecida com a de Rimbaud: como
sabia que a fantasia de Rimbaud era ir para Paris para ver a queda da cidade com a

236
comuna, eu queria ir para Berkeley para ver a queda do império americano... porque
Berkeley era a sede do movimento estudantil e dos quebra-paus nos Estados Unidos.
Então fui para os Estados Unidos para morar em Berkeley e morei lá, limpando casa
inicialmente, depois trabalhando num restaurante.
Em Berkeley, tive meu primeiro contato com uma série de coisas
importantíssimas, as quais vieram complementar as descobertas que já tinha feito. Lá
descobri o movimento homossexual, descobri os anarquistas, o movimento
feminista, o movimento negro, descobri ecologia... tudo isso em 1973. Berkeley era -
acredito que não seja mais, parece que atualmente ela é uma cidade meramente
universitária -, mas naquela época ela era uma ponta de lança ideológica contra o
sistema americano: o American Way of Life. Uma espécie de caldeirão onde
experiências novas, bem no bojo da década de setenta, estavam sendo trabalhadas.
Eu vivi coisas muito radicais, muito deliciosas, que estão registradas nos
meus diários. A partir de 1975 recomecei a fazê-los. Sempre fiz diários no
seminário, mas num determinado momento os queimei porque não agüentava... eram
muito sofridos. Basicamente eram histórias dos meus amores. Não queria mais ler
aquilo que me fazia sofrer muito, era muito angustiante, então os queimei. Mas em
1975, nos Estados Unidos, retomei o meu diário. Comecei a fazer novamente e até
hoje faço. Desse modo, parte de todas essas experiências estão registradas.
Em Berkeley comecei a tomar consciência não apenas de ser o que eu era,
mas de batalhar para poder ser o que eu era. Foi um momento muito revelador e
particularmente privilegiado do movimento homossexual americano... porque ainda
era um desabrochar de algo muito juvenil, muito encantado, muito cheio de brilho.
Acho que depois o movimento homossexual americano tornou-se muito guetoizado,
ficou uma coisa de levantar bandeiras, prendeu-se a objetivos tais como conquistar o
poder.
Na minha cabeça sempre gostei muito do anarquismo. O poder é algo a ser
destruído e não cultivado. O poder deve ser dividido o quanto for possível, para que

237
seu efeito se dilua, porque não posso falar em nome de ninguém... nós somos
indivíduos únicos. Eu, enquanto homossexual, quero ser porta-voz da minha
homossexualidade, do meu prazer, do meu desejo. Nesse sentido a minha
consciência enquanto homossexual entra em cena: não quero que fiquem dizendo o
que devo ou não fazer.
Participei de passeatas homossexuais, tenho as fotografias que tirei. Estava
absolutamente encantado em ver aqueles homens de pau duro, desfilando em 1974,
1975, gente se masturbando em público, desfiles onde havia sado-masoquistas com
todas as suas correntes. Tudo aquilo deu-me uma sensação de liberdade muito
grande. Ao mesmo tempo, continuava fazendo a crítica do sistema americano. Eu
tinha, por exemplo, muita saudade dos olhares brasileiros.
Quando andava em Berkeley, as pessoas se cumprimentavam mesmo sem se
conhecer, o que era muito agradável para mim. Os carros paravam quando você
atravessava a rua. Foi muito desagradável quando voltei para o Brasil, quase fui
atropelado porque estava acostumado com Berkeley. Mas mesmo assim sempre senti
falta do jeito latino-americano, tanto que não agüentei e fui para o México. Eu já
havia passado um mês lá e amava aquelas cores mexicanas, aquela confusão, pessoas
cantando, falando.
Nos Estados Unidos, me aterrorizava a sensação de estar num grande hospital,
tudo limpinho, branquinho, tudo no lugar. Realmente é um país que não suporto. Eu
amava Berkeley e San Francisco. San Francisco é uma cidade absolutamente
inesquecível, uma das coisas belas da minha vida. Eu junto San Francisco, Roma e
Munique e faço a minha cidade ideal. Mas não os Estados Unidos. Acho que a
cultura americana, para o mundo moderno, é sinônimo de um desastre, nada mais
nada menos do que isso.
Meus amigos americanos, que eram socialistas e anarquistas e homossexuais,
faziam críticas violentas ao sistema americano, com as quais eu obviamente
concordava. Eles tinham um grande respeito por mim, pelo fato de ser latino-

238
americano - o oposto do que acontece hoje, quando os latino-americanos são
espezinhados... mas é claro que também eram pessoas especiais. Eles não eram o
“americano típico” do qual tinham horror. Faziam questão de ironizar o tempo todo a
cultura americana.
Eu morava com um rapaz que era jardineiro, o Philip, a quem tive a satisfação
de ter dado a primeira experiência homossexual na sua vida. Nós não éramos
amantes, apenas tivemos uma relação e morávamos juntos sem sermos namorados.
Mas enfim foi a primeira vez na vida que ele colocou em prática coisas que queria
fazer, e foi comigo. O Philip era um rapaz absolutamente comum, era jardineiro,
socialista, tinha um bigodão preto, um rapaz nem machão nem efeminado.
Mais tarde, fui trabalhar num restaurante anarquista, ou seja, não tinha patrão.
Cada dia nós tínhamos uma função. Um dia eu era lavador de pratos, no outro eu era
o chefe da cozinha. Nós revezávamos as nossas funções, justamente com intenção de
não sermos injustos uns com os outros. Eu trabalhava em Oakland, uma cidade que
era continuação de Berkeley, a cidade dos Black Panthers, os panteras negras.
Oakland era uma cidade de população negra. Eu trabalhava lá e morava em
Berkeley. No restaurante onde trabalhei, o Bishop’s Coffee House, nós servíamos
refeições para velhinhos e velhinhas aposentados. Era parte de um programa das
igrejas e do governo. Nós recebíamos o dinheiro e o geríamos dentro desse
programa... era tudo absolutamente sério.
O governo mandava de vez em quando um inspetor verificar as condições.
Nós servíamos o dinner que nos Estados Unidos é a refeição principal - o almoço é o
lunch, que é uma refeição mais apressada. Eu chegava do trabalho cansado porque a
gente logo depois do almoço começava a preparar a comida, lavava os pratos,
deixava tudo pronto e à noite servia um bando de senhoras e senhores, pessoas
deliciosas que eram amigas nossas. Lembro-me por exemplo da Florence, uma
senhora trotskista que participava em todas as passeatas gays. Ela era partidária dos
homossexuais e nos dava toda força.

239
Para embasar a história que vou contar a seguir é preciso falar sobre uma
instituição chamada free box... eram caixas deixadas em vários pontos da cidade.
Assim, o que não era mais usado pelas pessoas era deixado dentro dessas caixas
para alguém - caso estivesse precisando - pegar. Então peguei muita roupa, roupa de
frio, porque ao lado da minha casa tinha uma free box. Quando estava triste, eu ia
até lá ver o que tinha de presente para mim. Tinham coisas muito boas, roupas de lã.
Eu me vesti muito com roupas da free box. Cheguei até a encontrar líquido para
revelar fotografias, porque Berkeley era uma cidade estudantil, assim quando as
pessoas terminavam os estudos e iam embora, deixavam todas as suas coisas lá,
inclusive roupas.
Nós tínhamos um amigo travesti, o Christopher, que não era o que se conhece
como travesti no Brasil hoje, nem o travesti prostituto, nem o transformista, que é
mais especializado em trabalho no teatro, nem mesmo a chamada drag queen. Nos
Estados Unidos o nome geral para o travesti é drag queen e não é uma caricatura
como no Brasil, onde qualquer homem que coloca uma roupa de mulher torna-se
uma drag queen.
Exatamente nesse período de enorme efervescência ideológica e política
(1974), apareceu no movimento homossexual um novo tipo de travesti, o gender
fucker... expressão que traduzida ao pé da letra significa “fodedor de gêneros”. Ou
seja, era muito importante para nós na época mostrar que o sistema no qual
estávamos inseridos havia criado os gêneros. Na verdade pensávamos que os gêneros
têm uma parte natural muito pequena e todo o restante é uma criação cultural.
Assim, para ser homem o menino tem que brincar de carrinho desde pequeno, o
homem tem que botar uma puta pose de macho e calça comprida "de macho" para
criar o gênero masculino. Então era quase moda na época um cara muito viril botar
roupa de mulher, deixar o bigode, pintar os lábios, pintar o rosto e deixar o peito
peludo de fora. Essa turma não era nem uma coisa nem outra, o papel deles era
espezinhar os gêneros. Esse tipo de comportamento deu origem ao termo gender

240
fucker. O Christopher na verdade era um gender fucker. Ele, por exemplo, não
raspava os pêlos, mas vivia vinte e quatro horas por dia vestido de mulher. Tanto que
estava recebendo o salário-desemprego sob o pretexto de não conseguir trabalho por
ser travesti.
Nessa época havia uma palavra-de-ordem na esquerda de ponta americana, a
esquerda mais atrevida, que era usar o quanto se pudesse o governo, mamar
realmente no sistema americano e utilizar aquilo que os poderosos colocavam à
disposição, não apenas dentro do Estado, mas nas corporações ricas. Assim, havia
revistas de esquerda que publicavam o número do cartão de crédito de certos
empresários ou de certas empresas, para que as pessoas pudessem utilizá-los e
realmente sacanear. Lembro de fazer telefonemas para o Brasil utilizando esse
sistema. A gente dava o número do cartão de crédito que teoricamente seria secreto.
Quando a trama era descoberta, já era tarde. Então o jornal publicava novos
números. Esse pessoal tinha uma série de manhas, muito vivas, muito irônicas e de
grande humor.
Os gender fuckers se inseriam nesse contexto e o Christopher ainda mais,
porque vivia do salário-desemprego, sob o pretexto de que queria ser um transexual,
desse modo ele estava precisando de dinheiro para fazer a operação. O que de fato
não era verdade. De qualquer modo ele dava o endereço da minha casa para receber
seu cheque mensal, o qual chegava até lá enviado à Miss Chris. Era muito irônico
porque os caras não o chamavam de Christopher. Já haviam mudado seu gênero e o
chamavam de miss. Com tudo isso, Chistopher aparecia muito lá em casa. Vivia
pegando roupa na free box e deixava muitas delas dentro de casa.
Numa dessas noites, depois do trabalho, cheguei na minha casa e a encontrei
num estado miserável, toda revirada, com roupas por tudo quanto era lado. Fiquei
puto da vida com o Philip e esbravejava: "- Porra, esse Philip realmente não toma
jeito. Ele pensa que eu sou o quê? Empregada. Qualé?". Fiquei furioso porque tinha
ido até em casa para logo em seguida ir à abertura de uma exposição fotográfica

241
sobre homossexuais, aliás lindíssima - até hoje tenho o cartaz. Quando cheguei nessa
exposição era a coisa mais divertida do mundo... Muita gente estava fazendo o estilo
gender fucker.
O clima pré-AIDS era muito divertido, não sei como é o clima pós-AIDS nos
Estados Unidos, porque nunca mais estive lá. Mas nessa época era muito divertido.
A ordem era desestruturar o tempo todo.
Cheguei nesse lugar, onde estava havendo a vernissage da exposição, muito
divertida, muito gostosa, e vi um rapaz que ligeiramente me lembrava alguém. Era
um rapaz vestido de mulher loira, uma peruca enorme, com uma mini-saia, fazendo
um gênero absolutamente cafona, com uma bota de couro até o joelho, umas coisas
de leopardo... era a curtição da cafonice mesmo. De repente me dei conta: era o meu
amigo Philip, o meu colega de casa. Naquele momento entendi o por quê da bagunça
total lá em casa: tratava-se do Christopher tentando aprontar o Philip para ir à
exposição vestido de gender fucker. Eu ri muito porque era uma coisa muito
divertida. O Philip estava sem os óculos e não havia me reconhecido Só o reconheci
depois de muito tempo. Ele estava uma figura absolutamente hilariante. Então rimos
muito e viemos fazendo muita farra até em casa. Essas eram algumas das vivências
que tive lá.
A vivência sexual nos Estados Unidos era muito intensa, mas a vivência
afetiva era desastrosa. Sempre tive muita dificuldade em manter uma relação afetiva
no contexto sexual americano. Apaixonei-me por um ou outro, mas nunca consegui
ter um namorado americano. Trepava-se muito e só lembro que nos meus últimos
meses de Estados Unidos já estava desesperado. Para transar com os caras eu
chegava antes e dava uma lição a eles sobre o que queria na cama. Deste modo eu
sistematicamente doutrinava as pessoas a respeito da ternura. Eles não tinham idéia
do que era ternura, tanto que demorei muito em descobrir a palavra na língua inglesa
para ternura. Não é tenderness... que tem uma outra conotação. Fui descobrir que a
palavra mais adequada é warmth, To be warm é “ser terno”, “ser quente”. Eu pedia:

242
"- Será que não dá para você passar um pouquinho a mão em mim?"... eu tinha muita
necessidade. Era uma necessidade não só da minha personalidade, mas da minha
formação brasileira de pele e eles não têm idéia do que seja isso - sempre lembrando
que estou falando de pessoas politicamente muito preocupadas em crescer em nível
de consciência.
Enfim, não agüentei e fui-me embora para o México. Lá eu estava em casa.
Não precisava explicar o que era ternura. Na primeira semana arranjei um namorado
e passávamos horas fazendo carinho um no outro. Isso era essencial para minha vida
interior, para a minha vivência e o meu enriquecimento pessoal. O tempo que morei
nos Estados Unidos foi fundamental para ter uma vivência política da questão
homossexual... lá aprendi tudo. Aprendi inclusive a fazer a crítica da política
homossexual tal qual os americanos a praticam e que acho muito guetoizante.
Quando voltei ao Brasil passei a vida sendo um solitário, em 1973 já reclamava
a esse respeito. Antes de ir para os Estados Unidos morei numa comunidade só de
homossexuais, aqui no Brasil, onde reclamava muito sobre o fato de me sentir
solitário no meio homossexual. Achava que havia pouca gente com quem poderia me
relacionar. O meio homossexual já era e se tornou mais ainda um lugar basicamente
de pegação, um grande açougue. Fora disso não há companheiros com quem trocar
idéias. Somente há à disposição gente com quem foder... acabou a fodelância,
acabou tudo. A minha vivência enquanto homossexual passa pela minha cama, mas
não fica só nisso, nunca foi assim e nunca será.
Sempre tive muita dificuldade para compartilhar intimamente o meu mundo
com heterossexuais, a não ser em casos muito especiais, tinha necessidade de
compartilhar com homossexuais. Achava que seria mais fácil porque de qualquer
modo o nosso desejo estava emparelhado. Até hoje, em certos círculos da minha
família, mesmo que eles saibam que sou homossexual - e quase todos sabem -
quando vou conversar não tenho como compartilhar com eles a minha vivência.

243
Tenho de esconder setenta por cento do que sou e trabalhar com trinta por cento da
minha personalidade. Então tudo isso é muito difícil para um homossexual.
A minha intenção era poder ter espaços onde pudesse me sentir à vontade
enquanto homossexual, não apenas na cama. E foi em função dessa solidão que
pensei em criar o movimento homossexual no Brasil. Digamos que não pensava:
"- Vou criar o movimento homossexual no Brasil". Eu queria encontrar gente que
pudesse compartilhar um pouco das minhas idéias, que pudessem ser meus
companheiros, meus amantes também - e eventualmente foram -, mas foi muito
difícil.
Logo que cheguei, todos os meus amigos estavam engajados em partidos
políticos de esquerda, inclusive os homossexuais. Eu, que mesmo sendo de esquerda
já lhe fazia críticas severas, agora tinha um motivo a mais para fazê-las: o seu
sexismo e o profundo preconceito que a esquerda alimentava, e alimenta, contra a
homossexualidade... na época considerada uma vivência burguesa. Quando voltei,
fiquei absolutamente sozinho com as minhas idéias. Tentei formar um grupo e foi
um desastre. O nível de auto-estima das pessoas que o freqüentavam era baixíssimo.
Lembro de uma pessoa que tinha crise de enxaqueca brutal, dores de cabeça
violentas, a cada vez que trepava com um homem, ou seja, era uma auto-punição
exemplar. Tudo isso me levava a pensar: "- Meu Deus, onde é que eu estou? Eu que
sinto tanta satisfação em trepar, o que tenho a compartilhar com essa pessoa doentia?
Esse cara precisa de uma bela terapia para resolver o problema dessa angústia,
porque ele está dando porradas em sua própria cabeça, por ser homossexual. Ele vai
ter que se tranqüilizar e saborear o seu desejo". Ser homossexual é uma coisa muito
deliciosa. A chamada “problemática homossexual” com certeza nasce do contexto
das coisas que são empurradas na cabeça do homossexual.
Um dos problemas que tive com o movimento homossexual, diga-se de
passagem, foi nunca ter acreditado que o homossexual fosse melhor do que os
outros. Acho que nós homossexuais temos uma série de coisas específicas para

244
oferecer à sociedade, inclusive temos direito a isso e foi por esse direito que eu
sempre quis lutar, porém acredito que essas novidades, as quais nós temos a
oferecer, certamente nos tornam um pouquinho mais interessantes que outros grupos.
Por exemplo, os heterossexuais não têm mais nada de novo a oferecer: eles até hoje
sempre foram ouvidos. Eu também tenho coisas a oferecer e até hoje não sou ouvido.
A minha perspectiva é que não sou nem melhor nem pior que os outros, mas com
certeza tenho algumas coisas muito particulares para apresentar: tenho algumas
reflexões muito singulares a oferecer justamente porque elas vêm do meu ponto-de-
vista enquanto homossexual, o qual os outros naturalmente não têm. E era apenas
esse direito que eu queria exercer. Claro que para descobrir esse direito era
necessário fazer uma análise da minha situação na sociedade, dos meus colegas...
então começou a nascer o grupo SOMOS.
Acredito que o grupo se arrastou por um ano como uma coisinha de dez
pessoas... entravam algumas e achavam aquilo muito babaca. O nível de discussão
sempre foi muito baixo. Acho que até hoje a reflexão sobre a homossexualidade no
Brasil é de um nível muito tímido, muito raquítico, mesmo dentro dos grupos
homossexuais. Quando as pessoas descobriam um filão, elas ficavam usufruindo, e
não havia uma reflexão pessoal a respeito da sua própria homossexualidade. Quando
se descobriu o filão do Gay Power, por exemplo, o problema reduziu-se a essa
questão. Eu acho isso um desastre, porque até hoje me considero um anarquista. A
questão do poder não é tirá-lo dos heterossexuais e entregá-lo aos homossexuais,
mas sim a possibilidade de se rediscutir a questão do poder na sociedade, para
dividi-lo o mais possível, de tal modo que ele seja igualitariamente utilizado,
assimilado e veiculado pelos mais diversos grupos sociais.
Ao mesmo tempo em que me interessei pela questão da homossexualidade,
como um fenômeno social problematizado, eu me interessei automaticamente pela
situação dos negros, dos índios, das mulheres e por ecologia. Todas essas questões
eram tomadas como referenciais. O tempo todo as pessoas do grupo SOMOS se

245
colocavam: "- Como acontece com as mulheres, olha o que o machismo está fazendo
conosco; como acontece com os negros, olha a questão do centralismo étnico; como
acontece com os índios, olha o que se está fazendo contra a nossa cultura indígena"
Muito tempo antes de tudo isso se tornar moda, já eram questões discutidas dentro
do grupo e que tornaram-se mais cruciais dentro do jornal Lampião.
A idéia do Lampião era muito rica e pretensiosa, extraordinariamente
inovadora para a época, porque não visava somente permitir aos homossexuais
falarem pela própria voz, mas abrir um espaço para aquilo que a esquerda da época
odiava: as chamadas lutas menores - sexualidade, racismo e ecologia. Os grandes
problemas que nós tivemos, e que agravaram-se até o ponto de destruir o movimento
homossexual, estavam ligados à autonomia dessas questões “menores” frente à
questão da luta de classes... questão fundamental para a esquerda ortodoxa, a
esquerda dos partidos políticos e especialmente do PT que na época já havia
emergido.
Uma tendência do PT acabou engolindo o grupo SOMOS, que tornou-se um
apêndice seu - pelo fato de “ser necessário não quebrar a unidade do movimento
proletário”. Nós morríamos de rir, porque começávamos a fazer uma crítica do
proletariado perguntando quem realmente é o proletário, quem é que está falando em
nome do proletariado, quem são esses advogados de merda, esses professores
universitários de merda que estão falando em nome do proletariado, quem são os
proletários que estão dentro desses partidos. Claro que nós fomos descobrir que
tratava-se da elite do proletariado, o proletariado do ABC, o mais rico da país. Nesse
sentido nós tínhamos uma crítica muito séria. No meio dessa crítica, nós embutimos
a questão da homossexualidade e de todas as questões que eles chamavam de “lutas
menores”.
A “luta maior” era a luta do proletariado que não podia sofrer nenhum tipo de
ruptura... e nós estávamos ameaçando sua unidade. A nossa reflexão era a seguinte:
"- Se você é proletário ou não, sendo preto, você vai ser discriminado. Se você é

246
proletário ou não, pobre ou não, você sendo mulher, você vai ser discriminada. É
verdade que se você for pobre, mulher e preta, você vai ser ainda mais discriminada,
porém existem muitas mulheres burguesas que apanham do marido, ou seja, são
problemas que ultrapassam a questão da classe. Deste modo, a luta de classes não
pode ser uma varinha mágica que explique todas as questões da sociedade e ponto
final". O nosso problema era esse: os problemas da sociedade moderna não se
esgotam na questão da luta de classes. Com essa reflexão nós dizíamos que o
movimento homossexual não tinha que se filiar ao movimento proletário: os
homossexuais são donos da sua própria voz. Os que quisessem poderiam ser de
esquerda, mas o nosso tratava-se de um movimento autônomo.
Uma das maiores discussões que nós tínhamos era essa questão da autonomia
do movimento homossexual, que infelizmente no Brasil até hoje é uma questão não
resolvida. Na Folha de São Paulo foi noticiado há alguns meses atrás um suposto
encontro nacional de homossexuais, o qual aconteceu num local do PT... fiquei
muito constrangido ao ler isso. Não se dizia que era um encontro de homossexuais
petistas, mas um encontro nacional de homossexuais. Uma das conclusões tiradas do
encontro, por esses homossexuais, foi lutar contra a Revisão Constitucional.
Entretanto, lutar contra a Revisão Constitucional é uma posição do PT que não tinha
nada a ver com os homossexuais. Pelo contrário, os homossexuais tinham todo
interesse em trabalhar pela Revisão Constitucional. Enfim, na Constituição aprovada
não se mencionou a questão da discriminação por opção sexual. Você pode
discriminar um homossexual, segundo a atual Constituição, e não sofrer nenhum tipo
de problema legal.
Esses homossexuais estavam lambendo os pés dos petistas, estavam
cooptados pelo partido. Em 1993, viviam o mesmo problema que dez anos antes nós
já estávamos discutindo ferozmente, ou seja, o ponto absolutamente fundamental
para a existência de um movimento homossexual ou, em última análise, do meu
direito de viver o meu desejo homossexual. Dez anos depois, a interferência chega a

247
esse ponto: uma lambeção de bota. Se ainda fosse vivida conscientemente: “- Tudo
bem, eu gosto de lamber bota porque eu sou masoquista”... mas não, trata-se de uma
questão que considero vergonhosa. Fiquei constrangido pelo fato das questões
daquela época ainda não terem sido resolvidas e continuarem mais do que nunca
atuais.
O Lampião entrou pra valer nessa história toda. Nós tivemos muitos problemas.
Acredito que eu era uma ponta-de-lança nessa história, não tenho medo em dizer.
Forcei a barra nesse sentido. Cheguei, por exemplo a fazer artigos com feministas e
assinar juntos. Eu queria que elas compreendessem o meu ponto-de-vista e queria
compreender o delas e nós precisávamos nos aproximar do ponto-de-vista
massacrante da esquerda ortodoxa, com o qual nos confrontamos em 1979, que
representou um momento marcante na história do grupo SOMOS... foi quando houve
o debate no departamento de Ciências Sociais da USP.
Na verdade, o que aconteceu foi que o Centro Acadêmico resolveu abrir pela
primeira vez o debate sobre as tais "minorias" - outro termo que nos fazia rir porque
reduzia as mulheres a uma minoria; apesar da sociedade brasileira estar todinha
perpassada pela negritude, os negros também eram “minoria” - mas isto aqui não
seria o Brasil se não houvesse o samba, todo o gingado negro na cultura brasileira
produzido pela "minoria". Em todo caso, era a palavra usada na época. Havia uma
noite para a discussão com os negros, uma noite para a discussão com as mulheres,
uma noite para a discussão com os índios e uma noite para discussão com os
homossexuais. Lembro que na noite anterior à nossa os negros tinham sido
massacrados, justamente por essa defesa da sua autonomia. O auditório estava lotado
por gente que queria nos massacrar, acabar logo com essas “minorias”. Eu conto isso
no Devassos no Paraíso. Essa noite foi um embate claro e aberto, a “luta menor”
contra a “luta maior”. Davi lutando contra Golias. O debate foi absolutamente
brilhante porque a esquerda viu-se confrontada a partir de um ponto-de-vista de
esquerda.

248
O Lampião pretendia trabalhar nesse contexto, com esses dados.
Ironicamente, já no primeiro número fomos incluídos por um grupo paramilitar, que
estava estourando bombas em bancas de revistas, na lista de jornais subversivos que
não poderiam ser vendidos.
A palavra americana stablishment tem um peso muito específico para definir o
"sistema". A esquerda brasileira raramente usou o termo Sistema. Eu vou usar um
neologismo: "heterossexuália". A "heterossexuália" é uma maldade que faço com o
"sistema heterossexual": a heterossexualidade elevada à condição de exercício de
poder. A heterossexuália teve tanto medo da gente que logo no número zero, o
ministro da justiça, na época o Armando Falcão, instaurou um inquérito contra o
Lampião, por atentado à moral e aos bons costumes através da imprensa, por
veicular matéria atentatória. Era o Estado contra o Lampião.
A matéria escolhida fora feita pelo João Silvério Trevisan sobre o jornalista
Celso Curi. Basicamente era uma matéria que contava como o Celso Curi estava
sendo perseguido pelo sistema judiciário brasileiro por ter criado uma coluna gay no
jornal Última Hora de São Paulo, e quem publicou essa matéria para defender o
Celso Curi também entrou no rolo, então nós sofremos esse inquérito já a partir do
número zero. A punição foi exemplar, veio rápida e não havia diálogo.
Lembro que eu e Darcy Penteado, o querido Darcy Penteado, fomos ouvidos
aqui em São Paulo, por sistema de carta precatória, depois do nosso pessoal no Rio
de Janeiro, pois o inquérito estava correndo lá. Nós fomos intimados a comparecer à
delegacia e fomos interrogados por um delegado que nem sabia qual era a acusação
que pesava contra nós. Ele começou a fazer o interrogatório como se nós fossemos
subversivos, perguntando se eu havia estado em Cuba. Até que alguém veio e
cochichou alguma coisa em seu ouvido. Ele saiu, voltou, pediu desculpas e começou
tudo de novo. Ele não sabia o que fazer, tanto que chegou a perguntar: "- Como é
que eu posso chamar o senhor ?" Então lhe disse: "- O senhor me chame pelo meu
nome".

249
Foi um interrogatório absolutamente ridículo, porque é óbvio que está cheio
de homossexuais na polícia. Eles conheciam travestis, porém nunca tinham visto na
frente deles um cara com terno e gravata ser acusado de homossexual. Eles dão
porrada em travesti, agora fazer um interrogatório de homossexual com advogado do
lado era uma coisa que eles desconheciam. Num outro dia eu e Darcy fomos
fotografados e fichados. Nunca vou esquecer que fui fotografado de frente e de lado,
com uma canga no pescoço. Nessa canga, tinha o número 0240, e eu não creio que o
número 24 tenha sido colocado exatamente por acaso. Esse inquérito nunca deu em
nada. Na verdade, era um inquérito para ver se havia condições de instaurar um
processo contra nós, por atentado à moral e aos bons costumes.
Nós sabíamos onde estávamos mexendo. O início de nossas atividades foi
bastante pesado, tanto que para publicar a primeira foto de homem pelado houve
uma certa inquietação... depois as coisas evoluíram. Havia coisas muito engraçadas.
O Lampião era um jornal vendido nas bancas de norte a sul do país e, para comprá-
lo, a pessoa já tinha que enfrentar a situação de expor a sua homossexualidade, pois
ao comprar aquele jornal ela se identificava como viado. Em nível de consciência
pessoal, isso criava situações políticas muito radicais. Para se ter uma idéia, eu me
lembro da história de um político de esquerda (o qual atualmente é ministro), que
pelo menos de longe sempre procurou acompanhar essas coisas; ele comprava o
Lampião numa livraria e mandava embrulhar, porque não queria sair com o Lampião
debaixo do braço.
O Lampião teve uma vida muito difícil, por causa de problemas financeiros,
mas também começou a ter problemas de divergência interna. Houve várias rupturas,
e no final de sua existência ele começou a apresentar problemas entre a equipe de
São Paulo e a equipe do Rio de Janeiro. Apesar da redação ser no Rio, o combinado
era a equipe do Rio preparar algumas matérias e a equipe de São Paulo preparar
outras. Num primeiro momento, chegou-se a discutir a possibilidade de um número

250
ser feito em São Paulo e o outro no Rio, mas não funcionou por falta de dinheiro.
Mesmo porque as reuniões de pauta acabaram ocorrendo sempre no Rio de Janeiro.
O Aguinaldo Silva tinha seu secretário que, por puro problema financeiro,
tornou-se também secretário do Lampião. E foi mais simples as coisas se arranjarem
assim. Meu ponto-de-vista a respeito da questão homossexual obviamente começou
a se chocar com o do Aguinaldo. Em São Paulo eu era a pessoa mais ativa e no Rio
de Janeiro, indiscutivelmente, era o Aguinaldo. Ele tomou o papel de editor do
jornal. Havia vários editores, mas na prática ele acabou sendo o editor-chefe.
Profissionalmente, mandava e desmandava, já pelo fato de ser jornalista profissional.
Várias vezes mandei matérias de São Paulo que não saíam publicadas. Certa
vez, mandei uma matéria a respeito de comida vegetariana. Eu já não era mais
vegetariano, mas havia sido um tempo nos Estados Unidos e trabalhava muito com
essa questão. Aprendi muitas coisas em nível de absorção de proteínas, combinação,
e até hoje continuo dando muita importância a tudo isso. Resolvi fazer um artigo,
pensando: "Eu acho que as bichas precisam saber um pouco como comer. É um
assunto que qualquer pessoas tem que discutir. Por que não discutir num jornal de
homossexuais!?" É incrível que os nossos pais nunca nos ensinaram a comer.
Sempre comemos porcaria. O que na cabeça deles era comida boa, são coisas
absolutamente discutíveis. Só muito recentemente é que a qualidade da comida, em
função de toda a discussão de uma comida mais natural, veio à tona e começou-se a
discutir o que de fato é comer bem.
Fiz uma introdução bastante irônica à comida vegetariana, muito brincalhona,
até dava receitas, dentro da matéria, mas o artigo não foi publicado... e não houve
explicação. Quando telefonei para perguntar sobre o motivo, alegaram falta de
espaço. Nesse mesmo número do Lampião, onde não havia tido espaço para o meu
artigo, gastaram-se quatro páginas inteiras sobre a Praça Tiradentes no Rio de
Janeiro - mas não havia sobrado espaço para um artigo sobre comida vegetariana.

251
Estavam claras as divergências, não entre mim e Aguinaldo, mas entre Rio de
Janeiro e São Paulo.
A coisa começou a ficar muito difícil principalmente porque nos últimos
números do Lampião a equipe de São Paulo vinha preparando há quase um ano um
dossiê sobre a questão homossexual em Cuba, para mexer justamente num ponto
nevrálgico. A esquerda até hoje não abriu mão da questão de Cuba. Cuba está com
sérios problemas. Fidel Castro é o único ditador latino-americano que sobra. Porém
não se toca nesse assunto: Cuba é sagrada. E nós realmente queríamos cutucar a
onça com vara curta... nesse número que tratava a questão da homossexualidade em
Cuba. Fizemos um sério dossiê, recebendo inclusive material de fora do Brasil. O
Lampião tratava de temas muito sérios, como a relação entre a Igreja e a
homossexualidade, mas esse sobre Cuba foi o mais sério... porque era muito
comprometedor - não porque as bichas fossem de esquerda, na verdade elas não
estavam nem um pouco preocupadas com o que acontecia em Cuba... . e esse foi o
número que menos vendeu. No número seguinte saiu na capa um homem pelado e
esse foi o número que mais vendeu... então fiquei muito preocupado.
Eu já vinha fazendo a crítica do meio homossexual. E isso foi mais uma
evidência de que o meio homossexual, tal como acabou sendo socialmente
constituído, foi feito para consumir sexo e nada mais. Infelizmente, não há espaço
para outra coisa que não seja a putaria. Na época, já desconfiava disso e acabei
confirmando esse fato várias vezes. Acredito piamente que ainda hoje temos os
mesmos problemas daquela época. Em qualquer lugar de pegação, não há a menor
condição de se ter um contato pessoal com alguém... simplesmente conhecer uma
pessoa. O que se conhece é um pinto, uma bunda, um gesto sexualizado e
segmentado, completamente fora do contexto pessoal.
Propus ao Aguinaldo Silva que encerrasse a carreira do Lampião. Fui para o
Rio de Janeiro e fiz uma reunião com as pessoas. Aproveitei que o jornal estava em
má situação financeira, usei esse argumento e fiz de tudo para acabar com a

252
Lampião, antes que ele se tornasse um Notícias Populares de viado... o que para
mim seria a pior coisa do mundo. A idéia do Lampião era outra e assim deveria
permanecer. Quem quisesse fazer outra coisa que fizesse. Tanto que Aguinaldo
tentou criar em seguida uma revista chamada Playguei, mais próxima de suas idéias
voltadas para o comercial. Não funcionou, porque de fato ele precisava ter uma
empresa comercial por detrás. E assim acabou a carreira do Lampião.
Acredito que o aspecto mais triste do Lampião foi não ser ouvido nas
discussões políticas mais importantes que se faziam na época. Nós não pudemos
entrar na conversa, e a nossa discussão tinha elementos da maior importância, tanto
que hoje uma série de temas abordados no Lampião são encontrados em qualquer
jornal do país. Ao propor o final da carreira do Lampião, um dos argumentos que
também usei foi o fato da Folha de São Paulo, na época, estar começando a usar
esquemas do Lampião: criando uma coluna feminista, falando dos negros e de
ecologia. Então eu usei o seguinte argumento: "O sentido do Lampião acabou porque
agora nós vamos ficar chovendo no molhado"... tudo isso foi muito duro. Na verdade
nós fomos cooptados por um jornal como a Folha de São Paulo, mas não com as
nossas características que incluíam uma abordagem escrachada e um estilo
desmunhecado. Aquilo que nós tínhamos a dizer de mais ferino - mas também de
mais inovador porque vinha do ponto-de-vista de um segmento social brasileiro que
nunca tinha sido ouvido - parou no tempo.
Continuo acreditando que a grande responsável por toda essa situação foi a
esquerda brasileira, uma esquerda absolutamente autoritária e centralizadora, uma
esquerda que usa como referencial algo que ela diz odiar: a Igreja Católica. Eu, que
saí de um seminário, sei muito bem como certos valores da instituição eclesiástica
continuam - talvez apenas com novos nomes - dentro da esquerda. Basta pegar os
exegetas que existem na esquerda: eles estudam a verdade marxista, assim como os
exegetas bíblicos. Há os santos: Lula é um homem inatacável, é um santo, assim
como são Lênin, Stalin, Mao Tsé Tung. Não sei muito bem se Deus é o Estado e a

253
classe operária. Ou o Estado é Deus e a classe operária é a Virgem Maria... mas está
tudo muito próximo. Deste modo, somente a máscara é trocada, mas continuamos a
ser vítimas da mesma repressão secular... que vem caindo sobre os homossexuais por
motivos que continuam os mesmos. Essa história de dizer que nós estávamos
rompendo a unidade, seja da classe operária, seja a partidária, não passa de um
disfarce muito mal feito de dogmas católicos. Nesse sentido, eu me rebelei contra a
Igreja e contra os partidos de esquerda - acredito ser absolutamente conseqüente
comigo mesmo -, e me rebelei contra o movimento homossexual no momento em
que percebi sua tendência em criar uma crosta de instituição.
Acredito que o que nós da margem temos a apresentar de novo é a própria
margem. A partir do olhar da margem, surge a nossa colaboração perante a
sociedade e a cultura brasileira. Tenho muito medo quando a margem é cooptada,
porque ela deixa de ter os seus elementos básicos e suas raízes são cortadas. Nesse
sentido, vejo alguma coisa positiva no fato de nós nunca termos conseguido inserir
as nossas questões numa discussão mais ampla. As questões que Lampião, o grupo
SOMOS e o movimento homossexual da década de setenta e começo de oitenta
colocavam, hoje fazem parte da sombra ideológica deste país. As pessoas que estão
mexendo com essas questões, não devem fazê-lo como quem mexe num cadáver
com um bisturi, mas como quem mexe em algo palpitante, que está vivo, apenas
ficou na sombra.
A sombra é o lugar privilegiado para que as coisas escondidas medrem.
Quando falo de sombra, estou usando o conceito Junguiano de esconder tudo aquilo
que é pior dentro de nós ou da sociedade, esconder e impedir que floresça tudo
aquilo que se considera ruim. Isso tudo que faz parte da nossa irracionalidade e da
irracionalidade social, mais cedo ou mais tarde vai se manifestar. Por exemplo, numa
neurose, ou, em outros termos, através de uma doença como a AIDS: nunca se falou
tanto da homossexualidade como hoje. Graças à AIDS, qualquer menininho já sabe
como é que se trepa com um homem. Isso está estampado nas primeiras páginas de

254
grandes jornais do Brasil, de uma maneira que expressa claramente a vingança da
sombra.
Em toda essa história acho que há o lado consolador. Naturalmente, a minha
solidão não é consoladora. Acabei me tornando um exemplo típico dessa sombra. A
minha literatura foi deixada à sombra: sou considerado um escritor de segunda
categoria pela universidade e pela mídia porque minha temática preferencial é a
homossexualidade. Para eles, isso é uma coisa que me desvaloriza. Claro que para
mim não, pois o meu compromisso é com a poesia. Assim como Fellini fala da
lembrança, eu falo da homossexualidade... como qualquer escritor que tem o seu
tema privilegiado. Só que os preconceitos continuam e é muito doloroso. Porque, se
por um lado eu nunca consegui conquistar meu lugar ao sol, por outro eu sou visto
como um mito e o mito existe para ser mantido à distância.

255
. Nasceu em Pelotas, Rio Grande do Sul,
em 24 de outubro de 1927

. Funcionário Público.

. Estudos acadêmicos: Bacharel em Direito


pela Faculdade de Direito da
Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

João Antônio de Souza Mascarenhas.

256
No primeiro contato com João Antônio
Mascarenhas marcamos a entrevista para um
começo de noite. Preocupado com a
pontualidade saí com muita antecedência.
Após enfrentar um trânsito inesperado, cuja
demora gerou uma sensação de contragosto,
pude cumprir com a pontualidade. No
horário preciso fui recepcionado por João
Antônio Mascarenhas. Com gestos gentis,
fui convidado a entrar no apartamento. Ao
fechar a porta, ele deixou toda confusão da
metrópole do lado de fora. Sentia-me como
se saísse do caos para entrar na ordem. Lá
dentro havia um silêncio acolhedor, ideal
para um depoimento. Não houve
interrupções durante a gravação. A narrativa
de João Antônio Mascarenhas preservou
uma segurança bem elaborada. O tom das
palavras era em voz baixa, tranqüila e
reservada. Enquanto falava, os gestos
confirmavam a mesma discrição. Esse estilo
estendeu-se até o final do depoimento.

Rio de Janeiro, RJ,


24 de agosto de 1995.

257
“Na minha vida, tenho umas passagens que são meio engraçadas...
meio diferentes. Uma delas, por exemplo, foi ter entrado no serviço
público por uma agência de empregos. A outra foi ter me assumido
publicamente - pela primeira vez - através da imprensa.”

O meu nome é João Antônio de Souza Mascarenhas. Nasci no dia 24 de


outubro de 1927, em Pelotas no Rio Grande do Sul. Nasci numa cidade média... é a
segunda cidade do Estado. Naquela época, ela devia ter uns cento e cinqüenta à
duzentos mil habitantes. O meu pai era pecuarista e a minha mãe dona de casa. A
minha infância não teve nada de especial... foi muito boa porque os meus pais se
davam muito bem. Eu tinha uma série de tios, tias, primos, avós e tinha até mesmo
uma bisavó. Ela morreu com noventa e quatro anos, ela era muito lúcida até dois
meses antes de morrer... quando ela teve um derrame. Na época de sua morte, eu
tinha quinze anos. Minha bisavó era uma figura muito forte... era realmente uma
matriarca! A família toda possuía uma admiração, um afeto muito grande por ela.
Todos nós vivíamos sobre a influência dela.
Desta forma, acho que a minha infância foi muito boa... muito plena. Por
causa desse ambiente franco familiar... é uma coisa muito complexa! Além do que,
como era numa cidade pequena, quase todos os dias, nós nos víamos lá na minha
bisavó: os meus avós, os meus primos e os tios também. Era uma família muito
grande. Meu pai tinha três irmãos e a minha mãe também tinha três. Todos gaúchos
de Pelotas.
Sou de uma família que pertence a um meio conservador. O meu pai era
pecuarista, assim como foram o meu avô, o meu bisavô, o meu trisavô, o meu
tetravô. Neste sentido, a pecuária era uma tradição da família e eu saí do rumo. Essa
parte rural é sempre a mais conservadora... evidentemente havia muito machismo. O

258
machismo gaúcho é uma característica muito forte, contudo, o machismo existe em
todo o Brasil. Porém, no Rio Grande do Sul, além dele ser forte, ele é cultivado. É
uma característica valorizada em nível de sociedade, em nível de família... incluindo
assim a minha família. Pude senti-lo durante a infância e a adolescência no ambiente
familiar. Isso era algo que me desagradava, pois via a valorização do machismo
como um impedimento... uma pressão contra minha tendência homossexual.
Estudei em Pelotas até os dezoito anos. No nível escolar intermediário, nunca
me esforcei para ser o primeiro. Eu passava por média... apenas gostava de estudar.
Nunca repeti um ano. Só não gostava bastante de matemática, física e química.
Estudava essas três matérias para passar de ano. As outras, entretanto, estudava por
prazer... então, tinha notas boas. Por causa dessas três matérias, a média ficava entre
o regular e o bom... elas nunca me agradaram. Depois fui para Porto Alegre, para a
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lá me formei
em 1950.
Eu me formei em Direito, mas o meu pai era pecuarista. No início é muito
difícil para um advogado novo abrir uma banca... e ganhar a vida com o trabalho
profissional dele. O meu pai não se importava com isso. Considerando o espírito
conservador do meu pai, ele achava que eu devia ficar morando na casa dele, não se
importava de continuar dando uma mesada... enfim eu não teria nenhuma falta.
Porém, isso me desagradava porque não tinha um prazo para começar a ganhar
dinheiro. Meu pai achava que, tendo eu um diploma universitário, era quase uma
diminuição eu empregar-me.
Eu não queria ir para uma estância - como se diz no Rio Grande do Sul -
porque não tinha gosto por aquele tipo de atividade. Então, meu pai achava que seria
uma diminuição, com meu curso universitário, eu me empregar. E eu queria ganhar
dinheiro para me sustentar, não me sentia bem em continuar recebendo mesada.
Resolvi partir para o Rio de Janeiro... a mil e quinhentos quilômetros de distância!

259
Em 1956, vim para o Rio, queria ganhar a vida pelo meu esforço... sem me
valer das amizades do meu pai. Aconteceu um caso meio estranho na minha vida.
Entrei numa agência de empregos. Dou risadas quando digo que entrei no serviço
publico através de uma agência de empregos... isso é raro. Entrei no CAPES, o nome
era imenso: Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
O diretor... na verdade o título dele era secretário-geral, era o doutor Anísio Teixeira.
Ele havia chamado um técnico americano... especialista em educação. Esse fulano
falava português, mas falava mal e escrevia pior ainda. O que Anísio Teixeira fez?
Como ele queria o trabalho desse americano, dirigiu-se a uma agência de empregos
procurando alguém com facilidade em redação e que falasse inglês. Eu havia me
inscrito vinte dias antes e fui chamado. Parece-me que esse americano ficou dois
anos... não sei exatamente quanto tempo, depois ele foi embora e eu permaneci. Foi
assim que eu entrei no serviço público.
Senti uma grande diferença entre o Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro.
Primeiro de ordem econômica, na casa dos meus pais tinha uma vida com todo
conforto, sem qualquer preocupação material. No Rio, eu ganhava um salário
pequeno. Tive que alugar um quarto de apartamento em Copacabana, onde eu era o
único inquilino. De qualquer forma, tinha dinheiro suficiente para alugar o quarto,
alimentar-me, vestir-me, pagar minhas contas... essas coisas todas. Isso foi uma
modificação imensa na minha vida. Antes nunca tive que trabalhar para ganhar
dinheiro... só havia estudado. Entretanto, gostei porque pela primeira vez estava me
mantendo com meu esforço... apesar de ter baixado muitíssimo meu padrão de vida.
No que se refere ao machismo, acho que no Rio antes existia machismo e
ainda continua a existir, mas no Rio não há sua valorização. As pessoas são
machistas, mas não se vangloriam de o ser. Enquanto no Rio Grande do Sul elas se
vangloriam! Porém, no frigir dos ovos, isso não faz muita diferença... são machistas
cá e lá. A diferença é que um assume o machismo e o outro o faz de uma forma
disfarçada.

260
Acontece que também sou de uma família católica. Quando adolescente, fui
muito ambivalente - como as pessoas o são em geral -, tinha atração por homens e
por mulheres. Pelas mulheres achava que era correto, pelos homens achava que era
incorreto... por causa da cultura e do meio em que vivia. Então, quando mantinha um
relacionamento homossexual era atingido por um sentimento de culpa. Neste caso,
em termos estatísticos, tinha mais relacionamentos heterossexuais que
homossexuais. Depois que vim para o Rio continuei assim. Um belo dia resolvi que
era melhor ser exclusivamente homossexual.
Nesta história desenvolvi um raciocínio crítico, talvez meio engraçado aos
outros... mas não a mim. Por exemplo, quando tinha relação com uma mulher,
primeiro ela achava que havia feito uma grande coisa por mim... e, na verdade, ela
tinha tido tanto prazer quanto eu. Se no dia seguinte dissesse a ela: “- Olha! Ontem
eu tive relação com um homem”. Ela ficaria furiosa comigo, dizendo: “- O que é!...
Bicha! Viado!” Enfim, qualquer coisa do gênero, mas sempre no sentido de me
considerar um degenerado. Quando eu tinha relação com um homem e lhe contava:
“- Olha! Ontem eu tive relação com uma mulher”. O homem não fazia nenhum
comentário... ou no máximo perguntava: “- Ah! Que tal? Foi boa a foda?”... e
pronto.
Desagradava-me ver, nas mulheres com quem eu tive relações sexuais, este
sentimento de possessividade, em relação a mim. Não gosto que uma pessoa
pretenda que eu pertenço a ela. E tal reação nunca encontrei em meus parceiros do
gênero masculino. Desde menino... e até hoje, com sessenta e sete anos, nunca
gostei, mais, irrita-me intensamente.
Aborrecia-me a idéia de, para as mulheres, ter de esconder que mantinha
relações sexuais com homens. Por que elas tinham o “direito” de obrigar-me a
fingir?
Achei que era muito estúpido, de minha parte, admitir que uma criatura
qualquer me impusesse um determinado comportamento na cama. Detestava,

261
também, a perspectiva de eventuais “descobertas” virem a provocar discussões, por
causa da minha ambivalência.
Pareceu-me que urgia tomar uma decisão. Matutei sobre o ponto e verifiquei
que podia continuar a ser bissexual ou, então, optar pela homossexualidade
exclusiva. O que não poderia era cingir-me a uma atitude exclusivamente
heterossexual, sem me sentir frustrado.
Ora, se tinha de decidir-me, de tomar uma única via, preferi a homossexual,
apesar de saber que era a mais difícil, pelos ônus disso decorrentes. Evidentemente,
teria de enfrentar os preconceitos da sociedade.
Isso foi há uns quarenta anos. Apesar dos percalços, nunca me arrependi da
resolução tomada.
Eu tomei essa resolução entre 1956 e 1957, mais ou menos com vinte e nove
ou trinta anos. Nesse período, vivia meu pequeno mundo individual... levava a
minha vida. Meu cotidiano era acordar cedo, tomar banho, tomar café, tomar o
ônibus, ir para o serviço, trabalhava, trabalhava, trabalhava, tomava o ônibus,
voltava para casa, tomava banho e, de vez em quando, freqüentava o cinema, dava
uma volta, tinha algum relacionamento homossexual... era isso!. Sempre separei a
parte afetiva da parte sexual. Isso sempre facilitou os relacionamentos. Tanto quando
tinha relações com mulheres e homens, quanto quando passei a ter relações
exclusivamente com homens. Nunca quis ficar preso afetivamente a alguém. Sempre
dei muito apreço a liberdade... sentia que eu não era de ninguém, assim como não me
interessava em ter alguém.
No Rio, era possível levar uma vida de liberdade. Eu, apesar de ter aceitado
minha homossexualidade, não tive, de chofre, a coragem de assumi-la publicamente.
Por prudência, escolhi o processo de soft opening. Já não mais mentia, não procurava
passar pelo que não era, mas esforçava-me para não me mostrar aos “da outra
banda”, sempre que possível. Entre a faca e a parede, abria o jogo, mas empenhava-
me em evitar a necessidade de uma definição.

262
A situação faca/parede aconteceu poucas vezes, pois, há, no Brasil um modo
de viver muito hipócrita: a filosofia do “você-faz-que-se-esconde-e-eu-faço-que-
não-vejo”. Isso, pessoalmente, àquela época, favoreceu-me, pois sou - ou penso ser -
do tipo “homossexual discreto”.
Cabe notar que, no meu entender, a referida hipocrisia é o fator que mais
prejudica o movimento de defesa dos direitos dos homossexuais, pois mascara a
realidade. Oprimido e opressor concordam tacitamente em participar de um jogo de
esconde-esconde. Obviamente, quem perde é o oprimido, o qual, por medo, é até
capaz de agradecer ao opressor. Lamentável, mas...
No que se refere à prostituição masculina, pontos de encontro, não observo
nenhuma diferença entre os anos cinqüenta, sessenta e a contemporaneidade. Havia
boates gays, bailes gays... havia pessoas que davam festinhas. Nunca fui a festinhas
porque não é do meu temperamento, mas era muito comum. No Brasil, noto uma
única diferença em relação aos homossexuais - superficial, mas importante -, não
pelo o que ela é atualmente, mas pelo que foi e ainda está se semeando: o tratamento
do tema nos meios de comunicação social e nos meios intelectualizados. A diferença
está nesse nível, aparecem assuntos nos jornais que seriam inconcebíveis naquele
tempo. A mídia... como gostam de dizer hoje em dia, e os intelectuais -
macaqueando os americanos -, acreditam ser de bom tom não ter preconceito. Antes
não havia essa reserva, as pessoas podiam ter preconceito abertamente... até
descaradamente! Ele era aceito com a maior naturalidade, às vezes era considerado
como uma atitude elogiável. Porém, no que se refere à massa... não observo qualquer
diferença!
Quando digo “a massa”, não estou falando no sentido político... na questão do
operário, mas, sim, da maioria da população, em geral. A situação continua igual,
somente uma partezinha da sociedade... esse pessoal dos meios de comunicação
social, os intelectuais e alguns políticos - em geral pessoas de classe média - esses
mudaram... mas isso não é muito. Naquela época, não havia nenhuma possibilidade

263
de trabalhar com a homossexualidade no Brasil. Isso era uma coisa que nem me
passava pela cabeça. No Brasil de quarenta anos atrás não havia clima para um
jornal como o Lampião... hoje em dia há para publicações como o Ent&, Nós Por
Exemplo, Sui Generis... isso era inconcebível!!
Certamente a homossexualidade já era uma preocupação de todos os
homossexuais, mesmo dos que dizem não estar preocupados com ela... os que dizem
isso mentem! Não é possível deixar de se preocupar. Trata-se de um debate básico
sobre a situação do indivíduo no país. O fato é que com o passar do tempo,
lentamente comecei a despertar... a prestar atenção no tal sistema do “Eu-faço-que-
me-escondo-e-você-faz-que-não-me-vê”. Esta situação vinha me aborrecendo.
Percebia que aquilo dava aos outros uma oportunidade de chantagem. Não uma
chantagem explícita, mas implícita. Fosse no ambiente de trabalho, familiar, entre
amigos, enfim, em qualquer lugar. Havia a possibilidade de alguém dizer: “- Olha
que eu sei! Olha que eu conto!” Ninguém dizia isso expressamente, mas essa questão
ficava no ar.
Eu ficava pensando: “- Mas como um sujeito, como eu, que trabalha, que é
honesto, que cumpre seus deveres sociais como cidadão, que nunca infringiu
nenhum dispositivo do Código Penal, pode merecer o desprezo e sofrer
discriminação dos demais (aí incluídos os socialmente nocivos) pelo simples fato de
ir para a cama com outro do mesmo gênero, maior de idade, sem violência, para
mútuo prazer?”
Depois de raciocinar muito sobre a questão, achei que era hora de revoltar-
me, negar-me a aceitar a categoria de indivíduo de segunda classe, pois, no meu
entender, não havia motivo para tal.
Ainda não sabia, naquele momento, como agir, mas estava certo de que eu
precisava fazer algo contra o estado de coisas. Omitir-me seria uma capitulação.
Como diz o ditado: “Não está morto quem peleja”.

264
Em 1972, fui passar férias em Porto Alegre. Os meus pais moravam lá e
costumava visitá-los. Eu continuava tendo alguns amigos em Porto Alegre e quando
ia à cidade também os visitava. Um deles tinha morado alguns anos na Inglaterra.
Neste período, em que estive lá, ele tinha recebido de um amigo dele, um inglês,
duas publicações: um jornal que se chamava Gay Sunshine, era americano de San
Francisco na Califórnia; e um outro jornal inglês, não lembro se chamava Gay News
ou Out... não lembro exatamente do nome. O jornal inglês era semanal ou quinzenal,
enquanto o americano aparecia de três em três meses. Devido à periodicidade, o Gay
Sunshine era completamente diferente. Ele era constituído por artigos, alguns deles
muito interessantes, assim como por grandes entrevistas... algumas eram “grandes”
no sentido de serem excelentes, outras eram pura e simplesmente extensas. Havia
entrevistas, por exemplo, com Gore Vidal, o Tenessee Williams... está me fugindo o
nome do inglês que escreveu A Single Man... esse filme Cabaret foi baseado no seu
livro. Ele morava nos Estados Unidos... Christopher Isherwood.
Por volta de 1972 ou 1973, voltei ao Rio e passei a assinar esse jornal. Ele
trazia uma seção sobre livros. Comecei a encomendar livros dos Estados Unidos. Até
então, nunca tinha visto livros tratando de forma séria a questão da
homossexualidade. No Brasil só havia livros extremamente machistas, referindo-se
como doença ou vício... Não havia ensaios antropológicos, sociológicos, históricos
ou coisas do gênero. No mais eram contos ou romances, onde apareciam situações de
homossexuais... vistos de maneira extremamente favorável. Porém. era uma
subliteratura. Na verdade, nem sei se li dois livros ou até mesmo um livro desse
gênero... porque é uma coisa que nunca me agradou. Não só pelo ponto de vista
intelectual, mas porque não me excitava e não me excita até hoje. Não tenho nada de
voyeur, nem me agrada a pornografia... isso não me excita de forma nenhuma.
Os livros sérios eram sempre muito moralistas. No Brasil, somente de uns
quinze ou vinte anos para cá... especialmente nos últimos dez anos, começou-se a se
escrever mais sobre a homossexualidade. Inclusive mais homossexuais começam a

265
escrever sobre a homossexualidade. Naquela época, especialmente os homossexuais
não se atreviam, pois não queriam aparecer de peito aberto. O Mário de Andrade,
por exemplo, era homossexual... todo mundo sabe disso, mas ele nunca levantou
nenhuma bandeira... muito pelo contrário! O Manuel Bandeira também... e agora
muito recentemente sabe-se que o Pedro Nava também era. Porém, não havia clima
para essas pessoas naquela época. Na universidade, de uns dez, vinte anos para cá, é
muito grande o número de teses, cujo núcleo se concentra no tema
homossexualidade.
Quando comecei a ler o jornal Gay Sunshine e conheci os principais jornais
gays ingleses... passei a ler tudo o que podia sobre o tema. Assim, tomei
conhecimento do movimento existente nesses países, do Gay Liberation, de
Stonewall. Li um livro muito importante que se chamava Homosexual, Opression
and Liberation... era a tese de Dennis Altman, professor da Universidade de Sydney,
na Austrália. A partir de então, fiquei interessado no movimento homossexual, nos
fundamentos que nunca tinha racionalizado antes... e fiquei a sonhar com o
aparecimento do movimento no Brasil. Aquela época quase ninguém, no Brasil,
falava, ou escrevia, sobre o assunto. As pessoas não sabiam nada do movimento, não
sabiam nada de Stonewall... nem o antes e nem o depois. Estou falando tanto de
Stonewall... até parece que acho este fato um grande acontecimento! Porém, sou do
grupo que não supervaloriza Stonewall. Para mim foi um episódio.
Porém, aquilo ficou ruminando na minha cabeça. Minha mãe costumava dizer
que eu era teimoso... gosto de dizer que sou tenaz! Realmente, quando algo entra na
minha cabeça é difícil sair... pelo menos tento conseguir colocar a idéia em prática.
Então, recebia os jornais, recebia as revistas, recebia os livros, mas fui vivendo
assim como uma Avis Rara... não estava dando a menor importância a isso.
Lamentava, contudo, que meu interesse sobre o tema não fosse compartilhado por
meus compatriotas homossexuais.

266
Um belo dia, acho que em 1976 ou até mesmo antes... em 1974, recebi uma
carta do diretor do jornal Gay Sunshine, em plena ditadura militar... o nome dele é
Winston Leyland. Ele perguntava se eu poderia escrever um artigo sobre a situação
dos homossexuais no Brasil. Ele sabia que havia uma ditadura militar, disse que meu
nome não apareceria... assim eu escreveria em inglês, ele corrigiria os erros e
publicaria. Eu disse: “- Tanto faz aparecer ou não o meu nome! O artigo é para os
Estados Unidos!” Então escrevi o artigo e foi publicado. Depois vim a saber de um
fato ilustrativo... eu era o único assinante do jornal em toda a América Latina!
Em 1976, recebi uma segunda carta deste Winston Leyland... ainda como
dono do mesmo jornal. Ele dizia ter apresentado um projeto a National Endownment
for the Arts, para uma antologia de artistas plásticos e escritores gays brasileiros, e
que esse projeto tinha sido aprovado. Isso significava que ele receberia uma pequena
ajuda financeira... Esse National Endowment for the Arts é um órgão, um instituto
criado pelo Congresso Americano - Senado e Câmara Federal de deputados dos
Estados Unidos -, que dá prêmios a projetos aprovados em todos os campos das
artes: teatro, cinema, música, literatura e assim por diante. Ele dá pequenos prêmios
que ajudam financeiramente e dão certo prestígio às iniciativas selecionadas.
Winston Leyland dizia ter recebido esse prêmio... e que gostaria muito de vir
ao Brasil, mas não podia porque os hotéis eram muito caros e o prêmio era pequeno.
Naquela época, eu morava em Copacabana, mas tinha um pequeno apartamento em
Ipanema... o qual mantenho até hoje. Esse apartamento era uma garçonnière...
naquele tempo se usava esta palavra que agora está fora de moda. Era um lugar onde
levava alguém que não queria levar na casa onde morava... era muito prático. O local
era mobiliado com muita simplicidade, localizado num bom prédio. Neste caso,
pensei: “- Bom! Esse sujeito pode contribuir para a eclosão de um movimento
semelhante aqui no Brasil. Se tenho vontade que isso aconteça, ele, talvez, venha
ajudar a concretização da minha idéia!”

267
Outro ponto de reflexão era o seguinte: “- O trabalho que esse sujeito fará nos
Estados Unidos será necessariamente péssimo. Se ele fosse fazer uma antologia de
artistas plásticos e escritores brasileiros, sem se ater aos homossexuais, já
encontraria muitas dificuldades, pois essas áreas são mal conhecidas lá. Nos Estados
Unidos há poucas traduções da literatura brasileira”. ... ainda mais há vinte anos
atrás. Então pensei: “- Esse livro vai ser uma porcaria total! Uma coisa horrorosa! Eu
podia dar uma contribuição, convidando Winston Leyland para ficar na minha
garçonnière”.
Na época, minha mãe já estava vindo para o Rio de Janeiro... ela passava os
invernos comigo. O meu apartamento era em Copacabana, no posto 6, assim não
haveria lugar para ele ficar lá. O apartamento era pequeno, tinha só dois quartos.
Portanto, não poderia hospedá-lo. Além do que, minha mãe não se sentiria bem com
um estranho. Ela não falava inglês e ele não falava uma única palavra em português.
Escrevi a ele dizendo que minha garçonnière estava à disposição para ele se
hospedar... e que podia fazer as refeições com a minha mãe e comigo em
Copacabana, pois ficava próximo. E ele aceitou.
Ele avisou que viria dentro de dois ou três meses. Nesse meio tempo eu
agendaria tudo. Então, pensei: “- Agora, tenho que saber quem são os escritores gays
brasileiros?” Nunca tinha me preocupado com isso, pois gosto de ler bons
escritores... não importa se são homossexuais ou heterossexuais! No Brasil não
lembrava de ninguém, mas comecei a pesquisar... e entrei em contato com uma série
de pessoas. Uma vez fui a São Paulo e conheci o Darcy Penteado. Havia lido uma
tese do Peter Fry. Conhecia rapidamente um crítico de arte... na época trabalhava no
Correio da Manhã, Francisco Bittencourt... ele também fez jornalismo junto ao
Jornal do Brasil... parece que era gaúcho. Conhecia, muito superficialmente, o
Aguinaldo Silva. Através deles foram aparecendo outros e fui entrando em contato
com eles.

268
Comecei a entrar em contato com jornalistas, coisa que não tinha até então...
isso já deve ter sido por volta de 1977. O trunfo que tinha... a deixa, era o fato de
Winston Leyland ter recebido esse prêmio da National Endownment for the Arts.
Enterrando, eu fazia uma pequena escamoteação... dizia que ele havia recebido o
prêmio do governo dos Estados Unidos... o que não é uma mentira! Realmente, a
National Endownment for the Arts é um órgão do Congresso dos Estados Unidos,
sendo que o Congresso é o legislativo federal dos Estados Unidos, logo é parte do
governo. Porém, quando se diz: “- Do governo...!!!”, logo se pensa no governo
federal ou no executivo federal.
Nesta época o presidente era o Nixon. Havia uma onda moralista, como em
toda as ditaduras. Não podia haver revista pornográfica... isso não aparecia! Para
conseguir uma, era só por debaixo do pano. As bancas não podiam vender de
maneira nenhuma, muito menos expor. Nem vedando as imagens com papel
celofane ou sem celofane, com plástico ou sem plástico... não adiantava! Então, o
fato de o governo dos Estados Unidos, a metrópole, subvencionar uma antologia de
artistas plásticos e escritores gays latino-americanos era um escândalo, algo inaudito.
Os jornalistas, evidentemente, deliciaram-se com a notícia. Nixon financiando
um livro de temática gay...
Consegui, assim, sem dificuldades, uma série de artigos e notas em muitos
jornais do Brasil. Não só do Rio e de São Paulo, mas também de lugares como
Fortaleza, Recife, Natal, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte e outras cidades
onde Winston nunca pôs os pés.
Vale notar que a única publicação que, ao saber que o Winston Leyland era
ativista gay, negou-se a entrevistá-lo foi o Jornal de Letras, à época - creio - o único
periódico literário do Rio.
Afinal, já bem preparado o terreno, Leyland chegou ao Brasil.
Na minha vida, tenho umas passagens que são meio engraçadas... meio
diferentes. Uma delas, por exemplo, foi ter entrado no serviço público por uma

269
agência de empregos. A outra foi ter me assumido publicamente - pela primeira vez -
através da imprensa.
Quando o Winston chegou, eu já tinha conseguido uma série de entrevistas.
Nessa época, essa minha garçonnière não tinha telefone. Era muito difícil conseguir
telefone... também nem havia muita necessidade! Como o Winston não falava
português, eu servia de intérprete. E como os jornalistas queriam um ponto de
referência, dei o meu telefone. Neste período, minha mãe estava hospedada comigo
para passar uma temporada. Assim, a primeira notícia em jornal que apareceu
publicamente, foi que o Winston estava hospedado comigo e deram o número do
telefone. Houve uma primeira página no suplemento literário do JB, outra no
Segundo Caderno do Globo e em muitos outros jornais. Houve uma entrevista de
quatro ou cinco páginas no Pasquim... no período era um jornal alternativo muito
vendido. Como pessoa o Winston não tem nada de especial. Ele não é
particularmente dinâmico. É... uma pessoa comum intelectualmente!
Também estabeleci contato com vários escritores. Como conhecia Gasparino
Damata, procurei ter mais contato com ele. Os outros foram aparecendo através
deles ou, ao ver meu nome no jornal, telefonavam, dizendo estar interessados em
participar desta antologia. O contato pessoal com alguns desses escritores e
jornalistas, fez-me pensar: “- Bom! Se o Winston conseguiu fazer um jornal destes
nos Estados Unidos, onde há tanta concorrência... Se ele pode desenvolver esse
trabalho há tantos anos, nós aqui poderíamos fazer algo igual ou melhor!?”
Havia uma boa revista, mas heterossexual... chamava-se Senhor. Essa revista
me chamou a atenção, pois ela publicou uma entrevista com o Darcy Penteado... um
ou dois anos antes. Nela o Darcy falava abertamente sobre a homossexualidade dele.
Naquela época, isso era um escândalo! Pensei em nos dirigimos à revista Senhor. Ir
consultar a possibilidade deles publicarem uma seção, onde nós trataríamos de
homossexualidade de uma forma séria, ainda desconhecida no Brasil... nunca eu
tinha visto nada publicado assim, muito menos num periódico!

270
Assim, fiz esta proposta a um grupo formado pelo Darcy Penteado, Gasparino
Damata, Francisco Bittencourt, Aguinaldo Silva, Clóvis Marques e Adão Acosta -
este último era jornalista da Última Hora. Alguns entraram depois, como João
Silvério Trevisan, Antônio Chrysóstomo, Peter Fry e teve um sujeito de São Paulo
que foi indicado... um belga: Jean Claude Bernardet!
Desta forma, refletiu-se muito sobre a idéia. Na mesma ocasião, parece-me
que o Aguinaldo Silva disse o seguinte: “- Mas... por que nós não fazemos um
jornal?” Eu disse: “- Não! Um jornal é uma coisa muito cara!” Eu imaginava que o
jornal tinha de ter o prédio, a impressora e outras coisas. Ele disse: “- Não! Não é
necessário”. Na época, ele era copy-desk de O Globo. Além disso, começaram a
circular alguns jornais alternativos. Havia um periódico, mensal, que se chamava O
Beijo... surgiu pouco antes do Lampião. O Aguinaldo disse: “- Tem esse jornal O
Beijo que foi...” e falou sobre a quantidade de capital necessário... não me lembro
qual era o valor, mas era uma quantia mínima. Depois, acho que era levado ao
Jornal do Comércio para ser impresso. Então eu disse: “- Ah! Bom, sendo deste
modo... está ótimo”. Assim, nasceu a idéia do Lampião.
O período da “abertura” teve importância... resolvemos tentar porque o Geisel
decidiu fazer a tal “abertura lenta, gradual e segura”, porém não sabíamos no que
aquilo poderia dar. Nós tentaríamos, não sabíamos se eles iriam abafar ou nos
prender... o fato é que tínhamos de tentar. Então, a “abertura” ajudava. Não haveria
clima se não fosse isso. Mesmo assim fomos processados por ofensa à moral e aos
bons costumes. De uma maneira genérica, eles processaram todo o corpo editorial do
Lampião. Éramos onze, acho que disse o nome de todos: Darcy Penteado, Peter Fry,
Jean Claude Bernardet - que nunca escreveu nada no jornal e era muito enrustido, ele
dizia à época que tinha uma filha com ódio a bichas -, Antônio Chrysóstomo,
Aguinaldo Silva, João Silvério Trevisan, Francisco Bittencourt, Gasparino Damata,
Adão Acosta, e Clóvis Marques - acho que este último ainda é jornalista do Jornal
do Brasil.

271
No que se refere ao movimento homossexual, houve o seguinte... quem tinha
vontade daquele movimento era eu... quem estava a par do movimento era eu. O
João Silvério Trevisan era o único que tinha alguma noção além de mim. Ele havia
morado nos Estados Unidos. O Trevisan possuía a idéia do Gay Liberation... que é
uma atitude filosófica de contestação plena, completa e radical. Algo um pouco
diferente da minha posição... nunca fui do Gay Liberation. Nesse meio tempo, já
conhecia bem o Gay Liberation porque estava com uma bibliotecazinha sobre o
assunto. Os outros nunca tinham ouvido falar em movimento, nem o Aguinaldo... o
Darcy também não.
No núcleo fundador do Lampião, havia uma parte que era de São Paulo: o
Darcy, o Jean Claude Bernardet, o João Silvério Trevisan - eles moravam em São
Paulo - e o Peter Fry - era professor em Campinas na época; e havia outra parte que
era do Rio: o Francisco Bittencourt, o Aguinaldo Silva, o Gasparino Damata, o
Clóvis Marques, o Adão Acosta, o Antônio Chrysóstomo e eu. Ficou marcado que a
cada mês haveria uma reunião numa das cidades, uma vez no Rio e a outra em São
Paulo... para discutir a pauta do próximo número. Isso foi feito só no primeiro
número.
O Aguinaldo Silva ficou encarregado da direção, mas ele nunca tinha ouvido
falar nada do movimento. O Aguinaldo sempre assumiu a homossexualidade dele.
Quando ele chegou aqui ao Rio... ele até se maquiava, saía lá pela Cinelândia, mas
provavelmente com o objetivo de encontrar um parceiro... não havia compromisso
com a questão de ordem social. E o Aguinaldo tomou o jornal. Não há dúvida
nenhuma que o Aguinaldo é um homem muito trabalhador, mas o que tinha sido
proposto deixou de ser. Ele ficou com a direção do jornal, com as assinaturas, com a
distribuição, com a pauta... dou risadas quando questiono o que sobrou!! Ele se
preocupava muito com a questão de travestismo... gostava do assunto! Não sei até se
ele foi travesti... isso não sei! Cansei de vê-lo se pintar, andar com travestis, mas
nunca o vi vestido de mulher.

272
Desde o início, já vi que o jornal nunca seria um órgão do movimento... por
causa do papel predominante do Aguinaldo. Ele não sabia nada sobre o assunto, nem
se importava com isso. Mesmo assim, achei que devia prestigiar o Lampião, pois
parecia-me que era melhor ter este jornal do que não ter nada. Como tive interesse na
vinda do Winston para cá - justamente com essa esperança - pelo menos algo tinha
se realizado. Imaginava que o Lampião poderia agir como um catalisador.... o que
acabou acontecendo! Os grupos começaram a surgir.
Havia um grupo que surgiu pouco antes do aparecimento do Lampião: o
SOMOS de São Paulo. João Silvério Trevisan e Edward MacRae pertenceram a esse
grupo. O Edward é filho de escoceses, ou filho de escocês... não sei se a mãe era
brasileira. Ele se educou na Escócia... ou na Inglaterra, então já pelo domínio da
língua ele estava a par do movimento homossexual. Esse grupo SOMOS não tinha
nada a ver com o jornal. Ele participava muito nessa filosofia do Gay Liberation...
em grande parte, suponho ter sido influência do Trevisan.
O jornal Lampião ajudou na criação de vários grupos. Alguns deles tiveram
existência muito efêmera... mas ele ajudou! Pela primeira vez, apareceu um órgão de
imprensa periódica... aparecia todos os meses e era realmente periódico. Havia
pessoas que sabiam escrever, não eram debilóides, não estavam escrevendo
pornografia... tratavam os assuntos com seriedade. Porém, sob a orientação do
Aguinaldo, o jornal cada vez mais se afastava da minha idéia. Então, achei melhor
dar minha cota ao Francisco Bittencourt. Pensei comigo: “- Bom! Não vou combater
o jornal de maneira nenhuma! De qualquer forma, acho que ele é mais do que nada...
mas vou me retirar”. Assim, saí do jornal.
O Lampião ajudou, especialmente, a haver o despertar... demonstrar a muita
gente que os homossexuais podiam fazer alguma coisa. Eles também poderiam atuar
num outro campo, visto o que o grupo do Lampião estava fazendo... então, acho que
foi isso: auxiliou. Porém, depois os grupos brigaram com o Aguinaldo. Nem me
lembro direito porque foi, mas... em linhas muito gerais, era porque queriam que o

273
Lampião desse apoio numa forma e num grau que o Aguinaldo não estava disposto E
o jornal era o Aguinaldo. Como já disse, ele nunca deu importância ao movimento
como uma questão de ordem social. Nunca conversei com ele a esse respeito... assim
não sei dizer precisamente, mas tenho a impressão que para ele era mais importante a
afirmação individual. É um pensamento radicalmente contrário ao meu... acho que o
estamento social é mais importante!
Após minha saída o jornal continuou a existir... de 1978 até 1981. Foi
justamente com a “abertura” que jornais contestatórios, como o Pasquim e o
Lampião, passaram a ser ultrapassados. Houve mais liberdade... o que era publicado
pelos alternativos significava metade do que os outros diziam. Apareceram também
as revistas com nus e com outras questões mais abertas. Então, aquele tipo de
imprensa já não tinha mais razão de ser... o Lampião perdeu a função!! Tanto que
teve de fechar. Além do que, o Aguinaldo vivia brigando... não sei se o Trevisan fala
a esse respeito? Inclusive uma das pessoas com quem ele brigou foi o Trevisan...
parece até que foi com quem ele mais brigou! Depois, o Aguinaldo criou uma
revista... escancaradamente dele. Parece-me que esta revista durou dois ou três
números e teve de fechar.
Certa vez, fui a um congresso... acho que era na Casa do Estudante
Universitário - CEU -, lá no morro da Viúva, e vi uma sujeito do qual gostei. Ele me
impressionou. Achei-o uma pessoa séria: Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia. Entrei
em contato e passei a trabalhar com ele. Porém, eu atuava no Rio de Janeiro e ele em
Salvador. Eu fazendo pesquisas e escrevendo cartas para ele, dando palpites sobre
orientação... essas coisas todas. Quando foi em 1985, aproximava-se a questão da
Constituinte, assim achei melhor me desligar do Grupo Gay da Bahia... no sentido de
criar um grupo aqui no Rio. Foi assim que nasceu o Triângulo Rosa.
O nome foi escolhido com base num fato histórico, o qual muita gente não
conhece. Os nazistas prendiam, encarceravam e punham em campos de
concentração todos aqueles que eles sabiam, ou desconfiavam, ser homossexuais.

274
Nos campos de concentração nazistas, todos tinham que usar um distintivo: os
judeus tinham que usar uma estrela de Davi (uma estrela amarela de seis pontas); os
homossexuais tinham que usar um triângulo rosa equilátero... com a ponta apontada
para baixo. Provavelmente foram mortos uns trezentos mil homossexuais. Eles eram
encarcerados e a maioria morreu. Então, em homenagem a todos os que morreram,
foi escolhido este nome: Triângulo Rosa. Os homossexuais tinham que usar este
distintivo porque eram obrigados... aquilo era um rótulo. Dentro dos campos de
concentração, eles também eram desdenhados pelos próprios presos que estavam lá:
judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, políticos. Os homossexuais eram
considerados a categoria mais baixa por todos presos. Assim, escolhemos o nome em
homenagem a estes homossexuais que tinham de usar aquele rótulo. Com isso,
queremos dizer que nos orgulhamos daquele símbolo e pretendemos assim
homenageá-los. Foi essa a razão do nome Triângulo Rosa.
Antes do governo de Hitler - antes de 1933 - havia o artigo 175 do código
penal alemão, o qual punia a homossexualidade... não somente a prática
homossexual, mas a homossexualidade em geral. Esse artigo prevaleceu durante o
período de Hitler. Quando terminou a guerra, ele continuou em vigência... assim, os
homossexuais foram os únicos que não receberam compensação pelos prejuízos de
guerra. Na Alemanha daquela época, assim como há pouco tempo na Alemanha
Ocidental, os homossexuais não podiam se apresentar como tal... não só porque
havia o preconceito, mas principalmente porque era crime. Caso fossem reivindicar
alguma coisa, eles sairiam de um campo de concentração e iriam para uma prisão.
Não se sabe a quantidade exata dos que morreram... a estimativa fica em torno de
sessenta mil a trezentos mil. Não se sabe por duas razões: primeiro porque quando se
aproximava o fim da guerra... e a derrota estava certa, os nazistas queimaram muitos
arquivos.
Pode-se questionar essa disparidade de estimativas. Como os judeus sabem
que o holocausto gerou seis milhões de vítimas!? É porque houve judeus, como o

275
Simon Weisensthal, que passaram a se orgulhar de ser judeus... a não ter vergonha
nenhuma! E com o apoio dos governos da Alemanha, especialmente dos Estados
Unidos e da Inglaterra, foi possível levantar este número. Os homossexuais não
tiveram apoio, como os judeus, para resgatar esse período histórico.
O Triângulo Rosa era um grupo muito característico... diferente dos demais!
Nós sempre nos preocupamos com a questão da legislação... vamos dizer assim, com
a parte pensante do Brasil. No caso, seria com aqueles que poderiam ter influência:
intelectuais, meios de comunicação social e legisladores. Nossa principal bandeira
era conseguir fazer uma constituição que proibisse a discriminação por orientação
sexual... no mesmo item que aparecesse a proibição de discriminação por raça, cor,
religião. Entretanto, esta não era a única preocupação... mas a que considerávamos
principal. O que seria um fato único... talvez pela a primeira vez no mundo.
Atualmente, isso já existe em certas províncias do Canadá. Então, fizemos este
trabalho.
Em 1987, pela primeira vez - até agora a única! -, o Triângulo Rosa conseguiu
ir à Câmara Federal... ao Congresso Nacional Constituinte. Lá, fiz exposição a duas
subcomissões... parece que isso foi em abril. O assunto foi levado a plenário e
fomos derrotados... a última votação na Assembléia Nacional Constituinte foi em
fevereiro de 1988. Fui à Brasília... nunca um ativista gay tinha entrado no Congresso
Nacional como tal. Muito menos para fazer uma exposição e ser sabatinado pelos
parlamentares... isso foi um escândalo!
A imprensa noticiou muito, alguns jornais meio em tom de troça, outros
apoiaram, outros descreveram o fato objetivamente, mas houve uma grande
cobertura... inclusive apareci na parte dedicada à Constituinte do Jornal Nacional da
Rede Globo. Depois, uma das questões emergentes era eu aparecer como pessoa
publica no escândalo que foi causado. Hoje em dia não causa escândalo fazer isso.
Houve a votação no início de 1988, acho que foi janeiro ou fevereiro... fomos
derrotados. Nos fins de fevereiro e princípios de março de 1988, saiu o primeiro

276
projeto da Constituição Federal. Por essa época, eu me afastei do grupo Triângulo
Rosa. Depois retomei quando se aproximava a Revisão Constitucional. Porém, dizia
que voltaria até terminar a Revisão... qualquer que fosse o resultado. Na Revisão,
também fomos derrotados. Desta vez não houve esse sucesso de escândalo... Com
este nosso trabalho, não conseguimos ser contemplados na Constituição Federal, mas
conseguimos em duas Constituições estaduais: a de Sergipe e a de Mato Grosso; e
em 27 leis orgânicas municipais... inclusive do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador.
Quando eu me afastei, em fins de fevereiro, princípios de março de 1988, fiz
o seguinte: deixei para o grupo a parte dos arquivos que era mais do Triângulo Rosa;
a outra parte que era mais do meu arquivo pessoal - fiquei com medo de ser perdida,
grande parte da correspondência era de minha iniciativa -, então resolvi mandar para
o Arquivo Edgard Leunroth, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da
UNICAMP... aquele acervo que está em Campinas pertencia a meu arquivo pessoal.
O Triângulo Rosa, como em toda a entidade sem fins lucrativos, depende
muito do presidente, do secretário... de duas ou três pessoas, às vezes até de uma
pessoa com uma influência muito grande. É algo lamentável, mas isso é assim...
tanto num grupo de ativistas gays, como num de apicultores, de filatelistas ou de
qualquer coisa assim.
Pode-se questionar o por quê em escolher a UNICAMP, sendo que eu
trabalhava no Rio!? Fiz isso porque o SOMOS, grupo que se dissolveu muitos anos
antes, doou seu arquivo para a UNICAMP. E depois uma dissidência dos SOMOS...
um grupo pequeno chamado Outra Coisa, também tomou a mesma atitude. A
UNICAMP sempre teve uma mentalidade mais aberta, tanto que o Peter Fry durante
muitos anos foi professor lá, o Luiz Mott também... e aquele rapaz argentino que
morreu de AIDS há pouco tempo?... Néstor Perlongher. É bom para o historiador,
para o pesquisador social, poder consultar esse material todo no mesmo local... foi
por isso que mandei meu acervo pessoal para a UNICAMP.

277
. Nasceu na Inglaterra,
em outubro de 1941.

. Professor de Antropologia no Instituto de


Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ.

. Estudos Acadêmicos: Phd pela


Universidade de Londres

. Autor, entre outros: Para Inglês Ver.,


1982; O que é homossexualidade (com
Edward MacRae); 1983.

Peter Fry.

278
Desde o primeiro contato com Peter Fry,
o professor demonstrou uma gentil
disposição em colaborar, a única reserva era
acerca da dificuldade em recordar alguns
fatos. Após dois encontros sem sucesso para
a entrevista, por conta de uma vida
acadêmica absolutamente preenchida como
docente, consegui fazer a gravação na
terceira tentativa. Ela foi realizada no
escritório de Peter Fry, no Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Muito
envolvido pela preocupação que já fora
anunciada, manteve um conjunto de boa
vontade com ansiedade. Peter Fry concedeu
a entrevista colocando muitas questões sobre
os fatos que viveu. Nesse sentido, produziu
uma reflexão sem par. Não pude deixar de
observar tal fato. Para quem foi ouvi-lo, os
comentários encima da narrativa
estimularam uma dinâmica intelectual impar.
Apesar do domínio do idioma português, o
levíssimo sotaque britânico persistiu, assim
como a hesitação em citar alguns ditados
populares brasileiros.

Rio de Janeiro, RJ,


23 de outubro de 1995.

279
“No Brasil, ainda é possível ser um professor universitário, sem que
essa questão da identidade esteja presente... e dominante o tempo inteiro.
Ela não ofusca todas as outras coisas que uma pessoa faz na vida. Não
queria que isso acontecesse comigo, senão me sentiria totalmente
aprisionado por um aspecto da minha personalidade”.

Nasci na Inglaterra, em outubro de 1941... portanto, durante a guerra. Nos


primeiros anos, fui criado mais com a mãe do que com o pai... por mais de dois anos.
Mais ou menos aos cinco anos, ele volta e convivemos juntos. Aos sete anos fui
estudar num colégio interno... o que é normal na Inglaterra. A classe média manda
seus filhos para longe de casa. Cada vez menos, tive relacionamento com o pai e a
mãe. Eu ainda era muito novo quando minha mãe morreu... tinha por volta de doze
anos. Passava a maior parte do tempo fora de casa, como já é de costume na
Inglaterra... não se fica na casa dos pais.
No início, quando fui estudar no colégio interno, era aterrorizante... achava o
sistema muito cruel ao chegar lá. Os mais velhos, literalmente, torturavam os mais
novos. O primeiro ano foi terrível... terrível mesmo! Eu me senti absolutamente
esmagado, mas fui me adaptando. Consegui vencer mais pelo lado do estudo, da
música - tocava piano - tentava jogar futebol, esporte no qual não era muito bom.
Acabei saindo-me bem, mas no início foi terrível! Até que deu certo no final do
curso, pois isso representava uma experiência longe da minha família. A escola
ficava numa pequena cidade que se chama Worksop: W O R K S O P. Distante uns
duzentos quilômetros do local onde nasci.
Na Inglaterra isso se chama In locus parents. Significa que ao ir para a escola,
a instituição fica responsável por você. Então, caso você jogue bem as cartas, a
escola te deixa sair para visitar o pai e a mãe. Para mim foi muito bom, os meus

280
professores sempre me ajudaram... me incentivaram. Foi a saída de um ambiente
mais voltado para a família, advocacia, futebol, golf... o meu pai era advogado. Era
um mundo com outras possibilidades. Neste sentido, foi bom, mas foi brutal
também. Tinha dezoito anos quando fui para a universidade Sai direto do colégio
para a faculdade. Não havia qualquer influência do colégio sobre o curso que optei
posteriormente no nível superior. No colégio estudei matemática.
Na Inglaterra, o sistema é diferente do Brasil. O aluno é obrigado a se
especializar muito antes. Assim, no último ano de colégio fiz apenas três disciplinas,
entre as quais matemática e física... porque era algo que sabia fazer com a maior
facilidade. Foi com matemática que consegui entrar na universidade. Não sabia
escrever muito bem... escrevia mal! Temia um pouco as ciências mais literárias:
História, Inglês, Literatura. Antropologia pareceu o meio termo entre ciência e
literatura... o que realmente é um fato, então foi muito bom. Depois do primeiro ano
mudei para Antropologia. Descobri que não tinha muito em comum com os
matemáticos. Acho que a primeira decisão tem influência de todo um processo no
colégio. Eu tive um professor muito bom. Ele desafiava as regras... era agnóstico,
num colégio que era religioso, mas sempre encorajava a condição. No fundo aquele
colégio foi muito bom para mim.
Como todo bom inglês, sempre vamos à França, à Itália, enfim aos países
mais próximos. Certamente, o curso de Antropologia levanta a possibilidade de
viajar... pois sendo uma ciência comparativa, obviamente desperta o interesse em
viajar. Porém, acho que sempre quis viajar. Fui criado num porto... Liverpool. O
meu pai sempre me levava às docas. Nós víamos os navios saindo e chegando.
Desde pequenininho tinha vontade de viajar.
Fiz minha primeira pesquisa de campo na África... em Zimbabue. Como os
primeiros relatos da África central são de viajantes portugueses do século XVI,
XVII... achava que deveria aprender a falar português. Assim, passava as férias de
verão em Portugal. Gostei muito daquele país. Portugal é uma sociedade muito

281
arcaica... muito formal. E no fundo o atrativo pela África, era estar em contato com
outra civilização... radicalmente distinta. Desta forma, inventei um Brasil louco, uma
mistura de Portugal com África... numa versão romântica própria. Quando voltei à
Inglaterra, dei aula na universidade de Londres, mas nunca me adaptei muito bem...
aliás, acho que nunca me adaptei ao meu país. Então, foi difícil... sempre me dei
melhor fora dele.
A descoberta pelo Brasil?... foi puro acaso. Surgiu uma oportunidade de vir
para cá. Um dia estava conversando com um amigo, ele é antropólogo - pesquisa
índios no Amapá -, eu estava muito deprimido e perguntei a ele se era possível dar
aula no Brasil. Naqueles dias ele tinha recebido uma carta dizendo que Campinas
estava à procura de antropólogos. Cortei o cabelo, coloquei um terno e fui falar com
o cônsul geral do Brasil em Londres. No final das contas, eles me ofereceram um
contrato por dois anos. Larguei tudo na Inglaterra e vim para o Brasil.
A primeira reação entre mudar da Inglaterra e chegar no Brasil foi de intenso
desapontamento. Fui para Campinas e a minha versão romântica do Brasil, como
uma mistura entre África e Portugal, não tinha nada a ver com aquela cidade. Na
verdade, achei o Brasil pouco exótico... Campinas parecia uma espécie de cópia
xerox, mal feita, da classe média mundial. Realmente, fiquei muito desapontado.
Parecia que tinha chegado numa espécie de subúrbio de uma grande metrópole... sem
a metrópole! Além do mais, naquela época não tinha noção, mas ocorria o auge
daquela ditadura ridícula. Havia slogans como: “Brasil: Ame ou Deixe-o!”... e coisas
assim.
Cheguei em julho de 1970... foi uma decepção, mas aos poucos fui fazendo
bons amigos, fui conhecendo o Brasil. Pretendia voltar depois dos primeiros dois
anos, mas acabei ficando por uma série de razões. Na mesma época, uma amiga
minha veio da Inglaterra... Verena, ela acompanhou-me nessa viagem. Nós
montamos uma graduação. Caso tivéssemos saído naquele momento, aquela

282
graduação acabaria. Não havia ninguém formado e acabamos ficando. Acredito que
fui me acomodando.
Neste período, Campinas era uma espécie de lugar reservado no meio da
ditadura... algo muito estranho! Convivi com sociólogos, cientistas políticos,
historiadores... eles me abriram uma literatura que desconhecia. A antropologia
britânica é muito fechada. Senti um pouco do peso da ditadura militar encima da
vida intelectual na Universidade de Campinas. Nós tínhamos medo de falar certas
coisas, mas olhando para trás... era ridículo porque as bibliografias daqueles cursos
eram as mais escandalosas possíveis: Lênin, Marx, Trotsky, etc...
Na antropologia éramos acusados de empiricistas por causa do gênero de
trabalho. Creio que talvez tivéssemos uma certa cautela na sala de aula, mas
pessoalmente não senti a repressão. Senti pelos amigos que perdiam amigos...sabe
como é? Havia muita censura, eles não falavam muito... só depois de um certo tempo
eles falavam com a gente. Assim, senti um peso maior na própria vida do país.
Sentia uma certa banalidade... achava isso muito ruim. Porém, em termos de
desenvolvimento intelectual éramos mais valorizados naquela época.
O que me leva a produzir textos sobre a homossexualidade? Como era algo
que me dizia respeito, desde 1974 achava que poderia escrever sobre identidade. Ao
vir morar no Brasil coloquei-me a pensar sobre esta questão. Parecia-me que poderia
contribuir um pouco para essa discussão. Como era acadêmico, via neste caminho a
possibilidade de atuar como cientista social. Ao invés de sair na rua como militante.
Acreditava que poderia fazer o que sei: ser antropólogo. Então coloquei minha
antropologia para trabalhar nessa área.
Não estive presente na reunião com Winston Leyland, nem me recordo da
visita dele. Ele apareceu em São Paulo, mas não conheci o dito cujo. Participei das
reuniões para a fundação do Lampião, mas não sei como me enfiei nessa história!?
Fico pensando como souberam de mim? Não sei exatamente, mas em 1974 quando
escrevi um artigo sobre homossexualidade e macumba, ele foi publicado no Brasil...

283
talvez isso tenha contribuído! Não sei quem veio falar comigo, mas em São Paulo
fiquei conhecendo o Darcy, o Aguinaldo, o João Silvério e o Jean Claude, quanto ao
pessoal do Rio... faz bastante tempo que me esqueço os nomes!... Adão Acosta,
Francisco Bittencourt - esse morava em São Cristovão -, o João Antônio
Mascarenhas... e tinha mais um jovem jornalista... Ah! Clóvis Marques.
Não sei exatamente como e por quê se deu essa conexão!? Isso tudo é tão
misturado na cabeça, porém fiquei extremamente lisonjeado por ser chamado... achei
ótimo! Em 1974, fui aos Estados Unidos participar numa reunião da Associação
Antropológica Americana, com esse negócio sobre homossexualidade e candomblé!
Conheci várias pessoas do mundo acadêmico gay. Depois participei de uma reunião
em Nova Iorque, mas não sei em que ano que foi... era alguma coisa chamada
Grupos de Universitários Gays. Acreditava que seria interessante virar militante por
um ano, mas logo percebi que este não era o meu mundo. Não podia fazer nada de
militância porque não fazia meu gênero.
É muito importante explicar isso porque achava que os movimentos surgiram
para libertar os indivíduos - essa é minha opinião! - e não para formar novas camisas
de força. Foi por essa a razão que não me identifiquei com a militância! Percebi que
tinha de entrar num mundo de palavras de ordem... de coisas que não concordava de
fato! O que começou como processo de libertação, acabou se tornando mais uma
forma de controle. Como sou partidário de uma ideologia que dá extrema primazia a
liberdade individual, nunca poderia me dar bem com essas coisas... e acabei me
dando mal! Isso ainda ficou mais claro em São Paulo, com o SOMOS e companhia...
O grupo logo se virou em briguinhas internas, com uma visão muito americanizada
da situação brasileira. Eu achava que não daria certo... não precisava daquilo.
Custei a perceber que não poderia olhar o Brasil com o meu olhar inglês. O
mundo não é o mesmo... estou convencido disso! Enquanto na Inglaterra já havia
uma identidade estanque - num gueto mais ou menos escondido e privado,
complicado por causa da lei -, percebia que no Brasil a história era muito diferente.

284
A sexualidade masculina é mais interessante que na Inglaterra. O próprio termo
homossexual já parecia uma mentira encima da realidade brasileira... achava isso
muito complicado! Aliás, acredito que na Europa e nos Estados Unidos também foi
assim no início do século.
Eu achei o Brasil mais capaz de fazer vistas grossas à homossexualidade,
enquanto naquela época era barra pesada ser homossexual na Inglaterra... basta ver
que o Brasil nunca teve uma legislação contrária à homossexualidade. No Brasil
atacava-se pelo argumento da moral e dos bons costumes, mas não havia nenhum
artigo no código penal contra a homossexualidade... não havia nenhuma legislação
proibindo a homossexualidade como na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Pode-se até questionar se as idéias estão fora do lugar? Acredito que sim!
Certamente as palavras de ordem são produzidas e construídas de forma diferente em
outras sociedades. Neste sentido, elas estão fora do lugar, mas também fazem parte...
cada vez mais fazemos parte do movimento.
Quando a pessoa se assume homossexual, não acho que foi uma idéia
apropriada de outra cultura porque antes tínhamos as bichas... e nada mais! Acho que
elas representavam o modelo do gay brasileiro. Não exatamente o mesmo modelo
dos Estados Unidos! Entretanto, essa bicha velha, maravilhosa, acaba sendo
confundida com a idéia do gay. Para a sociedade brasileira a idéia de gay está
moldada sobre padrões de atividade e passividade. Nossa idéia, enquanto pequeno
grupo, era da igualdade para todo mundo, mas essa idéia não tinha ressonância no
Brasil... ainda não tem!! As pessoas pensam em termos de masculinidade e
feminilidade... de atividade e passividade. Acredito que as pessoas ainda pensam
dessa maneira. É assim que se constrói o mundo da sexualidade no Brasil.
Por isso não se fala de homem com homem, as pessoas usam ditos populares:
“- Bicha com bicha dá lagartixa! Homem com homem dá lobisomem!”... para a
sociedade é um horror botar duas fêmeas ou dois machos juntos!! Eu acho que as
pessoas aceitam mais a idéia de um parceiro fingindo ser másculo e do outro fingido

285
ser fêmea... isso é mais ou menos aceitável. Por exemplo, o michê não muda de
status ao comer a bicha velha! Porém, o michê não pode ser apanhado dando... ou
indo para cama com outro machinho.
A base desta relação está no fato dela ser paga. Neste caso, quem dá as
instruções sempre pergunta... sabe aquela pergunta ambígua!?: “- Você faz o que?”...
e eu penso logo que a pergunta e sobre minha atividade profissional: “- Eu sou
professor.” Então a pessoa tenta explicar: “Não! Você não me entendeu?”
Na Inglaterra estas questões não são discutidas. Não sei nem como isso se dá
na Inglaterra!? Faz tanto tempo que vim de lá! Porém, no que se refere as idéias que
utilizo para traçar um paralelo com o Brasil!!... acho que é a questão de duas pessoas
do mesmo sexo que define: um homem que vai para cama com outro homem é
homossexual. Do ponto de vista da população inglesa em geral, todas as
denominações são pejorativas - fruit, pansy, queer -, sempre caminham nesse
sentido, mas acredito que isso não é real no mundo de quem transa... não se faz a
distinção entre as senhoras.
Na década de setenta, há uma identidade nítida na Inglaterra e nos Estados
Unidos que se chama: Homossexual. No Brasil a sexualidade masculina ainda corre
solta... precisa de muito menos para ser comprovada. Não sei como é hoje em dia,
mas era perfeitamente comum o homem casado, com filhos, transar com meninos e
achar totalmente normal. Num Brasil mais ou menos popular, estou convencido que
era outra coisa. No Brasil, um rapaz poderia manter relações sexuais com outro
homem sem deixar de ser homem... achei isso interessante!
Em São Paulo, havia todo um processo de dizer aos michês que deveriam
assumir uma identidade gay... não tem nada a ver!!! Eram rapazes ganhando
dinheiro, talvez gostando... não sei!?... não me importa! Então, não gostava dessa
imposição programática de dizer aos outros o que eles têm de decidir. Há um
paralelo com a questão racial. O mesmo fato ocorre no movimento negro... o
mesmo!! No movimento negro, por exemplo, você tem que ser negro mesmo que

286
você prefira ser uma pessoa. Pode ser que não se tenha nenhum interesse na
questão... ou pode ser que você se ache cafuzo, moreno, mulato... ou sei lá o que!!?
Nunca consegui aceitar esses parâmetros.
Para todo mundo é claro que nos Estados Unidos quem não passa por branco
é negro. No Brasil essa história é mais nuançada... é muito relativa. Nos Estados
Unidos já se pensava em identidades estanques, fronteiras nítidas entre o que
homossexual e o que é heterossexual... ainda há uma discussão sobre a existência ou
não do bissexual! No Brasil é uma questão muito relativa... mais complicada! Não há
identidades estanques, com fronteiras muito claras. Porém, o movimento
homossexual parte do princípio que há uma identidade homossexual... que essa
fronteira existe!
A militância tentou enfiar isso na garganta da gente... a minha briga foi com
esta postura! Eu achava que esta visão não atendia ao que estava acontecendo no
Brasil... achava mesmo!! Acreditava ser mais interessante - primeiro - começar a
entender o país. Entender o que estava acontecendo de fato. Eu sempre prestava
atenção aos detalhes. Caso não encontrasse as fontes pelas quais as pessoas eram
machucadas, refletia sobre o que era possível fazer, mas certamente nunca pressupus
que quem não se achasse homossexual fosse um idiota. Não há nada demais caso a
pessoa pense assim!
Essa prática de acusar as pessoas - em inglês é chamada de outing -, acho-a
desagradável e desnecessária. Na Inglaterra, o movimento mais radical chama-se Out
Rage... e é muito interessante. Eles só fazem outing das pessoas que deliberadamente
atacam os homossexuais. Neste caso, eles só acusam depois de muita pesquisa.
Porém, eles deixam em paz as pessoas que não fazem nada. Por exemplo, um bispo
se levanta em público e fala mal das bichas - sendo ele notoriamente bicha -, os
ativistas o acusam! Neste caso, acho legal por causa da hipocrisia. Por outro lado,
essa idéia que as pessoas tem que assumir... assumir o que afinal!? Isso vai contra
minhas idéias de individualidade e privacidade... no Brasil se diz questões de foro

287
íntimo. Acho que o foro íntimo é desrespeitado neste caso. Nunca consegui
participar dessas coisas.
A idéia de um jornal já era mais interessante porque... para começar, por mais
que houvesse o tratamento da questão das minorias, esta justificativa funcionava
como uma espécie de cortina de fumaça por causa da ditadura. Contudo, havia uma
certa seriedade, primeiro a idéia não era abordar apenas a questão da
homossexualidade, mas também outros assuntos... era um tratamento mais plural.
Rigorosamente, não prevalecia nenhuma linha entre os editores do jornal. Havia
diferenças muito grandes entre o grupo. Também achava interessante poder escrever
sobre vários assuntos, caçoar, enfim chacoalhar um pouco a situação. Gostei da idéia
do jornal, achava-a muito interessante... ela era diferente da participação num
movimento com ideologia e palavras de ordem.
Por isso considerei o Lampião interessante. O jornal não tinha uma linha
programática... ao meu modo de ver não tinha!! Muitos de nós não iríamos
concordar. O que tinha era o debate sobre o problema, o levantamento de questões...
chamar a atenção às nossas dificuldades, assim como dos índios e não sei mais de
quem!? Acho que minha memória está falha, estou reconstruindo-a o tempo inteiro,
mas a minha falsa memória - a minha memória construída -, indica a inexistência de
uma linha predominante da militância. Ela acontecia no sentido de levantar questões,
conversar... havia uma divisão interna entre: os que levavam a coisa mais a sério; e
os que achavam que devia se usar uma linguagem mais corriqueira... com muito
humor. Nesse sentido, havia uma divisão interna.
Você quer saber se o Lampião ajudava os grupos a se aglutinarem!? Isso é
verdade! Ele foi um veículo meio aglutinador. O que penso sobre o Lampião ter uma
parte da responsabilidade na movimentação homossexual? Acho que sim! O jornal
dava vazão... dava legitimidade! Modéstia parte, naquele jornal nós tínhamos gente
boa... tínhamos muita legitimidade! O Aguinaldo estava começando a carreira dele,
acho que já tinha publicado dois livros. Ele já era apontando como grande escritor

288
brasileiro. O Darcy era pintor da society, bem estabelecido, muito respeitado... acho
que já tinha um livro quando começou no jornal. Tinha o Jean Claude,
respeitadíssimo no campo dele! De fato, era um grupo interessante... muito
heterogêneo. Desta forma, acho que o Lampião prestou uma certa legitimidade.
Na época, quais os outros jornais que havia!? Opinião, Movimento... que era
um contraponto ao Pasquim. O Lampião não era tão radical como o Pasquim, mas
noutra direção procura enfrentar o machismo do Pasquim... o qual todo mundo
conhecia... ou seja, o Lampião também representava outra alternativa interessante.
Muitas pessoas adoraram e ficaram muito tristes quando o Lampião acabou. Gente
que não tinha nada a ver com a história, acharam-no divertido, inteligente, diferente.
Ele tinha boas manobras e era tudo muito amador.
Apesar do Lampião ter sido produzido para todas as minorias, ele vai
assumindo uma característica... mais que qualquer coisa era um jornal de bicha! Não
tinha mulher na redação, foi difícil convencer as mulheres... depois fizeram um
número exclusivo! Elas adoraram... adoraram! Nós tínhamos esse regime de
envolver cada vez mais pessoas, mas não foi fácil! Não sei o porquê!... nunca pensei
nisso. As mulheres adoraram participar, fizeram um belo número que foi muito
interessante... e o que mais que tentamos fazer? Houve um número para os negros,
outro para os índios... visando a mesma tentativa: acreditávamos que essas questões
estavam relacionadas. Acho que havia um projeto de verdade, pelo menos ao meu
modo de ver, no qual entravam todos esses pontos.
Havia duas posições... digamos: uma mais light que era Aguinaldo, junto com
o pessoal do Rio; e uma mais pesada que eram algumas pessoas de São Paulo... não
todas!! Havia muita suspeita mútua. O pessoal de São Paulo sempre muito
acusatório. Coitado do Aguinaldo! Uma vez ele teve de cortar uma frase e foi
acusado de censura, mas não era nada disso... ele tinha de botar o jornal na rua! O
Aguinaldo tinha - ainda tem - um grande senso de humor. Não sei ao certo, mas a
briga era entre um interesse mais popular que explorasse a coisa brasileira, contra

289
um interesse mais sisudo, mais intelectualizado. No meu entender, isso talvez tenha
sido o mal entendido... acho que foi isso! Eu não agüentava a sisudez.
Os aliados na época eram o próprio Aguinaldo, Darcy, o Adão, o Celso Curi
que na época se tornou muito amigo meu. Ele era muito engraçado, com aquela
boate dele... a OFF. O Celso era muito mais divertido, escrevia muito bem. Naquela
situação, ele se tornou muito amigo meu. Ele tinha uma cabeça muito parecida com a
minha na época. Nós nos divertíamos, achávamos que isso era alternativo... que não
devia haver nada de sisudez, nada de inclinações mútuas.
Os movimentos sociais são caracterizados por esse tipo de atitude. Nós
achávamos que era possível escapar dela. Talvez tivéssemos um certo idealismo.
Achávamos que desta perspectiva meio danada, meio underground, era um
privilégio poder caçoar. Não era necessário cair na sisudez dos outros movimentos.
O jornal Lampião tinha que ser diferente do Opinião, do Movimento... tinha que ser
mais engraçado.
Houve um grande desentendimento, basicamente por essa causa, entre Rio de
Janeiro-São Paulo. O Rio de Janeiro parece mais criativo, mais ambicioso... é por
isso que gosto de morar no Rio de Janeiro. A cidade é mais irreverente. Na verdade
são estereótipos com todas as exceções que se possam arrolar, mas no geral era esse
o problema do eixo Rio-São Paulo. Como o jornal foi produzido no Rio de Janeiro,
Aguinaldo conseguiu enfiar esse tom engraçado.
Na época, as reuniões que participava eram terríveis... com muita polêmica!
Não sei porque as pessoas criam esses infernos! A base da questão era esse
confronto de posições. Eu não tinha muita voz... não tinha muita canja para levar
adiante. Olhando pra trás, creio que havia essa linha mais respeitosa para com a
questão nacional, mas como estrangeiro, para mim era mais fácil entender...
obviamente perceberia a diferença. Notava o lado interessante do país, a
irreverência, a ambigüidade e todas as coisas. Acho que a idéia em geral era essa.

290
Os exilados do norte vêm ao Brasil buscar um pouco dessa coisa estranha,
difícil de apanhar: a imprevisibilidade, a sutileza, o engraçado e tal; assim como
existem os brasileiros que olham para o hemisfério norte querendo as coisas mais
corretas, mais organizadas, mais claras, menos ambíguas.
Aquilo não teria acontecido se não fosse o Aguinaldo... todo mundo deve ter
dito isso!!! O Aguinaldo juntava tudo e levava até à gráfica. Naquela época não
havia computador. Era tudo na base de fazer o texto caber na página. Isso sempre
dava brigas porque havia cortes nos textos... acusação de censura prévia. Coitado! O
Aguinaldo sofreu muito. Ele é a pessoa mais importante. Foi ele que juntou os
trapos, levou-os à gráfica e fez aquilo acontecer. Sem Aguinaldo nada teria sido
feito. Mesmo assim, quando alguém assume a responsabilidade, os outros sempre
acham defeito.
No que se refere à “abertura política” possibilitar o impulsionamento do
Lampião? Na época, acho que tínhamos noção que estávamos arriscando. Não era
um mar de rosas, tanto que fomos processados... ou indiciados! Lembro que fui
chamado na Polícia Federal... uma coisa engraçadíssima!! Aliás!! Nada engraçado!
Nada engraçado!! Estava sozinho quando fui chamado, os outros já haviam
deposto... acho que estava fora! Quando voltei tive que ir à Polícia Federal.
O Luís Eduardo Greenhalg que era e é da esquerda, era um advogado de mão
cheia. Ele defendeu todos os presos políticos em São Paulo. Com enorme
generosidade nos defendeu de graça... achei muito comovente aquilo! Ele foi comigo
e ajudou-me bastante. Depois daquele depoimento, eles me mandaram tocar piano
numa outra dependência... foi muito desagradável! Não vou esquecer dos policiais
me chamando de gringo, acusando-me de corromper o Brasil... de estar poluindo a
pureza brasileira.
No final, eles me enfiaram num volkswagen de chapa fria... com três policiais
civis sem uniforme! O Luís Eduardo gritou do pátio da Polícia Federal: “- Peter!
Quando você sair telefone imediatamente!” Ele estava com medo que alguma coisa

291
acontecesse. Naquela época, ainda tinha possibilidade das pessoas sumirem. É...
tinha essas coisas! Com esses adendos, o jornal acompanhou um pouco a “abertura”,
mas penso que isso também faz parte do início da ousadia. Aquele processo foi obra
do próprio Armando Falcão... na época nós estranhamos muito!
Outro fator muito importante foi a volta dos exilados ao país... com o Gabeira
e companhia voltando. Não no sentido de homossexualidade em si, mas no sentido
de uma visão mais libertária. Esse processo de “abertura” contribui para mudar a
legitimidade das posições em relação à questão de classe, de pobreza e tal. Isso volta
com esse pessoal que levanta todos esses assuntos. Fazia parte do mundo nessa
época. Acho que naquela fase havia diferentes preocupações no mundo. O próprio
Lampião era reflexo do que estava acontecendo em outros países... não há dúvidas!
O próprio Lampião é endógeno... quer dizer, é produzido por pessoas aqui no
Brasil, mas pode-se dizer que acompanha tardiamente o movimento mundial de
libertação. O Stonewall que ocorreu em 1969 nos Estados Unidos e o Lampião só
aparece em 1978. Não acredito que foi por causa do Lampião que a grande imprensa
começa a utilizar uma nova linguagem. Isso teria acontecido de qualquer forma.
Acho que não tem nada a ver com Lampião... essas coisas teriam acontecido com ou
sem Lampião. O Brasil é receptivo ao mundo. Apesar da política nacionalista em
relação ao mundo, ostentando slogans como: “O Petróleo é Nosso”; por mais que o
Brasil tome essas atitudes estranhas, ele não quer perder sua relação com o mundo.
Mesmo assim já existiam outras coisas no Brasil!? Parece que na década de
sessenta há publicações, mas de produção muito artesanal? O Lampião foi a primeira
tentativa de comercializar, mas sem capital nenhum. Cada um dos editores
responsáveis deu sua contribuição. Produzimos uma cota para fazer o primeiro
número do jornal. Depois fomos fazendo os outros números com as receitas
arrecadadas, contudo, nunca havia dinheiro porque o retorno financeiro sempre
demorava um mês ou dois. Neste caso, sempre entrávamos para ajudar.

292
Nunca soube nada acerca do público do Lampião... certamente atingia um
público! De fato não sabíamos, pois não havia nenhuma estatística para levantar
estes dados. Talvez fosse um público mais de classe média, mais universitário... acho
que não era todo o pessoal do movimento, muito pelo contrário, havia pontos de
vista adversários. Acho que tinha muita gente! Estou sempre esbarrando com
pessoas que liam, não tinham nada a ver com essa história. Achavam divertido,
interessante, mas não sei quem era o público.
Havia um público hardcore, de pessoas que queriam levantar a bandeira da
homossexualidade e tinha esse efeito aglutinador...é verdade! Porém, não sei quem
lia e não vendia muito bem... se tivesse vendido mais, talvez tivesse durado. Era uma
batalha constante. Eu sei que fechou o Lampião e o Aguinaldo continuou um pouco
a fazer outra coisa. Ele abriu uma editora que não deu certo.
Houve uma expansão significativa no que se refere ao comércio. Porém, o
comércio sempre acompanha a diferenciação social. Neste caso, sempre que se cria
uma nova identidade, logo vem um comércio atrás. O comércio ajuda a cristalizar
essas identidades... é muito esperto! O bom produtor, junto com seu homem de
marketing, percebe os novos nichos sociais e dirige produtos para aqueles nichos.
Ao produzir esses produtos, aparentemente consumidos nesses nichos, ele vai
reforçando-os.
O comércio ainda não o faz, mas irá produzir bens visivelmente específicos
para os negros, por exemplo... é uma forma de reificar e cristalizar essa idéia que o
negro é diferente. Por exemplo, brinquedos são produzidos para crianças de três
anos, depois dos três aos quatro... se vai dividindo o mundo e os produtos vão
marcando essas divisões. Parece-me que isso é muito importante. Aliás! O processo
de consumo, a produção e a concentração de identidades estanques merecem mais
estudos. As diferenças sociais - sem dúvidas - sempre são marcadas pelas coisas que
nos pertencem. Por exemplo, quando alguém entra no meu escritório na UFRJ e
observa um monte de livros na estante, logo pensa: “- Ah! Este deve ler muito!” Em

293
termos de homossexualidade, onde que o comércio aparece mais!? Bares, boates...
agora começam a surgir revistas especializadas. Isso é normal.
Se as posições do Lampião eram cobradas pelo movimento homossexual?
Sim! Mas o jornal nunca se comprometeu a ser porta-voz do movimento. Houve um
editorial que tratou desse assunto. Eu não lembro muito bem daquela reunião...
lembro de ter ficado muito puto, não sei exatamente porquê, mas o que realmente me
entristecia era a capacidade das pessoas inventarem posições. Essa mania de
movimento... de alas, tendências, achava chato e desnecessário. Não entendia o
porquê das brigas homéricas... tudo está presente no livro do Edward.
Houve uma acusação de infiltração da Convergência Socialista para cooptar,
tinha um americano muito acusado... de fato não sei se havia! Não recordo porque
não levei isso muito a sério... achei tudo muito triste! É possível que tenha
acontecido. A Convergência Socialista ainda existe, chama-se PSTU e acredito que
seja capaz de qualquer asneira. Você diz que há uma ala gay no PSTU, ela deve ser
tão fascista quanto o resto do partido. Aquilo realmente é fascista. É um rolo
compressor, grita, não admite outras opiniões... é extremamente autoritário, mais ou
menos liderada por uma pequena burguesia branca.
Você quer saber se os movimentos homossexuais têm tentado se mostrar
representativos do segmento homossexual!?... mas essa também é uma ideologia
muito americana. Nos Estados Unidos sempre se procura representar alguma coisa.
Neste sentido, alguém que supostamente tenha uma boa porção de sangue negro,
pode ser representante... é uma idéia muito louca! Isso só é possível a partir da idéia
de uma identidade onde as pessoas biologicamente participam de uma essência.
Então, coloca-se um representante negro. Mesmo assim é idiotice, pois não há
circunscrição eleitoral... não há!! Há pequenos grupos que se dão ao luxo de se
acharem representantes.
No Brasil a questão é ainda mais engraçada. A circunscrição é tão
pequenininha que muitos desses movimentos são formados por uma, às vezes duas

294
lideranças. Elas têm alguns agregados em volta, fazendo todo o trabalho difícil.
Neste caso, há os abnegados... filósofos da causa que representam. Entretanto, não
sei o que representam... será a si próprio? Nem sei se representam os agregados que
tem em volta, mas hoje em dia não conheço bem os movimentos. No fundo há
alguns indivíduos muito articulados, muito inteligentes e, em parte, obcecados pela
publicidade... assim se fazem de representantes.
Essa obcecação pela representatividade poderia ser definida com uma
referência a Brás Cubas. Quando a personagem inventa um remédio - o emplasto
Brás Cubas -, mas não importa muito o remédio... o importante é ter o nome na
embalagem. Desta forma, às vezes sinto que as pessoas muito envolvidas na política,
em geral, são muito obcecadas pela sua própria visibilidade. Não há nenhuma
novidade neste dado... isso em política é geral, tanto na política sexual, como na
política partidária.
No caso específico dos ditos movimentos de identidade no Brasil, é muito
difícil porque há pessoas que se dizem representantes das mulheres, dos
homossexuais, dos negros... isso me parece muito complicado, certamente não
considero nenhum deles meus representantes. Nunca elejo, nunca fui chamado para
eleger e também não quero fazê-lo. Nunca andei batendo no peito,... acreditava que
havia várias maneiras de atuar. Também não achava interessante tratar publicamente
a minha vida privada... nunca achei e não acho interessante! Mas para quem pretende
ser assim que o seja.
No fundo também sou contra a divisão do mundo através da criação de
identidades estanques... sou contra mesmo! Essa julgamento do caso O. J. Simpson
nos Estados Unidos, por exemplo, deixa isso muito claro. Se questiona como se
resolve a questão política, num mundo que caminha para a estandardização... com
representantes disso ou daquilo no Congresso nacional!! Na verdade, não tenho uma
posição que sustente... somente a da autonomia do indivíduo. Provavelmente vou
sustentar uma bandeira já quase extinta. Assim, sou de uma posição muito anti-

295
popular e muito anti-natural. Vou carregar essa bandeira do indivíduo. Para falar a
verdade, acho que é uma batalha perdida.
Quando estudei antropologia me dei conta da arbitrariedade do arranjo social
de 1978. Fiquei a par da variação enorme de maneiras de construir a sexualidade, a
identidade e tal. A antropologia era uma ciência libertadora para mim... para mim!
Então, pode ser isso... achava que poderia escrever sobre essas coisas. Poderia ser
um acadêmico. Escrever seria uma maneira das pessoas se posicionarem. Pensava no
sentido que há várias maneiras de lidar com as questões no mundo.
Há várias maneiras de lidar a questão da orientação sexual... uma das
maneiras é escrever, levantar questões e chacoalhar um pouco o pensamento. Isso é
minha maneira de fazer. Neste caso, a identidade de antropólogo fica forte... as
outras também aparecem, mas achava mais importante ser o crítico social. Então, ao
falar a partir desta posição, tinha uma forma de acesso a esse mundo. Era onde os
meus interesses sexuais se encontravam. Necessariamente não era uma questão que
teria que colocar à frente... estava atrás, implícito, diagonal, transversal. Numa
posição que parecia mais interessante.
No Brasil, ainda é possível ser um professor universitário, sem que essa
questão da identidade esteja presente... e dominante o tempo inteiro. Ela não ofusca
todas as outras coisas que uma pessoa faz na vida. Não queria que isso acontecesse
comigo, senão me sentiria totalmente aprisionado por um aspecto da minha
personalidade. Obviamente a academia é muito importante, explica um monte de
questões e afeta a maneira de ver o mundo... sem dúvidas! Porém, é uma das faces
do problema não é o todo.
Não saberia colocar em palavras, mas achava que essa avalanche não era
interessante... da mesma forma que tenho pena das pessoas negras que são apenas
negras ... tenho pena! Que chatice ser um negro profissional... que horror ser uma
mulher profissional... que banalidade! Isso não significa que não tenha muito
respeito por essas outras posições... estou apenas defendendo outra! Não queria ser

296
acusado de estar constrangendo as pessoas. Critico os militantes porque acho que são
programáticos para os outros. Eu não sou programático, mas estou defendendo a
possibilidade legítima de não ter que participar desse plano de representação - de
identidade estanque -, estou defendendo essa posição! O mundo é muito grande e
deve ter lugar para todos.
Tenho o maior respeito pelo homem que casa-se com uma mulher e trepa com
meninos... o maior respeito! Acho que ele deve fazer o que quiser. Quem sou eu para
dizer que ele deve parar de fazer isso!!! Se o michê acha que é homem está ótimo!
Essa história de falsa consciência... que os marxistas tentaram enfiar na goela da
classe operária, é a mesma porcaria! Enquanto intelectual devemos ter o maior
respeito com todos... antes deles programaticamente começarem a foder a vida das
pessoas. É a minha opinião!!!
Foi só a semana passada, pensando muito sobre essas questões, que me dei
conta: interessei-me pelo aspecto libertador dos movimentos. Eu me decepcionei
quando percebi que eles não estavam mais querendo libertar coisa nenhuma, mas que
basicamente estavam interessados em se produzir e se reproduzir... e todo
movimento programático é complicado. É uma posição dos outros, mas não vou
forçar isso na goela de ninguém. Eles fazem muito bem em fazê-lo, mas fico irritado
quando me acusam!!! Eu não acuso eles, mas eles me acusam de frouxo o tempo
todo... dizem que tenho de assumir.
Também não escrevo sobre a questão homossexual desde 1980 ou 1982...
parece que o último livro foi Para Inglês Ver, desde então nunca mais escrevi nada.
Entretanto, outras pessoas fizeram um monte de coisas, mas ainda vêm conversar
comigo... o que é interessante! Quer dizer... algumas questões que levantei naquela
época ainda estão presentes. Porém, pensei em fazer outras coisas... e é isso!!
Quando você me pergunta sobre intelectualidade e compromisso político... se
o intelectual necessariamente tem que ter um compromisso político com a produção
dele? Penso que não deve ter. Pessoalmente, acho que seria muito difícil escrever

297
coisas assim. Novamente, quero dizer que não tenho receita para ninguém... não
quero cagar regra pra ninguém!! Na minha compreensão, visto que trabalho numa
universidade pública e o meu salário é pago por outras pessoas, acho que de uma
certa forma a universidade tem de prestar contas. Esta é minha opinião! Então, não
queria me posicionar ignorando os interesses dos meus alunos, do público leitor e
dos outros interessados.
O fato da universidade ser tão fraca e tão frágil e estar fora da sociedade, é
sua única característica. Eu me apavoro com a partidarização da universidade nas
eleições... acho o fim da picada! A universidade tem que estar fora, ela tem que ter
posições críticas, danadas, complicadoras... essa é minha opinião. Se ela não tem...
bom! é melhor acabar. Neste sentido, sou totalmente contra essa politização. É algo
que emburrece as pessoas e o mundo. A universidade, como espaço fora e dentro da
sociedade, pode produzir vozes iconoclastas, chatas, complicadoras... isso é
interessante. Apesar de se difícil, eu queria sempre complicar. Parece-me um ponto
interessante.
O mundo está cada vez mais partidarizado, sexualizado, racializado,
naturalizado. A voz irreverente das ciências sociais é importante, sobretudo nas
questões que foram citadas. Acho uma merda essa questão de política de identidade,
não é nada interessante, mas os que querem fazê-la que a façam... né!? Nunca quis
fazer nenhuma distinção entre academia e militância... porque muitas vezes são as
mesmas pessoas! Por exemplo, o Luiz Mott é militante e também universitário... o
Edward participava no SOMOS - como ativista - e também escreveu sobre o
movimento homossexual. Então, não sei se é tão fácil dividir! Acho que não é!
Talvez seja mais interessante pensar a posição, um pouco mais crítica, de alguns de
nós.
Não sei se escrevi a este respeito no Lampião, mas publiquei um artigo na
Folha de São Paulo que criou inimizades na época... escrevi um ataque sério ao
stalinismo sexual. Este sempre foi o meu argumento... estar recusando a cristalização

298
de uma identidade que arrasava com as outras identidades. Achava que isso não
tinha nada a ver comigo. Essa idéia de criar uma identidade, a qual elimina ou
domina as outras - ao meu ver - não era interessante. Os outros fazem o que bem
entendem, não quero enfiar nada na goela de ninguém!... mas tenho muita raiva
daqueles que querem enfiar na minha... MUITA!!!

299
Primeira Rede:

Autores Coligidos pelo Lampião.

Nome do Data e local Idade à Local e data Textos Local e


colaborador de época da da conferidos Data de
envio do conferência conferência enviados autorização
texto pelo correio do texto
Roberto Osasco-SP 59 anos São Paulo- São Paulo-
191
Piva em SP SP
24/03/1997. ________
em 25/06/97

25/06/97

Edward Osasco-SP (51) anos Na Salvador-


MacRae192 em residência BA
21/03/1997. do professor ________
em 29/04/97
Salvador.
Em
29/04/1997
James Osasco-SP (46) Long Beach- Long Beach-
Naylor em USA USA
Green193 20/03/97 ________
em 12/04/97

12/04/97

191
Publica o artigo: “Remake com Gabeira” in: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, nov 1979, ano
II, Nº 18, p. 16.
192
O artigo que faz com Peter Fry foi publicado como: “Mesmo no carnaval baiano cada macaco
no seu galho” in: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro: agosto de 1978, ano I, Nº 4, p. 3.; e as
cartas foram publicadas no jornal com os títulos: “Canabis Sativa”: dezembro de 1978, ano I, Nº 7,
p. 14; e “Bons tempos”: junho de 1981, ano III, Nº 37, p. 2.
193
Publica dois artigos, o primeiro junto com João Silvério Trevisan: “A revolta de San
Francisco”in: Lampião da Esquina. Rio de Janeiro, julho de 1979, ano II, nº 14, p. 3; o segundo
foi: “Autonomia ou não, eis a questão”: julho de 1980, ano III, Nº 26, p. 10.

300
. Nasceu em São Paulo ( capital),
em 25 de setembro de 1937.

. Poeta.

. Estudos acadêmicos: Estudos


Sociais na Faculdade Farias
Brito, em Guarulhos; Fundação
Escola de Sociologia e Política,
em São Paulo.

. Autor, entre outros: Paranóia,


1963; Piazzas, 1964; Abra os
Olhos e diga Ah, 1976; Coxas,
1979; Antologia Poética, 1985.

Roberto Piva

301
A ligação de Roberto Piva com os cultos
xamânicos capturou meu olhar de visitante.
Roberto Piva, durante a entrevista, deu às
costas... não olhou um minuto sequer, ao que
parecia ser o único quadro inexpressivo
daquele ambiente: a janela de onde se
avistava a verticalização do concreto. O
local estava no além da metrópole,
convidava a contemplação dos falcões, das
pedras multicoloridas e das plantas. Xangô,
logo a minha frente, disputava atenção com
Roberto Piva. Naquele local, a celebração da
natureza era preponderante. Ele sentou-se
numa poltrona, da qual reinou através das
palavras. Durante a narrativa satirizou a
sociedade urbano-industrial, foi sarcástico
com os intelectuais ligados à universidade e
com os políticos de esquerda. O tom bem-
humorado expressava sua alegria, seu
entusiasmo e acima de tudo o prazer pela
vida... contagiando o ouvinte a cada gesto, a
cada comentário e a cada risada.

São Paulo,
21 de fevereiro de 1994.

302
" Estou amordaçado no Brasil, mas toda oportunidade que
tenho, exerço o papel crítico de intelectual ".

Meu nome é Roberto Piva, nasci em São Paulo, na Joaquim Eugênio de Lima,
na PRO MATRE. Os meus pais tinham título universitário. Minha mãe era
farmacêutica, para a época era algo incomum, poucas mulheres tinham título
universitário. O meu pai era químico e exercia essa função na Drogasil.
Nós tínhamos outra casa no interior. Ficávamos num constante ir e vir de São
Paulo para o interior, e vice-versa, porque meu pai também era fazendeiro. Nós
íamos muito para nossa casa no interior. Lá eu cresci em meio aos bichos e à
natureza. Essa convivência despertou meu interesse por gaviões, plantas e
posteriormente pelas religiões afro-brasileiras que são religiões da natureza.
Eu fiz o Jardim da infância em São Paulo, nas Perdizes, onde fui educado até
os dez ou onze anos. Os anos quarenta foram os mais libertários que existiram. Eu
costumo dizer que a minha revolução sexual foi feita aos cinco anos de idade. Quem
não fez sua revolução nessa idade, não vai fazer nunca mais! Não faz sentido esperar
que o governo, através da constituição, garanta esse tipo de proteção. Eu espero que
isso não aconteça, porque senão tudo quanto é gente vai achar que tem direito a
usufruir de um prazer celebrado pelos deuses. Na verdade tem que ser para os
poucos que gostam de adolescentes.
Aos sete anos de idade cheguei a cantar um rapaz negro de dezenove anos...
ele era pedreiro. Na época foi um escândalo para sua mulher que o repreendeu. Ela
o acusava de ser um corruptor, sendo que havia sido eu o autor da cantada. Claro que
ele não penetrava com aquela rola imensa. Ele sabia que me mataria e sabia que não
podia me machucar, portanto tinha que usar a imaginação... colocava entre as minhas
coxas.

303
É importante afirmar que esse rapaz não me corrompeu, fui eu que o seduzi,
porque no Brasil para a intelectualidade fascista & vermelha a sexualidade infantil
não existe. Todo mundo um dia na vida já fez troca-troca, depois esquece e o filho
não pode fazer. E essa gente do PT, essa gente “PTelha”, é muito engraçada porque
ainda acredita na normalidade, apesar da criação da bomba de hidrogênio, da bomba
nuclear e da bomba de neutrons. São pessoas que lêem Freud e não acreditam no que
estão lendo. O Marxismo, Lênin e esse exorcismo barato que fazem contra a
sexualidade, são coisas muito provincianas.
Ferenczi quando reflete a respeito da vida econômica, a propósito de um
ditado latino: "Pecunia non olet/ dinheiro não cheira", demonstra como todas as
metáforas econômicas estão ligadas ao intestino humano. No caso não há liquidez,
mas sim diarréia. Segundo Ferenczi se o dinheiro não fosse um símbolo do prazer
infantil de mexer com as fezes, higienizado & desidratado, possivelmente não teria
valor inconsciente nenhum.
Então desde os sete anos eu já era um sedutor. Caso viessem a acusar esse
rapaz eu assumiria a responsabilidade, mas nessa época esse mundo jurídico ainda
não existia para mim.
A minha infância foi muito agitada. Havia muita briga de gangs de rua. A
turma da esquina não podia entrar na rua porque levava estilingada. Na época eu só
queria saber de jogar futebol e fazer troca-troca o dia inteiro. Eu sabia a escalação de
todos os times de São Paulo. Aliás jogava futebol e no próprio campinho a gente
fazia o troca-troca.
Eu vejo o início da homossexualidade em crianças e adolescentes como um
rito de passagem. Uma iniciação xamânica, onde as características familiares são
perdidas. O menino fica "diferente" do grupo em que estava habituado e através do
futebol continua com seus rituais de iniciação.
O futebol é um esporte profundamente homossexual. Como eram as lutas de
gladiadores no circo romano, as quais foram substituídas por esse esporte. Os

304
gladiadores na noite anterior às lutas tinham direito as orgias ritualísticas.
Embebedavam-se com o vinho. Geralmente possuíam os melhores garotos de Roma.
Nesse período esses garotos eram apaixonados pelos gladiadores, como hoje
as pessoas são apaixonadas por Pelé, Viola, ou qualquer um desses ídolos. Na
realidade essas torcidas organizadas substituíram os tirsos dionisíacos, ou seja, os
grupos de rituais dionisíacos. Assim como essas saunas de garotos que têm muito
aqui em São Paulo, na Cidade Patriarca, na Vila Matilde, substituíram os templos de
Cibele... neles os adolescentes se vestiam de menina e faziam a prostituição sagrada
no seu interior. Essa prática parece existir até hoje nos templos xivaístas do sul da
Índia.
A minha infância na cidade foi muito divertida. Por outro lado havia também
aqueles espaços de mata. A fazenda do meu pai, perto de Rio Claro, possuía cento e
oitenta alqueires que eu percorria a cavalo. Era uma fazenda imensa, com oito lagos,
possuía animais raros, ficava a dois mil metros de altura. Meu pai nos anos sessenta
vendeu tudo isso. Ele morreu praticamente sem nada.
No governo Montoro me parece que essa fazenda foi tombada como Parque
do Estado. E lá dos treze aos quatorze anos eu estava preocupado com outras
coisas... estava preocupado com as meninas. Eu queria conhecê-las, também, porque
a mulher é uma promessa de felicidade. Então transei com as meninas mais lindas
que havia e elas eram apaixonadíssimas por mim.
Não havia parâmetros, transava tanto com meninas quanto com meninos.
Quando eu não era mais adolescente, mais ou menos aos dezessete ou dezoito anos,
eu contava-lhes: "- Eu gosto também de dar para outros garotos". Elas achavam isso
uma coisa como outra qualquer. As meninas com quem eu transava não queriam me
catequizar. Elas não eram psicólogas de esquerda, mas meninas maravilhosas,
loucas, selvagens, algumas muito cultas.
O Baudelaire no Mon Coeur mis amu diz: "- Aimer femmes inteligents c'est un
affaire de pederaste/ Gostar de mulheres inteligentes é coisa de pederasta". Digo isso

305
porque no Brasil não tem homossexual, mas misógino. Por isso que tudo quanto é
padre tem ódio de mulher pelada na televisão. A pessoa que tem medo de mulher
não é homossexual. Um gladiador romano era homossexual não porque tinha medo
da mulher, o soldado espartano gostava de garotos não porque tinha medo da
mulher, mas porque essas práticas faziam parte da cultura na qual viveram.
Não podemos esquecer que em Esparta havia uma educação mista, as meninas
e os meninos andavam nus nos ginásios, tomavam banho de sol e eram criados
juntos. Acredito que a civilização espartana foi a que mais emancipou a mulher. Ela
era dona do lar, cuidava dos deuses dedicados ao lar. Isso é muito importante para
um povo religioso que acredita que as pessoas devem fazer oferendas ao deus lar,
fazer-lhe um ebó e ter o comando da família.
Na realidade tudo isso representava o matriarcado. O poder que a mulher
detinha. Como em Roma, onde quem mandava eram as matronas. As esposas
presidiam os banquetes, nos quais os próprios maridos ficavam à sua frente
bolinando os escravinhos. Não havia sentido delas serem proibidas de conhecer algo
que fazia parte da cultura sagrada.
O relacionamento com meus pais sempre foi muito bom. Eles apenas me
atormentaram demais com relação aos estudos durante a infância e a adolescência
inteira: eu odiava a escola. Tudo era pretexto para matar aula, ou seja, ler gibi, ir ao
cinema, fumar maconha, fazer bacanal. Nos anos cinqüenta, depois das orgias, eu
saia nu pelas ruas. Não fazia essas bobagens de usar maiozinho como o Gabeira.
Jogava vôlei, inclusive fui campeão. No final dos anos cinqüenta aos dezesseis anos
era considerado o atleta completo.
Por outro lado, eu tinha problemas com matemática, com desenho, trabalhos
manuais. Por isso acredito ter vocação para imperador romano, ou principalmente
para mandarim, aqueles chineses maravilhosos que sabiam dois mil poemas decor,
mas deixavam crescer as unhas para dizer que nunca trabalharam. Nesse sentido,

306
lembro-me muito de Rimbaud quando diz: "- Não usarei jamais as mãos... que século
manual!"
Não conseguia me conformar com aquele ensino positivista. Se eu soubesse
até hoje a geografia que estudei teria de desaprender tudo sobre os países... desde
aquela época eles já mudaram diversas vezes. Os parâmetros da minha visão de
história estão ligados a Toynbee e Spengler. Eles afirmavam que toda a história
começa com um mito religioso poderosíssimo até o período de cisma das
civilizações que coincide com o período técnico. Assim que as civilizações saem
daquela epifania, elas saem fora do numinoso para cair no mundo profano. Quando
esse mundo não está mais relegado a uma visão do sagrado, as civilizações declinam.
A minha visão de história também está ligada ao Pasolini, marxista que afirmava: "-
Temos que incorporar elementos reacionários à revolução". Ele também dizia que a
esquerda italiana é conivente com a sociedade industrial, o neo-capitalismo provoca
a sociedade de consumo e uma sociedade criminalóide.
Isso significa que a criminalidade não está sujeita a classe pobre... porque
para os nossos intelectuais ser pobre é ser criminoso. O próprio Lula em suas
análises vive dizendo: "- A criminalidade existe por causa da fome." Ao afirmar que
todo pobre é criminoso ele sustenta uma visão elitista, porque tornou-se o
ventríloquo de um tipo de comunismo que existia nos anos cinqüenta. Acredito que
foram essas viragos, mulheres clitorísticas, com as quais ele andou transando na
esquerda que enfiaram esses chavões na cabeça dele. E como ele tem um
vocabulário restrito foi capaz de decorar somente três ou quatro.
Entre os meus pais e eu havia muitos conflitos com relação aos estudos. Eles
eram pessoas que gostavam muito de mim, assim como eu deles, porém tínhamos
visões distintas do mundo. Meus pais achavam que a cultura não deveria ser uma
coisa visceral, mas ornamental. Queriam que eu fizesse faculdade, enquanto eu
queria era vagabundear, ir a praia, montar barraca, fazer orgias, beber, tomar drogas,
fazer uma experiência xamânica única e intransferível.

307
Saí de casa muito cedo, aos dezessete anos, isso não me deu tempo de ter
mais conflitos com meus pais. Morei em pensão, dividi apartamento com pessoas.
Por falta de grana passei por todas essas experiências de falso democratismo de
circunstância. Nessa mesma idade parei de estudar. Não pisei mais numa escola e
então fiz muitas leituras, li todos os filósofos existencialistas. Tornei-me
basicamente um autodidata. A partir de então nada foi orientado. Eu descobria as
coisas, lia, e bastante do que li serve para contar a minha vida.
Em São Paulo, por exemplo, eu falei de Reich a meus amigos. Um autor
convencional do sexo que tem uma análise muito interessante sobre a energia
azulada, chamada orgônio, que podemos ver, principalmente numa praia, quando se
toma ácido. Na verdade o ácido só pode ser ingerido na natureza. Quem toma ácido
em São Paulo é suicida. Afinal, numa sociedade industrial, mecânica e brutal, onde
duzentos anos foram suficientes para a destruição do planeta, essa gente só poderá
ter uma má viagem. Basta observar: o paulistano gosta tanto de São Paulo que
prefere ficar numa fila sete horas para sair da cidade do que passar seu feriado
prolongado na cidade.
A metrópole, o espaço urbano, é um vasto cemitério: a necrópole. O homem é
o único animal que armazena seus mortos. Orangotango deve achar isso um absurdo.
Cercar um espaço onde tem armazém de morto, os chamados cemitérios... as
necrópoles. Todas as metrópoles são necrópoles. Fora de São Paulo há vida. Todos
os garotos estão pedindo carona na estrada. Estão andando de bicicleta de uma
cidadezinha para outra, fazem sinal, querem botar a bicicleta no carro. Nadam
naqueles riachos de beira da estrada.
Eu vou muito para uma ilha, onde tem um terreiro de candomblé só com
travestis, os quais são acompanhados por uns meninos de treze, quatorze, quinze
anos, lindíssimos, afetivos, bofinhos, fortes, jogadores de futebol. Aqueles meninos
caiçaras estão todos lá para cultivar a alegria do corpo, do tesão e da trepação.

308
Eu sou homossexual solar. Não sou lunar de boate. Meu negócio é praia,
montanha e campo. Eu quero é a terra pra mim transar, na praia deserta com o sol
batendo em cima. Tem que ter sensibilidade e intuição. Principalmente no meu caso
que faço caso com meninos de zona rural, inclusive de outros Estados, para estar
muito próximo do mar, da vegetação, da terra e do sol.
Nos anos cinqüenta quando o concretismo foi implantado no Brasil, o Lewis
Mumford, historiador da cultura, já dizia que a sociedade industrial estava em franca
decadência. Nesse mesmo período a própria esquerda denunciava a implantação
industrial feita a base do material velho, das sucatas das industrias provenientes dos
países dito industrializados. Esse critério de classificar países por desenvolvimento
sempre foi positivista.
Eu afirmava e continuo afirmando que o subdesenvolvimento não é
característica do Brasil ou de qualquer outro país do mundo. Na realidade o planeta
inteiro é subdesenvolvido. Pasolini já dizia: "- É proibido ser pobre", ou seja, quem
tem mais indústria, tem mais distribuição de renda. Essa idéia de progresso imposta
pela raça branca contaminou as outras raças.
Eu acho que o câncer do planeta é a raça branca. Pois se antes você era
obrigado a acreditar no cristianismo, agora você é obrigado acreditar no progresso.
Baudelaire dizia que a teoria do verdadeiro progresso não está no gaz, nem nas
mesas giratórias, o verdadeiro progresso está no afastamento dos traços do pecado
original. A crença no progresso projetou uma moral fascista entre os comunistas.
A Rússia, por exemplo, foi um país que punha homossexuais na cadeia para
trabalhos forçados, tinha o TUPOLEV, apesar de não ter comida na prateleira e nem
a seringa descartável. Neste aspecto, os gregos possuíam uma ciência capaz de
produzir a tecnologia contemporânea. O freudiano Hans Sachs afirma que eles não a
produziram porque o afeto com o próprio corpo era muito mais forte. Ao ponto deles
não precisarem ter extensões do corpo como tratores, muito embora sua ciência
permitisse. Heidegger tem uma idéia similar em relação à ciência asteca. Ele diz que

309
os astecas possuíam o poder de produzir a bomba atômica, entretanto segundo
Heidegger esse não era o projeto deles.
Nos anos sessenta eu tive amigos de todos os tipos. Essa questão de identidade
era algo que não tinha a mínima importância e que atualmente só serve para separar
ainda mais as pessoas. Nos anos oitenta, a invenção do modelo gay caracterizou o
estilo americano da homossexualidade. Esse modelo degradou a cultura ritualística.
As características da iniciação se perderam e transformaram-se em algo amorfo,
numa cultura de massa.
A liberdade sexual, concedida pelo poder, e os modelos apresentados pela
televisão causaram um desastre maior do que todos os anos de ditadura militar
vividos pelo país. Apesar da modernização tecnológica, muito destrutiva, certos
comportamentos ficaram intocados. Em termos de Brasil, por exemplo, a tradição
pagã rural do homossexualismo. Nesse caso, as pessoas mantiveram suas tradições.
O Brasil nunca teve algo parecido com o gueto americano. Nos anos sessenta
as pessoas misturavam-se. Nos bares não se sabia quem era o que porque todo
mundo transava com todo mundo. Esse modelo norte-americano acabou com a
grande ternura e aquela devassidão espontânea do garoto brasileiro, estabelecendo
esse modelo gay/gay que é algo “universotário”. Eu jamais treparia com um garoto
que fosse gay. Estar na do outro é importante para mim, não é estar na minha, mas
estar na de uma pessoa diferente de mim.
O modelo gay norte-americano serve ao consumo de massa, para poder fazer
lobby de sauna, refrigerante, marca de carro, jeans e tudo que possa ser consumido.
Eu acredito que essa divisão é fomentada pela imprensa, fomentada pelos donos de
boates voltadas à clientela gay.
O Brasil é muito poligâmico, muito bissexual. Essas divisões são muito
esquisitas, muito rígidas. Elas não cabem para o país do carnaval, onde homem
casado se veste de mulher... um escândalo para determinados países protestantes. No

310
Brasil predomina a característica bissexual do orixá que o rege, Logun-Edé. Esse
orixá rege um povo do qual ele possui o arquétipo.
Nesse ponto, a visão materialista da história sustenta que a pessoa possui o
arquétipo, mas na verdade é o arquétipo que possui a pessoa. Contudo, se a visão
materialista da história funcionasse em algum lugar do planeta, ela haveria de
sustentar todas essas sociedades totalitárias, as quais tinham tudo para dar certo,
desde a polícia científica, o exército, a bomba atômica e o mais engraçado não
tinham a seringa descartável. Deste modo, não se pode aceitar reflexões que não
correspondam ã realidade. Trata-se de uma balela do positivismo lógico do século
passado.
O marxismo é eivado de positivismo. Marx é um profeta bíblico, careta como
Jesus Cristo, Jeová e todos esses fazedores de deserto. Eu costumo dizer que para
quem se interessa por natureza morta o marxismo é um prato cheio. Inclusive, tenho
um amigo que foi trotskista, porém quando ele conheceu Moscou jogou seu
marxismo pela janela. Esse meu amigo me escreveu um cartão escandalizadíssimo.
Ele foi para a Sibéria, está fazendo um trabalho sobre xamanismo, e contou-me que
além de perseguirem os xamãs, proibiram a medicina budista... constituída pelo
conhecimento sobre ervas e tudo aquilo a que o mundo está se voltando atualmente.
O próprio conceito de bio-diversidade preserva essas ervas sagrado-
medicinais, sagrado-litúrgicas da Amazônia, para evitar o perigo de extinção. A
proibição da medicina budista, riquíssima, com cinco mil anos de idade, para
introduzir o lobby químico-farmacêutico na Sibéria, só revela como a cabeça de
comunista está alinhada com o positivismo.
Quando era garoto, através de amigos, tomei contato com o Vicente Ferreira
da Silva... o maior filósofo do Brasil. O Vicente foi escorraçado da USP pelo fato de
o acusarem de ser direitista, por corresponder-se com o Heidegger, lia Mircea
Eliade, Jung, Artaud. Ele foi muito amigo do Oswald de Andrade que também foi
reprovado na USP. Entre 1960 até a sua morte em 1963, eu e meus amigos nos

311
reuníamos na sua casa. O Vicente e sua mulher, a Dora Ferreira da Silva, tradutora
de Jung pela Vozes, nos recebiam e não faziam nenhuma discriminação.
O pessoal da USP nos achava niilistas. Gente jovem para eles era sinônimo de
palavrão. O Vicente como não tinha preconceito de natureza nenhuma nos recebia na
sua casa. Servia vinho e lá conheci um grande grupo de intelectuais, entre eles
Guimarães Rosa, Julian Marias, o físico Occhialini, muitas pessoas internacionais,
matemáticos, filósofos, antropólogos. Uma verdadeira passarela de pessoas não
provincianas. Era uma espécie de grupo de Eranos que era freqüentado pelo Jung,
Mircea Eliade.
O Vicente Ferreira da Silva costumava dizer: "- O comunismo é não mais o
cristianismo transcendente, mas o cristianismo imanente. É a máquina que produz
cobertores para todos, paletós para todos. É a máquina que entra no caritativismo
cristão"... e na verdade é disso que eles gostam porque são maniqueístas. No fundo
são profundamente jesuítas.
Heidegger, filósofo existencialista, na única entrevista que deu para a
imprensa, somente respondeu a duas perguntas. Numa delas o repórter perguntou:
"- O que o senhor acha da bomba atômica?". Heidegger o questionou: "- Qual? Essa
de agora, ou aquela que explodiu há dois mil anos?". Para o espanto do repórter que
exclamou: "- Mas como aquela que explodiu há dois mil anos !?". Heidegger então
explicou: "-Pois é, quando Cristo disse, meu reino não é desse mundo, ele detonou a
primeira bomba atômica". O mundo tornou-se instrumento do demônio para o
cristianismo.
A expressão "pereat mundus, fiat iustitia/ Morra o mundo, mas faça-se a
justiça" faz a cabeça dessa putada que quer o que a CUT, Central Única dos
Bandidos, fez em Diadema ao invadir trechos inteiros da mata Atlântica com favelas
para eleitor votar no PT, ou seja, destrua-se a floresta amazônica, mas instale-se as
favelas.

312
No Brasil nascem cinco milhões de pessoas por ano. Isso equivale à
população do Uruguai ou da Noruega. E não tem como alimentar. Mas têm essas
pessoas de meio cérebro que ficam distribuindo comida embaixo de ponte através do
Betinho... esse debilóide da luta armada. Porque nesse país até aidético tem que ser
de esquerda. A única forma de combater a fome no Brasil é através do controle da
natalidade. A homossexualidade, até ecologicamente, representa uma luta do próprio
inconsciente coletivo da humanidade protegendo-se contra o excesso populacional.
Antes de freqüentar a faculdade eu já publicava. Publiquei uma tripa poética,
uma folha em forma de sanfona: Ode a Fernando Pessoa. Poema em homenagem a
esse poeta, o qual foi publicado depois na antologia dos Novíssimos pela Massa
Ohno em 1962. Depois publiquei um livro fantástico, mas pouco comentado, o
Paranóia... com fotos do Wesley Duke Lee. O Piazzas foi publicado em 1964. Então
fiquei onze anos sem publicar, até 1975, quando foi lançado Abra os Olhos e diga
Ah!. Eu estou presente na antologia Vinte e Seis Poetas Hoje da Heloiza Buarque de
Holanda e foi por aí a fora.
Essa estética cabaço, poesia de botique, exposta pelos suplementos literários
como sendo poesia, na verdade é a poesia de linha de montagem industrial do
Taylorismo. Charles Chaplin no seu filme Tempos Modernos faz uma sátira ao
Taylorismo. Há cenas em que ele aparece saindo da máquina, entrando na máquina,
sendo cuspido pela máquina e não conseguindo acompanhar a linha de montagem.
Chaplin faz uma leitura anarquista ao desmontar o mundo taylorista.
Mundo que seria proposto por Lênin à União Soviética. O próprio
Maikovisky caiu nessa jogada. Ele parece ligado a TFP ao combater o alcoolismo.
Maikovisky combate a bebedeira de Iessenin, poeta russo, alcoólatra, que foi amante
da Isadora Duncan. Porém quando Iessenin morre, o Maikovisky faz um poema que
tornou-se famoso, no qual ele escreve: "Antes morrer de vodka do que de tédio". O
combate de Maikovisky tentava conter o efeito Iessenin sobre as massas.

313
Eu tenho a obra completa de Maiakovisky. Os oito volumes, em italiano, e
não essas antologias como publicam no Brasil. Pedacinhos em doses homeopáticas
para não apresentar esse lado fascista do Maikovisky. Ele tem escritos proféticos,
mas não acertou um. Um de seus poemas, sobre a luta aérea, é a exaltação positivista
da aviação soviética contra a americana. Hoje, ironicamente, a Rússia e os Estados
Unidos estão aliados para bombardear a Bósnia.
O Iessenin chamado de alcoólatra, de devasso, num de seus poemas já
anunciava: "Vocês vão acabar adorando O Capital como uma nova Bíblia
vermelha". Desde os anos sessenta eu joguei o comunismo pela janela. Por isso sou
um homem pobre. E posso afirmar que fui boicotado de todas as maneiras em
qualquer tipo de emprego que fosse.
Desde a adolescência eu fui reprimido pela esquerda. Essa gente me acusava de
praticar um vício pequeno-burguês e até hoje pensam assim. Posso afirmar que
enfrentei dificuldades financeiras, a vida inteira, por causa da esquerda e das bichas
enrustidas. A esquerda, por exemplo, me perseguiu policialmente. As piores pessoas
em que notei o preconceito contra o homossexual no Brasil eram de esquerda. Aliás,
os países socialistas foram os grandes perseguidores de homossexuais.
Tornei-me conhecido internacionalmente pelo fato de ter poemas publicados
em revistas dos Estados Unidos, o Ênio Peccora do grupo do Pier Paolo Pasolini lia
as minhas poesias na rádio de Roma - que parece ser ouvida na Itália inteira -, tenho
trabalhos publicados em 1965 na revista dos surrealistas: La Brèche. E esse pessoal
ligado a PT, PC, PC de não sei o que, liam minhas coisas e ficavam escandalizados.
Muito mais do que o burguês que nem está preocupado com esses valores.
Além de ser perseguido por esse estigma do pessoal de esquerda, também fui
muito perseguido no próprio meio homossexual pelo fato de gostar de garotos... isso
é um escândalo num mundo onde se gosta de "bofe". O preconceito contra a
pederastia é enorme. Esse pessoal que me perseguiu em todos os níveis é

314
extremamente totalitário. Eles chegam ao ponto de determinar que para ser
homossexual tem que gostar não sei de que tipo de gente.
Eu como os gregos não posso ver pêlos. Eu não transo com macaco. Transo
com adolescente. No dia em que eu quiser transar com pêlo eu pego o gorila do
zoológico de São Paulo, parece que se chama Virgolino, e dizem até que ele transa
com o orangotango... os dois foram separados por moralismo cristão.
Isso é interessante porque Kinsey afirma que começou a estudar a
homossexualidade humana a partir da homossexualidade nos animais. Ele tem uma
escala com todos os bichos e definiu categorias de animais que mais praticam atos
homossexuais. Em primeiro lugar está o leão. Ironicamente o rei dos animais é uma
rainha. Depois o pombo. Eu vejo muito isso aqui da janela de minha casa, inclusive
um dia a transa foi até muito distinta porque um pombo era branco e o outro era
cinza. E o rato. No Kinsey Report, o autor observa que só uma visão judaico cristã
poderia analisar isso como contra-natureza. O próprio Goethe dizia que, na visão
grega, a pederastia está na natureza. E Kinsey não era psicanalista, mas sim um
biólogo que nos fornece suas observações como prova. Eu tenho em italiano seus
dois volumes sobre a vida sexual do homem.
Para fazer faculdade, como não havia terminado o colégio, tive que fazer
madureza correndo em Barra Mansa para conseguir o diploma do secundário. Fui
fazer faculdade muito tarde... nos anos setenta, quando eu já tinha trinta anos. Eu
precisava dar aula para sobreviver e a única pessoa que decidia se me dava emprego
ou não era a diretora de escola. Mas não podia chegar numa escola e falar que queria
dar aula porque tinha três livros publicados. Naturalmente eles me mandariam
embora dizendo: "- Vai pastar pô, só podemos dar aula para quem está matriculado
na faculdade". Então fiz Estudos Sociais na Farias Brito em Guarulhos.
Fiz a faculdade de Sociologia e Política, com grandes caras que havia lá, para
poder lecionar. Lia aqueles textos na faculdade para poder passar de ano, inclusive
alguns professores me conheciam e exclamavam: "- Nossa! O poeta Roberto Piva!

315
Mas quem sou eu para poder avaliar você!?" e eu dizia: "- Olha, não vem com esse
papo. Eu preciso desse diploma porque tenho que continuar pagando o aluguel do
meu apartamento. Então você precisa me avaliar". E desde o primeiro ano no curso
superior comecei a dar aula.
Em 1983, depois de quinze anos, parei de lecionar. Não por causa dos alunos.
As oitavas séries todo ano me escolhiam para paraninfo. Os alunos eram
maravilhosos, muito doces... transei com muitos deles. Eles percebiam que aquilo
era um ritual de iniciação, não em nível consciente de falar-lhes que aquilo era um
ritual, mas o ritual funcionava em nível inconsciente.
Fiz a faculdade nos anos setenta. Desde então dei aula em colégio particular,
em cursinho e no Estado. Tanto que não tenho aposentadoria pelo fato de ser
professor contratado a título precário... não havia feito concurso. Nos colégios
particulares parei de dar aula porque não agüentava mais. Há uma hora que é preciso
jogar dinamite naquilo que está feito e partir para outra coisa. A instituição é muito
careta, por exemplo, nunca entrei na sala dos professores. No tempo em que dava
aula era a época da ditadura militar. Foi a época em que se fez mais orgias no Brasil.
Todo mundo era livre, puxava-se o fumo na rua e não havia muitos comunistas
enchendo o saco.
Depois que parei de dar aula fiz milhares de trambiques para sobreviver.
Assessorei um deputado ecologista e meu amigo, Fábio Feldman. Falo de ecologia
nos meus livros desde os anos sessenta, quando a esquerda dizia que isso era
bruxaria... na verdade é a única ciência que existe. Essa visão está no Vinte poemas
com Brócolis.
Quando minha mãe morreu, em 1991, ela me deixou um apartamento que
alugo. E entre outras coisas é assim que vou vivendo. É comum ouvir um intelectual
de esquerda dizer: "- Ah!, voltei ontem de Paris. Fui lá na livraria comprar livro de
marxismo". Eu não sei onde essa gente arruma tanto dinheiro. Todos esses
intelectuais de esquerda da USP, da PUC são extremamente ricos. Não há um que

316
não tenha pelo menos carro, casa ou apartamento, casa de campo não sei em que
lugar. Eles vão a Europa todo ano.
O Mattarazzo Suplicy tem uma casa no Morumbi que daria pra assentar
trezentas famílias de sem-terras. Ou é o famoso ouro de Moscou que ironicamente
não existe mais, ou talvez fosse Cuba, ou não sei ao certo o que eles fazem.
O que sei é que se a economia realmente movimentasse a história o sambista
Cartola, um cara refinadíssimo, não poderia ter nascido no morro, teria que ter
nascido numa cobertura em Nova Iorque. O Pixinguinha que era do morro, no Rio de
Janeiro, também não poderia existir porque não tinha dinheiro para comer. Ele foi
moleque descalço por não ter dinheiro para comprar sapato. Além do mais, a falta de
dinheiro nunca determinou a qualidade da minha poesia, que é de nível
internacional.
Eu fui uma pessoa que passei a vida sem dinheiro, às vezes não tenho
dinheiro para pegar ônibus, mesmo assim tenho poemas publicados no exterior.
Famosíssimo e paupérrimo, apesar do bloqueio imposto pela esquerda para que a
minha obra não se tornasse uma avalanche.
Hoje a situação está mais hipócrita, depois que a mídia toda ficou impregnada
por essa coisa modernosa, fascista-vermelha chamada PT... além de ser influenciada
pela classe média.
Basta observarmos o marketing feito para a escola de samba Mangueira
vencer o carnaval de 1994... por causa desses ídolos de momento. Eu acho um
absurdo essa descaracterização do samba de morro. Não é justo dar o prêmio à
escola de samba que agrada a classe média.
Esse pessoal da mídia é muito provinciano. Quer jornal mais provinciano que
a Folha de São Paulo? Um jornal de província feito pela caboclada e pela gente de
pau pequeno. Gente que veio do interior e quer usar sapatinho de verniz para passear
no estilo Geisel-funério da avenida Paulista... todos os prédios se parecem com a
tumba dos antepassados do Mattarazzo-Suplicy, aqueles túmulos com vidros fumes

317
pavorosos. E esses jecas dessas mídias ficam promovendo esse retardado mental,
descendente do conde Matarazzo.
Os petelhos, os intelectuais brasileiros e a mídia de classe média querem botar
no poder aquelas pessoas tristes que não sabem dar risada, não sabem pular o
carnaval. Exatamente para implantar a tristeza monoteísta no Brasil via o falso beato.
O rabino anão do Lula da Selva. A mídia é totalitária.
Tenho um amigo que trabalhou no Jornal da Tarde. Ele me disse que saem
em média dezoito notícias sobre discos voadores semanalmente. A comunistada da
redação joga tudo no lixo. Esse meu amigo é perseguidíssimo por ser homossexual,
ufólogo e ter visto um disco voador. Para eles isso é um pecado mortal, pois
extrapola a ciência.
Stalin fazia afirmações extremamente reducionistas ao atribuir o fenômeno
dos discos voadores a conspiração da CIA. Sua mentalidade foi capaz de reduzir a
discussão a esse único ponto. Esse pensamento pré-cartesiano ainda prevalece do
mesmo jeito porque é um vício do qual eles gostam. O Pasolini, em seu livro Caos,
afirma que os discos voadores são anjos... e que existem. Ele reflete sobre a crença
de uma visão pré-Galileu, segundo a qual a Terra seria o único planeta habitado,
colocando em questão esse privilégio.
Eu acredito que os valores da classe média, enquanto valores que vivemos
numa sociedade de consumo, tendem a se universalizar. Nesse período até
inventaram uma doença para essas firmas quase falidas de camisinha, Johnson &
Johnson, Jontex, lucrarem com o consumo. O João Silvério Trevisan contou-me a
respeito de uma matéria, divulgada pela Veja sobre um cientista prêmio Pulitzer, a
qual caminha no mesmo sentido de uma declaração que fiz há muito tempo no
Primeira Mão. Eu declarei que agora ocorreria a descoberta da cura do câncer
porque a medicina alopática precisa de uma doença incurável para poder faturar. No
caso, as indústrias de camisinha estavam em franca decadência e agora estão
acendendo charuto em nota de dólar.

318
Porém, o consumo de drogas também aumenta. A garotada está precisando da
viagem xamânica. Ela por si só já é uma abertura, a necessidade de iniciação por
alguém que os leve para o desconhecido, onde quer a pessoa seja ativa ou passiva -
essa noção e seu significado são discutíveis, segundo Hermes Trimegisto: "Tanto o
que está por cima quanto o que está por baixo são uma única e mesma coisa" -,
recupera-se o ritual milenar do menino que está se preparando para xamã.
Nas tribos siberianas, por exemplo, nas quais o menino se sente um excluído,
ele veste-se de menina e toma um marido. Em Roma o culto do deus Mitra era
composto, entre outras coisas, pela categoria dos ninfos: adolescentes que se
castravam para manter relações sexuais com os sacerdotes da religião. Esporus, um
menino entre quinze e dezesseis anos, manteve um caso com Nero até a morte desse
imperador. Depois matou-se numa dignidade única. Nesse caso, sendo Nero um
iniciado do culto de Mitra era como se o adolescente mantivesse relações com o
próprio deus.
Esse culto tinha a especificidade de ser da milícia romana. As grandes ruínas
dos templos de Mitra, os mitraions, estão localizadas nas fronteiras do Império
Romano. Nelas os soldados realizavam o culto que foi copiado pela Igreja Católica:
o coroinha veste-se com roupas iguais ao do ninfo, havia a comunhão, tomava-se o
vinho e comia-se churrasco de boi, pois sempre se vê Mitra lutando contra o Touro.
A carne depois é substituída pelo pão... e até a chapéu do bispo chama-se mitra.
Bastante do que li eu utilizo para contar a minha vida porque é tudo
misturado. Eu sou a antítese dessa gente que a arte está na escrivaninha e é um
funcionário público... sou a antítese dessa separação. Para começar não sou
funcionário público. A minha arte não está na escrivaninha, a minha arte está na
vida. Prefiro viver os poemas do que escrevê-los... porque dá muito trabalho.
Eu não sei escrever a máquina e preciso chamar alguém que fica três horas
para bater os poemas. Tenho uma máquina quebrada e não tenho dinheiro para

319
mandar consertar, assim ficam elas por elas. Estou com dois livros parados por causa
desses problemas... mas isso não me preocupa.
Esses intelectuais de esquerda da USP, da PUC são intelectuais positivistas.
Eles nunca põem em cheque a ciência, como faz o Paul Feyerabend quando escreve
Adeus a Razão & Contra o Método... ele propõe a introdução na ciência do método
anarquista & dadaísta. Feyerabend possui uma interpretação não materialista da
história, mas dialética das sociedades. Num livro chamado A Ciência numa
Sociedade Democrática... Science in a Democratic Society, ele diz que numa
sociedade democrática deve-se separar a ciência do Estado. O que se vê é o Estado
brasileiro impondo a ciência para o tratamento da AIDS.
Nós só não temos o xamanismo como regra atual da medicina porque através
da dominação política foi imposto um outro tipo de medicina sobre os povos ditos
primitivos, apesar do próprio nome já dizer que o médico faz tratamento e o
curandeiro cura. A ciência deve ser separada do Estado.
O intelectual brasileiro que afirma criticar tudo, não critica a ciência. Acredito
que o intelectual brasileiro é um acomodado, seja ele hetero ou homossexual. É um
acomodado por não fazer a crítica fundamental à ciência. Atualmente esses
intelectuais estão tendo que ter o confronto com a própria sombra. Isso é um
espetáculo para se assistir de camarote, comendo pipoca e dando risada. Os
intelectuais são os últimos a chegarem na desagregação do mundo monoteísta, das
culturas monoteístas, das religiões monoteístas, como o Marxismo, o Islamismo, o
Cristianismo e o Judaísmo. Eles são os últimos a chegarem porque são pessoas
perplexas diante de tudo o que está acontecendo. Perplexas no pior sentido da
palavra, devido ao fato de não fazerem o autoconfronto.
O Monnerot já dizia: "- Tem que se desmarxizar a universidade". Primeiro
porque marxismo não é ciência. O próprio Sartre dizia tratar-se de uma religião. Ele
só não completou dizendo que era monoteísta porque como marxista,
provavelmente, devia achar que era tudo a mesma coisa... o que não é verdade.

320
Enquanto no ritual católico só o padre toma vinho, no candomblé é comum se tomar
bebum e comer da comida do santo. O candomblé é uma religião da Terra e
principalmente da vegetação. Há até um slogan muito difundido para quem pratica
candomblé: "sem folhas não há orixás".
Nós estamos assistindo a um período muito rico, onde tudo aquilo que era
considerado heresia está tomando conta do primeiro escalão, como o tarô, a
astrologia, o xamanismo, o candomblé. O candomblé, de acordo com o livro de
Reginaldo Prandi, aumentou oitenta por cento dos anos sessenta para cá... ganhou
adeptos entre todas as classes sociais. Graças ao trabalho de um grande babalorixá,
Joãozinho da Goméia que era homossexual, como muitos pais de santo... porque o
candomblé é uma religião onde grande parte dos orixás são bissexuais, assim tem
que haver um sacerdote bissexual que os receba na sua totalidade.
Os coribantes, sacerdotes que antecedem a Cristo, representam as origens
mais antigas dos pais de santo. No Fedro, de Platão, Sócrates em diálogo com o
jovem Fedro compara a poesia como delírio coribântico dizendo: "- Ou seremos nós
como os coribantes que tocam tamborins, dão urros e quando recebem a divindade,
balançam o pescoço da frente para traz".
O candomblé, segundo Pierre Verger, tem de três a quatro mil anos. O meu
pai de santo Marco Antônio de Ossain afirma ter mais de dois mil anos. Todos têm
tais afirmações porque a África foi um protetorado romano que sincretizou os deuses
greco-latinos. Nesse sentido dizem até que Iemanjá é Afrodite, Vênus é Oxum. O
próprio Pierre Verger, em seu livro Orixás, mostra um machado de Zeus igual ao de
Xangô... o machado que corta dos dois lados para mostrar a bissexualidade do deus.
Sou um cara ligado na direita sagrada. Não acredito em nenhum político da
direita no Brasil. Provavelmente, só o Carlos Lacerda, mas na época eu era contra.
Atualmente, fazendo uma análise histórica, ele seria o grande político porque tinha
essa visão de Brasil epifânico.

321
Os grandes intelectuais eram e são altamente de direita: Elliot, Pound,
Lawrence. O próprio Dante, o maior poeta da Europa, provavelmente do mundo. O
Dante foi um monarquista que ficou contra a sua cidade e a favor do Frederico Barba
Roxa, imperador germânico, no tempo em que já havia uma burguesia incipiente em
Florença. Ele foi exilado, vivia e comia na mesa com os criados do Marquês de
Malespina que o protegia na cidade de Lucca. Os italianos não se reconhecem em
Dante, por ele não ser um oportunista como essa gente de esquerda aqui no Brasil.
Mas Dante caminhou até o fim ao lado da monarquia.
Os grandes intelectuais da nova era são ligados a direita, Mircea Eliade, Jung,
Julius Évola. Esse último escreve sobre tantra e é citado por Pasolini no Salò.
Pasolini afirma também que os fascistas perderam sua identidade por deixarem de lê-
lo, passaram a acreditar numa sociedade de consumo... tornando-se tão pavorosos
quanto os democrata-cristãos.
Esse estilo musical fantástico e maravilhoso, a New Age, também está ligado à
direita, assim como uma parte dos surrealistas ligados a Malcolm de Chazal... ele
acreditava que as montanhas da Ilha Maurício falavam com ele. O grupo surrealista
fez uma reunião em Paris para decidir se expulsavam Malcom de Chazal, apesar
deles o considerarem o maior escritor de todos os tempos por causa de suas
metáforas.
O Malcom de Chazal não foi expulso por causa de um voto de Alexandrian.
Um trotskista do grupo que possui a melhor obra sobre história da arte e sobre
história da filosofia oculta. Então, o Alexandrian escreve uma carta a Malcom de
Chazal contando-lhe: "- Fizemos uma reunião, a maioria votou contra você. O
Breton e eu votamos a seu favor. Eu porque acho que você tem o direito de acreditar
em Deus. Votamos, você venceu e não foi expulso". O Malcom de Chazal respondeu
ao Alexandrian: "- Por que você votou a meu favor!? Você é um filho da puta! Devia
ter votado contra! Eu não acredito em porra nenhuma desse pessoal que votou contra

322
ou a favor de mim!! As montanhas da Ilha Maurício falam comigo!! Os deuses estão
aqui!!"
Nesse período os surrealistas estavam muitos ligados ao marxismo, porém
nem todos eram ortodoxos. O Crevel, por exemplo, era uma pessoa muito livre,
apesar da ruptura ele havia sido marxista. O Artaud nunca acreditou nisso. Antonin
Artaud foi para o México. Lá iniciou-se no xamanismo com os índios taraumaras.
Fez o ritual do peiote e escreveu um livro brilhante, cuja leitura é importantíssima:
Os Taraumara... principalmente agora em que a visão judaico-cristã avança sobre o
xamanismo.
Como se houvesse uma única forma de xamanismo!! O que não é verdade, há
o xamanismo Yanomani, o xamanismo Iacute e o de Don Juan, narrado por Carlos
Castañeda, o xamanismo dos guaranis, aqueles índios maravilhosos, aqui perto da
represa de Guarapiranga... eles fazem pajelança de cura.
Eu tenho um poema para Spengler, historiador da direita maravilhosa, da
direita que mexe com o sagrado, enquanto que a esquerda mexe com o profano e o
positivismo. É possível afirmar que a esquerda não lê Jung. Esse autor era
profundamente anti-marxista. Em 1938 ele fez observações a respeito da estrela
vermelha masculina na bandeira russa e da estrela branca feminina na bandeira
americana, afirmando que esses países tendiam a ser aliados.
Falei a esse respeito com um pessoal do Partido Comunista que se formou
comigo na faculdade de Sociologia e Política e eles deram risada. Eu lhes disse que
eles deveriam dar risada de seus pressupostos teóricos que estavam liquidados.
Naquele momento alguns tiveram um insight, outros não. Como todo o intelectual
brasileiro depois da queda do muro de Berlim.
A esquerda voltou a ficar inquieta novamente. Os filhos dos esquerdistas têm
me procurado muito por causa da poesia. Essa geração não acredita mais no universo
dos pais. Num universo ligado ao concretismo e a uma visão “PTelha” da vida. A
cabeça dos petistas é igual a dos jesuítas. Eles são moralistas, castradores e fascistas.

323
O PT atualmente é o partido fascista. Por isso é preciso apoiar qualquer candidato
que se coloque contra o Lula.
O rabino anão do Lula da Selva, com aquela barba de falso beato. Ele precisa
ser combatido. Só assim combateremos o monoteísmo. Um amigo meu diz que é
preciso até votar num poste da Light, no Collor, Maluf, Antônio Carlos Magalhães,
Fernando Henrique Cardoso, José Serra ou votar seja lá em quem for para combater
essa gente.
Eles querem empurrar o falso beato do Lula no poder para salvar Cuba. O país
que mais perseguiu o homossexualismo. Em Cuba as pessoas são fuziladas por delito
de opinião. É muito contraditório ouvir esse pessoal do PT que não é a favor da pena
de morte no Brasil defender Cuba. Nesse caso eles estão defendendo também a pena
de morte.
Essa putada dos intelectuais brasileiros não sabe que só se lembra da liberdade
depois de perdida. O primeiro plano do PT é começar a censura na imprensa. É um
projeto de lei do Zé Dirceu, aquele sessenta-e-oitista que dizem ter sido caso do
Alfredito Guevara, no tempo em que ele era bonitinho, mas como qualquer
comunista afirma que não e torna-se aquela coisa hipócrita.
O povo brasileiro não vota no PT porque é aristocrata. As elites e a classe média
são plebéias. Eu acredito que o povo brasileiro tem no seu inconsciente a monarquia.
Um regime político que devido à extrema verticalização da cúpula permite uma
maior anarquia das bases. Na Espanha, por exemplo, um garoto de treze anos já é
considerado maior para qualquer atividade sexual. A maconha é livremente
consumida. Na Holanda todas as drogas são permitidas. Inclusive a rainha da
Holanda tem participação de lucros no imposto sobre a droga. A prostituição é
livre... somente a figura do gigolô é proibida.
Apesar da monarquia manter uma maior anarquia das bases, mantém ao mesmo
tempo a imagem do sagrado. O Brasil é uma civilização jovem e aristocrática que

324
corre risco caso continue ouvindo os comunistas... essa sucata que acabou no mundo
inteiro e parece que todos vieram para o Brasil.
Estou amordaçado no Brasil, mas toda oportunidade que tenho, exerço o meu
papel crítico de intelectual, às vezes dando entrevistas onde eu falo três horas e
publicam o equivalente a cinco minutos. Acredito que para um intelectual como eu
só resta retirar-se para uma ilha, ou ter muito dinheiro para morar na reviera
francesa, em Roma, ou na Ilha de Marajó.
A esquerda domina o pensamento do país e não há uma direita sagrada forte
que possa se contrapor a isso. A direita no Brasil é muito iletrada. Filosoficamente
falando, tanto o Maluf quanto esse pessoal alinhado junto a direta, não conhecem a
teoria marxista o suficiente para poder combater a esquerda. Combater o discurso
desses deputados petistas que não estão interessados no povo brasileiro, mas no
socialismo.
O pessoal do PT passou a vida esperando morrer por uma causa, só que a causa
morreu antes deles. Agora só resta proteger Cuba, pois subtende-se que salvar Cuba
é salvar o socialismo.
Lá no Lampião, um jornal da fragmentada mídia alternativa, nunca me
convidaram para escrever um poema. Uma grande parte do jornal era dominada pela
esquerda... evidentemente não eram todos. Havia pessoas que colaboravam com o
Lampião, mas não tinham poder de decisão. Glauco Mattoso escreveu a respeito da
minha produção literária nesse jornal. Além do que, prevalecia aquele modelo
Bofe/Bicha e meu universo nunca foi isso.
Nunca fui atrás dessas bobagens de querer bofe, enquanto a bicharia brasileira
caiu no conto do vigário. Acreditaram nessa balela de ter que ser como a mulher, ter
um lado mulher, ter que defender a mulher. Só que a mulher é um ser à parte. É
verdade que ela serve para botar garoto no mundo, mas é outra experiência. Como
puxar o fumo, subir em arvore, transar, etc. Homossexualismo não tem nada a ver
com isso.

325
Homossexualismo é coisa de macho, como diz o Genet: "Homem que beija
outro homem é um duplo homem". O termo "homossexualidade" é um termo médico
forjado em 1869 para dividir o corpo das pessoas. A medicina poderia assim exercer
seu poder nefasto e o desejo seria o único qualificativo viável para a manifestação de
tesão.
Antonin Artaud que era um poeta xamânico dizia: "- O sexo tem que ser frio,
mercurial como o éter". E Ferenczi, denominado enfant terrible da psicanálise,
afirma que não existe a fase anal, genital, mas que a libido é flutuante. Nesse
sentido, a questão da identidade é inexistente: o gay não existe para a libido.
Apesar de que nessa comunidade, especificamente, quem gosta de garoto é
banido. Passa a compor uma minoria dentro da minoria porque fala uma outra
linguagem. Para mim o prazer dos deuses é com adolescentes... os gregos já diziam
isso. O próprio Zeus rapta um pastorzinho chamado Ganimédes. Por essa causa
diziam que quem experimenta o gosto pelos adolescentes experimenta o prazer dos
deuses. O adolescente é essa síntese de masculino e feminino. É um prazer ligado ao
solar, principalmente dionisíaco.
O João Silvério Trevisan foi um dos poucos que me incluiu na literatura
homossexual brasileira, porque a maioria não inclui. E na verdade, eu quero que essa
gayzada, essa gente da esquerda, sempre ligada a essa canalha da Igreja Católica,
marche sobre um abismo.

326
. Nasceu em São Paulo (capital),
em 1946.

.Professor de Antropologia na UFBA.

. Estudos acadêmicos: Psicologia Social


(Bachelor of Arts) University of Sussex;
Sociologia da América Latina (Master of
Arts) University of Essex; Doutor em
Antropologia pela Universidade de São
Paulo.

.Autor, entre outros: O que é


homossexualidade (com Peter Fry), 1983; A
construção da Igualdade, 1990

Edward MacRae.

327
Após algumas tentativas contatei o
professor Edward MacRae. Tive sorte, pois
ele estava de mudança para Salvador, prestes
a assumir a vaga de docente na UFBA.
Naquela semana, porém, contou-me que
ainda estaria em São Paulo. Marcamos a
entrevista, apesar de não conhecer o local, as
leituras inspiravam uma confortável
familiaridade. “Previ” que seria próximo a
Praça da República. No local “previsto”, ele
narrou as fases de transição que viveu. O
apartamento concentrava a mesma aura de
transição, anunciada para a cidade de
Salvador. Encerrada a gravação, ele mostrou
o acervo de documentos utilizados no seu
trabalho de pesquisa. Depois assistimos o
vídeo de sua defesa de tese, no qual ele fazia
referência, logo no início, às futuras
gerações de pesquisadores. Ele chamou
minha atenção, disse que minha chegada já
fora “prevista” há quase dez anos.

São Paulo, SP,


30 de agosto de 1994.

328
“Sempre vivi minha vida por fases, elas têm início, meio e fim: a
fase em Edimburgo, a fase na Escola Antroposófica, a fase que dei aula
na Cultura Inglesa, a fase universitária, a fase do SOMOS, a fase do
Daime...”

Meu pai era escocês. Em 1936, devido à depressão vivida pela Europa, ele
veio para o Brasil. Ele vinha da Escócia, de Edimburgo, onde trabalhava numa
companhia de seguros, mas era um emprego sem futuro. Ele veio para o Brasil. Aqui
ele já tinha algumas ligações familiares. Se não me engano, o pai dele em 1920 ou
1922, veio para o Brasil, desde a primeira guerra mundial, ele havia sido um “objetor
de consciência”, recusou-se a lutar porque era pacifista. Pelo que me dizem, era uma
pessoa especial, apoiava uma linha espiritualista, vegetariana, bastante romântico,
muito sonhador e inteligente.
Na Primeira Guerra Mundial a situação de quem se recusava a lutar ficava
complicada. Meu avô veio para o Brasil e trabalhou em empregos temporários.
Nunca mais se ouviu falar dele depois que partiu numa expedição para Goiás. Parece
que ele morreu de alguma doença, não se sabe qual. Isso pouco tempo depois de
estar no Brasil. Por essa causa, meu pai foi criado pela avó e pelo tio.
Quando meu pai veio para o Brasil, tinha um primo dele que trabalhava em
Santos. Era dono de uma corretora de seguros, na qual meu pai foi trabalhar. Não
deu certo, então ele se mudou para São Paulo.
Minha mãe é brasileira. Ela era de uma família tradicional, mas que havia
perdido dinheiro. A minha avó materna foi criada na Europa, com toda uma série de
altas ligações familiares e de amizades. Assim, culturalmente o nível de sua família
era muito alto, mas economicamente eles passaram por uma fase sem dinheiro. Na

329
casa da minha mãe, falava-se português, porque eles eram brasileiros, mas a minha
avó falava inglês e francês, e o meu avô falava inglês, francês e alemão.
Meus avós, desde que minha mãe era pequena, a mandaram para escolas de
línguas. Ela falava inglês e francês muito bem. Assim, foi trabalhar como intérprete
na PANAIR e freqüentava as rodas onde se falava inglês. Desta forma, ela conheceu
meu pai. Eles se casaram em 1945 e nasci em 1946.
Meus pais moravam numa casa construída pelos meus avós. Numa época em
que compraram um grande terreno na Cardoso de Almeida, no qual construíram
várias casas, uma ao lado da outra, e meus pais moravam numa delas ao lado da casa
dos meus avós. Posteriormente meus pais se mudaram, mas durante muito tempo
moraram perto dos meus avós. Devido a este arranjo, em casa falávamos inglês,
porém na casa dos meus avós se falava português, embora eles também falassem
inglês, mas foram as pessoas que se encarregaram de me ensinar a falar a língua
portuguesa. Desta maneira, fui criado como bilíngue vivendo neste ambiente.
Meu pai começou a trabalhar numa corretora de seguros inglesa em São
Paulo. Ele se deu muito bem e acabou se tornando sócio da firma. No campo
profissional, a vida dele foi de ascensão social, financeira até morrer há algum tempo
atrás, mas muito bem de vida. Ele expressava o espírito do selfmademan, numa
forma escocesa, parecida com a Ética Protestante, ou seja, trabalhar duro e
economizar bastante.
Por essa causa, fui criado num ambiente de classe média alta, ligado aos
níveis mais elevados. Meus pais eram econômicos e não eram de esbanjar dinheiro.
Nós tínhamos um alto nível de vida, mas sempre tomando cuidado, havia sempre
uma ideologia de poupar, algo bem clássico do comportamento escocês e europeu.
Meus pais eram bastante felizes, brigavam de vez em quando, meu pai foi
uma pessoa muito honesta, muito fiel, assim como minha mãe. O clima em casa era
bastante bom, com base na confiança e mantinham-se os papéis de gênero
tradicionais. Minha mãe era dona de casa, tinha uma empregada que a ajudava, mas

330
ela sempre cuidou do lar. Ela saía muito, era uma pessoa muito sociável, com muitos
amigos, entre outras coisas, fazia chazinhos para as madames do nível dela,
recepções para os clientes do meu pai, para os amigos dele, enfim, coisas
tipicamente de classe média alta. Ela não trabalhava fora e meu pai mantinha a gente
em casa.
Sou o mais velho. Nós éramos quatro irmãos: eu, três anos depois a minha
irmã, um ano e pouco depois o meu irmão e nove anos mais novo do que eu um
outro irmão.
No Jardim de Infância, fui para um colégio alemão. A minha mãe manteve
essa mania de ensinar línguas. Ela queria que eu aprendesse alemão, então fui para o
Porto Seguro. Antigamente o prédio era situado na Praça Roosevelt. Estudei lá o
Jardim de Infância. Era muito estranho, foi uma das primeiras vezes que saía daquele
ambiente caseiro, mais inglês, para um ambiente alemão. Não entendia muito bem as
coisas e depois os meus pais acabaram me botando numa escola do Estado.
Na juventude, meu pai era muito sonhador, ele se colocava mais ao lado da
esquerda. Tenho um livro que era dele, uma cópia do Capital. Ele era uma pessoa
bastante questionadora, diferente. Um grande exemplo disso é o fato dele ter se
casado com a minha mãe. Ela era brasileira e na época os ingleses casavam com
inglesas. Outro exemplo, durante a Segunda Guerra ele permaneceu no Brasil,
enquanto vários de seus amigos retornaram à Inglaterra para lutar. Ele ficou também
porque era pacifista e não tinha a menor vontade de ir na guerra. Ele era uma pessoa
especial e inteligente. Porém com o passar do tempo, meu pai foi ficando cada vez
mais conservador. Mais tarde, ele se tornou ferreamente anti-comunista, anti-
esquerdista, mas na época de minha infância ele não era assim.
Meu pai desenvolveu uma crítica aos brasileiros, era contra a idéia d’eu ser
um filhinho de papai. E não queria que fosse criado como tal, pois contrapunha-se à
forma como os brasileiros viviam. Ele era muito crítico da juventude brasileira.
Desta forma, me mandou para o ensino público.

331
Minha mãe havia estudado num colégio do Estado. Ela estudou no Caetano
de Campos. Na época dela, realmente, eram os melhores colégios. À época que fui
para o ensino público, contudo, era o começo da decadência dos colégios do Estado,
mas ainda eram razoáveis. Fui para um Grupo Escolar. Porém, houve alguns
problemas no que se refere à questão do bilingüismo, os quais sempre me
acompanharam. Era como se estivesse em dois mundos à parte. E com a mudança
para o colégio do Estado, esse problema afluiu novamente, porém dentro de uma
outra variável: a questão da classe social.
Na época os filhos de amigos dos meus pais, geralmente, estudavam em
colégios particulares, como o São Luís. A classe média alta mandava seus filhos para
o ensino particular. Nesse colégio onde fui estudar, a maior parte das pessoas era de
classe média baixa ou classe operária, mais ou menos bem organizada, bem unidas
para mandar os filhos para a escola direitinho. Não se tratavam de indigentes,
contudo era uma classe social diferente. E percebia a escola como um outro mundo
diferente do meu.
Quando era pequeno, nós freqüentávamos o clube inglês. Os ingleses tinham
preconceito contra os brasileiros, falavam mal do povo. Nunca sabia muito bem
aonde me situar. Era brasileiro, minha mãe era brasileira, meu pai não admitia que se
falasse mal da minha mãe, nem dos brasileiros. Mas neste tempo ele encapava várias
críticas que se faziam aos brasileiros. Criança é muito conformista, ela gosta de ser
como os amiguinhos. E eu não era exatamente como os meus amiguinhos do clube
inglês e que estudavam no colégio inglês em São Paulo. Neste sentido, também tive
problemas porque me sentia um pouco inferior aos ingleses: “- Era inglês ou não era
bem inglês?” Minha mãe era mais esnobe que meu pai. Eu freqüentava festinhas dos
filhos de amigas dela. Ao mesmo tempo, ela me encorajava a não fazer amizades na
escola pública, porque eram pessoas de outra classe social. Essa dificuldade sempre
esteve presente, mas meus pais me incentivavam muito.

332
Acabei pulando o quarto ano. Estudei com uma professora que preparava um
grupinho, fiz um cursinho particular para fazer admissão. Nessa fase, meu pai já não
era a favor de me botar em colégios públicos. Eles queriam que fosse para o Santa
Cruz. Prestei o exame neste colégio e não entrei. Acabei sendo admitido no ginásio
do MacKenzie. Minha mãe tinha estudado no MacKenzie, mas isso foi muito tempo
antes. Achei terrível o colégio, odiei, ainda continuava com dificuldade de
adaptação, em parte devido ao bilingüismo e também porque minha mãe me
incentivava a não ter amigos na escola. Ela dizia que os meus amigos deviam ser os
meus irmãos. Na escola conseguia me dar bem em certas matérias e ser péssimo em
outras. Quando terminei a terceira série do ginasial, fiquei de segunda época. Não
estava bem no MacKenzie.
Nunca soube o que deu na cabeça do meu pai, mas um dia ele me perguntou:
“- Você quer ir estudar na Inglaterra?” De certa forma, achava que seria muita
bundamolice da minha parte dizer: “- Não”. Eu me senti desafiado, como se fosse
uma decisão minha, e realmente sempre senti que foi. A partir disso, tentei me dar
bem neste objetivo, assim faria qualquer coisa para sair do MacKenzie porque o
odiava.
Minha avó, na época da Primeira Guerra, contava que foi interna na
Inglaterra, na Suíça e depois na Alsácia. Ela contava histórias terríveis, sempre dizia
que nós tínhamos sorte porque os pais dela eram separados, desde muito cedo ela
ficou no colégio interno, e nós morávamos com nossos pais que eram muito
carinhosos. Ela sempre falava sobre esse assunto. De repente, fiquei meio
apreensivo, provei a sensação de poder ir para um colégio interno na Inglaterra. Por
outro lado, havia toda uma idealização que fazia da Inglaterra.
Em fevereiro de 1960, meus pais me levaram para Edimburgo, na Escócia,
onde morava o meu tio-avô que, junto com minha bisavó, havia criado meu pai. A
princípio, meu pai pensava em me colocar na escola onde ele tinha estudado. Não

333
era um colégio interno, mas era muito bom. Era do Estado, parecido com um colégio
de classe média, puxado, considerado de bom nível.
Na época, eu falava inglês, mas estudava em português. Aprendi a escrever
em inglês no MacKenzie, mas aprendi na aula como as outras pessoas. Antes disso,
sabia ler um pouco em inglês, mas fui aprendendo a escrever na escola. Toda a
minha educação se deu em línguas, não se restringindo à portuguesa. O programa de
ensino em Edimburgo era difícil para mim, por exemplo, não sabia nada a respeito
de História da Escócia porque era diferente. Acabei não entrando para esse colégio,
fiquei deprimido, e meu pai ficou preocupadíssimo... ele não sabia o que fazer.
Nós saímos para viajar pela Escócia e fomos até os Estados Unidos,
estávamos nos feriados de Páscoa. Nessa viagem, a preocupação dos meus pais era
sobre o que fazer comigo. Eles conheceram uma família escocesa, em Edimburgo,
que tinha filhos num colégio e estavam muito contentes. Um dos filhos desse casal
também teve muitos problemas, não se adaptou muito bem na escola do Estado,
então o puseram para estudar nesse colégio. O filho deles se deu muito bem e
puseram os outros dois filhos: era uma escola Antroposófica.
Na minha infância, meu pai era ateu convicto e militante. Na escola, aqui no
Brasil, nós tínhamos aula de catecismo. Quando chegava em casa, ele perguntava o
que havíamos entendido e dizia: “- Tudo bobagem. É tudo mentira. Deus não
existe”. Minha mãe era católica, mas não era praticante. Ela também era um pouco
revoltada com o catolicismo e com a religião em geral. Houve problemas quando
meus pais se casaram, a minha mãe era católica, naquela época a Igreja era muito
conservadora e meu pai oficialmente era protestante, não era católico, então não
queriam deixar eles se casarem. Antigamente os casamentos mistos eram muito
complicados. Meus pais acabaram não se casando na igreja, fizeram uma cerimônia
com um padre, no jardim da casa dos meus avós, mas não foi na igreja. Meu pai
achava isso humilhante. Desta forma, na minha família o clima não era nada
religioso, nada espiritual, meu pai era materialista.

334
Meus pais me puseram nessa escola antroposófica, mas sem saber o que era a
antroposofia. Meu tio-avô, com quem fiquei, já entendia mais dessas coisas. A
geração dele e do meu avô, o que veio para o Brasil, era pacifista na Primeira Guerra
Mundial. Meu tio-avô também foi pacifista, também foi preso por não ir à guerra.
Ele sabia quem eram os antroposóficos, mas ele era uma pessoa reservada, um
escocês. Achou que essa seria uma boa escola.
Fui para esse colégio e meus pais voltaram ao Brasil. Quando cheguei nessa
escola, ela era mais livre do que as que havia conhecido. Um dos princípios era que
há épocas certas de ensinar, sendo assim não adiantava trabalhar muito o lado
intelectual de uma criança muito nova, mas, quando pequena, deve-se buscar a parte
mais imaginativa, artística. A parte intelectual só deve ser desenvolvida depois dos
quatorze anos. Nessa época estava com treze anos e meio. No Brasil, vinha de um
ginásio tradicional, o MacKenzie, que no processo de ensino busca trabalhar o lado
intelectual desde pequeno. Quando cheguei lá, tinha coisas que não sabia, por
exemplo, o meu inglês não era tão bom, mas logo meu tio-avô que fora professor me
ajudou. Fiz um cursinho preparatório, aulas particulares, e meu inglês escrito ficou
bom. Em pouco tempo me tornei o primeiro da classe. Possuía um espírito
competitivo, provindo em parte da formação escolar e em parte da minha família.
O meu conhecimento em português me ajudava porque metade do
vocabulário inglês é anglo-saxão, a outra metade é de origem latina. O vocabulário
anglo-saxão é usado normalmente e o inglês rebuscado, mais intelectual, apóia-se
mais no vocabulário latino. Neste caso, muitas vezes, as crianças têm dificuldades
com as palavras latinas, no meu caso era justamente o contrário. Por essa causa, logo
me tornei um dos melhores da classe. Claro que, em contraponto, para as coisas
artísticas eu era uma negação. Mas como cheguei aos quatorze anos, justo na época
em que estavam começando a valorizar o lado intelectual, já tinha essa parte mais
desenvolvida, e me dei muito bem, gostava muito.

335
Passei dois anos e meio em Edimburgo, morando com meu tio-avô, às vezes
me sentia meio solitário porque ele era um solteirão. Estava acostumado à minha
família que era muito carinhosa, muito calorosa, à minha mãe, à minha avó, ao meu
avô, aos meus irmãos... Era outro esquema, os sistemas escocês e brasileiro são
muito diferentes.
Na minha casa, em Edimburgo, tinha de tudo, não passava nenhuma
necessidade - meu tio-avô era professor aposentado -, mas a vida era mais austera.
Ele não estava acostumado com criança, tinha ensinado bastante, mas não tinha
filhos dentro de casa. Depois de um tempo me ressentia com uma série de coisas.
Após algum tempo, meu tio-avô falou para meu pai que não me queria mais com ele.
Soube de um colégio interno na Inglaterra, muito conceituado no círculo
antroposófico. Na Inglaterra havia vários, mas esse era considerado o melhor. Desta
forma, fui para esse colégio no sul da Inglaterra: Michael Hall... passei um ano como
interno. Era um lugar belíssimo, numa antiga mansão de um aristocrata inglês. O
prédio parecia datar do início do século XIX. O internato era na antiga mansão e
para a escola construíram prédios novos. Havia um terreno imenso, com um bosque
que fazia parte de uma floresta do sul da Inglaterra. Ela tinha sido tombada, era tudo
muito importante, bonito e grande.
Parte dessa floresta era da escola, com jardins ornamentais que faziam parte
da escola, mas tinha muito terreno arrendado por fazendeiros, onde eles, geralmente,
cultivavam com agricultura bio-dinâmica, uma agricultura antroposófica. Nós
tínhamos muita terra, era no meio do campo, havia esse bosque, no qual saíamos
para passear, encontrávamos com um monte de bichos, veados, por exemplo, um
lugar lindo.
Esse colégio interno era misto, estudavam meninos e meninas. Na época fiz
amizade com um americano, recém-chegado dos Estados Unidos, que estava
paquerando uma menina. Ele também era novo no sistema antroposófico, bem mais

336
sacana, meio rebelde, e no meio antroposófico as crianças são meio inocentes, mas
eu também já era mais sacaninha porque tinha vindo do Brasil.
Certa vez, não sei o que aconteceu, as pessoas que administravam o internato
mexeram nos guardados desse menino e leram uma carta escrita para um outro
amigo. Nela, ele falava dessa menina - ela também era interna -, dizendo que ela
estava madura para a sedução. Por essa causa, eles quiseram botar o rapaz para fora
do internato. Então, eu com uns outros amigos, mas sob a minha liderança,
organizamos uma greve. Nós ficamos sentados, em frente ao internato, recusando
entrar na aula. Os professores vieram dialogar conosco e foi um deus nos acuda.
No final, ficou resolvido que o menino não seria expulso, mas que ele, eu e
uns outros amigos sairíamos do internato, iríamos para as casas de alguns
professores viver em família. Então, morei com uma família inglesa, antroposófica,
mais de dois anos. Neste período, durante as férias ficava em Londres, na casa dos
pais de um grande amigo, e visitava o Brasil todo ano para passar um mês.
Depois entrei na universidade de Sussex. Assim que entrei para o ensino
superior, fui passar férias com uma prima de um amigo nos Estados Unidos. Nessa
viagem comecei a fumar maconha e desbundei, se não me engano, entre 1965 e
1966, a época do grande verão: o Verão do Amor. O movimento hippie demorou
alguns meses para chegar à Inglaterra. Mas justamente quando começou, assisti
aquilo desabrochar nos Estados Unidos, estava lá e já lia Timothy Leary. Fiquei
muito interessado em experimentar LSD, mas só experimentei maconha.
Nos Estados Unidos, trabalhei como xerocopiador de uma multinacional em
Nova Iorque. Originalmente, entrei na faculdade para fazer economia, o meu pai
queria que fosse trabalhar com ele, na verdade queria que fosse um grande
executivo, vice-presidente, ou algo ligado a uma multinacional... esse era o sonho
dele. Se eu quisesse, ele tinha os contatos para me colocar nesse meio. Em Sussex
ainda possuía uma visão bastante conservadora, capitalista.

337
Na universidade, ao chegar na Inglaterra, as pessoas me achavam meio careta
porque estudei nessa escola particular, mas já comecei a procurar o pessoal mais
maluquete. E eles me olhavam meio estranho, achavam-me mauricinho, porém tive
essa experiência nos Estados Unidos. Comecei a conhecer pessoas vindas de outros
meios, porque esse colégio antroposófico era particular e caro. Na universidade,
comecei a conhecer pessoas da classe operária que não conhecia antes.
Na época em que começaram a chegar as notícias sobre os hippies, já sabia a
respeito, então estava por dentro, sabia do que se tratava. Em pouco tempo apareceu
o ácido e experimentei. Resolvi que não queria mais fazer economia, não iria
trabalhar com seguros, nem numa multinacional ou em nada do gênero, optei por
outro curso e me transferi para Psicologia Social. Essa universidade onde estudava,
era muito transada, o ensino era moderno. Nesta fase meus amigos eram todos
socialistas.
Durante a Revolução Cultural na China, achei que a imprensa inglesa e
francesa foi a favor deste movimento, parecia-me um caminho para se destruir a
burocracia do partido. Sentia que aquilo poderia aumentar a liberdade. Mais tarde
percebi que não se tratava disso, mas foram os próprios jornalistas que propagaram
essa idéia errônea. A imprensa liberal escondeu a barbárie, não mostrou o lado
opressivo da Revolução Cultural. Para os jovens, contudo, havia pontos de
identificação com a Guarda Vermelha, seria algo parecido com a Revolução das
Flores. Havia pessoas que se consideravam “anarcomaoístas” e eu era dessa
corrente.
Neste período mandava cartas para o meu pai citando Che Guevara e coisas
do gênero. Estávamos na época da Guerra do Vietnã, e fazíamos manifestação contra
essa guerra em frente à embaixada americana.
Em 1968, aconteceram as manifestações em Paris. Numa escala menor, a
Inglaterra também foi atingida por esta onda. Alguns amigos meus foram para Paris.
Eu quase fui, mas tinha uns exames muito importantes e o meu lado “sério” acabou

338
prevalecendo, porque eram os exames finais da universidade, lá não havia segunda
época, neste caso ou passava ou não passava. Assim, resolvi ficar estudando para os
exames, não fui para Paris e fui aprovado no final.
Ao voltar para o Brasil, passei alguns meses odiando o país, estávamos na
época da ditadura e era um horror. Odiava a tudo e a todos, ficava trancado no meu
quarto ouvindo Bob Dylan, morrendo de saudades da Inglaterra. Bob Dylan era meu
ídolo. Pouco tempo depois voltei para a Inglaterra, fui fazer mestrado em Sociologia
da América Latina na Universidade de Essex. O mestrado lá dura apenas um ano, o
que não é nada quando comparado ao tempo do nosso, mas assim que terminei o
mestrado comecei o doutorado porque não queria voltar para o Brasil.
Logo que entrei em Essex, tomei contato com o pessoal de esquerda. Esta
universidade era bem de esquerda. Os grupos que participei na Inglaterra, não eram
da esquerda tradicional. Na época, sempre estive próximo da New Left, cuja posição
parecia mais anarquista. Na Inglaterra presenciei o início do movimento feminista
inglês, no qual participava e conhecia várias militantes. A minha casa, em Essex, foi
um dos lugares que formou uma das vertentes do movimento feminista. Estava lá no
início dessa nova onda de socialismo. Devido ao meu contato com as feministas,
conheci também pessoas ligadas ao Gay Liberation Front. Por isso que quando o
movimento homossexual, muitos anos depois, chegou no Brasil, já me julgava
feminista... era muito favorável a todo questionamento dos papéis de gênero.
Na Inglaterra participei de uma tentativa de fazer um movimento,
“Masculinista”, algo que não era um movimento homossexual, presumindo que
todos que participavam eram heterossexuais, não se fazia nenhuma distinção contra
homossexuais, mas eram basicamente heterossexuais que questionavam os papéis de
gênero. Neste sentido, tudo que fosse questionamento sobre papel de gênero, raça,
diferenças raciais, eram questões que já tinha visto na Inglaterra. Quando estudei
psicologia, aprendíamos que não faz sentido falar que os brancos têm um Q.I. mais
alto do que os negros ou que as mulheres, etc.

339
Ao mesmo tempo estudava o Brasil, como era Sociologia da América Latina
teria que vir para cá. À época estava com muitas dúvidas, não sabia o que queria
fazer, e entrei em crise. Larguei tudo, fui para Londres fazer um curso para ser
professor de inglês. Então, dei aulas de inglês numa escola estrangeira durante um
tempo. Voltei ao Brasil para passar umas férias e pensava: “- Bom, a minha vinda ao
Brasil sempre é um desapontamento”. Pensava assim porque a Inglaterra é um lugar
cinza, frio, e o Brasil me atraía por uma série de fatores, mas ao mesmo tempo, as
pessoas que conhecia no Brasil eram caretíssimas... sentia que estava faltando
alguma coisa.
Certa vez, estava voltando para a Inglaterra, quando conheci um brasileiro e
fizemos amizade no avião... ele estava indo passar férias lá. Então lhe disse: “- Não
fique fazendo só o roteiro de turista. Venha me visitar que vou mostrar como é a
vida estudantil e a vida inglesa”. Ele aceitou a proposta e foi ótimo. Depois ele ficou
com uns amigos que moravam em Londres para lhe mostrar a cidade. Quando voltei
para o Brasil, nas férias seguintes, ele me convidou para conhecer os amigos dele.
Ele era uma pessoa legal. Perdi a vontade de retornar à Inglaterra.
Morei na Inglaterra de 1960 a 1972, sendo que passei um ano no Brasil, em
1969. Nesta fase decidi ficar no Brasil, queria conhecer a cultura brasileira
profundamente. Sempre quis saber mais, possuía fascinação pelo país, porém estava
meio à parte: por um lado, devido aos problemas de ser uma criança bilingüe; por
outro, por ter morado na Inglaterra e vir ao Brasil só nas férias... não conseguia
conhecer a realidade brasileira direito. Decidi me entregar ao Brasil, queria muito
conhecer o país que sabia existir, mas que não conseguia chegar até ele... finalmente
o estava encontrando. Então resolvi ficar, até perdi a minha passagem de volta para a
Inglaterra... meu pai ficou muito preocupado.
Assim permaneci, conheci pessoas, gente ligada à área publicitária, à área de
teatro. Depois de algum tempo esse rapaz começou a namorar com minha irmã e
nossa amizade diminuiu. À época já conhecia outras pessoas, também ligadas à área

340
de teatro. Quando vim morar no Brasil, conheci esse pessoal e adentrei enfim na vida
brasileira. Acho que passei doze anos sem ir à Inglaterra, só viajava pela América do
Sul. Não tinha dinheiro para ir à Inglaterra e não tinha muito interesse. Na época do
Allende estive no Chile, viajei uns três meses pela América do Sul, para Machu
Pichu, para Argentina, assistindo os filmes censurados que não passavam no Brasil,
então visitei a Argentina no período entre ditaduras, pois tudo acontecia lá.
Em 1974, morreu a minha avó, ela morava num apartamento na Praça da
República, para o qual me transferi. Eu e um amigo que conhecia muita gente de
teatro. Esse apartamento foi visitado por Deus e o mundo. Até o Zé Celso ensaiou
“As Bacantes” nele. Nesta época, saíamos muito, toda noite íamos ao Amigo Piolim,
ao Ovietto, onde freqüentava a turma teatral. Pouco tempo depois, dividi meu
apartamento com uma modelo. Ela me apresentou para profissionais de publicidade,
passei ocasionalmente a trabalhar como modelo também. Saía toda noite,
freqüentava a classe teatral... inclusive muita gente achava que eu era ator.
No auge da ditadura, no centro da cidade teve épocas que havia policiamento
ostensivo. A polícia saía em duplas e eram chamados Romeu e Julieta: uma policial
feminina, um policial masculino e um cachorro. Eles ficavam dando voltas no
quarteirão, sempre patrulhando os diversos quarteirões. Eles davam blitz, paravam,
fechavam uma rua, revistavam todo mundo, pediam documento. Isso a qualquer
hora. Era um terror constante. A década de setenta foi uma barra pesada, muito mais
em conseqüência da repressão política. Havia também a repressão sexual, a
repressão dos costumes, mas eu tinha amigos bem desbundados, homossexuais e
mulheres que transavam bastante livremente. Consumíamos muita maconha, de vez
em quando eu tomava ácido. Eram coisas que fazíamos com intenção política, mas
não nos moldes da política tradicional porque era muito difícil, principalmente
depois da derrota da luta armada.
O desbunde foi outra página da história que virei, mas no início era uma coisa
restrita, existia apenas em alguns lugares. Foi no decorrer da década de setenta que

341
isso foi crescendo. Por causa de minhas experiências na Europa, considerava-me
uma pessoa de esquerda, mas as pessoas desbundadas que conheci eram meio
apolíticas e entre eles essa discussão não pegava bem.
O Gay Liberation Front surgiu no final da década de sessenta, mas foi no
início da “abertura política” no Brasil, com passeatas estudantis e coisas
semelhantes, que começamos a ver a possibilidade de fazer alguma coisa. Há muito
tempo já ocorria toda uma movimentação no meio homossexual brasileiro. O Celso
Curi discutiu a distância entre “movimento” e “movimentação” homossexuais. Neste
sentido, a “movimentação” homossexual era a ferveção do segmento que já
acontecia.
Havia a classe teatral, lugares como restaurantes, festas, que freqüentávamos,
havia as pessoas que tinham seus casinhos e era tudo muito aberto. Todo mundo
sabia quem era caso de quem, com fofocas, escândalos e coisa assim. Neste período,
começaram a surgir manifestações como o Secos e Molhados, Dzi Croquetes. Dzi
Croquetes foi algo apaixonante, arrasador de conhecer, eles tinham uma proposta de
comunidade, de desbunde, drogas, sexo, drogas & Rock’n’roll elevada a enésima
potência. O primeiro show do Ney Matogrosso, sozinho, foi um escândalo, foi
incrível, foi extremamente emocionante porque possuía um lado de contestação
cultural muito forte. Lembro-me que foi no Teatro 13 de Maio.
Naquela época, os teatros eram muito visados pela polícia, eram dos poucos
lugares onde as pessoas falavam sobre os acontecimentos. Quando sai do teatro,
podia ver aquelas viaturas passando com policiais carregando metralhadoras do lado
fora das janelas... era um horror. Vivíamos numa cidade sitiada. Então, enquanto saía
daquela loucura que tinha sido o show do Ney Matogrosso, descendo a Rua 13 de
Maio para vir até em casa, passava por toda essa barra pesada da polícia. Para quem
não viveu esse momento, hoje em dia, realmente, é impossível dar uma idéia disso: a
força desses shows musicais era a única forma de manifestação possível... e do lado

342
de fora a barra era pesada. Então, havia essa loucura, esse desbunde, essa
desmunhecação política.
Para sobreviver dava aula na Cultura Inglesa, dei aulas de inglês oito anos.
Fiquei fora do mundo universitário por muito tempo. Só tinha o mestrado que fiz na
Inglaterra e o meu bacharelado não era reconhecido. O curso universitário na
Inglaterra é de três anos, no Brasil é de quatro ou cinco anos. Havia uma série de
diferenças, assim teria que fazer outros cursos para fazer o exame. Sentia ter feito
um ano de Sociologia da América Latina para o meu mestrado não ser reconhecido.
Não conhecia o meio, assim fui dar aula de inglês, mas chegou uma hora que enchi o
saco. Era algo sem futuro, muito sem graça e tornou-se algo sem sentido.
Conheci um pessoal da UNICAMP, inclusive o Carlos Vogt que foi reitor da
UNICAMP. Eles me incentivaram a entrar na pós-graduação. Desta forma, fui
prestar exame e acabei entrando, mas fiz a minha inscrição um pouco tarde. Na
época as vagas para Sociologia estavam fechadas e as únicas que restavam eram para
Antropologia, então me inscrevi neste curso... isso foi meio por acidente. Sempre
tinha me interessado por povos exóticos, não sei o porquê gostava, mas nunca tinha
pensado nisso... assim fui fazer Antropologia e me tornar antropólogo.
A mão do destino acabou me guiando para Antropologia. Foi quando conheci
Peter Fry, um inglês que trabalhava na UNICAMP, e nós fizemos amizade. Nessa
época, durante a semana morava na casa do Peter em Campinas, dava aula na
Cultura Inglesa e estudava na UNICAMP. Nos finais de semana, vinha para São
Paulo e o Peter ficava com um quarto no apartamento que eu morava. Foi muito
bom, nós nos dávamos muito bem. Quando estava fazendo a pós-graduação, fiz uma
pequena monografia sobre o preconceito racial. Essa questão de minorias era algo
que me interessava. Ao acabar o curso tinha que pensar no projeto de pesquisa. O
Peter tinha todo esse trabalho de reflexão sobre a homossexualidade. Como eu
conhecia muitos homossexuais, resolvi fazer uma pesquisa sobre a
homossexualidade com a orientação dele.

343
A história do jornal Lampião aconteceu na época que morava com Peter,
quando começávamos a nos conhecer. Na época, houve uma reunião de um grupo de
intelectuais e jornalistas homossexuais no Rio de Janeiro. Ele participou para ajudar
a começar o jornal. Foi ao Rio para o lançamento do jornal, mas como não era
jornalista e estava muito ocupado em Campinas, o Lampião passou a ser cada vez
mais produzido no Rio. Quando retornou a Campinas, ele falou a esse respeito,
estava muito entusiasmado, foi então que pensei: “Ah! Vou fazer minha tese sobre o
movimento homossexual”. O movimento homossexual começou junto com o
Lampião, o SOMOS começou junto com o Lampião.
Havia várias pessoas, mas Aguinaldo Silva era a grande liderança do jornal no
Rio de Janeiro. Em São Paulo era o Trevisan e o Darcy Penteado que seguravam as
pontas do jornal. Porém, o Darcy Penteado também não era jornalista, era escritor e
pintor. Ele escrevia algumas coisas, sempre batalhou muito pelo Lampião, mas
tomava uma posição bem secundária. Quem realmente fazia a história em São Paulo
era o Trevisan. Houve, inicialmente, uma idéia que o Lampião seria feito enquanto
órgão de militância, como parte de um movimento homossexual.
O Trevisan escrevia coisas fascinantes. Ele via os homossexuais como a parte
podre da sociedade, os responsáveis pela destruição do aparato social. Eles iriam
apodrecer uma sociedade que já era completamente demoníaca e horrorosa. Parecia
que toda essa estrutura seria corrompida por dentro. Esta era a imagem que o
Trevisan passava muito no Lampião. Não se sabia como destruir esse sistema
fascista, militar e ditatorial. Nesta época parecia que não haver saída. A ditadura
existia há anos, as pessoas morreram para combatê-la, mas não adiantou nada. Então
tudo era cínico, sem esperança e de repente surgiu a androginia. Na imagem do
genderfucker... um termo norte-americano usado para definir homens de barba
pintados, femininamente, com purpurina.
O Lampião sofreu sérias perseguições. Inicialmente, todos os diretores,
incluindo Peter, foram fichados pela polícia. Peter, quando foi fichado, voltou

344
arrasado porque sofreu humilhação. Na época da ditadura, só de imaginar a idéia de
enfrentar aqueles policiais e milicos horrorosos, e ainda por cima estar numa posição
de defensor de uma causa gay, era um tal de piadinha, risadinha e não sei o que...
essas pessoas não eram consideradas sérias. O Peter tinha um nome respeitável, era
uma pessoa com status muito elevado, muito respeitado porque fez muita coisa
dentro do mundo acadêmico. Porém, nesse momento nada tinha importância. De
repente, ele foi obrigado a entrar num quartel ou numa delegacia, não me lembro
agora, onde a pessoa era tratada com desprezo, era humilhada. Desta forma, o que
fizeram foi muito ruim.
Embora não houvesse uma perseguição no mesmo grau que aos políticos, se
não me engano, foi nessa época que caiu um aparelho do PC do B na Lapa e todo
mundo foi massacrado. Esta foi uma das últimas grandes chacinas da polícia contra a
esquerda. Assim, não era nada comparável. Se o Peter estivesse fazendo uma
publicação comunista, na certa iria para o pau-de-arara, mas como era só uma
publicação gay, havia todo um outro lado ligado ao machismo.
Os editores conseguiram o apoio da Associação Brasileira de Imprensa, já era
uma época que existiam os nanicos, como o jornal Opinião, depois o Em Tempo, que
eram perseguidos e, volta e meia, o Opinião se revoltava contra essas medidas e
coisa assim. Na tradição da imprensa alternativa, o Lampião era mais um que seguia
o estilo dos nanicos. Os primeiros números do Lampião tinham uma pretensão mais
política, então enfrentaram muitas dificuldades.
Depois dessa perseguição, o Peter continuou algum tempo no Lampião. No
início da “abertura” as coisas foram ficando mais fáceis. E o jornal começou a perder
leitores. Havia membros do Lampião que queriam torná-lo uma revista Gay, de
homem pelado... a essa altura o Peter saiu.
No Lampião, escrevi só uma vez, na verdade quem escreveu foi o Peter, mas
eu o ajudei num artigo sobre o carnaval da Bahia. Fiz uma série de entrevistas. E a
única coisa que saiu com meu nome, foi umas cartas. Mas nunca escrevi artigo para

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o Lampião... estava começando a minha pesquisa. Acompanhava o Lampião através
do Trevisan. No meu apartamento, chegamos a estocar pilhas e pilhas de números
atrasados... encalhes do jornal.
Durante certo período, o Lampião era necessário, funcionava como uma
espécie de órgão do movimento homossexual. O jornal era o único lugar onde se
podia publicar cartas de protesto contra a polícia. O pessoal ligado ao jornal,
especialmente no Rio de Janeiro, brigou com o movimento homossexual carioca,
eles até começaram a ser meio anti-militantes, publicando artigos contra militantes
homossexuais. Depois de algum tempo, o Trevisan brigou com Aguinaldo Silva e o
Lampião acabou. O Trevisan, como de costume, briga com todo mundo com quem
trabalha, não consegue manter uma relação muito tempo com alguém. Só sei que o
Aguinaldo Silva também não quer mais vê-lo. Essa história conto com mais detalhes
no meu livro.
Quando começou a história SOMOS, fiz o trabalho de pesquisa lá. Entrei no
Grupo e me envolvi com toda sua história, a qual foi publicada depois. No início do
SOMOS fizemos muitas reuniões no meu apartamento e lá embaixo havia
policiamento, mas não estávamos mais na época do terror, já era o final da década de
setenta, muito diferente do seu início. Mas nos primeiros anos da década tínhamos
medo realmente.
No SOMOS, sempre vi a questão homossexual sob o ângulo político. Achava
que ela deveria estar ligada às outras questões políticas e de esquerda. Dos meus
amigos, eu era o mais “politizado”. Havia pessoas que diziam: “- Não, não queremos
sair dizendo ABAIXO A DITADURA... que coisa careta!” Eu, muito pelo contrário,
achava que não era careta dizer ABAIXO A DITADURA. Ela tinha que ser
abaixada porque era um horror. Não é possível dar uma idéia do que era aquilo. Os
jornais eram todos censurados, só se liam absurdos. Saíam coisas muito violentas no
jornal. Havia deturpação a qualquer forma de oposição e isso me dava nojo. Aquilo
tudo parecia não ter fim.

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Na época em que surgiu a polêmica do SOMOS com os trotskistas, não
pertencia a Convergência Socialista e sempre desaprovei a intenção de encampar o
movimento homossexual. O pessoal da Convergência Socialista buscava ser aberto,
mas nesse procedimento eles acabavam criando inimizade. Em vez de cooptar, o
efeito era o inverso com os grupos. O pessoal da Convergência tentava se aproximar
porque queria entrar e dominar. Eu era contra isso, porém ao mesmo tempo era
muito favorável à luta contra a ditadura e ao engajamento político. Muitas das
pessoas do SOMOS eram completamente anti-políticas e de fato um tanto quanto
politicamente conservadoras.
O movimento homossexual, em São Paulo, buscava laços com outros
movimentos da nova onda política ligada, em grande parte, a toda essa questão de
minorias. O próprio termo “minorias” foi lançado pelo Lampião. Mas por se tratar de
uma questão homossexual, politicamente, a esquerda mais ortodoxa e machista
esquecia essa discussão... não a mencionava muito.
O SOMOS/SP, inicialmente, tinha medo de sair sozinho na rua, achava que as
pessoas iriam apedrejar, vaiar e atacar. O grupo saiu pela primeira vez no dia de
Zumbi com uma faixa escrita: “Os Homossexuais Apóiam os Negros”. Apesar de
não ser um grande contato, mantínhamos relações com o Movimento Negro
Unificado, participávamos de muitas coisas juntos. Nesta época, já tinha todo o
embasamento teórico contra o preconceito, então já estava bem aberto para uma
prática de contestação nessa área.
Quando as mulheres do SOMOS decidiram sair para formar o Grupo Lésbico-
Feminista, houve muita reação contra, fiquei chateado porque havia algumas
mulheres das quais gostava muito, não poderia vê-las com freqüência, mas entendia
a postura delas. Estava acostumado com essa idéia do feminismo separatista na
Inglaterra... isso se deve muito à minha formação inglesa.
Na época que teve o “racha”, fui contra as pessoas que saíram... contra o
pequeno grupo que saiu sob a liderança do Trevisan. Ele não participou, mas liderou

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a história do lado de fora. Do outro lado, havia o Jimmy que chamo de Charlie no
livro. Ele fora caso do Trevisan, veio para o Brasil para ficar com o Trevisan, mas
brigaram depois de um tempo. O Jimmy era hiper “convergente”, trotskista. Havia
também um namorado que o Trevisan arrumou, depois que brigou com o Jimmy,
chamava-se Emanuel. Ele era um pé no saco, mas era uma pessoa carismática, muito
interessante e inteligente. Acho que ele fascinava as pessoas, mas era muito chato. O
que era algo estranho porque sua pouca sociabilidade lhe dava um clima de mistério
e aumentava seu carisma. De certa maneira, o Emanuel e o Trevisan lideravam o
SOMOS na época. Eu gostava do Trevisan, gostava do Jimmy e acredito também
que gostava do Emanuel.
Embora eu fosse amigo do Jimmy, percebi que ele realmente queria manipular
o SOMOS, havia documentos que falavam a esse respeito, e fiquei indignado.
Porém, a forma como as pessoas propuseram o racha também era manipuladora. Eles
colocavam o Jimmy e pessoas afins como demônios. Desta forma, também não
concordava porque eu não era anti-socialista. No fundo, tive toda uma vivência a
favor do socialismo, fiz parte de muitos grupos com tradição socialista na Inglaterra.
Na época da guerrilha no Araguaia, era simpático aos guerrilheiros. Escrevia
boletins para a faculdade onde estudava na Inglaterra quando ocorreu a luta armada
no Brasil
Quando aconteceu o racha, não concordei com a postura das pessoas que
saíram do grupo. A posição delas era colocada de uma forma anti-política e anti-
esquerda. Naquele momento, nós ainda vivíamos numa ditadura, a qual era o
cúmulo. Realmente, a primeira questão era lutar pela liberdade sexual, pela liberdade
homossexual, talvez fosse até a mais importante... concordava com isso. Porém,
colocar-se contra a esquerda, contra a luta para dissolver o poder daquele sistema
autoritário, era demais para minha compreensão... também não concordava com esta
posição, era contra isso.

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Sempre questionei as hierarquias, os centralismos, permanecendo ao lado do
processo democrático. Era a favor de uma coisa mais anárquica, mais libertária,
porém, no racha do grupo houve uma postura bastante autoritária, manipuladora, do
pessoal que saiu sob liderança do Trevisan e do Emanuel. Uma postura tão ruim
quanto à do pessoal da Convergência.
O pessoal que saiu não me falou nada sobre a história do racha. Tudo foi
elaborado numa época em que estava doente, mas eles não me comunicavam os
fatos, talvez se tivessem vindo conversar comigo, teria ficado do lado deles. Não
sabendo do que se tratava resolvi ficar, mas queria manter amizade com os dois
lados.
Certa vez, quando fui conversar com o Emanoel após o “racha”, estendi a
mão para cumprimentá-lo e ele tirou a mão. Por essa causa não o menciono no livro.
Na época pensei: “- Vou fazer com ele o que o Stalin fez com o Trotsky. Vou tirá-lo
da história”. Então, como ele se recusou a dar entrevista, ele aparece no livro
somente uma vez. Havia uma questão que não poderia deixar de ser tratada, porém o
Emanuel aparece com outro nome: Raimundo. Ele era baiano, mas não gostava de
nordestinos, então peguei um nome comum da região. Só para fazer pirraça o
chamava de Raimundo. Com Trevisan realmente tentei ser justo porque o achava um
escritor notável, uma cabeça muito boa. Assim, utilizei todos os recursos que tinha
para evitar que minhas críticas fossem lidas como ataques pessoais.
Depois do racha, o que restou do SOMOS perdeu aquela aura de mudança
que existia antes, o que era um espaço livre passou a ser um espaço permeado por
brigas e faccionalismos políticos. Depois de um tempo, o Trevisan que era uma
grande luz, uma pessoa que dava a vida pelo grupo, saiu da discussão e o SOMOS
perdeu um pouco a graça. Não foi só a saída dele, mas houve toda uma mudança do
clima. Depois de algum tempo também me afastei do grupo. Nesta fase, já tinha feito
todo o meu trabalho de pesquisa. Foi quando começou a história da AIDS, então me
envolvi com as primeiras pessoas que trabalharam com prevenção à doença.

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Em 1982 ou 83, um velho conhecido, editor da Revista Ícaro, me telefonou
perguntando se queria passar uns três ou quatro dias em Nova Iorque. Era para cobrir
um congresso de agências de viagem para a revista. Eles foram convidados, não
queriam recusar, certamente porque não receberiam outro convite, mas também não
tinham interesse em pagar um jornalista para ir. Eles não estavam querendo fazer
uma matéria sobre isso, então queriam que eu fosse, em nome da Ícaro, para
escrever algumas linhas a respeito. Eles não me pagariam, somente custeavam a
viagem e a estadia. Eu disse: “- Bom, ir para Nova Iorque... passar quatro dias preso
dentro de um hotel, assistindo uma conferência chata sobre viagem, então prefiro
ficar em São Paulo. Não tem vantagem nenhuma!?” Então eles propuseram: “- Você
pode ficar um pouco mais, mas por sua conta.” O pagamento seria esse, acabei
ficando uma semana em Nova Iorque.
Havia uma amiga americana que conheci no Brasil. Ela conhecia pessoas
ligadas à militância gay e feminista, em Nova Iorque, e me deu uma série de
endereços. Acabei ficando numa casa das amigas dela. E fui conhecer essas pessoas.
No Brasil era difícil de conseguir material sobre o movimento gay. Quando fui à
Inglaterra, meio que a duras penas, trouxe material norte-americano, basicamente em
inglês, mas um pouco ultrapassado. Nos Estados Unidos tive oportunidade de
conhecer as pessoas sobre as quais tinha lido a respeito, assim como pessoas que
transitavam naquele meio.
Quando cheguei à Nova Iorque, toda a defesa em nome do desbunde que li a
respeito já não estava mais do mesmo jeito. As pessoas estavam preocupadas com
obras assistenciais, acontecia o oposto... porque éramos completamente contra o
assistencialismo. Éramos pela revolução ou pela militância. Pensava-se na mudança
das estruturas, mas não havia nada parecido com ficar fazendo o papel de damas de
caridade. E de repente as pessoas estavam dando assistência a um monte de gays
com essa doença misteriosa. Na imprensa gay americana se lia “A Festa Acabou”.
Em questão de um ano havia mudado tudo, estava diferente do que tinha lido antes.

350
Parece-me que o vírus ainda não tinha sido isolado. O movimento gay estava todo
voltado à questão da AIDS. Então percebi que era uma coisa séria.
Neste período, uma das grandes posições defendida pelo movimento
homossexual era questionar o discurso médico e a idéia do homossexual como
doente mental. Uma questão originalmente promulgada pela Igreja, cuja posição
naquele momento não tinha tanta importância, mas eram os médicos que se tornaram
os novos padres. Os médicos eram os propagadores de uma nova moral, não mais
com base teológica, mas com uma base médica... que no final das contas
percebíamos como totalmente preconceituosa.
Simplesmente trocaram-se as justificativas, antes as pessoas falavam em
nome de Deus, da pureza, da religião, agora era em nome da Medicina, da saúde,
mas o efeito repressor do que diziam era o mesmo. Por isso, criticávamos muito o
discurso médico. Não queríamos discutir assuntos como a origem da
homossexualidade - essa discussão não nos importava -, mas sim o fato que as
pessoas eram homossexuais. Portanto, havia um questionamento constante da
postura médica e não tínhamos a menor paciência para o seu discurso. No SOMOS
nunca se chamava médicos para falar, no máximo as pessoas visitavam o médico
para curar uma gonorréia ou uma sífilis.
Quando voltei ao Brasil, a idéia era que se tratava de mais um complô
médico. A questão da AIDS era vista como outra fórmula pseudocientífica para
oprimir os homossexuais, fazê-los retornar à margem. Muitos dos antigos militantes
defendiam esse parecer. Certamente, também teria tomado esta posição, mas havia
estado nos Estados Unidos e visto que o caso era sério. Os norte-americanos não
estavam mais defendendo as antigas posições, então comecei a ver a questão sob
outro prisma. Assim, houve momentos em que ocorreram algumas discordâncias
entre eu e os militantes, mas eles eram pessoas inteligentes e logo começaram a
perceber os perigos que estavam correndo.

351
No que se refere à discussão de prevenção a AIDS, a mudança que ocorreu foi
interessante, porque se passou de um ataque ao discurso médico para uma
propagação do mesmo. Tanto que atualmente os homossexuais estão próximos dos
médicos na discussão sobre AIDS. Participei das primeiras reuniões com o
Veronese, mais tarde ele passou a ser visto como um grande inimigo dos
homossexuais.
Na época, por motivos puramente pessoais, o Veronese estava muito
interessado nessa questão. Uma das teorias, antes de descobrir o vírus, era que havia
alguma relação com a hepatite B. Neste sentido, devido à crise provocada pela
AIDS, ele via uma oportunidade de usar a vacina contra a hepatite B. Então, o
Veronese fez reuniões no Hospital das Clínicas, convidou um grupo - pessoas do
movimento homossexual, estudiosos da homossexualidade -, e começou a expor o
que se sabia sobre a AIDS no período. Ele possuía uma posição bastante
preconceituosa... foi quando o Montoro acabava de tomar posse. As pessoas foram
falar com os membros do governo e isso levou à criação do Programa Estadual de
AIDS... o primeiro programa no Brasil.
Havia outras pessoas preocupadas em pensar formas de prevenção à AIDS e
de luta pelos direitos dos homossexuais. Logo se formou o GAPA. Também
participei das primeiras reuniões deste grupo. Face a AIDS, houve preocupações
como as de um ataque às conquistas conseguidas pelo movimento homossexual. A
intenção era manter o terreno que já tinha sido ganho.
Pensava-se que se fechariam imediatamente as saunas, as boates, enfim que a
homossexualidade seria considerada como estado patogênico a ser reprimido, assim
era preciso defender as conquistas do movimento homossexual. Com essa
preocupação, algumas pessoas criticavam certas noções de “sexo seguro”, como
formas de normalização da sexualidade, falava-se muito a este respeito. O ato sexual
considerado dentro das normas era o papai e mamãe.

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O movimento homossexual questionava a normalização do ato sexual. Existia
até um Slogan: “O Sexo Anal derruba o Capital”. A partir do questionamento dos
papéis de gênero se queria fazer uma grande revolução, para implodir toda a
estrutura, minar por baixo a sociedade. Desta forma, a prevenção a AIDS era vista
como uma forma para combater essa desestruturação, esse minar das estruturas
sociais. Mas aos poucos essa postura foi mudando.
Em 1986, quando defendi a minha tese, o SOMOS não existia mais. Fiquei
anos e anos trabalhando nessa tese... ela era imensa. Escrevi não sei quantas páginas.
Fiz um resumo de toda essa história, com todo o envolvimento do movimento
homossexual com os outros grupos. No básico, está tudo relatado no livro. Meu
trabalho cresceu incomensuravelmente e como já tinha o mestrado pensei: “ - Não
quero fazer o mestrado. Quero fazer o doutorado.” Falei com Peter, porém na
UNICAMP não havia este curso, então ele sugeriu: “- Bom. Poderíamos ver a
possibilidade de você fazer doutorado na USP.” Ele entrou em contato com a Eunice
Durham, amiga dele, e apresentou-me a ela. Desta forma, ela me aceitou como
orientando dela.
Aceitaram o meu mestrado da Inglaterra, não oficialmente, mas extra-
oficialmente reconheceram que havia feito aquele curso. Assim, em termos formais,
fiz o que eles chamam de “doutorado direto”, sem fazer mestrado, algo muito difícil
de se conseguir, mas no meu caso abriram uma exceção porque já tinha concluído
um mestrado. Então, levei essa tese de mestrado à de doutorado. Passei mais três
anos na USP, sob orientação da Eunice... foi uma experiência rica e produtiva. No
dia da defesa estiveram presentes vários médicos, pessoas ligadas à Secretaria da
Saúde, antigos militantes homossexuais, professores... foi muita gente.
Minha irmã gravou uma fita de vídeo. Quando terminei minha tese, como
prêmio por obter meu doutorado, meu pai ficou muito contente e me convidou para
ir à Europa, passar um mês viajando com ele e minha mãe. Planejei passar dois
meses, um mês com eles, depois viriam embora e passaria mais um mês fazendo a

353
minha viagem. Nós viajamos e foi bastante divertido. Fomos a uma porção de
lugares: à Grécia, à Itália, à Inglaterra.
Um pouco antes dos meus pais retornarem, aconteceu o acidente em
Shernobyl. Neste dia meus pais estavam na rua, eu não estava com eles. Nós não
tínhamos idéia do que estava acontecendo, mas conforme a usina explodiu, uma
nuvem radioativa foi em direção a Inglaterra e ficou estacionada em cima de
Londres. Nesse dia me senti muito mal. Marquei um encontro num bar com um
conhecido e quando ele chegou comentei: “- Eu estou péssimo. Não sei por quê!?”
Meu pai estava com minha mãe fazendo compras. Não sei o que houve, mas
ele teve um acidente, foi atropelado por uma moto. Não era nada muito sério, mas
ele ficou meio abalado. No dia seguinte eles vieram para o Brasil e fiquei em
Londres, depois de alguns dias parti para Paris. Em Paris recebi a notícia que meu
pai tinha falecido. Dez dias depois de ter me despedido dele na Inglaterra, a gente
tinha viajado, tinha carregado coisas... ele teve leucemia. Chegou ao Brasil, sofreu
um ataque e morreu. Voltei correndo. Quando cheguei não sabia muito bem o que
fazer.
O fato de fazer uma tese sobre a homossexualidade, apesar de ser uma
pesquisa séria, orientada por pessoas altamente respeitadas, o Peter e a Eunice, não a
livrou do preconceito. Senti esse problema contra a minha tese. O pessoal da USP e
da UNICAMP não estavam interessados em me ter trabalhando com eles. Também
estava cansado desse tema, fazia anos que estava trabalhando com isso. Resolvi
trabalhar com algo diferente, então desenvolvi outros trabalhos, mas continuando na
linha do desvio.
O uso de drogas era algo que conhecia, relacionava-me com muita gente que
usava drogas. Eu mesmo tinha usado maconha na minha juventude, de vez em
quando tomava ácido, e conhecia esse meio. Assim comecei a estudar o uso de
drogas, pensei em fazer uma pesquisa sobre o uso de maconha. Então, conheci o
Centro de Estudos do IMESC - Estudo da Medicina Social e Criminologia de São

354
Paulo - que é uma autarquia da Secretaria da Justiça. Lá, eles me mostraram os
estudos que faziam sobre o uso de drogas e havia uma postura bastante aberta.
Fiquei trabalhando no IMESC, consegui uma bolsa de recém-doutor, fazendo
pesquisa sobre usuários de drogas. Trabalhei uns três anos nesta área.
Houve uma época que abriu uma vaga para antropólogo na USP. A minha
tese havia sido apresentada lá, com nota dez e foi tudo ótimo, assim candidatei-me.
Eram vagas abertas em todos os níveis. O primeiro teste era de currículo, para
averiguar a documentação. Fui excluído em nível de documentação, o que era um
absurdo porque possuía um doutorado, sendo que pessoas com mestrado não tinham
sido excluídas... e isso para mim era óbvio, tratava-se de puro preconceito. Fiquei
profundamente irritado, além de não entender.
Na época a minha orientadora, Eunice Duhram, era chefe do Departamento de
Antropologia. Lá dentro, ela era uma pessoa extremamente importante. Falei com ela
e com outras pessoas que organizaram o concurso, telefonei, xinguei e disse que
achava um absurdo. Então, chamaram-me para fazer uma entrevista, na qual fui
muito bem. Nessa entrevista, falei que trabalhava com a questão da
homossexualidade, AIDS e drogas... todos temas da maior importância. Porém,
acharam que não era de interesse do departamento... preferiram uma pessoa com
interesse histórico pelo século XIX. Não questiono isso, era uma pessoa ótima que
mereceu entrar, mas questiono os critérios que houve na época, senti que eram
fortemente preconceituosos. Isso foi uma demonstração muito clara, mas sempre
senti que havia preconceito contra essa tese. Estávamos em tempos que as pessoas
preferiam um tema que sujasse menos.
O Departamento de Antropologia é muito dividido. Havia pessoas que
conheciam a minha seriedade, mas havia outras que eu nunca tinha visto. Pareceu-
me que o fato de alguém fazer uma tese sobre homossexualidade, produz a
impressão de não ser sério. Porém, fui a essas entrevistas, as pessoas pararam para
olhar e pensaram melhor, mesmo assim acabei sendo preterido em favor de uma

355
pessoa que só tinha mestrado. Os interesses dela eram alegadamente mais próximos
dos interesses das outras pessoas.
Comecei a fazer o trabalho sobre drogas, passei três anos como recém-doutor
no IMESC, depois dois anos como pesquisador visitante na Escola Paulista de
Medicina, então me chamaram a atenção para a questão do Santo Daime. Trata-se de
uma religião que usa um psicoativo, enfatizando o fato de não ser apenas uma droga,
mas de ser usado como sacramento... o psicoativo é usado de outra forma dentro de
um ritual. Passei a fazer minha pesquisa sobre o Santo Daime, abrindo um campo de
estudos sobre a alteração de consciência, a religiosidade, a medicina popular e a
Amazônia. Assim, ampliei meu leque de interesses.
Atualmente estou mudando, saindo aos poucos da questão do Santo Daime e
passando para a questão da Prevenção à AIDS entre usuários de drogas injetáveis.
Com esse trabalho, agora é tudo mais respeitável. As pessoas não pensam que sou
um usuário de drogas injetáveis porque estudo as pessoas que se injetam. Desta
forma, continuo tendo interesse pela questão da AIDS.
A homossexualidade é um tema que contamina o pesquisador. O preconceito
que a sociedade tem contra o objeto, também passa para o pesquisador. Chegou uma
época que não queria passar a vida batalhando contra o preconceito. Por causa da
tese de doutorado sou constantemente chamado para falar sobre homossexualidade,
sobre bissexualidade, e é uma questão que fico contente de voltar a discutir, mas
quero fazer outras coisas também. Nessa questão do Santo Daime, foi algo que abriu
novos horizontes para mim. E atualmente, com esse trabalho de prevenção a AIDS
entre os usuários de drogas injetáveis, voltei a tomar contato com pessoas que fazem
prevenção entre homossexuais.
Em 1990, um dos meus irmãos morreu de AIDS. Ele era o meu melhor
amigo... inclusive foi para a Inglaterra estudar como eu. Permaneci na companhia
dele em todas as fases. No que se refere a essa questão da AIDS, sinto um certo
pudor, às vezes acho que falo demais do assunto e fico indagando: “- Será que estou

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aproveitando da tristeza alheia!” Essa questão da AIDS é muito real para mim. Além
de perder meu irmão, uma experiência terrível, já perdi diversos amigos. Hoje em
dia, todas as minhas convicções sobre libertação sexual estão muito abaladas. No
momento, realmente me coloco na situação de crítico. Acho que a AIDS acabou com
tudo isso. A doença levou ao questionamento desse princípio hedonista.
O lema do movimento homossexual, assim como de toda ferveção da década
de setenta, era que o prazer do indivíduo devia ser primordial. Buscava-se ter o
máximo de prazer instantâneo porque prazer não fazia mal a ninguém. A tristeza
poderia ser mudada, não havia porque ficar encima deste sentimento. No tempo do
desbunde, prevalecia à busca do alto astral... é possível que a AIDS tenha vindo
dessa atitude propagada pelo desbunde.
O Santo Daime trouxe-me outra forma de êxtase. O que foi muito bom porque
levava a outra dimensão. O Daime é algo mais puritano. Várias pessoas que conheci
no movimento homossexual, passaram para o Daime... o pessoal do SOMOS
precisou de outra coisa. O Santo Daime deu outras visões, sobre possibilidades de
crescimento, de desenvolvimento e de continuar tendo êxtase. De certa maneira,
representa outra forma de amadurecimento, de ficar mais próximo da morte.
Só ficar em cima da alegria, sem ver que há tanta morte no nosso mundo, é
uma visão muito parcial, porque a vida tem esse lado da tristeza, do sofrimento, da
doença e da morte. Meu pai morreu, meu irmão morreu, um monte de amigos meus
morreram de forma extremamente dolorosa. Pessoas colhidas na melhor parte das
suas vidas. O Santo Daime me levou a esse lado mais sério da vida.
O Santo Daime é uma religião onde basicamente a idéia é que a história se
passa entre a pessoa e o Daime. As experiências são entendidas a partir do repertório
pessoal, depende da forma como a pessoa vê a história. Porém, a título de
organização religiosa, existe uma estrutura em torno, a qual tem uma série de
problemas de organização das pessoas. Isso me recordava uma série de problemas

357
similares aos que ocorreram no movimento homossexual e nos movimentos
políticos.
A minha experiência no SOMOS proporcionou um olhar crítico que utilizo
em situações totalmente diferentes. Mesmo num movimento religioso com
características completamente opostas, puritanas e anti-sexuais, observo questões
similares... chega uma hora que isso incomoda. Atualmente não estou participando
das reuniões em São Paulo. Sinto-me numa situação semelhante a que vivi na época
do racha do SOMOS. Desta forma, também faço umas comparações assim, mas foi
algo com que me enriqueci, tenho me enriquecido e que representa mais uma virada
na minha vida.
Permaneci muito tempo em São Paulo esperando abrir uma vaga para
antropólogo na USP ou na UNICAMP. As vagas abertas na UNICAMP já estavam
previamente preenchidas, lá eles não fazem concurso, mas convocam alguém que
eles querem. Na USP houve apenas aquela vez. Depois de algum tempo comecei a
sentir que não poderia dar aula de antropologia em São Paulo. Terminada a minha
bolsa de pesquisador visitante, pedi uma de pesquisador associado - que é o próximo
passo -, e só é possível ter um número X de anos com essas bolsas. Desta forma,
achei que tinha de pedir uma nova bolsa numa outra instituição.
Na Bahia, conhecia pessoas de uma instituição, ligada com a UFBA, que
trabalha com usuários de drogas. Prestei concurso para dar aula de Antropologia na
Universidade Federal da Bahia e passei. Espero começar a dar aula a partir do ano
que vem. No momento estou de mudança para a Bahia. Visito a Bahia há quinze
anos, vou lá todo ano porque adoro o carnaval baiano... é um desbunde.
Na época do desbunde e do Tropicalismo, os baianos foram figuras muito
importantes. Quando morava na Inglaterra, o meu grande ídolo era o Bob Dylan, mas
quando vim para o Brasil eram o Caetano e o Gil. O questionamento dos papéis de
gênero era outro ponto interessante. Os carnavais da Bahia, nos finais da década de

358
setenta e início de oitenta, eram inacreditáveis. Era um espaço de anarquia total em
plena ditadura.
Fiquei desapontado ao comprovar o que era o carnaval no Rio de Janeiro. Não
era nada do que idealizei quando estava na Inglaterra. Imaginava uma loucura, todo
mundo saindo na rua, dançando e cantando, mas quando fui à Bahia, vi que lá era
assim. A Bahia era a imagem que possuía do país tropical. Participar dos carnavais
da Bahia, literalmente, era como participar de uma espécie de ritual dionisíaco. Todo
ano era a mesma coisa, rolava de tudo, muito samba, suor e cerveja. Isso provocava
uma alteração de consciência. Todo ano, nesse estado, me dava conta que desde a
última vez se passara um ano, mas durante o ano não aparecia lá.
Era como se a Bahia fosse um longo carnaval, estivesse fora do tempo, entre
um carnaval e outro não existia o ano. Dessa condição de fora do tempo, dava para
ver o que havia mudado durante o ano que passou. Nessa ocasião, aproveitava para
avaliar minha vida, meu próprio desenvolvimento, enfim como estava caminhando.
Não era um evento só para sacanagem, mas no meio da grande loucura, atrás do trio
elétrico, acontecia o momento da interiorização, do crescimento espiritual.
Na Bahia aprendi a ser muito mais solto. Devido a minha formação inglesa,
era mais reservado. Os paulistas também são mais reservados. Na Bahia, quando se
anda de ônibus, as pessoas conversam conosco como se nos conhecessem há anos.
Todo mundo conversa entre si. Muitas pessoas criticam, acham que isso é muito
superficial, mas essa crítica é uma bobagem. O povo baiano tem outro jeito de ser,
necessariamente nem melhor e nem pior, mas tem essa abertura maior. Sempre tive
esta dificuldade, lá aprendi a ficar mais à vontade e a conversar mais com as pessoas.
Ir para a Bahia todo ano, era como ir para um Shangri-lá, para uma utopia. A
Bahia parecia utópica. O lugar onde se realizava aquele carnaval, só podia ter uma
coisa muito especial. Havia uma amiga minha que morava lá, uma vez que fui à
França a conheci. Ela estudava na França, mas morava na Bahia. Sempre fico na
casa dela. Passaram-se os anos, tudo mudou, esse desbunde na Bahia, por um lado já

359
não é como era antes, por outro estou mais velho também. Vivi muito isso, então
vejo a coisa completamente diferente, mas ainda é algo muito importante e adoro a
Bahia.
Sempre vivi minha vida por fases, elas têm início, meio e fim: a fase em
Edimburgo, a fase na Escola Antroposófica, a fase que dei aula na Cultura Inglesa, a
fase universitária, a fase do SOMOS, a fase do Daime e agora a fase da Bahia.
Relacionado às épocas, há os grupos de amigos, completamente diferentes, às vezes
morava em lugares diferentes, uma vida dividida em diversas fases... e agora vai
começar uma fase baiana, espero que seja boa.

360
. Nasceu em Baltimore,
nos Estados Unidos.
Em 1951

. Professor de História da América Latina


na California State University, Long
Beach.

. Estudos acadêmicos: Ciências Políticas;


Doutorando em História pela UCLA

James Naylor Green.

361
Já havia conversado com James Naylor
Green em São Paulo, durante o Festival de
Manifestações das Sexualidades no Museu
da Imagem e do Som. A gravação, porém,
aconteceu durante a XVII Internacional
Lesbian and Gay Association Conference.
Iniciamos a entrevista num salão do Rio
Palace Hotel, onde nos acomodamos à mesa
de comunicações. James Green, como se
tivesse a voz calada pela História, estava
disposto a falar por horas a fio. De vez em
quando entrava uma pessoa ou outra no
local. Por sugestão dele trocamos de salão.
Desta vez, ficamos em três cadeiras mais ao
fundo, a terceira era para o gravador. O calor
do depoimento ofuscou o frio do salão de
conferências. O pesquisador, contudo,
transferia para outra pesquisa suas próprias
preocupações. Por vezes, os olhos, as mãos
postas sobre as pernas, pareciam esperar pela
inquisição. Talvez para confirmar minhas
impressões, encerrado o registro, ele
observou que fatos e datas ocupavam uma
posição secundária naquela entrevista.

Rio de Janeiro, RJ,


20 de junho de 1995.

362
“O que eu tinha no grupo SOMOS!? Era muito carismático,
confiava muito na minha visão, a qual convencia as pessoas. Não sei!...
faz parte da minha personalidade.”

O meu nome é James Green, mas no Brasil as pessoas me chamam por


Jimmy. Nasci no ano de 1951, em Baltimore, uma cidade portuária nos Estados
Unidos. Ela tem mais ou menos um milhão de habitantes. Sou de uma família de
classe média. Meus pais eram professores no ensino público... depois se tornaram
diretores. Sou o caçula de quatro filhos. Minha formação provém de uma família que
valoriza a educação, a moral, assim como questões ligadas ao idealismo. Um fato
diferente sobre minha infância é que fui criado na religião Quaker, a qual é
conhecida no Brasil por causa da aveia Quaker. Porém, muita gente confunde com a
religião dos Amish, dos mórmons, assim como outras religiões nas quais as pessoas,
no século passado, usavam roupas simples... com cores em preto e branco.
Os Quakers faziam parte de um grupo protestante na Inglaterra, surgido em
1640. As pessoas que o compunham eram pacifistas, eram a favor da igualdade
social e se recusavam em prestar honra ao rei... por causa disso, muitos foram presos
e sofreram perseguição religiosa. Posteriormente, fizeram um acordo e conseguiram
terras fora da Inglaterra, fundando uma colônia nos Estados Unidos - a Pennsylvania
- onde, pela primeira vez, houve liberdade religiosa no Novo Mundo: qualquer
religião poderia ser praticada.
Esse grupo possuía tradição de se envolver com movimentos sociais e
políticos nos Estados Unidos. Por exemplo, ajudaram no movimento pela abolição,
auxiliando a fuga de escravos para o Canadá, assim como no movimento de
emancipação da mulher, foram dirigentes sufragistas (feministas que lutaram pelo
direito de voto para a mulher. Sufferage é o direito a votar. Suffrigist é uma mulher
deste movimento, como Berta Lutz no Brasil); atuaram também no movimento pelos

363
direitos civis dos negros e no movimento pela paz contra a Guerra do Vietnã. No que
se refere a participação em movimentos sociais, sempre fui influenciado por este
comportamento liberal.
Comecei a fazer teatro com oito anos e gostei muito. Queria ser ator
profissional, mas percebi que as pessoas mais velhas do grupo eram homossexuais.
Tinha pavor de ser homossexual!! Larguei esse sonho aos quinze ou dezesseis anos,
por causa de um processo interno de negação do meu homossexualismo, com dores
muito fortes, um conflito muito... mas muito profundo! Quando estava no teatro,
conheci uma pessoa que ficou famosa por causa do seu trabalho. Ela se tornou
compositora, escreveu letras musicais para Walt Disney... como a Pequena Sereia.
Um ano antes dela morrer, ganhou um Oscar por melhor letra. Então ela morreu de
AIDS. Após sua morte, ganhou outro Oscar e o parceiro foi recebê-lo. Aquilo foi
muito emocionante porque eu não sabia do acontecido. Acabei chorando muito.
Naquela época em que estudava teatro, percebi que esta pessoa era
homossexual, assim como outras. Eu tinha pavor de ser homossexual. Não queria ser
marginalizado, pois sabia que na sociedade americana isso acontecia. Ser
homossexual, para mim, era ficar sozinho na velhice. Possuía uma noção de
velhinhos associada à banheiros públicos, buscando não sei bem o quê. Lembro que
uma vez fui à biblioteca central da minha cidade, gostava muito de freqüentá-la, e vi
uns velhinhos que a freqüentavam. Não sabia o que estavam fazendo, mas esta
imagem ficou na minha cabeça. Achava que homossexualismo era aquilo.
A época de escola foi muito ruim. Passei os três últimos anos do colégio
numa escola pública... só para homens. Isso é muito raro nos Estados Unidos, mas
existem três ou quatro. Sentia-me incapaz de fazer o que os outros meninos faziam.
Assim, não me dava bem nos esportes. Enquanto pessoa, emocionalmente era muito
sensível, chorava facilmente... tinha uma sensibilidade enorme! Foi um período
muito difícil! Não sentia atração pelas meninas. Tentava sair com elas, mas me
sentia mal. Foi muito doloroso! Toda esta situação apontava para um conflito

364
interno, do qual desconhecia a resolução. Eu escrevia um diário que tinha três níveis:
um nível consciente, onde contava o que estava acontecendo; um nível de segredos
menores; e um nível onde escrevia: “- Tenho algo que não posso contar a ninguém”.
-, era uma maneira de lidar com esse conflito.
Não queria reconhecer a essência do problema. Subconscientemente sabia que
era o meu homossexualismo, mas não podia dar-lhe o nome, porque o fato de fazê-lo
significaria assumir o seu conteúdo.
Em 1968 saí de Baltimore para a universidade. Efetivamente nunca mais
voltei. Ainda não tinha estrutura de assumir-me homossexual para as pessoas que me
conheceram no colégio. Na minha cidade seria muito difícil me declarar
homossexual, poderia ser vítima de pessoas que conhecessem minha família. Depois
pensei: “- Se eu fiz questão de assumir era para mexer com a cabeça deles”.
Realizei o curso superior numa universidade de origem Quaker... numa
cidadezinha no interior dos Estados Unidos, onde me formei em Ciências Políticas
em 1972. Entretanto, no período entre 1968 a 1972, detive-me conjuntamente em
duas atividades: uma foi minha politização sobre a Guerra do Vietnã, o meu ativismo
constante nas mobilizações contra esta guerra; a outra foi pensar sobre este conflito
interno que me assolava. O fato de sentir que era homossexual gerava a sensação de
não saber o que fazer. Participei muito do movimento contra a Guerra do Vietnã,
cuja mobilização provocou uma grande mudança social. Ao mesmo tempo surgiram
outros movimentos sociais.
Em 1969, logo no começo do curso superior, já havia o movimento feminista
e o movimento da Contracultura. As pessoas usavam cabelo comprido, os homens se
vestiam de uma maneira mais afeminada... colorida, com jóias. Assim, identificava-
me com as idéias libertárias presentes nestes movimentos. Elas inexistiam numa
sociedade com noções de gênero bem definidas, altamente polarizadas pela divisão
homem-mulher. O movimento feminista, assim como a Contracultura me ajudaram a
sair desta crise. No meu modo de agir percebi semelhanças com a idéia do homem

365
novo, cujos valores eram projetados pelo movimento feminista. Desta forma, sentia-
me à vontade neste ambiente social. Ao participar em conferências de mulheres,
comecei a perceber o apoio ao novo modelo masculino. Nestes eventos havia
agrupações internas compostas por homens, entre os quais se encontravam
homossexuais assumidos.
Enquanto estava na universidade viajei para o México, para a Europa e fui
morar no interior do Estado de Nova Iorque... conheci algumas pessoas e resolvi
morar numa comuna. Quando concluí o curso universitário não quis retornar para
fazer pós-graduação, nem para me profissionalizar. Como se dizia naquela época:
“- queria viver um estilo de vida alternativo”. O estilo alternativo representava uma
forma meio anarquista de criar uma nova sociedade dentro dos padrões sociais
predominantes. Depois me mudei, com sete pessoas, para um bairro operário...
pobre, em Filadélfia, e moramos lá. Então morei numa comuna, com minha
companheira, mas coloquei para ela o que sentia. Vivemos juntos algum tempo e
depois nos separamos. Assim, foi em Filadélfia onde passei por todo esse processo e
assumi a homossexualidade.
Em 1973, com 21 anos, fui a uma reunião para a organização do ativismo gay
na Filadélfia. Na semana seguinte, participei de uma atividade contra a
discriminação. Naquela época havia um bar gay, controlado pela Máfia, que não
permitia a entrada de mulheres, travestis, negros. Para entrar, eles pediam uma
carteira de identidade ao homem branco bem vestido... a lei norte-americana exige
controle por idade. Porém, para as mulheres, pessoas de cor e travestis, eram
exigidos três comprovantes de identidade. Isso era uma loucura porque ninguém
anda com três comprovantes de identidade.
Este é um dado interessante porque revela a existência de bares que
discriminavam transexuais e travestis, ou grupos étnicos como negros e latinos.
Também era evidente a distinção por classes sociais na comunidade gay. Entretanto,
a discriminação era atenuada porque gays e lésbicas sofriam seus efeitos. Ela existia,

366
mas havia um contato compulsório, entre classes sociais e grupos étnicos, maior na
comunidade lésbica e gay do que a comunidade americana “normal”, na qual o
relacionamento de brancos se restringia a brancos, de negros a negros e de latinos a
latinos.
Hoje em dia a comunidade lésbica e gay é diferente, mas nos anos setenta era
um espaço onde as pessoas se misturavam. Em São Francisco, contudo, eram as
pessoas brancas que dominavam a comunidade gay... geralmente de classe média, ou
que aspiravam a uma vida boa e com conforto material. É claro que havia uma
influência da Contracultura. Havia pessoas com cabelos compridos, mas o
consumismo gay era predominante, expandindo-se de forma galopante durante os
anos setenta e oitenta.
A AIDS modifica esta perspectiva. Muitas pessoas - economicamente
privilegiadas - com a doença começam a perceber que o dinheiro não significava
quase nada. Mesmo com sua posse, elas seriam discriminadas e iriam morrer de
qualquer jeito. Neste caso, uma televisão colorida não era tão importante como uma
vida sã e com amigos. O governo que elas achavam maravilhoso, por proporcionar-
lhes bens de consumo, também discriminava e não tomava nenhuma atitude para
resolver a questão da AIDS. Assim, a politização ocorreu tempos depois. Nos anos
setenta, a maioria da comunidade gay era mais consumista, aspirando ao padrão
classe média. Não me sentia bem neste ambiente porque estava muito distante destes
valores.
Neste período já possuía uma consciência política, muito importante, devido
aos vários anos dedicados ao movimento contra a Guerra do Vietnã. Participei de
uma série de piquetes, protestos, mas até então nunca tinha entrado num bar gay.
Depois, quase que imediatamente, joguei-me no movimento gay... porque me
identificava muito com suas atividades. Isso aconteceu após eu ter a primeira relação
sexual. Logo em seguida, assumi a homossexualidade para minha família. Nesta
etapa da vida perdi muito do medo. Este processo foi muito rápido, durou um ano.

367
Percebia que assumir-se era a coisa mais importante a fazer... não queria mais viver
na mentira. Conversei com amigas que aceitaram bem, depois com minha irmã e
durante um ano passei uma fase como bissexual. Acho que entre 1971 e 1972 me
declarava bissexual. Efetivamente estava transando com uma mulher, mas meu
desejo, definitivamente, era por homens. Em 1973, comecei a militar no movimento
gay-lésbico americano. Desde então permaneci na militância.
A perda do medo da homossexualidade, assim como a conscientização
adquirida, deve-se a uma combinação de várias questões: primeiro, o fato de
perceber que havia diferentes modelos de homens homossexuais... não era só aquela
idéia do coitado; segundo, a aceitação de um comportamento masculino alternativo
pelo movimento feminista... o homem não tinha que ser macho; por fim, naquela
época havia todo um clima social estimulando comportamentos alternativos, em
todos os sentidos... de sexo, de estilo, de vida. Neste caso, foi uma combinação de
questões externas (face a uma sociedade em transformação), com o processo interno
(motivado pelo apoio dos meus amigos, percebia não ser rejeitado por eles). Então
não hesitei em assumir-me rapidamente enquanto homossexual, metendo-me no
movimento a todo vapor.
Na Filadélfia havia um pequeno núcleo de pessoas... como já disse, não me
sentia bem naquele ambiente porque era um meio gay da classe média consumista.
Predominava a freqüência a bares em detrimento da consciência social. Decidi ir
para São Francisco. Naquela época, realmente, esta cidade era o centro efervescente
de discussão em torno do homossexualismo masculino e feminino. Fui para lá buscar
mais pessoas que compartilhassem das minhas perspectivas ideológicas. Em 1973,
viajei à Califórnia para visitar uma amiga. Lá percebia uma liberdade maior, com
uma vida gay mais diversificada. Na Califórnia, aconteceu o movimento de
vanguarda, mas depois isto tornou-se uma discussão nacional, envolvendo pessoas
de todos os lugares.

368
O movimento de Contracultura, politicamente, não poderia ser definido como
anarquista. A Contracultura possuía aspectos neste sentido, mas em São Francisco,
por exemplo, existia um grupo muito grande chamado BAGL - Bay Area Gay
Liberation (Liberação Gay da Área da Baia de São Francisco) -, uma das últimas
organizações da primeira etapa do movimento gay-lésbico. Após a rebelião de
Stonewall, surgiram Frentes de Liberação Homossexual nas principais cidades do
país, muito influenciadas pela Nova Esquerda americana e pela Nova Esquerda
internacional. Eram organizações baseadas num discurso revolucionário que
possuíam uma mescla interessante do marxismo com o anarquismo.
Neste sentido, havia grupos, tanto anarquistas como da esquerda tradicional,
que achavam necessário uma transformação global da sociedade para resolver a
questão da discriminação homossexual. Há rascunhos de alguns dirigentes do
movimento gay brasileiro e também da FLH da Argentina... numa primeira fase,
onde se observa este discurso. Também havia grupos com outras experiências:
pessoas que participaram no movimento contra a Guerra do Vietnã, assim
politizaram-se de outra maneira; pessoas que estavam mais interessadas em se
relacionar com o Partido Democrático... ou seja fazer reformas, pois acreditavam
que gays e lésbicas podiam encaixar-se na sociedade caso houvesse algumas
modificações legais.
Eu militava na BAGL - Bay Area Gay Liberation -, mas acompanhava todas
as tendências de perto. Participava em todos as atividades e passeatas da esquerda
porque também era ativista. Sabia de tudo o que estava acontecendo. Fiz parte de um
coletivo de nove ou dez pessoas que se reivindicavam marxistas. Eram todos gays
que atuavam com questões de conscientização referentes à raça, classe social e
discriminação dentro da comunidade gay-lésbica. Com este grupo realizei muitas
atividades. Organizamos o primeiro ato de solidariedade a gays e lésbicas chilenos...
foi em 1974, um ano depois do golpe de Estado no Chile. Embora não tivéssemos
contato direto com nenhum grupo deste país - porque não existiam -, decidimos fazer

369
uma noite de solidariedade... para esclarecer a comunidade de São Francisco sobre a
situação dos gays e das lésbicas na América Latina. Sabíamos que as ditaduras
latino-americanas discriminavam e dificultavam a vida dos gays e das lésbicas... isso
efetivamente era verdade, embora não houvesse contatos orgânicos com pessoas do
Chile.
Fizemos esta noite de solidariedade... foi um evento muito bonito, com
trezentos e cinqüenta pessoas protestando contra a ditadura de Pinochet. A
solidariedade se estendia também ao Brasil. À época, eu fazia parte de uma comissão
que fez uma série de denúncias sobre a tortura no Brasil. Era uma comissão
impulsionada por Burtram Russel e baseada na Itália.
Num primeiro momento, esse interesse pela América Latina se deve a uma
proximidade política. Quando aprendi alemão no colégio quis ir para a Europa,
durante seis meses viajei muito... fui para a Alemanha e Áustria. Mas não gostei dos
alemães, achava-os muito frios, muito distantes. Eles não despertavam um tesão
cultural. Depois resolvi ir para o México, acreditava que um conflito semelhante ao
do Vietnã aconteceria na América Latina. Neste caso, precisava aprender espanhol.
Eu tinha um amigo, heterossexual, que foi para o México. Acho que estava meio
apaixonado por ele. Fomos aprender espanhol juntos, num curso em Cuernavacd no
México. Lá conheci pessoas de vários países latino-americanos, todas envolvidas
com movimentos sociais.
Eu, como muitas pessoas, idolatrava a América Latina, Che Guevara, a
Revolução Cubana. Ao meu modo de ver, a esquerda norte-americana estava meio
fraca... caminhando para o declínio. Na América Latina parecia que tudo estava
acontecendo. Assim, identificava-me muito com esta região. Esse foi um dos meus
interesses pela ligação.
Algumas pessoas faziam gozação dizendo: “- Ah! Você gosta de latinos!”.
Entretanto, o meu interesse não era conquistar os meninos da América Latina, mas
fazer uma conexão internacional. É verdade que depois gostei... até hoje gosto

370
muito. Descobri que os latinos eram muito carinhosos, abertos, sensuais, coletivos,
tanto os homens como as mulheres. Sentia esse calor humano com os latinos, cujo
vigor adequava-se a minha personalidade... sentia-me muito bem neste ambiente.
Não experimentava tal sensação com a cultura americana. Então, tinha esta atração
pela América Latina, assim como pela Contracultura americana, mas neste último
caso era mais pela parte marginalizada da sociedade americana.
Meus amigos sempre diziam: “-Venha conhecer a América Latina. Venha
conhecer o Brasil”. Resolvi juntar um dinheirinho, aproveitei uma amiga brasileira
que estava retornando do auto-exílio e vim com ela. A intenção era conhecer toda a
América Latina em um ano, passeando como muitos jovens norte-americanos
fizeram naquela época. Por circunstâncias acabei ficando no Brasil.
Na Filadélfia, em 1972-73, fiz parte de um coletivo de estudos sobre a
América Latina... um grupo de estudos onde cada pessoa tinha como
responsabilidade fazer uma apresentação: numa semana sobre o Chile, na outra sobre
o México, na outra sobre a Bolívia. Depois procurei os grupos organizados de
solidariedade nos Estados Unidos... em geral, pequenos comitês organizados por
americanos que moraram na América Latina e por algumas pessoas no exílio ou no
auto-exílio nos Estados Unidos.
Em Washington tinha um comitê formado por brasileiros, no qual tinha um
conhecido que foi torturado brutalmente em 1970. Depois de sair da prisão, ele foi
morar com a mãe nos Estados Unidos. Assim, conheci o comitê que ele participava e
conheci sua irmã também. Uma atriz carioca que se tornou minha amiga... ela era
louca como eu. Cheguei a transar com ela após assumir minha homossexualidade.
Na verdade isso fazia parte de uma experiência bissexual. Ela me convidou para
viajar... estava voltando para o Brasil, então vim com ela. Quis ir para o Chile, mas
não deu certo. Cheguei no Brasil, fiquei quase seis anos porque gostei e quis fazer
minha vida aqui.

371
Primeiro passei seis meses na Colômbia antes de vir para o Brasil. Lá,
conheci um professor da Escola Nacional de Teatro... Gustavo. Junto comigo, ele
queria formar um grupo de reflexão sobre homossexualismo. Tentamos fazer, mas
ninguém se interessava pelo assunto na Colômbia em 1976. Depois soube que ele
conseguiu fazer isso em 1978, além de outras coisas na primeira onda do movimento
homossexual naquele país. Posteriormente, amigos colombianos me disseram que foi
por causa da minha presença que ele se inspirou em dar esse passo.
Já tinha alguns contatos quando cheguei no Brasil, entre eles o do João
Silvério Trevisan que conheci em Berkeley. Ele era gay assumido, namoramos um
pouco... nada muito sério. Então tinha essa ligação pessoal, além de uma
identificação... ele se sentia exilado do seu próprio país. O Trevisan passou vários
anos fora do Brasil... no México, em Berkeley. Se não me engano, quando ele
voltou do auto-exílio, no final de 1975, o Brasil ainda vivia sob a égide da ditadura,
com forte repressão... ele se sentia um peixe fora da água.
O Trevisan apreendeu uma visão do movimento homossexual - baseada numa
abertura cultural e social - sem ter condições de executá-la no Brasil. Ele tentou
fazer uma primeira investida, cujo resultado não deu em nada. Quando cheguei em
dezembro de 1976, ele já tinha feito a primeira experiência, tentando formar um
grupo de reflexão que não deu certo. Parece-me que já tinha tentado organizar...
conversamos sobre o assunto, ele estava muito angustiado com isso. Em 1977 era
muito difícil conseguir alguma coisa neste sentido. Assim, mantinha contato com
Trevisan.
Resolvi morar em São Paulo, consegui emprego nesta cidade... apesar de estar
em situação irregular. Depois retornei aos Estados Unidos. Não podia ficar no Brasil
por causa do término do visto de permanência. Neste período, estava em dúvida se
queria ou não ficar no Brasil... porque tinha um namorado brasileiro. Fui para São
Francisco saber se queria ficar lá. O grupo, no qual havia participado, já não existia
mais. Passei a me sentir um peixe fora d’água. Acabei passando mais de seis meses

372
nos Estados Unidos, de outubro de 1977 até agosto de 1978, então resolvi voltar para
o Brasil. Nesse meio tempo em que estive fora, o primeiro grupo de militância
homossexual brasileiro formou-se efetivamente.
Neste primeiro ano e meio de permanência no Brasil, quando Winston
Leyland visitou o país estive com ele e conversamos. Devido a presença de Leyland
houve uma reunião, incentivada por João Antônio Mascarenhas, entre outras
pessoas, a qual deu início ao projeto Lampião.
O Lampião provocou a formação de um grupo de militância homossexual em
São Paulo. Quando cheguei ao Brasil, em começos de setembro de 1978, integrei
imediatamente este grupo. Fui bem vindo às reuniões que se realizavam na casa das
pessoas. Quando integrei o grupo, ele ainda não tinha o nome SOMOS. No início,
durante três ou quatro meses, o grupo ainda tinha outro nome: Núcleo de Ação pelos
Direitos Homossexuais. O nome SOMOS foi adotado em dezembro de 1978.
Efetivamente não estava no parto do grupo, mas cheguei um dia depois no hospital.
Por alguns motivos não participei no Lampião. Um porque não me
considerava intelectual e nem escritor naquela época. Hoje em dia sou historiador...
estou fazendo um trabalho de pesquisa sobre o homossexualismo masculino no Rio e
em São Paulo de 1930 à 1990. Naquela época, porém, não me considerava um
intelectual, sentia que não poderia escrever bem. Outro motivo era porque me
considerava mais ativista político... tanto do movimento homossexual quanto na
esquerda brasileira.
Quando estive no Brasil em 1977, conheci um rapaz que era militante dos
grupos da esquerda. Ele entrou para a Convergência Socialista (hoje Partido
Socialista dos Trabalhadores Unificados), cujo nome ainda não era este... ela tinha
outro nome: Liga Operária. Então também quis entrar, em parte por causa de um
certo romantismo americano... queria participar de um movimento revolucionário
contra a ditadura no Brasil. Mas também porque realmente acreditava na necessidade
de uma transformação social com o socialismo, assim queria participar. Tive uma

373
participação clandestina por várias razões: primeiro porque essa organização era
proibida, depois havia problemas com minha legalidade; na época eu era um
estrangeiro com situação precária, tinha que me manter um perfil discreto. As
pessoas que participavam no movimento gay, pelo menos as que se interessavam por
essa questão, sabiam que eu era ligado a Convergência Socialista.
A questão era: como nos faríamos nossas reivindicações!? As pessoas com as
quais tenho conversado sentiam a possibilidade de fazer estas alianças. De fato,
havia aquela ditadura oprimindo todos os setores sociais. Em 1977, quando muda a
situação, os estudantes saem à rua, as passeatas não são mais reprimidas, a
contestação à censura se faz mais presente, assim as pessoas se sentem dispostas a
arriscar em ir numa reunião semiclandestina, em escrever uma carta e abrir uma
caixa postal, em declarar-se na imprensa.
Eu idealizava a construção de um movimento gay-lésbico que lutasse pelos
seus direitos, como fazia o movimento negro e o movimento feminista. Acreditava,
contudo, na necessidade de alianças com outros setores sociais. Não somente com as
minorias - mulheres, negros, índios, movimento ecológico, pessoas com deficiência
física ou qualquer um destes rótulos -, mas com qualquer um onde houvesse
homossexuais, por exemplo: a classe trabalhadora ou as camadas populares. Ao meu
modo de ver, esses eram os setores mais dispostos a fazer uma transformação global
da sociedade. Desta forma, sempre tive vontade de ligar-me aos outros movimentos
sociais: movimento sindical, movimento de luta dos trabalhadores, movimento negro
unificado, movimento feminista.
Sempre reivindiquei essa posição dentro do SOMOS... batalhava por este
ponto de vista. Isso causou divergências no próprio movimento homossexual...
inclusive uma ruptura total com Trevisan. Ele possuía uma visão bem distinta sobre
os rumos do movimento, assim como uma grande crítica tanto da esquerda em geral,
quanto das pessoas que participavam no movimento homossexual e nos grupos de
esquerda. Tínhamos perspectivas diferentes dentro do ponto de vista político.

374
Quando faço um balanço do meu trabalho naquela época, penso que talvez
não valorizasse suficientemente o que se chamava “autonomia do movimento
homossexual”. Entretanto, a chamada autonomia significava que nenhum grupo da
esquerda poderia participar, mas os simpatizantes de outras ideologias - fossem de
cunho religioso, ou simplesmente porque considerassem o PMDB um partido legal,
ou ainda possuíssem uma ideologia anarquista - não havia problemas... poderiam
freqüentar a vontade! Porém, caso fosse uma visão de cunho marxista, a admissão
era vetada. O argumento era que a esquerda poderia manipular ou dirigir o
movimento.
Naquela época, eu refletia sobre a existência de um movimento gay-lésbico
autônomo, independente e democrático. No sentido de decidir seu destino enquanto
movimento, escolhendo democraticamente os próprios rumos. Neste caso, o
movimento deveria optar por alianças, por formas de trabalho, por reivindicações,
para atingir seus objetivos. Na minha concepção, o movimento democrático deve
abrir espaços a todas as formas de pensamento, garantindo o direito de opinião a
todas as pessoas que pertençam a qualquer associação, seja ela qual for - política,
civil, religiosa -, para debater posições e decidir pelas melhores propostas... era
justamente o que eu fazia.
Enquanto membro da Convergência Socialista, não poderia expor minha
posição abertamente. Eu poderia ter problemas legais no país. Afinal, era uma
organização que sofria com a repressão da ditadura. Pouco tempo antes deste
período, toda a direção da Convergência Socialista havia sido presa. Desta forma, eu
tinha que manter uma certa discrição, mas as pessoas sabiam das minhas intenções.
Como militante do movimento pretendia propor experiências apreendidas nos
Estados Unidos e no Brasil.
Enquanto historiador, observo que a “abertura política” parece proporcionar
uma combinação de questões. O golpe de Estado de 1964 não reprime, diretamente,
o homossexualismo masculino nas grandes cidades. Pode ser que militantes da

375
esquerda, com orientação homossexual, foram repreendidos, mas minha impressão
pela pesquisa que realizo, é que a boneca, a bicha, enfim o homossexual masculino
mais comum continuava sua vida. É claro que se fosse ator, ele enfrentava
problemas com a censura, especialmente entre 1967-68, mas não houve uma política
direta contra os homossexuais, nem contra o atentado ao pudor, que eles achavam
que os homossexuais fizeram.
Em 1969, a situação muda com o AI-5. Realmente ocorre uma campanha pelo
maior controle social. A repressão, imposta neste período, visava acabar com a
guerrilha urbana, intensificar a censura à imprensa. Nota-se que a imprensa da
comunidade gay, atuante nos anos sessenta, jornalzinhos produzidos por grupos de
amigos param de ser publicados. O SNOB, primeiro jornalzinho elaborado por um
grupo de bonecas cariocas que surge em 1963, não é mais publicado em 1969. Em
1976, ocorreram tentativas de organizar uma atividade no Rio de Janeiro, foi
chamado um congresso de gays para ocorrer no Museu de Arte Moderna no aterro
do Flamengo... além da polícia, não compareceu ninguém. O motivo desta ausência
era o temor, o medo da repressão. As pessoas não sentiam que havia clima político e
social suficiente... não havia espaço para tanto.
A abertura para a sociedade começa em 1975, mas os seus efeitos se dão
realmente a partir de 1977. Ao meu modo de ver, a “abertura” alimenta o movimento
homossexual. O próprio Lampião é reflexo deste período. É um jornal da imprensa
nanica, publicado para lutar contra a censura. O Lampião realmente abre caminho
para os grupos. Na verdade, o próprio jornal já é um grupo composto por editores...
não dava para fazer um grupo político.
Segundo meu ponto de vista, a transformação deste estado aflui com os
movimentos contra a carestia, o movimento estudantil e depois com o movimento
operário. Quando esse conjunto de forças começa a enfrentar o governo, através das
greves, passeatas, coisas até então proibidas, exigindo uma maior expressão política

376
no lugar da repressão, ainda presente naquele período, isso permite que mais
homossexuais se disponham a integrar algum tipo de grupo.
Em 1978 quando o SOMOS surgiu, fundado logo depois do lançamento do
Lampião, passou por um grande processo interno, fazendo anúncios na imprensa
alternativa. No verão de 1979, o grupo resolve assumir-se publicamente durante um
ciclo de debates sobre minorias ocorrido na USP. Tratava-se de um evento
promovido pelo DCE. A proposta era debater as influências mais libertárias e
anarquistas, assim como apresentar críticas aos grupos marxistas-stalinistas... acho
que se chamava Novo Vento e era dirigido por André Singer.
À época, quando o grupo assumiu, ele ficou bastante perdido em termos das
atividades que devia sugerir e fazer durante 1979. No mesmo período, o Lampião
começou a ter problemas. Os editores foram chamados para depor na polícia
federal... que o acusava de violar a lei de imprensa. Como estava no SOMOS, eu fiz
uma proposta: “- Por que não fazemos um comitê de defesa do Lampião?
Mobilizaremos intelectuais e atores de São Paulo. Isso servirá para fazermos uma
campanha externa de divulgação do grupo. Pediremos o apoio das pessoas do gueto,
dos grupos gays-lésbicos, assim como de outras linhas sociais, intelectuais, partidos
políticos. Uma campanha assim também ajudará as pessoas para que percam o seu
medo de se expor enquanto homossexual”. E esta proposta foi aceita, ou seja, era
uma idéia boa que ninguém tinha sugerido ainda. Mesmo que o Lampião resolvesse
seus problemas, antes que concretizássemos essa campanha, parece-me que foi
importante realizá-la.
O primeiro ponto que toquei foi a proposta sobre uma comissão de defesa do
jornal Lampião. Também propus outra experiência que trouxe comigo da esquerda:
vender o Lampião... essa ninguém quis fazer. As pessoas achavam interessante, mas
o Lampião não aceitou esta proposta. Isso tem a ver com toda uma visão do
Aguinaldo Silva, o principal editor do Lampião, bastante diferente sobre ativismo. A
posição dele no Lampião era muito clara. É o caso de entrevistá-lo para saber. Ele

377
era contra ativismo político, achava que neste momento era preciso criar espaços
para o consumismo. Na sua visão, isso proporcionaria a liberdade. Depois que
fechou o Lampião, em 1981, Aguinaldo Silva publicou outra revista, Pleiguei, que
colocava claramente esta perspectiva.
Outra proposta que eu fiz era participar no dia de Zumbi, em 20 de novembro
de 1979, quando disse que podíamos fazer uma faixa para participar. Fizemos uma
faixa, colorida, contra a discriminação racial, assinada pelo grupo SOMOS com o
nome Homossexual. Isso foi super importante porque as pessoas do grupo
perceberam que podiam sair na rua. Elas sentiam mais coragem de ocupar esse
espaço.
A terceira colaboração séria, entre várias outras, foi a questão da participação
do movimento no 1º de Maio. Na verdade, a idéia de participar não era totalmente
minha, mas eu incentivava muito. Quando ela não foi aprovada no Primeiro
Encontro Homossexual de Grupos Brasileiros Organizados (em São Paulo, em abril
de 1980), dentro do SOMOS resolvemos não insistir numa votação para evitar um
racha Assim, organizamos a comissão dos homossexuais pró-Primeiro de Maio,
justamente para evitar um racha dentro do SOMOS. Não queríamos forçar a votação
porque éramos a maioria, mas a divisão seria inevitável.
Fomos ao 1º de Maio, fiz todo o possível para que isso acontecesse, ajudando
a fazer as faixas na sede da Convergência Socialista... porque achava muito
importante. Não acho que houvesse autoritarismo sectário. No decorrer de 1980,
houve um processo de politização do movimento, entraram pessoas novas, pessoas
do movimento estudantil que não pertenciam a nenhuma tendência, mas com uma
visão diferente de tudo. Não eram engajados nos movimentos sociais, mas eram
solidários ao movimento sindical em 1980. Eles já achavam correto ir para o 1o de
Maio. Depois do Primeiro Encontro essa situação se configurou.
Antes o grupo de pessoas que dirigia O SOMOS tinha um discurso mais
libertário, anarquista, autonomista. Os ideólogos dessa visão eram o Trevisan, o

378
Emanuel, junto com outros membros do grupo. Porém, entram outras pessoas com
esse posicionamento diferente. Havia também um grupo que não tinha porra
nenhuma de opinião... eles estavam lá para conhecer, para fazer o movimento e sei lá
o que. De fato o número de pessoas cresceu, tanto de mulheres que posteriormente se
separou do grupo, como de homens que entendiam a importância de estar no ato do
1º de Maio. Fomos ao ato, não houve nenhuma imposição... as pessoas foram
porque entendiam a importância.
Cada proposta que fiz, eu a fiz claramente ao grupo: “- Que tal fazermos tal
coisa?” Eram as pessoas que decidiam. Não me lembro agora, mas apresentei
propostas que não foram aceitas. Sempre pensava comigo: “- Como podemos
avançar o movimento? O que podemos fazer?”... antes de tudo eram propostas. Por
exemplo, propus a criação de uma associação nacional de grupos gays e lésbicos.
Esta foi uma proposta que levei ao Primeiro Encontro, fui altamente criticado porque
achavam que seria uma maneira de manobrar o movimento, um discurso de poder ou
uma forma de algumas pessoas tomarem o poder do movimento. Então, nem toquei
mais no assunto, foi uma proposta que foi para o lixo. A Associação Nacional foi
fundada no começo de 1995, porém houve ganhos do movimento no decorrer das
décadas de setenta e dos oitenta.
Um grande argumento para desqualificar a proposta de fundar uma associação
nacional era a questão de poder... também é um discurso vazio para mim! Um
exemplo, o Lampião criticava o poder, mas quem tinha poder no Brasil era este
jornal. O Aguinaldo Silva fez uma campanha de juntar fundos para editá-lo. Ele
conseguiu juntar onze intelectuais, para dar legitimidade, colaborar, escrever artigos.
Enfim, fez um trabalho excelente de vanguarda, de pioneirismo... tudo bem!! Mas
mesmo assim ele tinha um grande poder porque decidia quem entrava, quem não
entrava. Ele dirigia a linha do jornal para arrasar, não arrasar, apoiar, criticar. Então,
ele tinha uma influência tremenda com o Lampião em nível nacional e até mesmo

379
internacional. Neste sentido, ele tinha um poder. Ele decidia quem escrevia... não era
algo votado nas reuniões do SOMOS.
O Trevisan era um ótimo escritor, super original no seu pensamento, tinha um
poder muito grande de convencimento. O que eu tinha no grupo SOMOS!? Era
muito carismático, confiava muito na minha visão, a qual convencia as pessoas. Não
sei... faz parte da minha personalidade. Quer dizer, esse era o meu poder. Tinha
idéias que eram poderosas. A idéia de ir ao ato do 1º de Maio, a idéia de fazer uma
faixa e participar no dia de Zumbi representavam uma possibilidade de aliança
concreta com os negros, não só no discurso, mas concretamente eram poderosas...
então foi o que consegui.
De certa forma, o Lampião não consegue acompanhar esse processo porque
era um jornal intelectual. Ele não tinha homens nus, era feito com papel de jornal,
não era uma revista bonita. Quem aproveitou esta situação foram os empresários,
eles podiam importar ou produzir artigos mais sexuais. O Brasil era muito carente
deste serviço, as pessoas só conseguiam material importado, visto que este era o
desejo das pessoas, teve início esta atividade. Ao meu modo de ver, o Lampião tinha
dificuldade de competir com esse novo mercado, o Aguinaldo Silva até tentou fazer
o jornal do Homo Pleiguei, mas não deu certo.
Parece-me que havia uma diferenciação entre o discurso dos intelectuais do
Lampião com a realidade. O Lampião procurava publicar artigos que refletiam sobre
saunas, sobre travestis, sobre a mulher, enfim, vários segmentos da comunidade.
Particularmente acho que o Lampião cometeu um erro, no sentido dele se tornar anti-
ativista, isso desmoralizou totalmente os grupos que queriam trabalhar. No final o
jornal se tornou muito agressivo ao ativismo. Ele não buscou outra maneira de
conseguir apoio, ou seja, tinha uma visão duvidosa: não era pró-ativismo, nem pró-
consumismo... ficava entre os dois e não tinha grande espaço para isso.
A linguagem dos intelectuais, no que se refere ao que era publicado no
Lampião, não equivalia a linguagem do povo que freqüentava o gueto. Acredito que

380
os intelectuais do Lampião expressavam algumas correntes dentro do ativismo,
assim como censuraram outras visões. Era um discurso diferente do que estava
pensando a maioria dos gays e lésbicas. Mesmo porque o ativismo e o Lampião
representavam um fenômeno reduzido, poucas pessoas tinham uma visão politizada.
Naquela época não era um movimento massivo.
Tanto o Lampião e o grupo SOMOS representavam uma porcentagem muito
reduzida dos homossexuais de São Paulo. Havia muitas boates surgindo nos anos
setenta, produto da “abertura”, e os gays e as lésbicas freqüentavam porque eles
queriam um lugar para dançar, transar, paquerar, conhecer e assim por diante. O
SOMOS não podia oferecer essa alternativa, em expansão nesse momento muito,
porque o grupo era novo... com pessoas que não tinham muita experiência, pessoas
da classe média baixa, em geral, sem muitos recursos.
Hoje em dia também não é um movimento massivo. Estamos realizando a
ILGA, no papel estão inscritos sessenta e não sei quantos grupos, todos pequenos.
Há algumas exceções, talvez cinco destes grupos tenham mais de cinqüenta pessoas
freqüentando as reuniões: o GGB, Dignidade, Atobá, Dialoguei e Arco-Íris. O resto,
são menores, pode ser que tenham outros que não conheça... não sei? Não conheço a
realidade, pode ser que tenham grupos com cinqüenta pessoas em todas as capitais
do país. O número, contudo, é muito reduzido, tendo em vista que cinqüenta pessoas
numa cidade de um milhão de habitantes representa pouco, quando há muito mais
pessoas que vão aos locais de freqüência predominantemente homossexual.
O SOMOS abriu uma sede em 1981, algo inédito, a primeira sede do
movimento homossexual da América do Sul. Não foi a primeira da América Latina
porque já existia uma sede em Porto Rico. Porém, o grupo não podia manter esse
espaço alternativo, ele fez uma série de coisas, um cineclube e fazia festas, mas o
poder do capital era muito maior. Havia outras pessoas que visavam o lucro. Isso se
tornou mais evidente quando, em 1983, a Isto É publicou um artigo sobre

381
consumismo gay, falando sobre a boate de Celso Curi e de outras boates que abriram
em São Paulo.
Por outro lado a idéia que ocorre a instalação do consumismo a partir desta
época é preciso ser melhor discutida. O consumismo começou nos anos 1950...
porque a medida que não havia espaço social para o homossexual, ele era
considerado um anormal na sociedade, no sentido de não poder andar onde quisesse,
com quem quisesse, ele tinha que ir para espaços fechados que o protegessem contra
a violação, contra a repressão, ou seja, as boates, os bares. Ele era obrigado a
consumir num lugar dirigido aos homossexuais, então esse consumismo existe há
muito tempo.
O ativismo acabou por vários motivos, não só por causa do consumismo.
Porque se há um lugar no mundo onde existe consumismo é nos Estados Unidos e lá
o ativismo continua. Não foi o consumismo em si que levou o movimento a se
acabar, mas foram vários motivos: não existia um jornal nacional para aglutinar e
divulgar informações; depois de cinco anos os ativistas da primeira geração estavam
cansados; a maioria das pessoas não tinha estrutura, para manter-se como Luiz Mott
que felizmente o consegue fazer.
Houve uma recessão econômica em 1983, as pessoas não tinham recursos e
nem disponibilidade de prosseguir. Esta crise golpeou muito as pessoas,
principalmente as do SOMOS/ São Paulo que eram de classe média baixa. Elas não
tinham muitos recursos e não podiam continuar mantendo aquele ritmo. Havia o
local, não tinha grana para continuar pagando o aluguel. Num primeiro momento,
acho que o movimento não soube como estender-se, fazer campanhas, fazer
atividades que poderiam aglutinar mais pessoas. Trata-se de uma debilidade política
que ainda existe no movimento, então, tem que aprender como fazer campanhas
concretas para incluir cada vez mais pessoas no movimento.
Depois a AIDS gerou uma crise na comunidade gay especialmente, mas acho
que os gays não pararam de ir para as boates, para os bares, na verdade houve todo

382
um retrocesso combinado com um avanço. Muitos ativistas da primeira fase do
movimento participaram nas primeiras campanhas de esclarecimento e prevenção à
AIDS, colaborando em todos os sentidos com esse movimento.
Os grupos de militância homossexual começam a se reorganizar a partir de
1985 com o Triângulo Rosa, de 1986 com o Atobá. Surgem outros grupos no Rio,
em São Paulo, depois começam a aparecer em nível nacional. O GGB, Grupo Gay da
Bahia, é um grupo que se mantém durante todo esse período. A partir de 1989, o
acúmulo de forças é suficiente à reestruturação do movimento em nível nacional. É
quando se realiza o Terceiro Encontro. Parece-me que esta situação também tem a
ver com o movimento internacional, cuja organização se faz cada vez mais presente,
com divulgação, com atividades como passeatas internacionais, nacionais, o que
incentiva mais pessoas a participarem, vislumbrando a possibilidade de se fazer a
mesma coisa no Brasil. No que se refere ao consumismo, definitivamente só se pode
dizer que ele aumenta com a “abertura”.
Isso significa que não sou contra meu espaço chamado de gueto. Adoro bar
gay, gosto de estar num espaço onde posso andar de mãos dadas com o meu
namorado, enfim, de me sentir à vontade. Gosto de freqüentar os lugares onde as
pessoas brincam, onde há travestis, transexuais, para se sentir à vontade e expressar-
se no lugar que chamam gueto, contudo, também vivo numa sociedade que mantém
relações... onde tem inúmeras pessoas. Mas, quero estar em contato com o meu
sindicato, afinal como funcionário público quero estar a par de tudo, como
homossexual também quero contar ao meu colega que o meu namorado está
viajando e estou com saudades.
Então, sempre quis ter esse espaço. Quero que o meu sindicato também lute
pelos meus direitos, como pessoa que tem direito a receber benefícios para o meu
parceiro. Possuía essa visão que era possível romper o preconceito inicial. Aquela
parede que você tem de superar para estar do outro lado e dialogar. Também entendo
que as pessoas são preconceituosas, a sociedade cria uma infinidade de preconceitos.

383
Não somente contra os homossexuais, mas no que se refere também às questões
raciais. Tinha a visão do diálogo. Insistia com ações concretas com o
Movimento Negro Unificado para que houvesse a incidência do diálogo... como
ocorreu anos depois na manifestação do dia de Zumbi. Insistia num diálogo com o
movimento operário, com o movimento sindical, com o movimento feminista para
que todo mundo se entendesse nesse diálogo. Fazer isso era uma proposta. Naquela
época, acreditava que, politicamente, surgia um partido alternativo que seria nosso
aliado: o PT. Por isso, apoiava uma ligação com o PT. Não que o SOMOS fosse se
afiliar ao PT, mas tinha o interesse das pessoas que procuravam... assim buscavam
algo mais. Parece-me que no geral minhas visões estavam corretas, ou seja, percebi
no nível da realidade o desdobramento dos acontecimentos.
Hoje não é necessário refazer uma discussão sobre homossexualismo com o
PT, o contato com o Partido dos Trabalhadores já existe. Não é necessário fazer o
primeiro debate sobre homossexualismo na USP porque anos antes isso já aconteceu.
As pessoas não têm que ter medo de andar com uma faixa na rua, reivindicando
direitos para homossexuais, porque isso já foi feito. Há muito tempo estes espaços já
foram sendo conquistados... as pessoas sabem que não é necessário retornar a essas
discussões.
No que se refere a idéia do movimento homossexual ter sido cooptado pela
esquerda, acho que hoje em dia noventa por centro dos ativistas dos grupos votam no
PT, votaram no Lula nas últimas eleições, em geral, se identificam com os deputados
do PT. A realidade indica que eles são os mais combativos. Há outros partidos como
o PP, PFL e o PSDB do próprio Fernando Henrique Cardoso que é social-democrata,
ligado a países onde têm direitos dos homossexuais. Ele nem mencionou a questão
no seu programa de governo. Mesmo sendo esposo de Ruth Cardoso, uma famosa
expert em movimentos sociais, não há nada no programa.
Hoje em dia, por exemplo, na 17a. Conferência da International Lesbian and
Gay Association, contamos com a presença de pessoas públicas, pessoas do governo,

384
que representam o produto de alianças construídas com práticas concretas. Este
processo durou muitos anos até chegar neste estágio. No início, as pessoas cagavam
de medo de ir à redação de um jornal como Movimento, periódico publicado pela
esquerda, ou de pedir o apoio do PT. Hoje, muito pelo contrário, a primeira pessoa
requisitada é um deputado do PT, porque já se sabe que eles defendem os direitos
dos homossexuais. Naquela época as pessoas tinham receio.
Tendo em vista a realidade brasileira, há pessoas que militam em diferentes
setores sociais e são simpáticas aos nossos direitos, até podem ser que sejam poucos,
mas estão a nosso favor. No meu modo de ver, a esquerda tinha idéias interessantes,
outro ponto importante, ela tinha experiências em forjar alianças noutros países,
assim achava fundamental o apoio do sindicato. Neste sentido, podia haver esse tipo
de apoio. Hoje em dia, a CUT apoiou esse congresso, do mesmo modo que o
sindicato dos bancários está presente. Há quinze anos atrás eu tinha essa visão: “-
Vamos ver como começar o diálogo com o sindicato dos bancários para que um dia
eles apóiem a gente.” Essa foi a idéia para não se ficar aislado.
Agora afirmar que a esquerda manipulava!? Para mim, no mínimo é muito
curioso... porque eu militava num grupo trotskista. Em geral, os grupos trotskistas,
nos anos sessenta e no começo dos anos setenta, internacionalmente eram os que
mais defendiam os direitos dos homossexuais. Enquanto os grupos stalinistas,
ligados ao Partido Comunista da União Soviética, ou aos grupos maoístas, ligados ao
Partido Comunista da China, eram totalmente homofóbicos, ostentando idéias que a
homossexualidade era um sintoma da decadência capitalista ou da degenerescência
burguesa, coisas assim, e eram contra a organização do segmento homossexual.
Eu militava num grupo trotskista. Dentro da Convergência Socialista, fiz um
trabalho interno de organização e educação dos homossexuais. Considerava tão
importante a participação de homossexuais no movimento, quanto a luta contra a
homofobia existente nesta organização. Posteriormente a Convergência Socialista se
definiu como uma organização partidária: o PSTU. Certamente ainda existe

385
homofobia no PSTU. Porém, existe também um grupo de gays e lésbicas dentro do
partido. Os ataques, contudo, nos primeiros momentos do movimento, em 1980,
foram contra a única organização de esquerda que tinha uma posição a favor dos
direitos homossexuais, ou pelo menos tentava ser a favor, enquanto que não se fazia
nenhuma crítica aos Partidos Comunistas com orientação stalinistas... ou a outras
organizações com perspectivas ideológicas que prejudicassem os homossexuais.
É curioso que muitos destes intelectuais, ligados ao Lampião, historicamente
estavam próximos ao Partido Comunista e nunca fizeram uma campanha às claras
contra o partido. Outro exemplo, diziam que a Convergência Socialista apoiava
Cuba e a política cubana... isto é mentira. Criticávamos a burocratização em Cuba,
definindo-a como um Estado obreiro burocratizado, cuja opressão atingia
trabalhadores e homossexuais.
Eram pessoas conscientes da verdade que escreviam ao inverso, faziam isso
para confundir os ativistas homossexuais, gays e lésbicas, que na sua maioria não
tinha formação política, sendo facilmente confundidos por essas informações. Nós,
pelo contrário, não tínhamos acesso a um veículo alternativo que fosse efetivo para
educar. Isso gerou muita confusão.
Não houve manipulação, em determinados momentos fiz minhas propostas,
chamei as pessoas por telefone para defender minhas posições, mas isso é normal em
qualquer associação. Com certeza outras pessoas fizeram a mesma coisa... certeza
porque eles resolveram se retirar do SOMOS. Para mim é importante deixar claro:
não foi um racha, mas uma retirada. As pessoas se retiraram do grupo porque tinham
outro projeto e o SOMOS seguiu com seu projeto.
Não soube o que aconteceu com Outra Coisa quando saí do país... em
dezembro de 1981. Depois descobri que o grupo Outra Coisa - que se retirou do
SOMOS - fez duas coisas extremamente positivas: um guia gay que não era sectário,
o grupo publicou os nomes de todos os outros... neste ponto achei excelente, gostei

386
muito deste trabalho. Foi um dos primeiros grupos a divulgar um panfleto sobre
AIDS no gueto.
Nos anos oitenta, os ativistas do SOMOS e do grupo Outra Coisa - que rachou
e fez mil calúnias -, reivindicaram a militância e participaram do movimento de
esclarecimento e prevenção à AIDS. Há pessoas participando ainda hoje, como
Veriano que era do grupo SOMOS/RJ, Jorge Beloqui que era do SOMOS/Rio e São
Paulo, John MacCarthy que estava na fundação do SOMOS, outras pessoas como
Míriam, Alice e Mariza que eram do primeiro grupo lésbico e ainda estão ativas.
Alguns entraram no final do SOMOS, mas são pessoas que estão militando desde
aquela época. O SOMOS do Rio foi inspirado no SOMOS de São Paulo, ou seja, nós
inspiramos eles a fazer o que eles fizeram. Hoje em dia estamos aqui por causa
deles, assim como de outras pessoas que foram aparecendo.
Neste caso, quando se faz uma cronologia dos nomes de todas as pessoas que
começaram no ativismo nos anos oitenta, muitas delas pegaram o jornal Lampião,
onde souberam do trabalho que nós fizemos inicialmente no PT. Havia aquelas que
ouviram falar através de um amigo que era do SOMOS... era uma tradição que
infelizmente a história não tem documentada.

387
Primeira Rede:

Os Colaboradores do Lampião.

Nome do Data e local Idade à Local e data Textos Local e


colaborador de época da da conferidos Data de
envio do conferência conferência enviados autorização
texto pelo correio do texto
Glauco Osasco-SP 45 anos
194
Mattoso em ________ ________ _________
20/03/1997.

Celso Osasco-SP 46 anos Na São Paulo-


Curi 195 em residência SP
21/03/1997. do jornalista ________
em São 19/05/97
Paulo. Em
19/05/1997.
Luiz Mott196 Osasco-SP 50 anos Na Salvador-
em residência BA
21/03/1997. do professor _________
em 29/04/97
Salvador.
Em
29/04/1997

194
Surge como Membro Colaborador do jornal em São Paulo a partir do lançamento em abril de
1978 (Nº 0), permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 27).
195
Surge como Membro Colaborador do jornal em São Paulo a partir de maio de 1978 (Nº 1),
permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).
196
Surge como Membro Colaborador do jornal em Salvador a partir de dezembro de 1979 (Nº 19),
permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).

388
. Nasceu em São Paulo (capital),
em 29 de junho de 1951.
. Bibliotecário, técnico em
documentação, poeta e
humorista.

. Estudos acadêmicos:
Biblioteconomia na Fundação
Escola de Sociologia e Política,
em São Paulo; Letras Vernáculas
na Universidade de São Paulo.

. Autor, entre outros: Jornal


Dobrabil, 1977-81; O que é
poesia Marginal, 1981; O que
é Tortura, 1984; O Calvário dos
Carecas, 1985; Manual do
Pedólatra Amador, 1986.

Glauco Mattoso

389
A pontualidade me fez chegar na hora
marcada para o encontro. Esse foi o
primeiro comentário tecido por Glauco
Mattoso, após ir se acomodar numa grande
poltrona. Na sala de seu apartamento havia
uma série de objetos que davam
lembrança do pé : um pé de brinquedo
embaixo da poltrona; o par de um tênis,
encima de um móvel, fazia o papel de
bibelô; um pôster de propaganda,
promovendo o consumo de um sorvete
em forma de pé. A produção do autor é
original, o fascínio e a dedicação para com
a pedolatria - tão presentes em sua obra -
estavam ali naquele ambiente que nos
cercava para a entrevista.

São Paulo, SP,


24 de fevereiro de 1994.

390
"Parece que tudo, na minha vida, gira em torno do meu olho".

A minha memória auditiva e visual é muito boa. Nasci com um defeito visual
grave, o glaucoma. O glaucoma quando é congênito, como é meu caso, geralmente
leva a cegueira. Estar enxergando ainda hoje é lucro. Já passei por várias cirurgias.
Todas mais ou menos sem êxito. Perdi a visão do olho direito e o esquerdo está
bastante comprometido. Dessa condição de glaucomatoso, o portador de glaucoma,
tirei o nome de plume: Glauco Mattoso. O meu verdadeiro nome é Pedro, o qual
gerou outro apelido: Pedro o Podre, pseudônimo punk usado mais tarde.
Fui filho único até os quatro anos. Nessa idade ganhei um irmão e cinco anos
depois veio o segundo. Não era mais o filho único para tornar-me o primogênito.
Sou de uma família descendente de italianos e portugueses, por isso não existe tanto
rigor como em outras colônias. A japonesa, por exemplo, onde o primogênito deve
ter certas responsabilidades, se possível ficar solteiro para cuidar dos pais na velhice.
Porém, dos irmãos, apesar de não pertencer à colônia japonesa, fui o único que ficou
solteiro. Resolvi assumir plenamente a condição sexual e ser honesto comigo
mesmo.
Essa opção foi muito precoce... lembro-me remotamente. Desde o início da
puberdade já tinha consciência de que não iria constituir família. Não pretendia ter
filhos. Tenho a impressão que essa decisão decorreu de dois fatores: um deles é o
defeito físico; como não está provado se o glaucoma é hereditário ou não, fico
sempre em dúvida sobre a possibilidade de transmiti-lo a um descendente, embora a
possibilidade seja remota; o outro fator foi a consciência precoce da minha
sexualidade. Esse último, acredito que também decorra da consciência precoce da
minha deficiência visual, ou seja, não creio que a homossexualidade seja uma
deficiência, mas a sociedade a impõe como um desvio às pessoas. Então, tenho a

391
impressão que esses dois fatores acabaram se ajudando um ao outro no meu processo
de auto-conscientização.
Além disso, houve uma experiência precoce. A sexualidade se não for
traduzida em prática, muitas vezes fica numa fantasia masturbatória. Não se
concretiza. Acredito inclusive: grande parte da orientação sexual de uma pessoa, seja
homo, hetero, bi, a preferência sexual, seja anal, oral, enfim o gosto específico na
cama, decorre das primeiras experiências sexuais. Isso não é bom nem ruim, pois
caso a primeira experiência sexual seja resultado de uma brincadeira, de algo
gostoso e procurado para acontecer, ou tenha acontecido de maneira consentida, daí
não resultará nenhum tipo de seqüela na personalidade que possa tornar a pessoa
insatisfeita com sua condição sexual.
Felizmente meu caso foi assim. Posso até me considerar um privilegiado. A
primeira experiência, aos cinco anos, foi com um garotinho dois anos mais velho.
Não foi nada forçado, coagido ou violento. Caso contrário, possivelmente haveria
algum trauma, por estar fazendo algo errado, gerando um sentimento de culpa... essa
consciência nunca tive. A precocidade em relação ao sexo era nítida. Desde cedo
tive consciência de fazer algo que não era aceito pela sociedade. Portanto deveria
tomar cuidados, enrustir-me até certo ponto. Para me abrir teria que ser com pessoas
confiáveis no momento certo.
Percebi não haver nenhum problema de consciência. Afinal, não fazia nada
que resultasse em prejuízo próprio. Nunca tive o sentimento de culpa, talvez por não
ter sofrido com uma orientação religiosa muito rígida... minha mãe é católica e meu
pai é espírita. Isso abrandou bastante minha educação religiosa. Ao contrário de
amigos meus que estudaram em seminário e tiveram uma educação religiosa mais
rígida. Comigo não aconteceu nada disso, o que ajudou a libertar-me de algum tipo
de remorso. O lado religioso não tem a menor influência na minha vida. Sou crítico
em relação a todas as religiões. Numa posição até muito à vontade, pois não senti o
problema na carne para criticar asperamente.

392
Nessa experiência com o garotinho, minha sexualidade ainda não estava
pronta para desabrochar. Mas como todos nós somos bastante precoces em relação à
libido, acreditamos que só na puberdade sua manifestação seja possível. Na verdade
a coisa toda é muito anterior. Essa experiência aos cinco anos deixou todas as
marcas para uma futura personalidade homossexual. Foi uma penetração oral. Ele
me chupou, lembro-me bem, e até machucou um pouco. Cheguei a lhe pedir para
não me morder. Ele disse que não estava mordendo, apenas dava essa impressão
porque o fazia com um pouco mais de energia. Naquela idade, não tinha ereção e
minha pele era bastante delicada. Qualquer tipo de pressão mais forte dava a
sensação de estar ferindo. Ele pediu-me que fizesse o mesmo. Com certeza deve ter
presenciado garotos mais velhos fazerem, por isso tentava imitá-los.
Achei a experiência gostosa porque fazíamos escondidos. Naquela ocasião,
esse garoto era meu único companheiro de brincadeiras por causa do glaucoma. Na
medida que a miopia é forte, ela isola as pessoas. Afinal, é preciso tomar certos
cuidados com os olhos, para não se expor a choques. Além do que, não tinha
equilíbrio, um dos meus olhos apresentava problemas mais graves. Então não podia
fazer nada: jogar bola, andar de bicicleta, dançar. Isso me limitava demais, isolando-
me dos amiguinhos que conhecia, pois não podia participar de tudo o que faziam. E
foi com esse garotinho, com quem brincava há mais tempo, que tive a oportunidade
de fazer isso escondido. Anos depois, meus pais se mudaram para a periferia, um
local bem afastado, onde fiz novas amizades.
Lá havia terrenos baldios e muitos descampados. A molecada era mais
maliciosa, violenta inclusive. Caso desse alguma bandeira esse pessoal me curraria.
Portanto, deveria tomar um cuidado maior, pois além de ficar marcado, a coisa
correria de boca em boca... poderia sofrer algum tipo de violência. Sabia muito bem
o risco que corria. Nessa época comecei a freqüentar a escola primária. Já tinha a
minha turma, mas ficava na minha. Os meus amores eram platônicos, a essa altura
com dez ou onze anos, comecei a me apaixonar. Não sabia exatamente o que estava

393
acontecendo, mas tinha fortes quedas por alguns dos carinhas, não por todos. Nunca
senti vontade de fazer com todo mundo o que havia feito com o primeiro garotinho.
Nunca fantasiei isso, de maneira alguma. As imagens que surgiam, nos primeiros
orgasmos, eram dos meninos pelos quais havia uma atração especial. No ginásio tive
uma experiência bem mais completa com um deles. Nós dois já tínhamos todas as
noções de sexo: os orgasmos, as sensações necessárias e as fantasias alimentadas
pelos gibisinhos pornográficos.
Havia também a conversa com a molecada. Se por um lado falava-se só de
garotas, por outro havia brincadeiras onde todo mundo era xingado: "- Ah! Você é
um chupa-rola". Quando alguém era chamado assim, ficava imaginando como seria.
Afinal, podia ser porque a pessoa gostaria de experimentar. Paralelamente, um outro
tipo de desejo começou a nascer em mim: a atração pelo pé. É difícil dizer quando
começou. Desde muito cedo brincava com meu próprio sapato. Antes de masturbar-
me, costumava colocar o sapato no pau e o usava como uma bocetinha. Metia dentro
dele instintivamente. Não me inspirava em nenhuma cena, pelo menos não me
lembrava de nada que houvesse me motivado, senão o fato do garotinho, na primeira
experiência sexual, ter chupado o dedão do meu pé.
Nesse ambiente suburbano, muito violento, usava-se pisar na cara do inimigo.
Nas brincadeiras, quando algum garoto era derrubado, os outros, para o humilhar,
costumavam pisar nele. Naquela época ninguém andava calçado, todo mundo
andava descalço e de calça curta. Dava-se muita topada, a tampa do dedão caía fora
e era comum voltar para casa com a ponta do dedão sangrando. Havia cenas onde
um cara era obrigado a beijar a sola do pé do outro. Não se obrigava a chupar o pau,
mas xingava-se demais. Esse clima, onde a relação entre dois caras era feita através
da coação e da dominação, excitava-me. Muito mais que um clima carinhoso,
envolvente, onde houvesse uma reciprocidade de toques ou um consentimento
mútuo. Ser dominado, obrigado a fazer coisas a força, era uma de minhas fantasias.

394
Não propriamente na força física, mas ser coagido na base da ameaça ao invés de
fazer por bem, numa boa ou com carinho.
Alguns dos rapazes, enquanto amigos, despertavam uma afeição maior. Com
eles havia fantasias onde salvava-lhes a vida numa situação de perigo. Assim eles
ficariam devendo-me uma obrigação porque eram um pouquinho mais velhos e mais
fortes. Conseqüentemente, nasceria uma atenção maior comigo. Nesses casos, a
fantasia era mais carinhosa. Não envolvia tanto a dominação, mas a proteção. Houve
casos onde fui defendido por um cara mais velho. Acabei me apaixonando por ele,
pois vivi a ameaça de apanhar de alguém. E ele interferiu dizendo: "- Não, você não
vai bater nele porque senão vai ter comigo!". Sentia-me protegido dessa forma.
Todos esses acontecimentos foram passageiros. Amizades de infância e adolescência
decorrentes do coleguismo de escola. Passada essa fase, cada um seguiu seu
caminho... afastando-se por causa do trabalho ou porque foi estudar em outro lugar.
No período escolar, comecei a me destacar mais que os outros. Quanto mais
problemas o glaucoma me causava, mais me tornava um aluno exemplar. Por um
lado isso me popularizava, por outro me isolava dos demais. O aluno muito
estudioso não participa da turma. Então, concluído o curso ginasial - não havia
colegial nessa época, mas o curso clássico ou científico -, prossegui no curso
clássico, pois caminhava no sentido das humanidades. A matemática me repugnava,
tinha horror a cálculos, gostava de ler muito: filosofia, literatura e coisas do gênero.
Foi assim que teve início a minha preocupação intelectual. Na faculdade optei pelo
curso de biblioteconomia. Inconscientemente, escolhi um curso freqüentado na sua
grande maioria por mulheres, mas não tive nenhuma intenção deliberada. Depois,
por uma estranha coincidência, descobri que os poucos homens que faziam
biblioteconomia eram homossexuais.
Achei até engraçado, mas não me manifestei porque era muito reservado
naquele período. O meu visual possuía um estilo TFP. E o meu isolamento levou-me
a ficar cada vez mais sisudo. Havia a necessidade de me afirmar em casa, mostrar-

395
me mais independente...ser auto-suficiente. Nessa época, já estava trabalhando,
pagando meus próprios estudos. A maneira que encontrei para meus pais não me
pressionarem, exigindo satisfação da minha vida, namoros, foi ficar mais sério do
que eles. Caso eles, como adultos, cobrassem responsabilidades, antecipava-me,
tornando-me mais sério e mais responsável do que eles poderiam exigir. Sendo
assim, tornei-me completamente quadradão. Usava colete, relógio de bolso com
correntinha. Um visual bastante anacrônico, caricaturalmente antiquado.
No curso de biblioteconomia, esse estilo atraiu a atenção de algumas meninas,
porém nem todas porque era considerado um tipo meio estranho. Nesse período, tive
minhas primeiras experiências heterossexuais. Foi quando questionei minha
sexualidade. Afinal, havia passado por poucas experiências, alguns coleguinhas com
quem tive intimidade e confiança suficiente para acontecer algo. Sendo que entre
uma experiência e outra, passavam-se anos. Num certo aspecto, praticamente poderia
me considerar virgem. Então, resolvi colocar minha hipotética virgindade a prova. Já
que me considerava virgem decidi começar do zero. Fazer uma tábula-rasa e
observar como era o negócio com as mulheres. Estava rodeado delas no curso,
portanto ou seria lá, ou em nenhum outro lugar haveria a chance de acontecer algo.
E houve duas ou três oportunidades. Foi com uma colega japonesa a
oportunidade que mais me marcou. Da minha parte havia um certo fascínio pela
estética da fisionomia oriental, meio enigmática, estranha. Por ser uma colônia
fechada, talvez gostasse da discrição oriental, tanto no japonês como na japonesa.
Enfim, foi assim que aconteceu. Acredito que não foi desagradável, nem para mim e
nem para ela. Porém, faltava algo, percebi que aquilo não preencheria minha vida de
jeito nenhum... não seria suficiente para evitar uma frustração. Além de tratar-se de
uma desonestidade, pois estaria traindo a mulher com quem ficasse. Como nunca fui
uma pessoa leviana, sempre levei muito a sério essa questão do compromisso
amoroso, das amizades, não poderia continuar.

396
Entendo a fidelidade não como uma virtude, mas uma obrigação. Ela não é
uma qualidade, mas uma prerrogativa. É como ter que enxergar bem para poder
dirigir um carro. Quem é caolho ou míope não pode dirigir, por isso não o faço.
Acredito que em relação à questão amorosa a fidelidade é necessária. Fidelidade não
significa necessariamente monogamia indissolúvel, mas monogamia durante um
certo período. Pelo menos o tempo necessário para saber se realmente deseja-se ficar
com a pessoa. Nesse sentido, é monogamia enquanto durar o relacionamento. Não
significa a obrigatoriedade de ficar com uma pessoa para o resto da vida caso as
coisas não dêem certo.
A questão da heterossexualidade passava ainda pelo problema da constituição
de uma família com descendentes, uma expectativa comum a toda pessoa casada e
uma satisfação dada aos pais e aos irmãos. O fato de ter feito a opção sexual, no
momento correto, foi muito importante. Para não ficar enganando a mim mesmo, a
meus pais, ao homem ou mulher que estivesse comigo, enfim, trata-se de uma
questão que exige uma decisão.
Naquela época, não foi a única decisão que tomei. Havia muitas outras
transformações. Aos vinte e poucos anos estava me formando em biblioteconomia...
na Escola de Sociologia e Política. Como fiz o curso numa faculdade particular,
decidi me testar enquanto CDF. Afinal, tinha fama de ser muito estudioso e acabei
fazendo uma escola particular. Passei em quarto lugar no vestibular e colei grau em
primeiro. Porém, isso não representava que fosse um aluno excepcional, poderia
significar apenas que o curso era fraco. Então, precisava me testar melhor fazendo o
vestibular unificado. Nesse período não era totalmente unificado, como o exame da
FUVEST, mas dividido por áreas. Havia o CESCEM para a área de exatas, o
CESCEA para as humanidades e o MAPOFEI para engenharia. Prestei o CESCEA e
entrei na USP... no curso noturno de letras vernáculas. Comecei a passar por um
período muito desgastante. Era bancário, já havia feito o concurso para o Banco do
Brasil, trabalhava em período integral e à noite tinha de ir à Cidade Universitária.

397
Essa situação se arrastaria por cinco anos, pois não conseguiria abreviar esse curso.
O diploma não me ajudaria, não iria acrescentar ou modificar em nada minha
carreira. Acabei abandonando o curso. Na verdade queria provar a mim mesmo que
não havia nenhum problema, caso houvesse feito esse vestibular desde o início,
haveria passado tranqüilamente, como aconteceu.
Nesse período tomei várias decisões: testei minha heterossexualidade, testei
minha capacidade intelectual e testei minha autonomia saindo da casa dos pais. Foi
quando já havia me formado bibliotecário. Trabalhava então no Banco do Brasil e
consegui juntar as duas funções: ser bibliotecário, sem deixar de ser funcionário do
banco, indo trabalhar no Rio de Janeiro. É lá que fica a biblioteca do Banco do
Brasil. Consegui uma transferência e esse foi o grande pretexto para sair de casa.
Seria difícil arranjar uma razão forte para continuar morando em São Paulo e cortar
o cordão umbilical.
Outro motivo que me levou a ir morar no Rio, foi a preocupação com minha
visão. Achava que minha situação estava ficando cada vez mais grave. Já havia
passado por três cirurgias, uma das vistas já estava perdida e a perspectiva era de
perder a outra. A possibilidade de ficar cego me gerou um receio, temia não ter
estrutura para agüentar tal situação e chegar ao suicídio. Assim, não queria que meus
pais testemunhassem tal fato, por isso queria estar longe. Esse foi o outro motivo que
me levou a conquistar minha independência e ir morar longe dos meus pais.
Morando no Rio de Janeiro, exatamente no meio da década de setenta,
presenciei um período em que o regime militar ainda estava bem fechado.
Marginalmente, porém, de uma forma meio liberada, aconteciam muitas coisas: todo
o desbunde, ocorrido após a mobilização universitária do final dos anos sessenta e
durante os anos setenta, toda a droga, o hippismo. O A.I.-5 que representou o
período mais repressivo da ditadura, levou camadas da juventude a uma maior
liberalidade nos costumes. O que pode parecer um paradoxo, com um arroxo tão
grande do ponto de vista político, as pessoas se entregando a uma vida livre.

398
No Rio de Janeiro, principalmente, aconteciam muitas coisas. Havia locais
folclóricos como o bairro de Santa Tereza no Rio, onde fui morar. Então, convivi
numa boa com pessoas que transavam drogas. Não acontecia o que se vê hoje em
dia. O Rio de Janeiro transformou-se num território de narcotráfico, com guerra de
máfias. Nesse período não era o tráfico que dominava, mas as pessoas limitavam-se
a comprar a quantidade que consumiam. Não havia o entreposto, como ocorre
atualmente... a cidade do Rio de Janeiro tornou-se um cartel. Evidentemente, hoje
não há só o consumo, numa perspectiva romântica, como foi nos anos setenta.
Naquele momento, fui morar no lugar certo. Era ali que estava acontecendo a
abertura de costumes. Em São Paulo, ainda era algo que acontecia no gueto, nos
bairros boêmios do centro da cidade, algo da classe teatral. Como morava muito
afastado na Zona Leste, o máximo que pude me aproximar foi quando estudei
biblioteconomia, perto da Boca do Luxo. Desconhecia aquela atividade homossexual
que existia nos guetos. Naqueles restaurantes, teatros, bares, mas tudo muito
discreto. No Rio havia um pouco mais de liberalismo, porém dentro dos limites do
gueto. A coisa começou a desabrochar justamente na época em que fui morar lá.
Na segunda metade dos anos setenta começou a desaparecer a censura,
possibilitando o aparecimento da imprensa alternativa. Nesse período, a grande
imprensa ainda estava amordaçada. Os grandes jornais estavam comprometidos com
o regime. Eles não possuíam a mobilidade necessária para cobrir certas áreas. Assim,
tablóides independentes começavam a entrar por essa brecha. Tudo começou com a
Pasquim, depois vieram os jornais políticos, Opinião, Versus, Movimento, e por fim
os jornais mais específicos, de minorias, como os de negros, mulheres e o Lampião.
Um pouco antes do Lampião surgir, havia um círculo de intelectuais, tanto no
Rio quanto em São Paulo, preocupados em aglutinar pessoas preocupadas em pensar
a questão homossexual fora da badalação do gueto. O gueto, se por um lado era
interessante enquanto ponto de encontro, por outro não refletia, não teorizava e nem
polemizava a questão, somente a folclorizava. Do ponto de vista desses intelectuais,

399
eles buscavam uma nova abordagem do problema. Queriam politizar a questão. A
única forma de politizá-la era: tirá-la do gueto primeiramente, para em seguida
questionar a postura da esquerda tradicional.
Numa conjuntura de direita, a questão homossexual não teria espaço para ser
discutida. Embora a direita seja moralista, dentro de toda sua hipocrisia o
homossexualismo é tolerado, muito mais do que na esquerda. Contudo, o moralismo
oficial da direita não abria espaço à discussão da questão. Sendo assim, ela só
poderia ser discutida dentro do contexto da esquerda. Por sua vez, a esquerda ainda
estava ortodoxa demais para permitir a inserção desse tipo de discussão. Nesse
sentido, era uma oportunidade interessante desses intelectuais reverem os conceitos
da esquerda.
O momento era propício, pois a "abertura política" estava possibilitando esse
tipo de discussão... vários temas estavam sendo julgados. A essa altura, minha
intelectualidade havia deixado o plano meramente pessoal para se tornar uma
atividade literária. Entre o ato de sair de São Paulo e ir para o Rio, já havia
participado de algumas publicações alternativas. Publiquei alguns contos, alguns
poemas, em revistas e em pequenos suplementos literários. Nesse período não se
usava a palavra fanzine, apesar de ter criado um dos fanzines poéticos em meio aos
diversos que existiam na época. Não só poético, como satírico e de vanguarda: o
Jornal Dobrabil. O título Dobrabil é um trocadilho com dobrável, pois era uma folha
só que se dobrava e mandava-se como carta. E também havia um trocadilho com Do
Brasil. O logotipo do Jornal Dobrabil imitava o Jornal do Brasil. Esse trabalho
literário me favoreceu, pois quando esses círculos se formaram, previamente a
criação do Lampião, já estava familiarizado com o meio intelectual da
marginalidade.
Essa intelectualidade, preocupada com a questão sexual, sofreu um reflexo
imenso na forma de cada um pensar sua própria sexualidade. Até aquele momento,
cada um de nós era um grande enrustido. Alguns já haviam viajado, tinham uma

400
grande vivência internacional. Tratavam-se de pessoas com bagagens existenciais
bem variadas, experiências de vida diferentes. Alguns haviam tido muitos parceiros,
verificando bem o que desejavam na cama... o que esperavam afetivamente de um
relacionamento homossexual. Porém, outros, acredito sinceramente que fossem a
maioria, estavam inexperientes nesse terreno. Haviam tido alguns relacionamentos,
mas estavam inseguros sobre o que poderia acontecer: se encontrariam pessoas com
as mesmas afinidades; se isso facilitaria sua opção sexual. Estava inseguro a esse
respeito, apesar de já ter tomado decisões - não me casar, ter uma vida homossexual,
não compartilhá-la com muita gente - não sabia se isso teria um ônus muito grande
do ponto de vista da solidão.
Quando comecei a me enturmar com o pessoal intelectual, a questão da
sexualidade passou a ser tratada de forma teórica. Da teoria passou-se cada vez mais
à prática... com a formação de grupos, inicialmente de estudo e discussão, depois se
tornaram grupos de militância, de participação na sociedade. Por várias formas: pela
imprensa, por debates, por passeatas, por pressão política. Percebi que haveria
conseqüências na vida das pessoas. Foi isso que me levou a integrar esses grupos. O
primeiro passo veio com o convite que partiu do pessoal do Rio. Primeiro, o Antônio
Chrysóstomo, depois o Aguinaldo Silva, em seguida o João Silvério Trevisan de São
Paulo. O meu vínculo começou com o pessoal do Rio, mas como era de São Paulo
acabei fazendo amizade com o João Silvério Trevisan. Quando voltei do Rio para
São Paulo, as minhas amizades se firmaram através do João Silvério Trevisan com
Darcy Penteado, Jean Claude Bernardet, enfim o grupo que ficou em São Paulo.
Na medida em que os grupos propunham uma discussão da sexualidade, eles
mexiam com a vida de cada um. Na época, alguns já tinham cabeça feita... acredito
que esse fosse meu caso. Uma de minhas convicções era que um relacionamento,
para ser satisfatório, teria que ser monogâmico. Naquele momento isso era um pouco
difícil. Tudo contribuía para uma espécie de deslumbramento. As pessoas estavam
descobrindo um clima de liberalidade muito grande.

401
O ritmo predominante era a discoteca. As danceterias tornaram-se o grande
ponto de encontro. Não eram mais lugarzinhos calmos, escondidos, mas lugares
muito barulhentos, efervescentes, bandeirosos. Esse auge possibilitava uma grande
galinhagem, muita promiscuidade, troca de parceiros, uma atividade sexual intensa.
Conseqüentemente, isso não contribuía em nada do ponto de vista da fidelidade, da
pesquisa sobre afinidades, para as pessoas se conhecerem intimamente.
Junto com o pessoal que formou o Lampião, fui um dos fundadores do
SOMOS. O grupo SOMOS, assim como suas subdivisões, estava preocupado em
questionar padrões aparentemente impostos pela sociedade tradicional. Naquele
momento tudo era incógnito. Tudo precisava ser devidamente levantado e discutido
em grupo, para nunca se partir de um ponto de vista pessoal. Essa atividade era
considerada muito boa, pois além de esclarecer os participantes, ajudava a desinibi-
los. Fazia com que pessoas fechadas conseguissem se comunicar. Por outro lado, não
percebemos, pelo menos não havia me dado conta, que era muito prejudicial na
perspectiva da individualidade. As individualidades eram ignoradas, até reprimidas
em função do coletivo. Certas decisões mascaravam a realidade individual.
Segundo a análise que faço, como o modelo heterossexual tradicional
impunha a monogamia como baluarte da família, questionava-se essa prática. Nesse
sentido, sustentava-se que uma nova forma de relacionamento devia ser colocada em
prática, pois a homossexualidade era uma forma revolucionária. Cabia-lhe
revolucionar essa questão. Portanto, o amor, para ser válido, teria que ser muito
heterogêneo. Cada vez mais a troca de parceiros era estimulada. Logicamente, esse
estímulo levou algumas pessoas a experimentarem tal prática. Afinal não havia outra
saída. Por um lado, o resultado era positivo porque obtinham-se conclusões pessoais,
com efeitos na vida das próprias pessoas.
O período que antecede minha vivência no Rio, não é marcado pelo número
de parceiros, mas lá tive diversas aventuras. Depois que o Lampião e o SOMOS se
formaram, os relacionamentos passaram a ser mais constantes, aconteciam dentro

402
desses grupos. Um deles era de alta rotatividade. Havia os membros mais antigos,
mas entravam pessoas novas a todo momento. Era comum o relacionamento dos
novos membros com os mais antigos. Começou a acontecer algo comigo que não
experimentei quando era adolescente: comecei a me apaixonar por carinhas mais
novos.
Não sei se por sorte, ou azar, tinha namorados muito jovens, entre dezessete e
dezenove anos. Foram paixões até exacerbadas. Não terminaram porque eu quisesse,
não dependia só de mim. Apesar de haver empenho dos dois lados, eles ainda
estavam numa fase de muita indefinição, muita imaturidade. Não posso culpá-los por
terem se afastado. Ainda mais naquele clima, onde as pessoas circulavam em volta...
era uma tentação constante e era bastante desagregador. Havia muita frivolidade.
Enfim, esse foi o primeiro ponto sobre o qual me senti tolhido em relação ao grupo.
Naquele momento, porém, acreditava que poderia me sacrificar um pouco.
Afinal, todos estávamos num processo de busca. O próprio país atravessava uma fase
que não deixava claro o que poderia acontecer. Tudo apontava para uma liberalidade
cada vez maior. A tendência era que a sociedade se tornasse receptiva ao
homossexual. A ponto de acontecer o que foi profetizado por muitos: a
homossexualidade latente nas pessoas começaria a se manifestar; ela encontraria um
terreno tão propício que uma parcela da sociedade, numericamente significativa,
poderia se assumir. Teríamos uma proporção tão grande de homossexuais que,
possivelmente, em termos de luta contra a discriminação, haveria uma tendência a
sermos favorecidos. Fantasiava-se sobre algo semelhante ocorrido em San Francisco,
quando, num determinado momento, a comunidade gay conseguiu eleger um
prefeito. Desse fato, originou-se uma frase que editei no Jornal Dobrabil: "Quanto
mais gueto, menos gueto".
Em nome dessa perspectiva, valia a pena abrir mão de certas convicções, pois
poderia estar sendo retrógrado e egoísta demais. Frente a tantos motivos, era preciso
rever alguns conceitos para dar uma chance ao movimento. Logo tudo demonstrou

403
tratar-se um pouco de devaneios. Caso não surgisse a AIDS, para jogar uma água
fria na fervura, com certeza haveria outro motivo. Surgiria outro tipo de refluxo, não
importa se fosse político, moral, ou qualquer que fosse a explicação. Naquele
momento, coincidentemente, a AIDS fazia suas primeiras vítimas, tudo começava a
mudar.
Lembro-me que questionava-se muito a especificidade, uma palavra muito
usada na época, primeiro para colocar a esquerda contra a parede, como quem diz:
"- Vocês não são a parcela mais progressista da sociedade? Não são vocês que
apontam para o futuro mais igualitário e menos opressor da humanidade? Não são
vocês que levantam essa bandeira? Então, vocês terão que admitir a causa
homossexual e digeri-la de alguma forma. Não só a causa homossexual, pois terão
de reconhecê-la enquanto causa específica de uma determinada 'minoria' ". Usava-se
esse termo, ainda que entre aspas. Assim, como existia a "minoria" homossexual,
existia também a dos índios, como a dos negros que não se trata de uma "minoria"
tanto quanto as mulheres. Essas eram as chamadas "minorias" que se resumiam na
palavra especificidade.
Achava ótimo o questionamento da ortodoxia da esquerda. Ela merecia ser
escarmentada, visto que os maiores massacres de homossexuais ocorreram sob
regime de esquerda, não de direita. Nesse sentido, gostaria de fazer um comentário
político. É muito irônico acusar a direita de ser moralista, persecutória, puritana,
inquisitória, contra o homossexual. A direita, em tese, tem o perfil da inquisição,
onde o homossexual é um devasso, um pecador, um pervertido que precisa se
converter ou ser punido. O homossexual não tem direito a terceira alternativa. Na
verdade, a direita possui outra característica além do seu perfil autoritário e
moralista: a hipocrisia.
A direita prima pela hipocrisia. Ela é uma moeda de duas faces, tem duas
caras. A época vitoriana é um excelente retrato da direita moralista. As perversões
florescem sob esse tipo de regime e certos comportamentos são tolerados sob a capa

404
do moralismo. É lógico, nem todos estão satisfeitos com a simples tolerância. As
pessoas querem mais do que isso, ou a permissividade ou algo até mais utópico: a
liberdade. Há, portanto, uma escala da tolerância à liberdade, onde a permissividade
encontra-se entre as duas. Embora não contente alguns e satisfaça a muita gente, a
tolerância, na prática, é o meio mais viável. É claro que certos extremos mais visados
do homossexualismo, como a prostituição masculina, realizada por travestis ou
michês, têm dificuldades em conviver com a tolerância. Essa é justamente a ponta
mais fraca da corda porque há indivíduos que sofrem mais as conseqüências.
Entretanto, para a grande maioria dos chamados "entendidos" (homossexuais que por
conveniência mantêm uma vida discreta) não há nenhum problema.
No meu caso, por exemplo, fico procurando na minha vida um momento que
tenha sido discriminado por causa da condição sexual. Nunca aconteceu qualquer
incidente, nem profissionalmente, nem intelectualmente. É lógico, houve o mesmo
tipo de prevenção, ou censura, estendida a todo mundo, contra qualquer forma de
transgressão. Como em qualquer caso de inconveniência do momento, do tratamento
de assunto errado na hora imprópria, mas isso não é uma discriminação pessoal.
Nesse sentido, coloco a questão da hipocrisia da direita porque do seu lado há
essa desculpa. Para a esquerda não tem perdão porque ela levanta a bandeira da
liberdade. A bandeira mais utópica de todas. A esquerda não quer nem a tolerância,
nem a permissividade, mas a liberdade, a igualdade e a fraternidade. No sentido
filosófico, tudo o que o ser humano tem direito. Assim, a esquerda tem de partir do
princípio que pode oferecer tudo agora, ou não pode ter pretensão a nada no futuro.
E a esquerda não tinha nada disso a oferecer. Aliás, nenhuma proposta de esquerda
nunca teve.
Ao verificarmos suas doutrinas nenhuma oferecia espaço a
homossexualidade. Mesmo os programas dos partidos mais progressistas, ainda hoje,
dificilmente oferecem um espaço digno à questão homossexual. Apresentam, quando
muito, uma proposta de liberdade de opção sexual. Novamente faço citação da

405
direita, porque lá nas sociedades inglesa, holandesa, espanhola, apesar de serem
conservadoras e viverem sob o regime de monarquia, a liberdade sexual começa
entre os doze, os quatorze e os dezesseis anos, permitindo-se inclusive o casamento
homossexual.
Neste caso, podem argumentar que trata-se apenas da tolerância e não da
liberdade. Não importa, é uma conquista concreta que não temos. Não adianta dizer:
"- Aqui no Brasil na prática existe liberdade para tudo". A prática é algo intangível.
É preciso ter essa consolidação, tanto na prática quanto na legislação, senão não há
conquistas. Os grupos, naquele momento, levantavam essa questão e colocavam
realmente a esquerda contra a parede. Era um bom momento, uma boa causa, tanto
que a Convergência Socialista tentou se apoderar do movimento, provocando rachas,
pois conseguiu cooptar uma de suas partes. A outra parte, formada pelos intelectuais
mais conscientes, entre os quais felizmente eu estava, repudiou esse tipo de atitude.
Esse fato despertou conseqüências no Lampião, levando-o a paralisar suas
atividades, e no grupo SOMOS que se fragmentou.
A participação coletiva teve grande importância em nossas vidas particulares,
mas não resolveu tudo. Quando falava de especificidade, parti do geral para chegar
ao particular. O particular é o indivíduo. A esquerda tradicional gosta de lidar com a
coletividade, anulando o indivíduo em função do coletivo. Os grupos homossexuais
por mais que trabalhassem a especificidade dentro da especificidade, por exemplo a
questão lésbica dentro da questão homossexual, entre outras, nunca chegaram àquilo
que realmente interessava à especificidade maior: o indivíduo.
Não poderia ser injusto com o movimento homossexual, exigindo-o além das
condições que poderia proporcionar. Levando em consideração a mentalidade da
época, foi o máximo que se pôde oferecer... também me incluo nesse grupo. Apesar
de termos colaborado, escrito, formado grupos de debate, participado de passeatas e
seminários, enfim, de tudo o que foi possível. Do ponto de vista pessoal muita coisa
deixou a desejar. O grupo não respondeu a todas as indagações. No meu caso, por

406
exemplo, a especificidade se voltava a um tipo de desejo que tive pouca chance de
encontrar dentro do universo gay: a pedolatria.
O pé, do ponto de vista erótico, não tem sexo. O pé, como a mão, é um órgão
do corpo, não é um órgão genital, portanto não tem um sexo definido. Porém, o pé,
assim como a mão, tem características. Nesse caso, é óbvio que as características do
pé refletem o corpo ao qual pertencem. Assim, as características tradicionalmente
atribuídas ao sexo, como o fato do homem ser mais bruto e da mulher ser mais
delicada, foram muito questionadas pelo movimento homossexual. Importamos dos
Estados Unidos alguns conceitos engraçados como Macho-Man. Entre as lésbicas
havia também o chofer de caminhão. Tudo isso transgredia os conceitos tradicionais
atribuídos aos sexos. Porém, na cabeça de cada um de nós continuava existindo
certos conceitos que o questionamento, por mais revolucionário que fosse, não
conseguia eliminar. Por exemplo, as fantasias gays. Algumas, comuns à maioria,
continuavam existindo.
Trocava-se muito de parceiro, mas o desejo comum era encontrar alguém
definitivo. Todos alimentavam o sonho do príncipe encantado. Esse príncipe seria
exatamente o protótipo do macho, o bofe perfeito. A masculinidade estaria
preservada e a bicha faria o papel da mulher, submissa, delicada, feminina.
Perpetuava-se o estereótipo do casal tradicional da sociedade heterossexual. Não se
estaria questionando, nem revolucionando nada. Outro conceito, nunca
revolucionado pelo movimento gay, muito pelo contrário, era o mito do pau grande
ser associado à virilidade. Nunca se questionou que o tamanho do pau não tem nada
a ver com a capacidade viril ou com a energia sexual da pessoa... muito menos com a
satisfação do desejo. No entanto, os gays mais passivos continuavam fantasiando. Os
americanos chamam de Size-Queen a bicha que gosta do pau tamanhudo. Outro mito
era da penetração anal, a estória da bicha que realmente para se satisfazer tem que
“dar”, caso a relação não tenha uma penetração anal não é satisfatória.

407
Todos esse mitos atravessaram o movimento homossexual sem serem
questionados. Quanto a esse aspecto não há nenhum problema, pois se o movimento
homossexual não conseguiu questionar esses mitos, a ponto de derrubá-los, é porque
estão arraigados demais e fazem parte da natureza humana. Assim, não há motivos
para se lamentar. Porém, dever-se-ia respeitar outras taras individuais, certamente
menos comuns, mas específicas. Elas também deveriam ter acolhida, como o desejo
pelo pé ou o sadomasoquismo.
Como isso é extremamente minoritário, acontecia uma discriminação, algo
que os homossexuais tanto condenavam nos heterossexuais. Contudo, eles também
discriminavam. Enquanto estive nesses grupos, nunca me manifestei totalmente.
Sabia que seria discriminado. Teoricamente não levantei de forma explícita a
questão da pedolatria, mas gostaria de tê-lo feito. Não havia espaço para essa
discussão, por causa das questões consideradas mais candentes e prioritárias. Sentia
que os homossexuais não queriam ser discriminados pela maioria heterossexual,
porém discriminavam a minoria dentro do próprio segmento. A minoria que gostava
de alguma coisa diferente. A minoria que não gostava de pau grande. A minoria que
não gostava da penetração anal. A minoria que gostava de outras partes do corpo.
Hoje a AIDS está atestando que a criatividade sexual é a melhor maneira de
prevenir-se. Ironicamente, a AIDS veio corroborar o que eu já sabia. O sexo criativo
não tem nada a ver com as formas tradicionais, independente da penetração existe
satisfação do mesmo jeito. O sexo seguro obrigou as pessoas a serem imaginativas.
Naquela época, isso seria visto como uma atitude leviana, inconseqüente e que não
merecia consideração.
Na minha poesia e literatura sempre abordei a questão do pé. Isso porém
sempre foi visto de uma forma caricatural, satírica, nunca se levou suficientemente a
sério. As pessoas tomavam esse tema por motivo de riso. Por um lado, estava correto
porque sou também um humorista, procurei provocar o riso nas pessoas. Por outro,
gostaria de ter sido levado um pouco mais a sério. Ressinto-me de morar num país

408
latino-americano. Nessas horas é difícil, porque não se encontra diálogo com as
pessoas. Num país anglo-saxão existe uma palavra que realmente é expressiva:
"Excêntrico". Caso morasse lá, seria um cara excêntrico porque gosto de algo menos
praticado. Embora a excentricidade seja tachada assim, acredita-se nela. As pessoas
qualificam de excêntrico, mas não duvidam... esse problema existe aqui. O fato de
uma preferência ser muito diferente pode até gerar a qualificação de excêntrico, mas
as pessoas não a levam a sério. Não acreditam, acham que trata-se de uma
brincadeira. Em alguns momentos estive brincando, mas havia horas que não queria
brincar.
O pé além de ser erótico em si mesmo, pelas suas conotações fálicas, tem uma
carga simbólica muito forte. Pelo fato de ser a parte mais inferior do corpo, é a
menos cuidada e a mais desprezada. É a parte que suporta o peso do corpo. A parte
que está em contato com o chão e a que mais se suja. Enfim, é a parte que merece
menos atenção. Quando essa parte é usada para pisar em alguém, a pessoa que está
por baixo é mais desprezível ainda. Existe uma forte carga simbólica nesse ato: a
humilhação. O pé representa um grande componente de humilhação quando é usado
para pisar numa pessoa. O ser que está no nível do pé da outra está se humilhando.
Do ponto de vista erótico isso é muito forte.
O sadomasoquismo é uma das coisas mais excitantes que impulsionam o
sexo. Mexe com os subterrâneos, com um lado proibido que quanto mais proibido
for mais torna-se excitante. A questão da autoridade é importante. É possível notar
que a maior parte dos masoquistas, na verdade, são pessoas que exercem um cargo
de comando. Na intimidade elas preferem a posição inversa. É o mesmo caso do
machão. Quando ele sai com o travesti quer ser comido em vez de comer. Existe
sempre uma inversão de papel. Essa inversão está muito ligada ao que a pessoa faz
na vida real. Coloca-se assim a questão da dupla personalidade. Nesse caso, nós
temos de conviver o tempo todo com a antítese de nós mesmos.

409
Na minha cabeça, consigo equilibrar isso muito bem, a questão do bem e do
mal, do certo e do errado. Ninguém é só mocinho ou só bandido. Como sou um
sádico, também sou um masoquista e tenho fantasias em relação a isso. Obviamente,
tudo isso faz parte do meu universo numa boa. O equilíbrio que possuo serve
justamente para saber o momento exato, com quem, em que hora e em que lugar
põe-se em prática as fantasias. Isso só é prejudicial quando não se tem controle sobre
o inconsciente ou não se tem informação suficiente a esse respeito. Como é o caso de
um sádico ou de um masoquista em estado bruto. Já possuo uma elaboração nesse
sentido.
O fato de começar a ler precocemente, manifestou em mim o componente de
dominação e de submissão que o pé possui. Nas leituras, as passagens do inimigo
vencido subjugado aos pés do vencedor, assim como aquelas onde alguém era
sacrificado, humilhado ou submetido contra a vontade sob os pés de outra pessoa,
eram as que mais me impressionavam. O fato de pé masculino estar associado à
imagem do dominador excitava-me. Outra característica também excitante,
associada ao fato do homem ser mais relaxado que a mulher, era o fato do pé
masculino não ser bem cuidado. Nesse caso, o cheiro é mais forte... e o cheiro do
homem me excita.
Todos os cheiros masculinos me excitam, mas o cheiro do pé tem uma
característica especial. Ele é diferente dos outros cheiros do corpo, talvez tenha essa
impressão por causa da primeira experiência, onde houve uma leve cena de
pedolatria, e também por causa de outras observações, feitas num ambiente onde
havia muita violência entre crianças, durante minha infância. O fato é que o pé e o
chulé me marcaram profundamente.
Nas minhas relações habituais não havia muitas chances de por esse desejo
em prática. A medida que fui me tornando mais consciente, depois de ter passado
pelo movimento homossexual, comecei a ficar mais exigente em relação a meus
parceiros. Insistia na decisão de que um parceiro teria que ser fiel, apesar de toda a

410
galinhagem em volta a nossa monogamia deveria se conservar e perdurar. Havia
outros direitos, como a sinceridade suficiente para deixar qualquer situação bem
clara. Passei a exigir essa questão do pé, sendo dominador ou submisso. Pelo fato de
ter escrito a respeito do sadomasoquismo, algumas pessoas me colocam numa
posição predominantemente masoquista... o que não é verdade. O meu
temperamento é muito autoritário, devido ao fato de ser um cara cada vez mais
isolado e solitário. Assim, vou me tornando mais exigente, mais impaciente com as
coisas e as pessoas.
De várias maneiras passo um crivo no que me chega como informação,
impressa ou televisiva, quando escuto uma música, leio literatura, enfim tudo chega
através de um crivo. É lógico, as pessoas que se relacionam comigo também vão
passar por esse crivo, ainda mais seletivo. Conseqüentemente, as preferências
sexuais vão fazer parte desse crivo. Então, não poderia ser exclusivamente
masoquista se sou tão exigente assim. Caso fosse, não poderia fazer todas essas
exigências, teria simplesmente que me submeter à vontade de quem estivesse
dominando, e isso não acontece. Portanto, sou muito mais sádico do que masoquista.
Normalmente, os parceiros que encontro acabam se sujeitando a mim. Mesmo no
começo, quando querem ser dominadores, acabo percebendo que sou mais
dominador. Só me submeto quando percebo que o outro cara tem um temperamento
mais forte. Então, torno-me um escravo realmente, mas caso contrário, monto em
cima.
Já notei que isso é tão gostoso para mim, como para quem conviveu comigo.
Notava pelos orgasmos da pessoa, muito fortes. A relação sexual, em geral, não
envolvia a penetração. Na penetração não se vê a ejaculação. Nesse caso, eram
orgasmos onde via ejaculações fortíssimas... o cara esporrava no teto, literalmente.
Realmente, é algo excitante demais. Porém, naquela época, enquanto se discutia uma
série de questões, não se estava muito aberto a essas descobertas. Talvez, hoje em
dia, as pessoas motivadas por essa busca alternativa, de formas para fazer sexo, já

411
estejam pensando, um pouquinho, nessa possibilidade de ter prazer. Sempre me
preocupei com a especificidade. Nesse sentido, a questão da pedolatria me limitou
bastante, ao ponto de ter menos parceiros.
Durante alguns anos tive uma queda quase exclusiva por japoneses, procurava
parceiros orientais. Os japoneses são muito fechados. O fato da cultura deles ser
introvertida me intrigava bastante. Afinal, tudo o que é mistério me provoca. Tenho
uma tendência a transgredir todos os tabus, convenções morais, literárias, artísticas.
Gosto de ir lá cutucar. Como sentia essa muralha nos japoneses, isso começou a me
motivar.
Nesse período, imediatamente anterior a AIDS, coincidente com o Lampião e
o SOMOS, havia muita comunicação entre as pessoas... muito anúncio classificado,
muita boate gay, muitos pontos de encontro. As pessoas se conheciam com muita
facilidade, até na rua tinha pontos de pegação... os mais inocentes possíveis. Um
banco de praça podia ser um ponto de pegação de alta rotatividade. Acabei tendo
muitos parceiros japoneses, mas foi algo passageiro. Quando a AIDS começou a
aparecer, eles foram os primeiros a se retraírem. Não sei como está a nova geração,
pois tenho pouco contato com os debutantes que freqüentam as boates gays hoje em
dia. Sei que a virgindade é avassaladora entre os heterossexuais.
O abismo que separa o que as pessoas falam de sexo, daquilo que elas
realmente fazem, nunca foi tão grande. Os adolescentes sempre foram muito gabolas
de um fazer e acontecer que não é verdadeiro. Na realidade, eles quase não possuem
experiência sexual. Contudo, isso nunca foi tão marcante como agora. Hoje em dia
há caras que não tem a menor experiência sexual. Acredito que entre os gays deva
ser a mesma coisa. E se não for, estes que não se previnem estão se arriscando
tremendamente. Na verdade, não sei como as coisas andam, mas tenho observado
uma receptividade maior em relação a expansão da criatividade no campo sexual, até
no que se refere as especificidades, como o desejo pelo pé por exemplo.

412
Por causa das atividades que desenvolvo atualmente, ligadas a letras de
música, comentários de rock para revistas, faço roteiro de quadrinhos, colaborei
bastante em gibis, enfim, isso me proporcionou um contato maior com os jovens.
Inclusive mantenho contato com uma das tribos mais violentas e radicais do mundo
do rock: os Skinheads. No Brasil são chamados de carecas. Esse pessoal é
considerado muito machista, violento e agressivo. No entanto mantenho diálogo com
eles. Nem todos sabem das particularidades da minha vida, nem precisam saber.
Afinal, é algo pessoal. E os que sabem respeitam. Não há nenhum conflito maior por
causa da hostilidade em relação aos gays. Essa questão é bastante relativa, depende
muito da postura. É claro que um travesti, um michê ou um cara muito bandeiroso,
na rua, podem incentivar a agressividade, mas a prática dos carecas está ligada a uma
questão de afirmação. A agressividade, em tese, depende mais de certos contextos do
que propriamente de uma atitude individual. Nesse caso, tenho sentido que existe
uma possibilidade de diálogo e respeito com todos. Da mesma forma como posso
dialogar com um nazista, um comunista, depende muito da hora, do lugar e do
assunto tratado.
Apesar de já haver um espaço maior para se falar de pedolatria, ainda há
muita falta de informação. As pessoas não tem curiosidade em descobrir porque o pé
poderia ser uma parte muito erótica do corpo. É curioso, isso revela um desprezo
muito grande por essa parte do corpo. Há uma supervalorização do pau, mas não há
nenhum valor do próprio pé. Quando comento a esse respeito, as pessoas acreditam
que só vão sentir cócegas no pé. Isso prova que elas não conhecem o próprio corpo.
É incrível, pois as partes do corpo que sentem cócegas são muito sensíveis, sendo
assim elas podem receber outro tipo de estímulo. Isso é óbvio, mas as pessoas não se
deram conta do assunto. As técnicas de massagem japonesa que privilegiam a sola
do pé, apresentam uma certa consciência a esse respeito, mas não é algo muito
generalizado. Há uma certa tradição na pedolatria. Existem fábulas, como a da
Cinderela que ostentam o culto ao pé. Heterossexualmente falando, enquanto o pé

413
feminino é considerado atraente por ser delicado e submisso, entre os homens
existem alguns preconceitos em relação ao pé masculino... como o do cheiro.
É o mesmo problema do desodorante. Está provado cientificamente que o
cheiro natural do corpo é necessário, inclusive para certas imunidades. Nós
precisamos das bactérias que produzem o cheiro natural. Elas nos protegem de certos
agentes microscópicos que sem a sua existência proliferariam. Os desodorantes
neutralizam essas bactérias. Acredito que tudo seja uma questão de proporção. É
claro, quando o cheiro natural é excessivo pode incomodar outras pessoas. E,
eventualmente, ser prejudicial à própria pessoa, mas nem sempre é assim. Isso é uma
questão puramente estética, artificial e imposta pela sociedade.
Foram muitos os movimentos libertários que questionaram as convenções,
mas não chegaram ao ponto de questionar padrões absurdos de higiene...
completamente forjados. No meu caso, o cheiro do pé é fundamental, assim como o
cheiro do sovaco, da virilha, que são cheiros específicos do corpo. Existe pouca
informação nesse sentido, mas tenho impressão que isso não seria obstáculo se
saísse a campo com freqüência. Na realidade, sou um sujeito que vive recolhido.
Obviamente tenho poucas oportunidades de fazer essas observações. Porém, no meu
modo de ver, o pé representa uma questão erótica fundamental.
O pé está ligado à discussão sobre o domínio e a submissão. Essa questão
estabelece pontos referentes ao papel sexual entre dois homens. Afinal, por mais que
se tente idealizar a relação homossexual que mantém a igualdade entre parceiros,
isso não corresponde à realidade. As pessoas não aspiram a essa idealização. O
movimento sexual levantou questões a esse respeito, mas não conseguiu conclui-las,
talvez por falta de elementos, ou pela falta de coragem em encarar o fato. A verdade
é que faltou tempo e disposição de quem pesquisou. E o movimento homossexual
não foi capaz, não pôde ou não quis encontrar respostas.
A tão propagada igualdade que anularia todas as diferenças, assim como o
enfraquecimento dos papéis ativo e o passivo, não se tornaria uma conquista. Na

414
prática fantasia-se masoquisticamente, os homossexuais querem reproduzir os
mesmos modelos que existem na heterossexualidade... mesmo que pareçam
insatisfatórios. Pode parecer paradoxo, mas é um fato. O modelo heterossexual é
insatisfatório, porém masoquisticamente os homossexuais, cada um a sua maneira, o
fantasiam para suas relações e é assim que se satisfazem. A minha participação nesse
modelo realiza-se através do pé, como um agente concreto do ato de dominação e
submissão. O que não significa a impossibilidade de existir o carinho.
Na minha vida existe o envolvimento, mas isso aconteceu muito pouco. A
fidelidade me foi retribuída numa proporção muito pequena. As oportunidades de
permanecer o máximo de tempo com meus parceiros foram poucas. Houve situações,
contrárias até a minha vontade, onde o meu parceiro queria ter relações com outras
pessoas. Não queria ter um compromisso só comigo. Se era essa a questão, enquanto
não encontrasse alguém com quem viesse a me comprometer, sabia de pleno acordo
que estava me relacionando com uma pessoa infiel. Conseqüentemente, também
fazia o mesmo, pois não havia nenhum motivo para não tentar encontrar outro
compromisso. Nesse caso, havia uma situação momentânea de infidelidade mútua.
Não era algo deliberado, nem desejado, mas algo que aconteceu.
Quando ocorreu de estar envolvido firmemente com alguém, inclusive ao
ponto de morarmos juntos, foi com o último parceiro que tive. Nosso relacionamento
durou cinco anos, dos quais dois nós moramos juntos, e só acabou porque ele
morreu. Comentam inclusive que seria de AIDS. Não ponho minha mão no fogo,
nem que sim e nem que não, porque esses comentários colocam em cheque a questão
da fidelidade. Se ele não pegou de mim, de duas a uma: antes de me conhecer ele já
tinha AIDS, ou pegou depois de me conhecer. Tudo bem se já tinha AIDS antes, mas
se pegou depois é porque foi infiel. Então, em memória dele, prefiro não trabalhar
com a hipótese de infidelidade, para não ter uma má lembrança de uma pessoa de
quem gostava. Quero guardar uma lembrança boa, não desagradável, uma saudade
positiva.

415
Ele sofreu um derrame, tecnicamente chama-se AVC (acidente vascular
cerebral), e ficou com o lado direito paralisado. Foi hospitalizado e morreu em
questão de uma ou duas semanas. Nem houve tempo para fazer uma tomografia,
estava muito debilitado. Havia feito um tratamento naturopata, só com chás, porque
tinha essas preocupações naturalistas. Nunca tive esse tipo de filosofia, mas sempre
respeitei as outras opiniões. Não queria interferir, mas achava que ele estava se
debilitando então disse: "- Olha, você está ficando muito suscetível! A sua
imunidade pode cair muito". Sugeri, inúmeras vezes, independente dele estar
debilitado ou não, fazer o teste de AIDS. Se ele fez nunca me falou. De qualquer
forma, essa questão não me preocupa. Considero uma questão absolutamente
secundária. Quando se perde uma pessoa de quem se gosta, não vem ao caso se
morreu de tiro, atropelada ou de AIDS... não faz a menor diferença.
Demora muito tempo para se conhecer e se acostumar com alguém. Quando
isso ocorre, acreditamos que o relacionamento será perene. Não há motivos para
acreditar que possa se desfazer de uma hora para outra. E justamente quando há a
confiança na fidelidade do outro, alguns fatores externos podem por tudo a perder.
Acredito que haja um enriquecimento, sempre se fica mais filosófico com tudo o que
aconteceu, com o que aprendi no convívio com esse cara. Ele fugia dos padrões que
idealizei. Em matéria de parceiro, ele era nordestino... não tinha nada a ver com
japonês. Sua descendência era metade negra e metade índia. Não era nem mais
velho, nem mais forte e nem mais dominador do que eu. De qualquer forma,
aparentemente, apesar não termos nada em comum, ele se adaptou a meus gostos e
eu aos dele. Houve um relacionamento que considero o mais próximo do ideal
possível. Foi nessa época que a pedolatria, entre outras coisas, resolveu-se na
prática. Ele foi uma das poucas pessoas que me ajudou a resolver satisfatoriamente
essa questão.
As formas como pratiquei sexo nunca envolveram a penetração anal. Minha
primeira experiência nesse campo foi bem diferente. Depois da época da puberdade,

416
cheguei a experimentar com colegas de escola, tanto ativa quanto passivamente, mas
não gostei. Não gostei porque como passivo senti dor, isso interferiu na minha
sensação de prazer. Pode até parecer uma coisa meio contraditória. Se pratico e
gosto tanto de sadomasoquismo, pesquiso essas formas transgressoras, por que a dor
não me deu prazer? Na minha vida ainda é uma questão aberta. A dor não me deu e
nem me dá prazer. Entretanto, existe uma grande diferença entre o sadomasoquismo
que envolve humilhação e o sadomasoquismo que envolve dor física... são duas
coisas bem distintas.
A humilhação está muito ligada ao exercício da autoridade, da coação, a
ameaça da violência, mas não a violência em si. Domina-se pelo simples fato de
existir o poder para dominar. Não por causa do espancamento ou da força bruta em
si... claro que esses fatores podem estar juntos. No meu caso, porém, o tipo de
masoquismo que pratico, e gosto, está mais ligado à humilhação do que a dor.
Quando participei ativamente na penetração, também não gostei... não achava
a sensação tão gostosa. Sempre gostei de ser chupado, talvez por causa do pé. O pé é
bem mais trabalhado com a boca e a língua, do que com as mãos por exemplo. Não
há um Fistfucking de pé, ou seja, a penetração com o pé... pelo menos, não conheço
essa prática.
Ao eliminar a penetração anal, descobri outras formas muito mais
compensadoras de fazer sexo. A penetração entre as coxas, chamada: intercrural. Ela
pode ser feita por traz, simulando o sexo anal. Nesse caso, o pênis ereto encosta no
escroto, passando por baixo do ânus e entre as coxas. É uma sensação muito
agradável, tanto para quem está por cima, como para quem está por baixo. E também
pode ser feita pela frente, considero essa posição até muito mais gostosa. A
penetração entre as coxas, feita pela frente, dá toda liberdade de movimentos que um
casal heterossexual têm. As pessoas podem se acariciar, beijar-se, pesquisar toda a
parte da frente do corpo.

417
É lógico que essa abertura à pesquisa de outras formas de fazer sexo ajudou-
me a descobrir as potencialidades do pé como objeto erótico. Ele não está sozinho,
nem é minha preferência exclusiva. Para chegar até o pé, ou partindo dele, passei por
todo o corpo. E descobri que, no meu caso específico, a penetração anal é a menos
excitante. Aconteceu até uma experiência engraçada e mais desestimulante, a única
gonorréia que peguei na vida foi uma gonorréia anal. Se houvesse ocorrido na
primeira experiência, poderia até ser atribuída a esse fato, mas não era o caso.
Penetrei um cara, ele não sabia que tinha gonorréia e me passou. Só quando me tratei
é que o avisei. Felizmente isso foi antes da AIDS e do primeiro teste que fiz.
Antes do primeiro teste todo mundo atravessa uma incógnita. Ninguém está
livre de uma suspeita, da incerteza ou da insegurança. Depois fica tudo mais
tranqüilo. Fiz testes todas as vezes que fui operado, até por pedido do próprio
médico... faz parte da rotina cirúrgica. As operações que realizei, com anestesia
geral, entre outras coisas, exigem uma bateria de exames. Nesse caso, por que não
aproveitar para testar o sangue? No começo dizia ao médico para fazer o teste, nas
operações posteriores ele por conta própria já incluía o exame. Acredito até que isso
já se tornou uma rotina porque já fui operado várias vezes.
A minha prática sexual, portanto, está muito relacionada com o sexo seguro.
Já o fazia muito tempo antes da AIDS. É lógico, depois comecei a praticá-lo
conscientemente. Porém, antes da AIDS, evitava certas situações de maior risco,
tomando as mesmas precauções que se recomenda hoje em dia. Na época de maior
liberalização sexual, a sífilis era uma doença comum para a maior parte do pessoal
que transava nos grupos. Passava-se sífilis e hepatite com muita facilidade. Como já
tomava meus cuidados, nunca fui atingido por esse tipo de doença. O pessoal
freqüentava muito as saunas, um dos lugares obrigatórios. Não costumava ir a saunas
para transar porque nesses lugares, assim como em banheiros de cinema, a transa é a
mais casual possível. Não existe a menor intenção de procurar um relacionamento.

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Ali existe unicamente o imediatismo. É a relação descartável. Isso do ponto de vista
físico é altamente arriscado e do ponto de vista psicológico é altamente frustrante.
Naquela época ninguém tinha videocassete porque era uma novidade muito
cara. As saunas, porém, possuíam sala-de-vídeo e exibiam filmes pornos gays. Em
nenhum outro lugar se encontrava uma chance igual: ver qualquer tipo de cena.
Costumava ir acompanhado de alguns amigos, enquanto eles transavam ficava
assistindo os filmes. Lembro de recomendações para tomar cuidado com locais
úmidos. Evitar a beira de piscinas, por exemplo, pois a proliferação de agentes
contagiosos poderia ser mais propícia. Procurava ficar nos ambientes secos para não
ter contatos perigosos... sempre me cuidei muito.
Acredito que minha preferência sexual possa ser decorrente da deficiência
visual. Se há a possibilidade da minha preferência sexual ter me salvo a vida, posso
concluir que a minha deficiência visual está me salvando a vida. O que é algo
extremamente irônico, pois a minha deficiência visual pode me levar a cegueira. Se
ela está me salvando a vida, ela vai me preservar vivo e cego. É um raciocínio
bastante interessante. É claro que tenho motivo de sobra para pensar nisso. O que
quero dizer é o seguinte: parece que tudo, na minha vida, gira em torno do meu olho.
Não é por acaso que escolhi esse pseudônimo: Glauco Mattoso. É mais do que
um pseudônimo, não vou dizer que é um estigma porque não trata-se de algo
negativo. O meu nome artístico é uma fonte de muita satisfação. Tenho obtido
grandes retornos das coisas que criei com esse pseudônimo. Gosto de tudo que
produzi e assinei com esse nome. Porém, tudo isso é uma grande ironia. O meu olho
é um sobrevivente. Meu médico, um dos maiores especialistas no assunto, já
escreveu um trabalho científico a respeito do meu caso. Nas circunstâncias em que
estou qualquer pessoa já teria ficado cega a muito tempo. O glaucoma parece
encontrar na anatomia do meu olho uma resistência maior, por isso ele ainda não fez
o estrago previsto.

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Assim como existe a pressão sangüínea, pessoas com pressão alta ou pressão
baixa no sangue, existe também a pressão do olho, chamada: intra-ocular. O
glaucoma é uma pressão alta dentro do olho. O fato de se produzir uma grande
quantidade de líquido dentro do olho e desse líquido não ser expelido por nenhum
canal... isso gera um acúmulo que faz pressão de dentro para fora. Não é um
problema causado por nenhum agente microscópico. Na verdade, a pessoa tem uma
deficiência anatômica. No olho normal, o humor aquoso é expelido por canais. No
glaucoma esses canais podem se fechar por decorrência da idade ou, como é o meu
caso, a pessoa pode nascer com esses canais obstruídos. A operação se destina a criar
um canal artificial para poder escoar esse líquido.
O meu olho, aparentemente, parece ter uma resistência acima do normal.
Nesse sentido, posso fazer uma projeção. Se na época que mudei de São Paulo para
o Rio, quando estava com vinte e poucos anos, já poderia ter ficado cego, hoje, com
quase o dobro da idade, acho que meu olho agüenta mais um pouco. Além do que, na
última operação sofri uma hemorragia interna que quase pôs tudo a perder. A
condição do meu olho propõe uma espécie de parâmetro do que acontece no resto da
minha vida... acontece mais ou menos uma espécie de reclusão do ponto de vista
artístico, profissional e pessoal.
Uma das decorrências do glaucoma é a miopia. Nesse caso, as lentes precisam
ser cada vez mais fortes. Conseqüentemente, é preciso ficar cada vez mais perto do
objeto para enxergá-lo. Na hora de transar, tenho que me aproximar muito daquilo
que quero ver. Logicamente o pé tem que ficar muito mais perto. A deficiência
visual me obrigou a andar prestando atenção no chão, observando o lugar onde piso,
e obrigando-me a prestar atenção no meu pé e nos pés dos outros. Tudo isso está
relacionado com o ato de cheirar, com o ato de ver a forma, com o ato de analisar as
coisas. Toda vez que se tem um dos sentidos obliterados, os outros se desenvolvem
mais.

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O cheiro é outro caso que merece análise. Pode-se até fazer uma teoria sobre
o cheiro. De todos os sentidos humanos, o olfato é o menos vital. É o menos
aproveitado. Para os animais o cheiro é fundamental. É fator de sobrevivência, de
acasalamento. Existem os feromônios, as essências sexuais, sempre detectadas
através do faro. Não é o caso do ser humano, enquanto os outros sentidos são
fundamentais, o olfato tornou-se absolutamente supérfluo. Para os outros sentidos
existe uma classificação. Para o paladar existe o salgado, o doce, o amargo, o azedo.
Para a visão existem as cores. Para a audição existem as notas musicais. Para o
olfato existe uma classificação extremamente simplista: o aroma e o fedor. Essa
classificação é totalmente imposta por uma civilização convencional.
No caso do sexo, a partir da condição sexual questiona-se certos padrões de
conduta moral. Se nos desviamos tanto da ética quanto da estética, transgredimos
padrões aceitos como normas. Nesse sentido, por que não podemos questionar os
limites da artificialidade existente para classificar os cheiros? Afinal, não há
classificação ao se dizer que um cheiro é bom ou ruim, pois a questão do gosto é
muito subjetiva. Quando se diz que algo é verde ou é amarelo, não se está sendo
subjetivo, parte-se de critérios objetivos, exatos e científicos.
No caso do olfato, as pessoas baseiam-se em conceitos convencionados. É
claro, quando passamos perto de um depósito de lixo o cheiro é tão forte que
incomoda... aqueles gazes podem até fazer mal porque são tão fortes que podem agir
no organismo. Por outro lado, existem pessoas que trabalham, ou até mesmo vivem
nesses locais. Elas se adaptaram a um cheiro que não as incomoda. Então, não se
pode taxar, pelo menos cientificamente, um cheiro como ruim. É um cheiro ruim
porque as pessoas não estão acostumadas e estranham.
Para não dizerem que discuto somente a pedolatria, vou transportar a questão
do cheiro para o pau. O pau também possui um componente no cheiro que favorece
o sadomasoquismo, o chamado esmégma que é mais conhecido como sebinho. A
idéia me excita, tanto que gosto de paus não circuncidados. Como tive uma fimose

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muito pronunciada, depois de adulto fui obrigado a operar... tirei o prepúcio e sou
circuncidado. Não me arrependo, pois não podia arregaçar o pau, mas lamento.
Lamento porque o prepúcio deixava acumular um sebinho que era uma delícia. Dava
uma coceirinha agradável e um cheiro altamente excitante. Gosto de sentir esse
cheiro nos outros paus, pois não posso mais sentir no meu. Outra particularidade,
não tenho o chulé que gostaria de ter. Mesmo quando fico bastante tempo com a
mesma meia, não consigo acumular o chulé que já senti em outras pessoas. Parece
que isso é uma regra, uma espécie de lei das compensações humanas. É preciso
procurar no outro o que não se encontra em si mesmo. Acredito que se não fosse
assim, as pessoas seriam tão auto-suficientes que todo mundo se satisfaria com a
masturbação. Contudo, retomando a questão inicial desse item, nesse ponto não me
arrependo de ter nascido num país latino-americano. Aqui no Brasil não há uma
tendência para a circuncisão como nos Estados Unidos. Se por um lado haveria uma
facilidade maior para minha excentricidade ser compreendida, por outro teria menos
satisfações com o pau das pessoas... porque lá quase todo mundo é circuncidado.
Então, não teria o sebinho para me satisfazer.
Esse tipo de transgressão que descrevo está ligado ao questionamento de
alguns padrões de higiene, sobre os quais busquei refletir na minha literatura. Na
poesia e na prosa, tenho uma linha literária escatológica. Ela mexe justamente com
esses conceitos. O primeiro deles e o mais importante é a merda. Obviamente, não
fui tão fundo nessa questão porque ela tem uma carga simbólica muito grande. O
simples fato de tratar do tema já incomoda bastante. Afinal, há toda uma formação
que recebemos junto com os ideais de civilização, passados através da educação e
que são mais fortes do que o desejo da transgressão. Por mais que quisesse
transgredir, nunca cheguei a barreira que nos separa da merda a ponto de comê-la...
por exemplo. Embora exista gente que o faça. Porém, nunca cheguei a esse ponto,
não por falta de vontade, pois nas fantasias masturbatórias faço coisas até piores do
que isso.

422
As minhas fantasias são extremamente cruéis e sádicas, com muita tortura e
submissão forçada. Na prática não cheguei a tanto. Com a urina nunca tive barreiras,
nem quero que os meus parceiros tenham. Nesse caso, sempre exigi que fossem
receptivos, observando as limitações caso a caso, pois isso depende do desejo da
pessoa. Como um literato, um criador, um cara que é personagem de si mesmo,
fantasio muito mais do que pratico. Comparado a outros membros do grupo
SOMOS, da equipe do Lampião e do movimento homossexual, tenho menos
experiências em termos de prática sexual. Minha fantasia, porém, voou mais longe
do que a dessas pessoas. Conseqüentemente, tenho uma capacidade maior de por em
prática certos desejos. Não é algo completamente aleatório e imprevisível, mas
realmente pensado e elaborado.
Há pessoas que me acham polivalente, pois realizo atividades muito variadas,
as vezes apontam isso com um certo tom de crítica. Caso exista esse tom de crítica,
isso é por conta de quem critica. Porém têm razão quando apontam a diversidade dos
temas e das áreas de expressão artística que já abordei. Nunca estive preso a um
determinado gênero ou veículo de expressão. As vezes costumam me definir como
poeta porque comecei fazendo poesia... meu pseudônimo está ligado a essa arte.
Entretanto, já fiz ensaio, letra de música, roteiro de quadrinhos, trabalho jornalístico,
crítica literária, apesar de não gostar de me colocar na posição de crítico do trabalho
dos outros, já passei por esse inconveniente. Essa diversidade é só aparente, porque
os temas dos meus trabalhos apresentam um Leitmotiv, um fio condutor: o caráter
underground e a transgressão presente em todos. A palavra que mais me motiva é
tabu, onde houver um restrição qualquer vou lá cutucar. Seja por curiosidade, por
provocação, por satisfação estética ou sexual... não importa.
Apesar de ser um intelectual, nunca fui um cara de esquerda. Nem engajado e
nem convicto. Acredito que a esquerda seja uma espécie de vício intelectual. Uma
vala comum onde os intelectuais caem. E não costumo cair em valas comuns, pois
prezo a individualidade. No meu entender, a individualidade é quase uma religião.

423
Minha consciência primeira é a da diferença. Sou uma pessoa diferente, primeiro
porque nasci diferente, nasci com uma deficiência; segundo porque tendo
consciência dessa deficiência passei a ser diferente por opção. Sou uma pessoa
diferente conscientemente. Não apenas porque quero ser, mas porque consigo ser.
Numa escala de valores, isso não me torna nem melhor e nem pior do que ninguém.
Porém, torna-me distinto das outras pessoas. Preservo minha individualidade através
da diferença. Como a esquerda privilegia o coletivo, além de ser um vício
intelectual, com o qual a maioria dos intelectuais está comprometida, distancio-me
criticamente dela.
Essa consciência da diferença leva-me a assuntos aparentemente
contraditórios. Por exemplo: se o nazismo sempre perseguiu homossexuais, por que
me interesso pelo nazismo? Para que ler o Mein Kampf? Por que pesquisar letras de
rock de bandas nazistas? Acredito que onde exista uma provocação, uma fonte de
tabu, tenho de investigar porque mexe comigo. É muito fácil a atitude das pessoas
que simplesmente repudiam, basta dizer: "- Não, aquilo tem que ficar longe de mim
porque é completamente contrário ao que penso"... a realidade não é bem assim.
Minha postura intelectual vale para todos os temas considerados perniciosos.
E os abordei de forma provocativa mesmo, diferente daquelas abordagens
costumeiras e meramente críticas. A atividade crítica envolve questionamento. Não
pode ser apenas uma atitude condenatória. É preciso levantar a questão, provocar
reações nas pessoas. Nem que aparentemente tenhamos que tomar o partido do
diabo. Desse jeito é possível sentir onde há o choque de idéias, para advir daí a
própria conclusão. Ela não será definitiva, pois será uma conclusão pessoal. A dos
outros poderá ser bem diferente. Afinal, em nível filosófico é preciso privilegiar o
indivíduo.
Nesse caso, brinco com todas as proibições, mas na verdade o que resta é a
vontade de manter-se satisfeito. Acredito que esse seja o fio condutor da minha obra.
Se isso pode ser apontado como um hedonismo, aceitaria a definição. Apesar de

424
considerá-la uma simplificação bastante complicada porque lida com a questão dos
rótulos. Do ponto de vista da criação artística, sou considerado apolíneo, não recuso
o rótulo, pois costumo construir friamente, as vezes deliberar sobre o que estou
criando. Porém, o lado racional é equilibrado pelo outro lado: o dionisíaco.
Em muitos aspectos sou dionisíaco, mas não me defino como poeta ou
escritor dionisíaco. O Piva, por exemplo, define-se como poeta dionisíaco. Gosto de
sua atitude porque é extremamente convicta. Não recuso o rótulo de apolíneo, mas
acho que minhas transgressões, em matéria de prazer pessoal, são contrárias à essa
definição. Se as vezes não me deixar levar pela emoção, pelo calor do desejo, o
racional por si só não resistiria. Não sei se teria convicção e energia suficientes para
tanto. Acredito que o segredo está num ponto de equilíbrio... talvez essa seja a minha
busca. Como andar numa corda bamba, onde não se é nem mocinho e nem bandido,
onde se vive com o lado obscuro, demoníaco, e o lado utópico do humanismo. Essa é
uma questão muito delicada. O sadomasoquista, para conviver nesse caos, tem que
possuir uma pequena noção da situação. Por outro lado, essa linha de separação é
muito tênue, muitas vezes indefinida. Nesse caso, o equilíbrio torna-se um pouco
difícil. Não é possível atingi-lo, mas é preciso tentar constantemente. Definir-se
como apolíneo ou dionisíaco, sádico ou masoquista, é algo muito primário. Não
recuso nenhum rótulo, mas não acredito que sejam exclusivos.
Quanto à literatura, no que se refere a criação artística, a questão é similar.
Não se pode privilegiar apenas a forma em detrimento de um determinado gênero.
Sempre estou numa atitude inquieta de elaboração, mas o resultado prático não é,
nem de longe, um resultado literário. Nenhum dos meus livros de poesia ou ficção
foi publicado por uma grande editora, nem teve repercussão em veículos de massa
ou crítica favorável. Sou conhecido de um pequeno círculo, mas isso não me
preocupa. Não estou procurando construir uma carreira artística ou literária. Esse
ponto é curioso, pois, ao se mexer com a questão do equilíbrio, somos obrigados a
refletir sobre nossos projetos pessoais e a vaidade.

425
Nesse aspecto existe um provérbio popular que adotei como lema. Ele refere-
se às minhas preferências e ao que produzi como obra, diz o seguinte: "Prefiro ser
um sapão de brejinho, do que um sapinho de brejão". Por exemplo, Jorge Amado é
um sapão de brejão. No caso o brejão é toda a literatura brasileira e Jorge Amado é
um sapão. Caso a pessoa queira participar, ser um sapinho nesse brejão pode ser
frustrante. Então, prefiro ser um sapão de brejinho. Meu brejinho é o terreno do
escabroso, do escatológico, do sadomasoquismo... acredito que seja um sapão nesse
terreno. Independente da minha obra ser suficientemente conhecida ou não, não
importa. O que importa é que algumas pessoas que a leram reconhecem esse fato.
Afinal, existe pouca gente que se aventurou a colocar sob forma literária essas
indagações. Caso isso sirva de consolo, posso me considerar gratificado. Não houve
retorno em dinheiro ou repercussão, mas sou um sapão de brejinho.

426
. Nasceu em São Paulo (capital)
em 07 de junho de 1950.

. Jornalista e Produtor e Administrador


Cultural

. Autodidata.

. Editor, entre outras: Coluna do Meio,


no jornal Última Hora, 1976-1979; De
Cabo a Rabo, 1979; Curi Celso Marca
registrada de Fantasia, na revista Careta,
1984; Guia OFF de Teatro, 1996/97.

Celso Curi.

427
A gravação foi realizada no escritório de
Celso Curi. Na época, ele ocupava o cargo
de Diretor do Departamento de Formação
Cultural da Secretaria Estadual de Cultura
do Estado de São Paulo. No primeiro
telefonema fui convidado a visitá-lo. Neste
contato conversamos sobre o projeto. Ele
adiantou seu desejo em passar um material
sobre a Coluna do Meio, da qual fora editor
responsável no jornal Última Hora.
Posteriormente recebi um envelope com o
material citado e fiz a leitura. Quando
retornei, um mês após, o escritório mantinha
a mesma impessoalidade, branca e avessa à
eloqüência do diretor que ocupava o espaço.
A narrativa espirituosa extravasou palavras,
atingiu os gestos e marcou as expressões
faciais.

São Paulo, SP,


06 de agosto de 1994.

428
"Acho que o humor, em todas as áreas, move o trabalho que
realizei e a felicidade norteia os caminhos da vida."

Nasci em sete de junho de 1950. Sou geminiano, gosto de ser desse signo.
Considero-me uma pessoa bem-humorada, privilegiada por ser assim e saber
trabalhar com humor... em tudo o que me envolvi na vida. Nasci na Rua Solimões,
no bairro da Barra Funda em São Paulo. Minha mãe mora lá até hoje, meu pai era
paranaense e tenho um irmão, dois anos mais velho, casado e pai de três filhos.
Sempre fui curioso e pouco dedicado aos estudos escolares. Cheguei ao ponto
de me auto-afirmar vagabundo. Na verdade, tinha uma extrema facilidade de
compreensão. E isso faz com que a pessoa se torne mais preguiçosa. Principalmente,
quando aprender é simples... por isso virei quase um aluno problema. No início,
estudei na Barra Funda, depois no Bom Retiro... num colégio judeu. Minha mãe
tomou essa decisão porque era uma escola forte na região. Lá, aprendi hebraico, hoje
não falo mais porque na época era muito garoto.
O fato de ser neto de libanês com italiano, porém com sobrenome libanês, e
de estudar numa escola judaica, proporcionou-me uma experiência importante. Posso
afirmar, fui super bem recebido. Da mesma forma como recebi a cultura judaica.
Atualmente observo até uma curiosidade, acredito que conheça mais a cultura
judaica do que a libanesa. Outro aspecto interessante, por causa do trabalho, na
minha vida sempre estive ligado a uma série de chefes judeus.
No tempo de estudante também cursei o Colégio Estadual de São Paulo... um
dos mais importantes e difíceis de se conseguir admissão. Lembro que fiz o exame
para o ginásio e passei com uma nota ótima. Não consegui me adaptar, logo fui para
outra escola. Em 1964, quando estourou a revolução, mudei com minha família para
Santa Catarina... não sei por qual motivo. Moramos lá um ano. Durante 1965,

429
ficamos um pouco em Curitiba e retornamos a São Paulo. Em 1969, morei no Rio de
Janeiro por conta própria.
O humor norteou o trabalho em todas as áreas que já estive. Sempre trabalhei
na área de arte desde menino. Aos dezesseis anos comecei a trabalhar com texto...
essa história é engraçada. Enquanto me dedicava pouco aos estudos, o resto do
tempo trabalhava. Por opção não fiz curso universitário. Trabalhei na sede de uma
revista localizada na Rua Augusta, onde fazia umas besteiras. Desenvolvi um
trabalho na área de artes, começando pela música e posteriormente adentrei na
produção teatral. Durante muito tempo fui secretário do Guilherme Araújo. Ele era o
empresário dos Baianos, então trabalhei com a Gal Costa, com Caetano Veloso... sou
amigo dele até hoje e me orgulho disso. Depois fui secretário do Juca Chaves.
Em 1968, quando tinha uns dezoito anos, fui para a TV Record, era super
garoto... não fiquei muito tempo. Logo em seguida, em 1970, trabalhei para o balé
Stagium, cuidando da produção como administrador. Nessa época viajei para o norte
e nordeste do país. Depois, trabalhei como divulgador no Teatro São Pedro... sempre
fiz muitas coisas ao mesmo tempo, mas essas são as lembranças mais fortes.
Em 1972, fui embora para a Alemanha. Passei um período fora do país que
não chegou a um ano. Nesse meio tempo devo ter realizado outras atividades, cuja
lembrança não me ocorre. Fiz um pouco do que todo mundo fazia. Trabalhei como
faxineiro, entre outras atividades típicas de um exilado por vontade própria. Nessa
época, a situação no Brasil estava muito complicada. Só voltei, em 1973, porque
perdi meu passaporte e fui obrigado a retornar. Já estava até me adaptando com a
língua e a cultura alemã.
Quando voltei, o jornalista Dário Menezes, um amigo que tenho desde aquela
época, apresentou-me ao jornalista Samuel Wainer. Mesmo sem saber se escrevia
ou não, o Samuel me contratou imediatamente para trabalhar no Última Hora. Ele
dizia: " - Não você tem que trabalhar comigo!"... foi o que fiz. Uma experiência

430
extremamente gratificante. O Samuel era um homem fascinante, um grande
jornalista, muito inteligente, enfim uma grande pessoa.
No início, acho que não trabalhei nem um mês como assistente de colunista
com o Alik Kostakis. O Samuel percebeu que eu dava conta do recado e me deu um
espaço maior. Comecei a ter uma coluna de equipamento de som, outra de livros e
fui aumentando de coluna em coluna até virar editor do segundo caderno. Em um
ano, desde a minha chegada até o Samuel sair do Última Hora, virei editor de
variedades. Foi quando me envolvi profundamente com a área de artes, uma
experiência fantástica... afinal vinha trabalhando nesse campo, mas comecei a
aprofundar-me na área.
Antes do Samuel sair do Última Hora, propus a ele fazer uma coluna, a qual
deveria ficar entre duas outras: uma coluna machista do Plínio Marcos e uma coluna
feminista... no meio, eu escreveria uma coluna sobre homossexualidade. Foi um
escândalo... as pessoas me achavam louco. Elas diziam: "- Imagina, ninguém faz
isso! Não existe em nenhum lugar do mundo uma coluna que fale desse assunto!".
Assim criamos a Coluna do Meio. Exatamente porque ela estava no meio da página.
Não era nem coluna um, nem coluna dois... era a Coluna do Meio. Neste sentido
existia toda uma conotação de sacanagem, além do que, havia a idéia original da
localização da coluna no meio da página.
Ela acabou não nascendo com essa forma, mas nasceu com o nome de Coluna
do Meio. Logo abaixo, havia outra coluna chamada Dodô Darling responde.
Acredito que depois passou a se chamar Tia Glorinha, porém não sei exatamente
quando. Ela era publicada pela Manuela Casa Rios. Essa jornalista, na época uma
menina, também teve problemas com a lei de imprensa. Passou por uma situação
muito complicada, por causa da publicação de respostas das cartas que recebia. E o
fato dela não ser brasileira serviu como justificativa para tentarem impedi-la de
permanecer no Brasil.

431
Com a Coluna do Meio comecei a ter três tipos de pessoas que me cercavam
diretamente: as pessoas simpáticas a Coluna do Meio, as pessoas que a liam
escondido e as pessoas que a liam escancaradamente.
O primeiro grupo era composto por pessoas que não tinham nada a ver com a
homossexualidade, porém achavam a Coluna do Meio super moderna, com uma
linguagem super divertida e completamente nova. Além disso, apoiavam qualquer
movimento que orientasse à liberação da homossexualidade.
Acredito que havia um grupo formado pelo segmento homossexual reprimido.
Essas pessoas compravam o jornal e o liam escondido. Posso afirmar isso, pois ouvi
confissões sobre este fato. Nas primeiras colunas há declarações escritas, dizendo:
"- Olha, eu compro o Última Hora e leio a coluna escondido na banheiro. Ninguém
na minha firma sabe que leio!". E havia um outro grupo que não tinha o menor
problema em comprar o jornal e lê-lo abertamente. Este era formado por pessoas
sem problemas com relação à orientação sexual.
Ler escondido era uma besteira porque todo mundo lia. A Coluna do Meio
servia para passar informação a qualquer pessoa. Ela fazia parte de um jornal com
grande circulação no Estado de São Paulo, vendido em bancas e que não era
exclusivamente homossexual. Qualquer um poderia comprar o jornal para ler o
horóscopo ou a Coluna do Meio. Então, observei diferentes manifestações. Havia um
público que a considerava algo revolucionário, a ponto de precisar ocultar sua
leitura, enquanto havia outro que ficava complemente ofendido com a existência
dessa coluna. Esse último era formado por pessoas que achavam absurdo uma coluna
falando sobre homossexualidade, num jornal que entrava em casas das famílias, com
tamanha desenvoltura.
Nas primeiras semanas recebi ameaças escritas com sangue. Logo em seguida
fui processado pela União Federal "por atentado à moral e aos bons costumes pela
união de seres anormais". Este é o título do processo. Assim mesmo, continuei
escrevendo. A princípio acreditavam que Celso Curi fosse pseudônimo e intimaram

432
o jornal. O jornal informou que se tratava de um nome verdadeiro. Neste caso o
processo era contra Celso Curi. Não observei nenhum problema. Não havia escrito
nada que não fosse verdade ou não pudesse assumir. Procurei o advogado do grupo
Folhas para me defender. Na época ele se recusou, apesar da acusação ser por causa
da coluna, disse simplesmente que não o faria, pois não defendia “esse tipo de
gente”. Procurei, então, um advogado, amigo meu, e ele aceitou fazer minha defesa.
O processo durou três anos, só recebi a absolvição em 1979... quando não
escrevia mais a coluna. Ela durou três anos, mais ou menos o mesmo tempo do
processo. Nessa época, já estava trabalhando na Abril Cultural quando recebi a
notícia da absolvição. Porém, durante o processo continuei escrevendo. O promotor
recolhia todas as colunas. Nesse percurso de três anos o mais difícil foi abrir
caminho. No final estava complemente solto e a vontade, escrevendo sobre o que era
absolutamente importante.
Já fazia algum tempo que escrevia a coluna quando surgiu o Lampião...
acredito que em 1978. O Aguinaldo Silva e o Darcy Penteado me procuraram. Nesse
encontro, eles me convidaram para ajudar no Lampião. Naturalmente fiquei super
feliz, tanto que aceitei. Formou-se assim o Conselho Editorial. Entretanto, eles não
me convidaram para ser Senhor do Conselho, porque eu era considerado pouco sério.
Esse assunto, costumo dizer, é engraçado porque sempre fui muito bem humorado. E
na verdade me considero “pouco sério” até hoje. Sou uma pessoa super séria, mas
pouco sério... gosto de brincar com o sentido das palavras. Acredito que ainda hoje
não tenho autoridade para ser senhor de coisa alguma, apesar de estar trabalhando há
anos na Secretária da Cultura do Estado de São Paulo.
Quando o pessoal do Lampião me procurou, eles também queriam saber como
estava andando o processo. Nesse período, sugeri que tivessem bastante cuidado em
relação à publicação. É verdade que minha possibilidade de ser absolvido era
enorme. Caso saísse esse resultado, ele formaria uma jurisprudência favorável ao
pessoal do Lampião. Desta forma, eles não poderiam ser processados pelo mesmo

433
motivo... inclusive conversamos bastante a este respeito. Essa ocasião foi importante
porque a luta já não era meramente pessoal.
Se num primeiro momento não havia ninguém junto comigo, além das
pessoas mais íntimas, com o lançamento do Lampião o panorama mudava um pouco.
O número zero do Lampião fez sua capa comigo, abordando o meu processo... foi
bom demais.
Acredito que hoje consiga ver claramente a importância da coluna... porque
na época estava visceralmente ligado ao trabalho. Não possuía a compreensão
necessária para saber o que fazia. Anos depois, em 1986, quando dei um depoimento
para uma matéria comemorativa aos dez anos do movimento homossexual brasileiro,
perguntei ao entrevistador: "- Tudo bem, mas em que você está se baseando para
definir esse dado?". Ele respondeu sem hesitar: "- Na publicação da Coluna do
Meio."... ele considerava a Coluna do Meio o ponto que deu início ao movimento no
Brasil.
O movimento homossexual já existia antes da "abertura política". Em 1976,
não existia "abertura". Estávamos num momento complicado, por causa das
dificuldades próprias do período... acredito até que fosse o mais delicado de todos.
No meu entender, a "abertura política" veio a facilitar alguns pontos. Os diálogos,
por exemplo, começaram a existir no país tanto em nível nacional quanto
internacional. Assim a Coluna do Meio, durante muito tempo, noticiou o que ocorria
no movimento homossexual norte-americano e europeu. Naquela época eu não
passava de um menino... além de estar sozinho para pensar sobre movimento
homossexual. Porém, tinha o espaço do jornal a meu favor, podendo publicar o que
estava acontecendo lá fora.
Em diversos artigos publicados pela coluna deixei muito claro que a forma de
movimento existente na Itália, nos Estados Unidos, não era o ideal para acontecer no
Brasil. Nesse sentido, evidenciava meu papel como simples divulgador de

434
informações, não convocava ninguém a fazer um Movimento Caipira de Liberação...
também deixava claro que tínhamos uma maneira de vida complemente diferente.
A homossexualidade no Brasil nunca foi crime, enquanto em alguns Estados
norte-americanos, sim. E não adiantava ter uma luta pela liberação, pois a
homossexualidade no Brasil apresentava outras características. Uma delas era a
pessoa encarar a própria homossexualidade de frente... enquanto realidade que tinha
a ver consigo mesma.
No Brasil, as pessoas fingiam que o problema não era delas. Uma visão
complemente diferente da existente nos Estados Unidos. Lá, as pessoas possuíam
consciência que o governo atuava contra a orientação homossexual delas. Aqui era o
oposto... ninguém assumia essa consciência. Desejava-se a liberação da
homossexualidade, mas se a mãe soubesse era motivo de vergonha. Quanto a essa
problemática, uma de minhas discussões, feita no decorrer da "abertura política",
refere-se a Família e a Igreja enquanto emperradores da libertação do homossexual.
Havia um grande controle para o não se assumir. No caso da Igreja não podia
porque era pecado... e no caso da Família porque a mãe não podia saber. Essas duas
instituições emperravam a vivência do homossexual... em adaptar-se a busca pelo
oxigênio do dia a dia. Essa complicação era o grande ponto de discussão. Não era
uma questão política, nem de regras e nem de leis: era uma questão puramente
interna e pessoal. A Coluna do Meio tentava formar a consciência de que a liberação
só ocorreria depois da própria libertação. Não há movimento homossexual de cima
para baixo. Isso não significa que se deva gritar ao mundo a própria opção, mas
assumir internamente... sem este pressuposto não havia como iniciar um movimento.
Claro que tudo era feito com muito humor, numa grande farra, porque não era
o caso de ninguém ficar chorando. Nós não tínhamos companheiros assassinados
porque eram homossexuais... não era essa a nossa realidade. Nem presos políticos
por causa da opção sexual. Eram companheiros presos a si próprios, por vergonha de
assumir a própria sexualidade. Percebi que se jogava o problema para a sociedade

435
resolver e a resolução não caminhava neste sentido. Não podia haver uma vivência
homossexual, caso não houvesse um auto-reconhecimento da própria
homossexualidade. Essa era a grande farra da Coluna do Meio.
Gosto de falar que era uma farra. Em momento algum abri mão do bom
humor e não o faço até hoje. Acho que o humor, em todas as áreas, move o trabalho
que realizei e a felicidade norteia os caminhos da vida. Durante certo tempo, as
pessoas confundiram a questão da festividade com a felicidade e a alegria. Chegaram
a me achar uma pessoa festiva em relação à homossexualidade... isso não é verdade.
Era uma pessoa alegre no que dizia respeito ao assunto. A Coluna do Meio
trabalhava com a alegria. Quando alguém falava: "- O Celso é muito festivo."
Redargüia porque não era verdade. Eu era muito alegre. Havia, porém, pessoas que
eram muito festivas. E, na realidade, a maior parte, não tinha nem o próprio rabo
resolvido. O trabalho realizado, nesse momento, representou uma etapa inicial.
Porém, posso afirmar que atualmente não existe mais. Caso não houvesse
movimentos em torno da AIDS, não haveria nenhum movimento preocupado em
pensar sobre a homossexualidade no Brasil. Parece que o movimento homossexual
brasileiro sempre está ligado a algum problema.
Não vejo motivos à existência de um movimento com reivindicação
exclusiva. Pode ser até que esteja errado ao afirmar isso, possa estar exagerando, por
achar que no Brasil não há essa necessidade, mas não percebo a questão assim. Hoje
em dia, os grupos homossexuais norte-americanos se tornaram máquinas
financeiras... extremamente organizados, como tudo nos Estados Unidos, eles têm a
gavetinha do homossexual que manca da perna esquerda, a gavetinha do
homossexual que usa óculos de grau para astigmatismo: lá é tudo compartimentado.
No Brasil não existe uma preocupação com uma definição tão precisa. O que existe é
a farra e, recentemente, os grupos ligados ao trabalho com a AIDS.
Durante muitos anos, acompanhei esses movimentos e discordava da maior
parte de suas discussões. Elas se davam em torno da liberação da homossexualidade,

436
eram absolutamente estéreis e até mesmo infantis. Por vezes, notei que certos pontos
seriam melhor discutidos com pessoas mais vividas. Cheguei a participar de algumas
reuniões, numa delas me irritei com um casal de rapazes. Eles diziam que lutavam
para poder andar de mãos dadas. Havia muita confusão naquela história, achava
justo lutar pelo momento político, mas a discussão também passava por uma auto-
aceitação, ou não, da própria homossexualidade.
Não cabia uma discussão sobre a possibilidade de se andar de mãos dadas
com alguém. No meu caso, andaria na rua de mãos dadas com quem quisesse, fosse
com meu pai, meu irmão, meu amigo, e queria ver quem iria me proibir. No Brasil, o
problema era destruir o medo interno da aceitação, muito mais violento. Naquela
época a repressão interna era muito maior que a externa.
Convivi pouco com esses grupos, porém como sempre fui um tanto esquisito,
procurava acompanhar suas discussões medíocres. Digo que eram medíocres porque
não conseguiam enxergar o buraco na própria casa, mas saíam para procura-lo lá na
casa do vizinho. Por causa disso, participei de alguns movimentos, mas me retirei
muito cedo, fiquei muito afastado e não sei como as coisas se desenvolveram.
Nesses anos todos continuei minha luta social, porém num certo momento me perdi
dessa especificidade.
Esta questão retornou a minha vida, penso sobre como recuperar sua
discussão e poder colaborar. De 1976 até hoje, são quase vinte anos de experiência
positiva, e com certeza mudei bastante. Nesse ponto, considero a maturidade muito
importante. O que sabia através da leitura, presenciei in loco, assim tive uma grande
possibilidade de crescimento pessoal. Por não ter me ligado a nenhum gueto, penso
se não seria o momento de prestar contribuições a certos grupos.
Quando expresso esta vontade, a faço com a maior humildade, pois não
represento a salvação ou, pelos menos, não estou preocupado neste sentido.
Simplesmente, quero dizer que em todos esses anos consegui uma grande

437
oxigenação às particularidades da minha vida. E posso afirmar, hoje em dia elas
contém a mesma importância daquele momento.
No verão de 1979 saí da Abril Cultural, montei um bar chamado OFF.
Lembro-me que as pessoas indagavam: "-Ah! Vai ser um bar gay por causa da
coluna!?". Respondia que não, seria simplesmente um bar, onde não se pediria
atestado de sexualidade a ninguém para entrar. Acabou se transformando num bar
gay, porém muito freqüentado por não gays. Isso durou uns sete anos, virou o
primeiro privé gay de São Paulo. Era um lugar super legal. A partir daquele público,
consegui desenvolver um grande trabalho na área de teatro. Afinal, possuía o espaço
e dirigia os espetáculos, mas continuei como editor. Nesses anos todos não parei
com minha atividade principal. Era chamado para substituir outros editores. A minha
ligação com o meio jornalístico é muito forte... assim continuava escrevendo.
Consegui trabalhar muito tempo no OFF. Neste sentido, considero-me um
privilegiado, pois tudo que tenho a mão adquire um brilho especial. O principal fator
para meus projetos se concretizarem é o prazer com que os realizo. A Coluna do
Meio levou as pessoas a me enxergarem de forma diferente. Elas me convidavam
para qualquer evento, formal ou não... o que foi muito importante. Essa varinha de
condão tocava em todos os meus trabalhos... me proporcionando sempre muito
destaque.
Para começar a escrever a Coluna do Meio, lembro ter consultado meus pais.
Cheguei em casa e lhes disse: "- Eu vou fazer uma coluna que fala de
homossexualidade. Ela vai se chamar Coluna do Meio". Discutiu-se a possibilidade
de usar um pseudônimo, porém naquele momento isso seria uma falta de culhões.
Acreditava que pareceria brincadeira fazer esse trabalho usando um pseudônimo.
Caso assinasse as pessoas dariam mais atenção ao que estava sendo feito, mesmo
correndo o risco delas considerarem que fosse um pseudônimo. Na primeira
entrevista que desse, esta questão ficaria super clara. Desde o início queria assumir
plenamente o que estava fazendo.

438
Meu pai perguntou se isso não poderia complicar minha vida. Disse-lhe que
de maneira nenhuma, porque essa era e sempre seria minha vida, por isso assinava a
coluna. Então ele disse: "- Está bom. Se você pensa assim, o assunto está encerrado".
Meus pais sempre foram muito legais. Eles eram meus maiores fãs e começaram a
ler toda publicação que se referia a mim. Essa experiência foi super legal, tanto para
mim quanto para eles. Nesse período dei entrevista até à Newsweek.
Quando abri o OFF, esse bar também me proporcionou um extremo destaque.
Só para dar uma idéia, na inauguração, num espaço que acomodava trezentas
pessoas, havia mais de mil e duzentas. Foi um super evento, ocupava a rua inteira.
Nesse bar pude desenvolver outro trabalho. Não queria que fosse um espaço onde as
pessoas fossem simplesmente beber. Lá dentro queria que se desenvolvessem
atividades culturais. Nesse momento ainda não sabia que isso era chamado assim,
mas sabia muito bem o que queria fazer. E foi super divertido.
O bar foi inaugurado, em 1979, com a apresentação da cantora Rosa Maria. A
partir de então comecei a fazer um show semanal. Acabei fazendo o lançamento dos
maiores cantores que temos notícia nos dias de hoje. No OFF passaram Rosa Maria,
Angela Rô Rô. O OFF realizou o primeiro show, em São Paulo, de Zizi Possi, Elba
Ramalho, Cazuza, Marina Lima, Lobão, que na época era baterista no conjunto da
Marina, entre outras pessoas que passaram por este espaço.
O OFF fez parte da vida de muita gente importante, até o momento que não
teve mais nada a acrescentar. Notava que o mercado já estava bem trabalhado, havia
diversas boates, bares e decidi: não queria mais ter um bar, mas fazer um espaço
cultural. E a segunda fase do OFF foi como espaço cultural.
Quando resolvi fazer o espaço cultural, não precisei nem mudar de nome. Só
o chamei de Espaço OFF e comecei a trabalhar. Parte do público que acreditava no
meu trabalho continuou freqüentando. Não mais como espaço específico, mas como
espaço cultural que durou de 1986 até 1992.

439
Entre a inauguração e o dia que entreguei o imóvel, foram doze anos de
trabalho. Permaneci doze anos trabalhando no que as pessoas chamam de noite.
Neste meio tempo estive afastado do jornalismo. Na verdade, afastei-me como
emprego principal, pois continuei trabalhando nesta área. Inclusive muitos dos
trabalhos eram ligados à sexualidade. Quando foi lançada a Abril Vídeo, fui
chamado para ser especialista em sensualidade da televisão. Esses trabalhos, num
certo sentido, representavam uma continuidade do que fazia na Coluna do Meio. A
única diferença é que não era tão específico, mas era uma brincadeira com a
sexualidade... fosse ela homo ou hetero, estava sempre ligada ao tema. Assim
continuava colaborando em revistas e jornais.
Na época da Coluna do Meio, um pouco antes da existência do Lampião,
comecei a escrever outra coluna publicada Curitiba. Ela se chamava De Cabo a
Rabo... e veiculava numa revista chamada Petéca. Esta revista falava basicamente de
sexualidade e possuía as mesmas características da Coluna do Meio. Só que era um
pouco mais picante, porque era para uma revista de sacanagem . A Petéca era
distribuída no Paraná.
Quando terminou a Coluna do Meio, já era proprietário do OFF. Neste
período, a Editora Veja relançou a revista Careta, do Tarso de Castro. Na qual
escrevia outra coluna chamada Curi Celso marca registrada de fantasia. E foi uma
tentativa de retomada da própria Coluna do Meio. Era escrita com muito humor e
funcionou super bem. Na primeira semana arrumei uma briga com a Dina Sfat. Na
realidade foi um deslize da Dina, ao falar sobre um autor que veio ao Brasil, não me
lembro o nome, ela acabou falando que os homossexuais só se preocupavam com
futilidades. Não deixei este comentário passar em vão e critiquei muito.
Mesmo que fosse sem querer, não dava para assinar em baixo. Não dava para
deixar ninguém cometer tamanho deslize. Porém, quando a revista encerrou suas
atividades a coluna também acabou... em função disto.

440
Depois comecei a desenvolver um trabalho mais amplo... voltado à arte e à
cultura em geral, mas, em paralelo a este trabalho, sempre estive ligado ao
jornalismo. Fui trabalhar para a TV Cultura, lá participei do Panorama, um programa
de variedades, com entrevistas, cuja direção estava a cargo do João Cândido. Depois
o nome mudou para Metrópoles. Então fiz vários os programas. Era responsável por
uma pasta livre, onde podia falar do que quisesse, duas vezes por semana. Havia um
responsável para falar de teatro, outro de cinema, outro de TV e o meu espaço era
falar do geral, política, enfim qualquer assunto. E também era super divertido.
Na verdade sempre gostei de escrever. Uma coisa que não compreendia o
porquê. Nem achava o meu texto muito bom, até observava problemas nele.
Atualmente estou complemente bloqueado em relação à escrita. Outro dia achei um
caderno de poesias em casa. Da época que tinha uns quatorze anos. Foi quando
comecei a escrever poesias bem pesadas. Isto porque pertencia a uma geração que
me influenciou neste sentido... a poesia era super valorizada. Então, tenho coisas
escritas entre 1964 e 1966. Sempre me interessei pela palavra. Por mais que não
domine suas nuances, a palavra é muito importante para mim. E como gosto de
brincar com elas... isso me fascinou desde muito cedo.
Depois de ingressar no jornalismo, passei a conviver com grandes
profissionais. O Marco Antônio de Menezes, já falecido, trabalhava para o Jornal da
Tarde. Na época, com dezesseis anos, sentava num bar da Avenida São Luís e
passava a tarde ouvindo ele falar. O Marco era uma pessoa muito forte, difícil,
raivosa com a vida, mas era fascinante ouvir um homem que dominava a língua
como ninguém... foi uma aula ouvi-lo aqueles anos todos. Do mesmo modo que fazia
com o Samuel, além de outras pessoas que convivi neste meu caminho.
O meu interesse pela palavra ainda é muito grande, mas, como todo bom
vagabundo, perdi o hábito de escrever. Comprar um computador talvez me ajude,
porque tenho vontade de escrever um livro. Acho que isso ainda pode acontecer na

441
minha vida, mas não sei quando. Sou muito crítico, então escrevo as três primeiras
linhas e paro caso apareça alguma dúvida.
Quando trabalhava para o jornal, não havia tempo para isto. Sentava-me na
máquina e escrevia uma coluna por dia... quando se está habituado é mais fácil. E
também era uma linguagem extremamente pessoal. Não era uma linguagem formal.
Naquela coluna valia tudo, onde pontuasse estava pontuado, onde virgulasse era a
vírgula que queria naquele momento.
Durante muito tempo pensei que escrevia muito mal, até o dia que conheci o
Samir Mezerani Curi... uma autoridade em redação. Queria estudar com ele porque
sentia esta necessidade e ele se apresentou como meu fã. O Samir achava que, de
alguma maneira, provoquei uma revolução na redação jornalística. Isto é super
engraçado porque não consigo valorizar algo que seja meu... e naquela época saia
naturalmente. O erro de pontuação era encarado sob outra ótica.
Hoje acho que preciso voltar a escrever, não sei sobre o que, mas uma idéia
pode ser contar a história da Coluna do Meio. Não considero que este tema seja um
Best Seller, mas gostaria de fazer este trabalho. Caso tenha tempo, pretendo fazer
uma pesquisa, reunir o material das colunas e permear com alguns temas atuais.
Não falo muito do Lampião porque quando ele surgiu, de uma certa maneira,
estava um pouco cansado do próprio assunto. Já estava esgotado por causa da luta
que vinha travando. Então acompanhei a origem do jornal, contudo já possuía
alguma experiência... na época o Lampião tinha outra visão. Caso começasse a
participar, faria o papel do crítico negativo. Ao meu ver, quando algo é novo deve
surgir sem muitas regras... os erros depois se corrige pelo caminho. Participei
bastante do Lampião, mas não profundamente.
Acredito que o Lampião se limitava a um enfoque mais intelectual. Ele
ostentava um ar mais de ensinar alguma coisa, enquanto a Coluna do Meio noticiava
o que acontecia. Acredito que a grande importância dela era contar a verdade. Neste

442
momento, entre 1976 e 1979, eu estava na rua, assistindo esta história e a contando
cruamente nas páginas do Última Hora.
A função mais importante da Coluna do Meio era acompanhar o crescimento
real de um grupo. O grupo de leitores era informado do que acontecia no meio em
que viviam. Ela servia como o arauto que trazia as notícias. Era uma coluna social
que escrevia sobre tudo: “- Olha, lá na boate Medieval tem gente tirando a roupa. Tal
grupo está se organizando na Itália”. Ela era extremamente importante, pois,
representava um elo de ligação, tanto dos que freqüentavam as boates, quanto dos
grupos. A coluna nunca teve preconceito com homossexuais de direita, de esquerda,
travestis, bichinha, viadinho... não havia a menor diferença. Cada um era
representado no seu jeito de ser... e ela contava esta história.
Se era boa ou ruim, não importa: a Coluna do Meio era aquilo. Mesmo
inconscientemente, passava pela área política, pela discussão social, sexual e contava
um pouco do que acontecia. E o fato dela ser um dos retratos da década de setenta
representa o seu maior valor. Eu vivi aquela época, não estava em casa criando, mas
participando na rua. E isto faz parte da minha história, super simples, mas muito bem
humorada.

443
. Nasceu em São Paulo (capital),
no dia 06 de maio de 1946.

. Professor de Antropologia na UFBA.

. Estudos acadêmicos: Licenciado em


Ciências Sociais pela Universidade de São
Paulo; Mestre em Etnologia pela Sorbonne
(Paris); Doutor em Antropologia pela
Universidade de Campinas.

. Autor, entre outros: O Lesbianismo no


Brasil, 1987; Dez Viados em Questão,
1987; O Sexo Proibido,1988; Escravidão,
homossexualidade e demonologia, 1988.

Luiz Mott.

444
A entrevista aconteceu durante a XVII
International Lesbian and Gay Association
Conference. Conversei com o professor
Luiz Mott no Rio Palace Hotel. Marcamos a
gravação para o dia seguinte. Antes da
gravação procuramos um salão mais
reservado, porém o frio artificial do
ambiente incomodava. Então fomos nos
acomodar no espaço de circulação. Era a
primeira vez que aventurava fazer uma
gravação num ambiente assim. Com voz
firme, Luiz Mott, para iniciar a narrativa,
literalmente fechou os olhos ao local. Num
momento de alarido maior preocupou-se
com a interferência sonora e sugeriu que
trocássemos de lugar. Fomos para o Salão
Rio de Janeiro, onde acontecia a exposição
sobre Visibilidade Lésbica, continuamos até
sermos interrompidos por uma das
organizadoras. Porém, como estávamos no
final concluímos a gravação ali mesmo.
Tranqüilo, Luiz Mott brincou com uma
criança instantes depois. Não parecia a
Persona Pública que logo à noite receberia
o Prêmio Felipa de Souza, concedido pela
Comissão Internacional de Direitos
Humanos de Gays e Lésbicas.

Rio de Janeiro, RJ,


22 de junho de 1995.

445
“Até hoje, com quarenta e nove anos, este foi o depoimento mais
completo que prestei a respeito desse meu percurso como: filho de uma
família burguesa de São Paulo, seminarista, estudante universitário e
líder do movimento homossexual. Tenho consciência que fiz história
nessa curta existência,... ”

Meu nome é Luiz Roberto de Barros Mott. Nasci em 06 de maio de 1946.


Meu pai, Leone Mott, é italiano. Minha mãe, Odete de Barros Mott, é brasileira... ela
veio do interior de São Paulo. Sou de uma família de oito irmãos... sou o sexto mais
novo. Vivi a primeira infância no bairro do Jardim São Paulo, onde meu avó era
dono de um cartório. Este bairro é próximo a Santana. Estudei no Bom Retiro, no
colégio Liceu Coração de Jesus... fiz o primário lá. Depois mudamos para um bairro
melhor, o Sumaré, onde terminei o quarto ano primário no Centro Nossa Senhora de
Fátima.
Fui chamado de “Nenê” durante a infância. Nasci entre duas irmãs, minha
mãe teve um filho após o outro depois do meu nascimento. Praticamente a cada ano
e meio era um filho novo. Entre eu e minhas duas irmãs, a mais velha e a menor,
houve as mortes de duas irmãs gêmeas. Deste modo, permaneci mais tempo que os
demais na condição de filho benjamim... como filho caçula. Imagino que isso tenha
contribuído para que tivesse esse apelido: Nenê.
O segundo apelido que tive foi Chico Viramundo. Meus irmãos me
chamavam assim. Não sei se era um personagem que já existia na época, mas com
isso queriam representar um traço marcante da minha personalidade, ou seja, andar
muito... sou uma pessoa muito curiosa. Já viajei bastante pelo mundo. Virar o
mundo, significava também virar a mesa. Acredito ter sido sempre uma pessoa

446
contestadora. Sobretudo, nos últimos vinte anos da minha vida. Tenho polemizado
com uma série de questões.
Vivi a infância numa família de classe média, católica... toda família se reunia
para a missa dominical. Convivi com meus avós, a nona italiana era muito católica.
A avó brasileira, do lado materno, vivia um sincretismo religioso e social
acentuados. Essa avó materna... Antonieta, marcou muito minha infância. Ela era
amiga de animais, de criações, dos netos. Apesar de ser uma família de oito filhos,
desde menino fui muito mimado por parentes, pelas avós, pelas tias. Acredito que
pelo fato de ser o caçula por mais tempo. Tanto que fui o único a receber esse
apelido afetuoso de “Nenê”.
Parece-me que a homossexualidade, talvez, tenha uma porção genética. Essa
minha porção genética homossexual... associada às circunstâncias da minha criação,
fizeram-me um menino mais delicado que meus irmãos e primos. Desde menino fui
muito carinhoso, delicado... sensível. Isso levou meus irmãos, sobretudo os gêmeos...
mais velhos que eu, a me discriminarem. Eles me chamavam de mulherzinha,
mariquinha. O que era um fator de grande sofrimento para mim. Minha mãe,
percebendo essa tendência de efeminado, procurou me estimular a desenvolver as
aptidões mais masculinas. Praticamente forçava-me a aprender a jogar futebol, a ter
brincadeiras mais masculinas, ao escotismo.
Quando mudei para o Sumaré tinha nove anos. Lá, morando perto de uma
igreja, alimentei a idéia de me tornar seminarista. Fui ser coroinha nessa igreja,
completamente inocente em termos de sexualidade. Em parte a ida para o seminário
foi estimulada pelos meus pais. Ela também teve como significado a fuga de uma
opressão... de uma discriminação que sofria por parte dos meus irmãos... sobretudo
desses gêmeos. Eles simbolizavam o machismo do lado paterno da família.
Minha primeira comunhão foi no dia 08 de dezembro de 1953... no primeiro
ano primário. É uma data marcante na minha vida, até hoje eu me lembro... a cada
ano faço o cálculo de quantos anos faz que fiz a primeira comunhão. De 1953 a 1956

447
fiz o primário em São Paulo. Em 1957, com a idade de dez para onze anos fui para
Juiz de Fora.... estava terminando o quarto ano primário. Se não me engano fiquei
nesta cidade até 1962... lá fiz todo o ginásio e dois anos do clássico. Fui estudar na
Escola Apostólica de São Domingos... dos dominicanos, para me tornar
seminarista... visto que tinha o desejo de me tornar padre.
O seminário era um ambiente praticamente moderno, quando comparado aos
internatos e outros seminários da época. Os dominicanos eram revolucionários no
Brasil pré-ditadura militar. Havia férias todos os finais de ano, coisa que a maioria
dos seminários e internatos não praticava. No seminário continuei muito piedoso,
delicado... foi bom porque desenvolvi certas potencialidades. Na verdade, atribuo
esse desenvolvimento ao seminário com muita gratidão. Havia um coral em que
participava, assim aprendi a gostar de música clássica. Havia um clube agrícola, no
qual aprendi a cuidar das plantas... uma vez por semana nós plantávamos, então
tinha horta, pomar. O seminário foi uma experiência importante em termos de
disciplina e de austeridade. Foi uma mudança muito grande no que se refere ao
conforto. Não havia chuveiro de água quente, de manhã cedo havia só café e pão
seco... não havia manteiga. A comida não era excepcional como a que estava
acostumado numa família pequeno-burguesa de São Paulo. Foi dolorosa a separação
da minha família. Escrevia semanalmente, algumas vezes telefonava.
No sentido de formação, considero que o seminário foi importante... tanto da
minha personalidade, quanto da minha cultura. Tive bons professores. Praticamente
saí do seminário sabendo falar francês, com noções de latim, de grego, uma iniciação
em inglês, conhecimento de história... enfim, com uma boa formação humanística,
mas com uma grande falha em termos de formação técnica. Nunca estudei química,
física e matemática. Nestas áreas sempre fui uma nulidade. Nunca fui reprovado... eu
era um aluno mediano. Apenas tive uma segunda-época em matemática na primeira
série ginasial. Também não fui um aluno brilhantíssimo, mas com gosto pela
leitura... lendo inclusive em francês, já antes de terminar o curso colegial.

448
Em 1963, fui para o noviciado, passei um ano em Belo Horizonte: Noviciado
Dominicano. Naquela época era um ano completo, praticamente sem sair do
seminário... e usando batina. Foi uma experiência interessante. Dramática em alguns
sentidos. O superior que se chamava frei Emanuel Retumba - não sei se por um
sadismo perverso ou por querer domar a minha independência, o meu pequeno-
burguesismo e o meu hedonismo -, foi particularmente severo comigo. Às vezes
ainda tenho traumas e pesadelos com esse padre-mestre.
No seminário, tanto quanto no noviciado, fui um adolescente marcado pela
espiritualidade. Realmente vivia o dia todo pensando em Deus. Era uma pessoa com
espiritualidade muito forte, um certo pieguismo. Sobretudo uma espiritualidade já
moderna no sentido da caridade, da solidariedade e com grande preocupação pela
Bíblia, cuja leitura fiz várias vezes... com a preocupação em realmente ser um santo,
o ideal de todo cristão: ser perfeito como o pai dos céus.
A minha iniciação sexual foi extremamente tardia, achando como todo
católico - sobretudo como seminarista - que a castidade é uma virtude muito
importante. Deste modo, evitava os maus pensamentos... masturbação. A primeira
experiência foi apenas por volta dos dezesseis anos... e pouquíssimas vezes. Sentia
uma tendência homossexual, alguns sonhos, algumas fantasias, alguns desejos, mas
que eu reprimia com medo, considerando que era um pecado muito grave dentro da
moral cristã.
Durante mais de três anos tive uma relação platônica, com um seminarista
mais velho, Otaviano... mineiro. Esse Otaviano devia ter uns dezessete e eu uns
quinze anos. Depois soube que ele manteve relações homossexuais com outro
seminarista... também muito meu amigo. Na época, contudo, não soube... só soube
posteriormente. Mantivemos uma amizade particular, bem no estilo do Pierafitte les
amitiés particulières, depois recuperado pelo João Silvério Trevisan... no livro dele
sobre a experiência como seminarista. Não chegamos a nenhum tipo de intimidade
física. Nós trocamos inúmeras cartas, tínhamos conversas muito amigáveis.... era um

449
grande amigo que tinha um componente homossocial, mas não chegava ao
homoerotismo.
No noviciado tive muitas tentações homoeróticas. Algumas poucas
masturbações, com grande angústia... com imediata confissão e arrependimento. Lá,
eu estava entre noviços... todos com dezenove, dezoito, dezessete anos, mas sempre
procurava reprimir essas tendências.
Terminado o ano, fui para o Seminário Maior Dominicano em São Paulo.
Ainda hoje é na Rua Caiubí, 126, em Perdizes. Era um ambiente mais aberto. Podia
visitar a minha família, podia passear algumas vezes pela cidade. Por essa época, já
estudando filosofia, comecei a perceber que na verdade a minha fé, o meu gosto pela
religião e pela vida religiosa, não eram tão fortes. Para rezar, para estar pensando em
Deus, tinha que fazer um esforço muito grande. Comecei a me dar conta que não
devia ter vocação, pois se tivesse vocação gostaria espontaneamente das coisas dos
céus. Porém, tudo aquilo me causava desprazer e desconforto. Isso foi amadurecendo
na minha cabeça, então tive coragem de dar esse primeiro passo corajoso. Mudei o
meu projeto de vida.
Era um sonho que praticamente alimentei dos sete aos dezessete anos...
durante dez anos o alimentei. Com dezessete para dezoito me dei conta que era um
equívoco. Essa experiência foi traumática porque existe... querendo ou não, uma
pressão familiar. Mas me senti suficientemente forte para largar o convento. Foi
exatamente em 1964, no ano da “revolução”. Apesar dos dominicanos terem tido
uma participação importante no movimento pré-ditadura, politicamente eu era
bastante alienado. Não me lembro do 31 de março. Ao sair do convento voltei para a
casa dos meus pais... no Sumaré, em São Paulo, bem próximo às Perdizes. Era o
segundo semestre de 1964. Estava em dúvida sobre o que fazer da minha vida!
Certamente seria na área de humanidades, mas não sabia se faria Direito ou outra
coisa.

450
Na área de Ciências Sociais vi a possibilidade de continuar mais ou menos na
mesma linha do sacerdócio. Eu via as Ciências Sociais como uma espécie de serviço
social, auxiliando a sociedade. Era uma época de fermentação de idéias políticas, de
reformas de base... poderia fazer da minha futura profissão não mais o sacerdócio
religioso, mas uma prestação de serviço ao bem-comum. Fiz um cursinho semi-
intensivo e consegui entrar na Maria Antônia na USP. Eram trinta vagas, entrei em
sexto lugar em Ciências Sociais e também entrei em quinto lugar em jornalismo.
Na fase de exames ocorreu um episódio interessante e dramático. Durante as
provas discursivas, elas ainda não eram de testes, especificamente na prova de
história geral caiu a Reforma Protestante. Era um tema que tinha profundo
conhecimento. Tinha duas horas para fazer a prova. Porém, comecei a prova
contando a história desde a criação do mundo para chegar até Lutero... e não
chegava! Fui ficando assustado, com medo de terminar o período da prova... sem ter
chegado ao assunto principal! Fui atingindo tal grau de excitação que fui tendo
ereção e... me melei todo! Enquanto terminava a Reforma Protestante tive um
orgasmo de nervoso.
Na faculdade, minha família continuava burguesa, então para estudar pegava
o carro do meu pai... nós tínhamos mais de um carro. Raras vezes fui de ônibus ou
de outro transporte. Logo que comecei o curso de Ciências Sociais na USP, tentei me
aproximar da JUC - Juventude Universitária Católica. Lá, por exemplo, fui aluno de
Carlos Guilherme Motta, de Gioconda Mussolini, de Eunice Ribeiro Durham, de
Ruth Cardoso, de Maria Isaura Pereira de Queiroz, de Eva Blay, Rui Coelho - de
saudosa memória -, Egon Schaden, João Batista Borges Pereira, Célia - politicóloga,
acho que mulher de João Francisco -, de Luiz Pereira que foi o meu professor de
Sociologia I. este último era o mais teórico... o que assustava mais os alunos!!!
Ainda tinha um pouco de preocupação cristã na faculdade, mas os três
primeiros livros que li... tiveram uma influência definitiva na minha vida. Eles
foram: As Regras do Método Sociológico, Os Parceiros do Rio Bonito, de Antônio

451
Cândido, e A Ideologia Alemã, de Marx, apresentação de Florestan Fernandes. Com
a leitura de A Ideologia Alemã, apesar de nunca ter me aprofundado no marxismo, e
depois estudando antropologia, me dei conta que as minhas verdades absolutas, em
termos de cristianismo, eram relativas... e muitas delas equivocadas. Como sentia
atração homoerótica - cada vez mais forte -, fui vendo como o cristianismo era
intolerante, repressor e equivocado em relação a isso. Neste sentido, o materialismo
histórico poderia não só resolver as minhas angústias existenciais, mas me ajudar a
interpretar melhor a realidade social, assim como a crise que vivíamos no Brasil em
1965... logo depois do golpe.
Reatei algumas amizades de férias assim que saí do seminário. Colegas e
vizinhos que viviam próximos à casa de meus pais. Certa vez um deles, um
adolescente da mesma idade que eu, muito mais experiente... falou-me que havia
umas mulheres que era fácil transar, sobretudo empregadas domésticas, lá pelo
bairro do Sumaré. Então, com desejo de reforçar a minha heterossexualidade, já que
os meus sonhos eram quase todos homoeróticos, tive uma primeira experiência com
uma mocinha negra... empregada doméstica.
A relação sexual foi no banco de trás de um Volks... uma relação
extremamente difícil anatomicamente, mas cheguei ao orgasmo. Numa outra vez,
encontrei outra menina que dizia trabalhar num laboratório, mas depois descobri que
era empregada doméstica de uma amiga minha. Esta menina conseguiu meu telefone
através dessa amiga, telefonou e nos encontramos várias vezes. Transamos algumas
vezes no apartamento do meu irmão... ele tinha uma quitinete para transar na Rua
Paim. Algumas vezes as relações foram bastante satisfatórias, outras um fiasco... não
conseguia chegar ao orgasmo.
A minha curiosidade sexual era sobretudo homoerótica, mas não aceitava
isso: primeiro pela repressão cristã, depois pelo estigma social. Esse mesmo amigo
me disse que havia rapazes que transavam perto da biblioteca pública Mário de
Andrade. Então fiquei extremamente curioso. Era a primeira vez que ouvia falar

452
sobre espaços freqüentados especificamente por homossexuais. Uma noite fui andar
de carro nessas redondezas e escolhi um rapaz... era um nordestino branco. Fomos
para um lugar mais retirado, alguma rua mais tranqüila de algum bairro... se não me
engano do lado do Ipiranga.
Eu estava extremamente nervoso... tremendo. As primeiras vezes que tive
relações homossexuais no carro, geralmente de masturbação recíproca, tremia
compulsivamente... como se estivesse num frio abaixo de zero. As primeiras relações
foram prazeirosas, com muita intensidade, porém com muito nervosismo, com muito
descontrole... inclusive esse fator de ficar tremendo. Nessa relação o rapaz queria
que eu o penetrasse... que fosse o ativo. Como ainda não tinha esse tipo de
experiência, preferi que ele apenas me masturbasse. A relação foi tão traumática que
não queria mais esse rapaz no meu carro... o que mostra o nível de homofobia
internalizada. Terminada a relação, inventei um defeito no carro e pedi que o rapaz
saísse para olhar... uma coisa no motor atrás do carro. Imediatamente fugi com o
carro quando ele saiu. Nas primeiras vezes que transei, ao chegar em casa tomava
banhos desinfetantes, querendo me lavar daquele pecado... ao mesmo tempo tão
gostoso, mas tão rejeitado. No dia seguinte, encontrei o cinto dele no meu carro...
joguei fora. Imediatamente fui à igreja para confessar. Essa foi a primeira vez...
extremamente cheia de culpa... de medo!
Na faculdade, um colega japonês que fazia estatística comigo, praticamente se
enamorou de mim e me convidou para transar. Essas outras vezes foram menos
traumáticas. Comecei a ter menos culpa. Com o tempo deixei de acreditar em Deus.
Portanto, deixei de ter qualquer tipo de consciência pesada, no que se refere a essa
forma de relação. Na faculdade, tive uma vivência discreta como homossexual.
Cheguei a namorar algumas colegas, ao mesmo tempo em que mantinha uma vida
homossexual clandestina. Com rapazes tive um ou dois casos: um dentista jovem e
depois com um carioca.

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Uma vez fui ao nordeste visitar a Bahia. Fui de carona com um caminhoneiro
conhecido. Ele parou e pegou duas prostitutas, uma para ele e outra para mim. Foi
uma relação extremamente desagradável. Logo que cheguei na Bahia, percebi que
peguei uma gonorréia. Foi a minha primeira doença sexualmente transmissível. Isso
me causou um grande trauma, contribuindo para que afastasse a heterossexualidade
da minha vida... porém mantendo uma vida homossexual clandestina. Minha irmã
mais nova, Maria Lúcia Mott... que é historiadora, percebia essas minhas tendências.
Quando brigávamos, algumas vezes ela chegou a dizer: “- Eu sei que você é
homossexual”. O que foi motivo de ser agressivo com minha irmã... acho que dei
uns tapas nela... na medida em que não aceitava e temia essa realidade.
Algumas vezes freqüentei boates em São Paulo, conheci uma boate chamada
Entend’s, depois a Medieval... havia outras que hoje não me lembro o nome. No Rio
de Janeiro havia a boate La Cueva. Conheci algumas poucas saunas. Porém, via a
homossexualidade como uma tendência passageira.
Não tive nenhum modelo homossexual durante toda minha infância e
adolescência. Na minha infância nunca vi nenhum homossexual. No seminário soube
de um adolescente que fora expulso. Ele foi pego transando com outro num bananal.
De modo que não tive modelos. Lembro do meu professor de história - o ex-ministro
Murilo Ringel - apontar a homossexualidade, ou a pederastia, como a causa da queda
do Império Romano. Neste sentido, minha visão era de uma homofobia
internalizada.
Participei ativamente dos movimentos de protesto durante o curso
universitário na USP. Fui a algumas reuniões da Ação Popular. Fui convidado para
uma reunião da política operária - POLOP -, mas nunca fui plenamente cooptado por
algum grupo... fosse político organizado, estudantil. Na universidade tive uma
atuação política não organizada. Não participava ativamente de grupos. Embora
participasse ativamente em passeatas. Fiquei preso no DOPS... não sei se duas ou
três vezes, passei uma ou duas noites. Uma vez fui capa de primeira página do jornal

454
O Estado de São Paulo. Não com o nome identificado, apenas a fotografia onde era
agarrado por vários policiais para ser colocado num camburão. Nessa ocasião,
rasgaram um lindo suéter de lã inglesa do meu irmão... até hoje ele reclama! Foi
exatamente esse suéter que saiu no Estado de São Paulo.
O historiador Jimmy Green recentemente esteve no DOPS - ele está fazendo
uma pesquisa sobre o movimento homossexual no Brasil - e conferiu minha ficha
com vários episódios... inclusive depois de me tornar líder de movimento
homossexual. Em Campinas, numa atividade realizada na SBPC... se não me engano
em 1982 ou 83, ainda havia agentes do DOPS participando. Nessa ocasião ouviram
minha palestra para averiguar o que haveria de subversivo.
Aproximei-me da Antropologia no período de graduação... foi a área que mais
me interessou. Como gostava do nordeste, algumas vezes já tinha visitado a Bahia,
tanto que havia pessoas que me chamavam de Luiz da Bahia porque gostava muito
de lá... embora sem nenhuma ligação familiar ou qualquer outra, a não ser a
curiosidade.
Eu me interessei em estudar as feiras rurais... escolhi Sergipe. Consegui uma
bolsa da FAPESP em iniciação científica. A professora Eunice Duhram, do
Departamento de Antropologia da USP, foi minha orientadora durante vários anos.
Terminada a faculdade, consegui uma bolsa na França, para fazer o mestrado em
Antropologia. Sempre estudando antropologia econômica: As Feiras. Passei dois
anos em Paris, morando na Cité Universitaire, no Boulevard Jurdan, no quatorzième
arrondissement. Em termos de experiência, considero os melhores anos da minha
vida... gostei de morar sozinho. Freqüentei Paris, as artes, os museus. Tinha uma
mobilete, então comecei a minha vida como motoqueiro. Até hoje tenho carro e
moto... gosto muito de moto.
Gostei imensamente de viajar pela Europa... tive liberdade! Tive oportunidade
de ter uma vivência homossexual bastante livre. Transei com pessoas de inúmeras
nacionalidades, freqüentei boates. Em 1970, encontrei a primeira revista

455
homossexual, ainda muito tímida... a Arcadie. A partir de 1972... se não me engano,
existia a Frente de Liberação Homossexual, mas não tive essas informações, assim
como não vi drogas na França. Esses fatos aconteceram logo depois de Maio de
1968. Havia uma grande agitação estudantil-política.
Nesta fase, contudo, não tinha consciência, nem identidade homossexual. Pelo
contrário, foi na França que desenvolvi uma fantasia de casar com uma ex-colega da
universidade, dois anos mais velha que eu, a Yoshiko Tanabe. Ela fazia pós-
graduação na USP, em Antropologia, enquanto eu terminava a graduação.
Namoramos um pouco, mas sem grande envolvimento. Em Paris, comecei a
desenvolver uma fantasia de casar-me com a Yoshiko. Trocamos várias cartas. Em
fins de 1971, quando voltei para o Brasil passei por Portugal, onde tive grandes
experiências homoeróticas... mais do que de Paris... tive casos durante cinco meses.
Tive um caso fixo. Foi uma vida homossexual muito intensa. Em Portugal, ainda
pesquisei sobre feiras nos arquivos: história do Brasil, escravidão e relações raciais.
Quando voltei ao Brasil em 1971, rapidamente noivamos e em abril de 1972
nos casamos só no civil... fizemos uma espécie de permuta. Estava com medo de ter
um fiasco na primeira vez que fomos transar. Na França tive uma relação com uma
japonesa. Sempre tive uma queda especial por orientais. Meu pai era dono de uma
papelaria com muitas empregadas japonesas. Não sei se foi uma identificação com
meu pai, não sei explicar... ou em parte por imaginar que as japonesas são mulheres
mais dóceis. Eventualmente, uma mulher japonesa aceitaria um marido não tanto
machão... com algum fiasco erótico. O certo é que na França tive relação com uma
japonesa que foi muito frustrante sexualmente.
A primeira vez que fui transar com minha noiva, com receio de um fiasco
heterossexual, disse que já tinha tido experiências homossexuais, mas que esperava
ser uma fase superada da minha vida.
Mergulhei na heterossexualidade como uma forma de ultrapassar o
homoerotismo. Nunca tive nenhum fiasco sexual com ela... tivemos relações muito

456
satisfatórias. Ela também ficava plenamente satisfeita com meu desempenho.
Casamos e fomos morar em Campinas. No início... durante o noivado e durante os
cinco primeiros meses de casado, realmente virei essa página homoerótica da minha
vida.
Continuando a dar aulas em Marília, percebi que minha curiosidade e o meu
desejo homossexual continuavam muito fortes. Então cheguei a conclusão que só
tinha uma vida. Não valia a pena sacrificá-la... por causa de princípios nos quais não
acreditava perfeitamente. A partir de então, depois de cinco meses de casado, tive a
primeira aventura homossexual, depois a segunda e se tornaram incontáveis...
quando ela viajava ou então clandestinamente. Tivemos a primeira filha, a Miua,
depois a segunda, Tami. Ambas ficaram muito ligadas a mim, sempre fui muito
maternal e carinhoso com criança... adoro crianças, como adoro filhotinhos de gato.
Lá na UNICAMP, coincidentemente, durante sete anos fui colega de Peter
Fry na mesma sala. Ele era um homossexual assumido... era um dos editores do
jornal Lampião. Sabia da minha homossexualidade clandestina, inclusive nos
encontramos algumas vezes paquerando nas mesmas ruas... lá perto do viaduto da
estação ferroviária de Campinas. Conversávamos superficialmente sobre algumas
aventuras. Ele também era amigo da Yoshiko e mantinha a coisa sigilosamente.
Quando o Lampião foi fundado, tenho impressão que ainda estava casado.
Comecei a ler mais sobre homossexualidade. Casualmente, encontrei um rapaz numa
dessas aventuras noturnas... Sérgio! Na época, eu devia ter uns trinta anos e ele uns
dezoito ou dezenove. Este foi um grande encontro! Pela primeira vez tinha
encontrado um homossexual... ele era pré-universitário, tinha o colegial, era bonito,
masculino, passivo e completamente tranqüilo em relação a sua homossexualidade.
Sem saber, ele provocou uma profunda revolução na minha cabeça e no meu
coração. Dei conta que não queria mais viver essa ambigüidade. Queria estar apenas
com ele, realmente mudar de vida e assumir-me exclusivamente homossexual. Isso
após cinco anos de um casamento tranqüilo.

457
Foi um processo extremamente traumático. Na época, minha mulher estava
fazendo o mestrado. Essa revelação que desejava me separar poderia prejudicá-la
emocionalmente. Ela estava terminando a tese de mestrado em antropologia na
UNICAMP... sobre umbanda. De tal modo que fui protelando essa revelação durante
meses. Quando ela terminou a tese, finalmente disse que queria me separar. Ela
reagiu negativamente... culpando-se. Eu não queria entrar nos detalhes da separação,
mas para evitar que ela se auto-culpasse disse a verdade. Isso causou um trauma
familiar enorme.
A minha família não sabia claramente. Primeiro, falei com minha irmã. Ela
me deu todo apoio. Também falei com meus pais, o que criou problemas no início,
mas depois me aceitaram. Quando falei a Peter Fry sobre o desquite... para assumir
minha homossexualidade, a primeira reação dele foi: “- Que loucura!”. O que me
causou uma enorme decepção! Esperava uma atitude mais solidária, um
posicionamento mais favorável em relação a meu ideal de vida, por parte de alguém
que era do Lampião... um homossexual assumido, mais velho que eu.. Peter Fry,
editor do Lampião, nunca deu apoio emocional, nem político a minha
homossexualidade.
Minha ex-mulher mudou para sua cidade natal: Marília. Fiquei em Campinas,
morando com o Sérgio... numa outra casa que comprei. Após um ano de felicidades,
notamos que éramos muito diferentes e resolvemos nos separar. Foi um momento de
grande angústia!! De repente me vi num meio solitário... com medo do futuro! Logo
em seguida tive novas amizades, novos amores. Logo depois de assumir, escrevi um
artigo... o primeiro sobre o assunto, chamava-se: A Homossexualidade no Brasil
Colonial entre os Índios do Brasil. Utilizei material da Inquisição. Era o meu
primeiro contato com esse tema. Esse artiguinho foi publicado no Lampião.
Campinas se tornou muito pequena para mim... muito familiar. Há muito
tempo possuía uma fantasia de viver no nordeste... na Bahia. Era o lugar do Brasil
onde me sentia mais desejado sexualmente. Ao mesmo tempo, onde encontrava os

458
parceiros que mais preenchiam minhas fantasias sexuais... sempre gostei de negros.
Um pouco antes, fui ao Maranhão fazer algumas conferências... lá conheci o Roldão.
Ele era um mameluco... um jovem artista com cara de índio. Embora ele trabalhasse
numa fundação cultural, tinha uma ideologia ultra hippie... naturalista. Então
ficamos de caso.
Ele morou uns meses comigo em Campinas. Depois mudei para Salvador e
me desfiz de inúmeras antiguidades... porque fui influenciado por uma visão mais
despojada do Roldão... e do próprio Sérgio que o tinha antecedido. Eu me desfiz de
vários bens. Fui para Salvador como professor visitante... com a intenção de
terminado esse trabalho... após um ou dois anos, caso não fosse contratado, iria
abandonar a universidade e viver numa praia... criando cachorro, alguma coisa mais
ligada à natureza. Aluguei um apartamento ao chegar em Salvador. Morava com o
Roldão. Foi uma relação que não chegou a um ano. Uma pessoa um pouco
problemática... infelizmente morreu de AIDS o ano passado. Conheci o Aroldo, um
rapaz de dezessete anos, moreno, estudante de Letras... depois fez Ciências Sociais.
No início da minha chegada, ele foi a grande paixão da Bahia. Nós tivemos um caso
de sete anos. Ele pertencia a uma família de operários. Ele, muito reprimido, ouvia a
mãe dizer: “- Tem duas coisas que não suporto! Bicha e muriçoca!” Mesmo assim
fomos crescendo juntos. Depois de alguns meses, estávamos juntos no Porto da
Barra... atrás do Farol da Barra vendo o pôr do sol, sentados discretamente, quando
um rapaz nos viu sair de lá. Na hora que fui pegar minha moto, ele me deu um
bofetão na cara. Ele era grandalhão, não tive como reagir. Isso me deixou
profundamente abalado.
Nessa época, eu continuava recebendo o jornal Lampião. Foi o período em
que tinham se fundado alguns grupos: O SOMOS de São Paulo, do Rio de Janeiro e
de Sorocaba. Assim, tive a idéia de fundar um grupo em Salvador. No fim do ano de
1979, escrevi um anúncio no jornal Lampião dizendo: “Bichas baianas, rodem a
baiana... tudo bem! Mas deixem de ser alienadas. Vamos fundar um grupo de

459
discussão sobre homossexualidade... me escrevam!” Como não tinha caixa postal,
botei o endereço do meu apartamento.
Na época, um militante do movimento homossexual de São Paulo... que era
baiano, voltou a Bahia. Ele entrou em contato comigo, colocou-me em contato com
alguns anarquistas, jornalistas e professores. Essas pessoas também tinham pensado
em organizar algo relacionado a movimento gay. Fizemos os primeiros contatos e
marcamos a primeira reunião do Grupo Gay da Bahia. Foi no dia 29 de fevereiro de
1980... era um ano bissexto!! Reunimo-nos, dezessete pessoas num sábado à noite,
estavam o Aroldo, Ricardo Lipper, o caso de Ricardo Lipper que era o Antônio
Carlos Pacheco, um outro que chamava-se Alexandre Ferraz - anarquista-jornalista -,
Carlinhos e o seu caso... Wilson. Este último era negro... ele se separou do Grupo
Gay depois de dois anos e fundou o Adé Dudu. No livro de Edward MacRae há uma
pequena informação sobre este grupo.
As primeiras reuniões do Grupo Gay foram no meu apartamento. O nome -
Grupo Gay da Bahia - foi Aroldo que sugeriu... depois de algumas reuniões com
discussões. A partir de então, divulgamos a existência do grupo através do Lampião.
Um dos membros, chamado Roque Frazão, ofereceu a caixa postal dele, a qual
passou a ser a caixa postal do grupo. Até hoje é a mesma, desde sua fundação...
Caixa Postal 2552, Salvador BA. O grupo inicialmente se reunia na minha casa.
Depois conseguimos a sede do grupo anarquista, no centro em Salvador... num lugar
chamado Relógio de São Pedro. Nós nos reunimos todos os domingos... dez, quinze,
vinte pessoas ou até mais. Com medo de divulgar publicamente no início. Isso foi
em 1980, ainda com muita violência... o regime militar ainda era fortíssimo!
Nunca fiz uma profunda reflexão sobre a relação do movimento homossexual
com a questão do regime político militar. A minha impressão é que quando surge o
Lampião.. e o grupo SOMOS/SP, o Brasil já caminhava para uma abertura. O regime
militar estava mais fraco. Ele nunca foi muito rígido em questão de repressão sexual.
As boates funcionavam livremente. Não me lembro de nenhuma batida policial. Nos

460
anos setenta. Quando estive na Colômbia, fui a uma boate onde a polícia chegou e
acendeu as luzes... as pessoas ficaram assustadas! Lá havia repressão policial anti-
gay.
O meu tempo de universidade... a partir de 1965 até 1968, quando eu estava
na USP, a paquera homossexual e a prostituição no Parque Trianon era imensa...
maior do que é atualmente. Encontrei numa dessas caminhadas noturnas, nada mais
nada menos, que o professor Luís Pereira. Meu seríssimo professor de Sociologia
Sistemática. Inicialmente ele não me reconheceu, entrou no meu carro e
conversamos, mas ele era muito feio e eu não quis. Sempre gostei de pessoas mais
jovens que eu. Depois ele percebeu que eu era aluno e a conversa ficou superficial.
Ele morreu pouco tempo depois... não sei do que? Ainda não estávamos no tempo da
AIDS.
Não acho que o regime militar teve alguma interferência no aparecimento ou
na repressão do movimento gay. Ao meu modo de ver, o Brasil acompanhava o
movimento internacional de 1969 - o Stonewall... lá em Nova Iorque. Neste sentido,
a sociedade brasileira começa a acompanhar essa liberação geral dos costumes, em
termos de boates, publicações, shows de striptease, anúncios eróticos... a televisão se
abre um pouco para algumas temáticas eróticas, inclusive pequenas passagens
homoeróticas.
Quando fundamos o grupo tínhamos medo. O primeiro documento que
publicamos e distribuímos em Salvador chamava-se: A todos os homossexuais da
Bahia. Nele, não colocamos o local onde nos reuníamos... com medo de algum tipo
de repressão, mas era um temor meio difuso, não situado em algum setor que
imaginássemos nos agredir ou ameaçar.
O Grupo Gay da Bahia, através do jornal Lampião, desde que foi fundado
estabeleceu contato com os grupos do sul. Na Semana Santa de 1980, aconteceu o
Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais em São Paulo. Tive conhecimento
dessa realização porque eu li no Lampião. O Grupo Gay da Bahia fora fundado uma

461
semana antes, mas não participamos. Na ocasião, não tínhamos condição de ir a São
Paulo. Porém, soubemos das atividades, recebemos o material... até hoje temos o
cartaz. Ele está emoldurado na sede do Grupo Gay da Bahia. O cartaz do Primeiro
Encontro nem foi impresso... foi do tipo artesanal.
Depois de alguns anos, funcionando na sede do grupo anarquista, tivemos
possibilidade de comprar uma quitinete no centro de Salvador... na Praça Castro
Alves, a partir de então o grupo passou a funcionar nesse local. O nosso pequeno
arquivo foi transferido para lá... até então ele estava na minha casa na Barroquinha.
Nesta pequena sede o GGB funcionou talvez cinco ou oito anos. Tivemos que
enfrentar vários problemas com a discriminação da vizinhança, mas nesse pequeno
espaço conseguimos reunir vinte... trinta pessoas. Inicialmente nos reuníamos às
quartas, sextas e domingos. Depois cortamos domingos... as reuniões eram só as
quartas e sextas. Em 1988 ou 1989, tivemos oportunidade de comprar um espaço
maior na Rua do Sodré. O primeiro andar de um casarão histórico. É um espaço bem
mais confortável, com sessenta cadeiras, um arquivo, um sanitário. Montamos o
Centro Cultural Triângulo Rosa. O GGB passou a ter mais espaço, com um local
para fazer exposições. Já fizemos inúmeras exposições de gravuras, de fotografias.
Realmente já é um Centro Cultural conhecido em Salvador.
O Grupo Gay da Bahia, logo que foi fundado, tomou como primeira
campanha a luta contra o parágrafo 302.0 - da classificação internacional de
doenças, da Organização Mundial de Saúde -, o qual considerava o
homossexualismo como desvio e transtorno sexual. A partir de 1981, começamos a
campanha nacional. Conseguimos dezesseis mil assinaturas, assim como o apoio de
políticos importantes: Franco Montoro, Ulisses Guimarães, Darcy Ribeiro, entre
outros; e o apoio de cinco associações científicas - a favor da despatologização da
homossexualidade - que finalmente redundou na principal vitória do movimento
homossexual até agora. Em 1985, o Conselho Federal de Medicina retirou a
homossexualidade da classificação de doenças. Internacionalmente, esta alteração

462
pela Organização Mundial de Saúde só ocorreu no ano passado, em 1994. Neste
sentido, o Brasil se antecedeu em vários anos a essa conquista internacional.
Considero importante também a minha participação na inclusão do dispositivo que
proíbe a discriminação por orientação sexual em setenta e três leis orgânicas
municipais e duas constituições estaduais.
No que se refere a minha formação intelectual e acadêmica, foi um equívoco
ter escolhido Antropologia Econômica. De fato, gosto das feiras porque gosto de
antiguidades, mas não gosto de estudar micro e macro economia. De modo que perdi
muito tempo com isso. Há vários anos passei adiante minha biblioteca de
Antropologia Econômica que era bastante importante. Depois da Antropologia
Econômica interessei- me pela Demografia Histórica. Tenho vários trabalhos sobre
Demografia Histórica... estudos populacionais de Sergipe, Piauí, no século XVIII,
XIX. A Demografia Histórica abriu o espaço para a etno-história da sexualidade.
Comecei estudando o material inquisitorial, estive mais de um ano na Torre
do Tombo em Lisboa. Na medida em que passo poucos dias num arquivo, sou um
pesquisador que tenho um grande tino... uma grande argúcia de investigação.
Consigo coletar grande quantidade de documentos e descobrir coisas importantes.
Modéstia parte, tenho mais de duas mil páginas publicadas para a história... mais de
mil sobre a escravidão dos africanos e seus descendentes... alguns documentos
inéditos e a parte sobre sexualidade. Na Torre do Tombo, descobri a existência de
um material riquíssimo em processos, denúncias, sumários... sobre os sodomitas em
Portugal e no Brasil colonial.
Quando consegui a primeira bolsa do CNPq, para ir fazer a pesquisa sobre a
história dos sodomitas em Portugal e no Brasil, fiquei com medo da discriminação e
da censura. Desta forma, apresentei um projeto ao CNPq explicando que pesquisaria
sobre moralidade na Inquisição em geral. Porém, a minha ênfase era nos mais de
quatrocentos processos de sodomitas e mais de cinco mil denúncias que copiei. Esse

463
vai ser o trabalho principal da minha vida. Até agora trabalhei esse material apenas
superficialmente porque sempre estive envolvido com outras questões.
A minha contribuição, em termos da História da Homossexualidade, ainda
está por ser feita: o estudo dos mais de cinco mil sodomitas luso-afro-brasileiros
perseguidos pela Inquisição. Este material coletado está na minha casa. Pretendo
viver até os cem anos para fazer vários volumes sobre esta história... única na
humanidade. Não há nenhum outro registro tão minucioso sobre a história dos
sodomitas - inclusive sobre a sexualidade - como o dos arquivos da Inquisição
portuguesa. Este será o principal trabalho da minha vida... a minha ópera magna!
Na verdade, minha contribuição à história da homossexualidade concentra-se
no fato de ter feito a primeira bibliografia específica do tema no Brasil. Na época,
foram mais de trezentos títulos que coletei. Este levantamento foi publicado nos
Estados Unidos e no Brasil. Uma das pérolas do meu currículo é ter apresentado e
aprovado cinco moções contra a discriminação homossexual em associações
científicas: a SBPC, a Associação Brasileira de Antropologia, a Associação
Brasileira de Demografia entre outras. Desta forma, considero este momento muito
importante na história dos direitos humanos homossexuais no Brasil.
Ainda em termos da minha contribuição intelectual e política... para os
direitos humanos dos gays, lésbicas e travestis, há o meu livro O Lesbianismo no
Brasil. Até o momento é o único livro que dá uma visão histórica, literária e política
sobre as lésbicas no Brasil... desde os tempos da descoberta até os movimentos
organizados. Há um trabalho sobre os travestis, chama-se Gilete na Carne, sobre as
auto-mutilações dos travestis da Bahia. Este trabalho foi apresentado num congresso
de antropologia... foi censurado pela Revista de Antropologia da USP. O professor
João Batista Borges Pereira como editor da revista recusou publicá-lo. Em 1987,
finalmente ele foi publicado na Revista do IMESC - Instituto de Medicina Social e
Criminalística do Estado de São Paulo.

464
Fiz uma pequena bibliografia sobre AIDS no Brasil. Modéstia parte, em 1982
o Grupo Gay da Bahia foi a primeira ONG a iniciar a prevenção da AIDS. Escrevi a
primeira bibliografia sobre este tema. Além disso, considero que meu trabalho sobre
a prevenção da AIDS no candomblé é pioneiro no Brasil... se não me engano de
1990! No que se refere ainda ao trabalho sobre a prevenção da AIDS, há o primeiro
texto em braile. Durante muito tempo, foi o único material destinado
especificamente aos cegos no Brasil.
Até hoje, com quarenta e nove anos, este foi o depoimento mais completo que
prestei a respeito desse meu percurso como: filho de uma família burguesa de São
Paulo, seminarista, estudante universitário e líder do movimento homossexual.
Tenho consciência que fiz história nessa curta existência. Dei importantes
contribuições à história dos africanos e seus descendentes no Brasil. Essa área foi
muito importante porque descobri documentos inéditos. Eu publiquei a biografia da
Rosa Egipcíaca, setecentos e cinqüenta páginas, editora Bertrand do Brasil. É a
biografia mais extensa a respeito de uma africana do século dezoito no mundo. Não
tem nenhuma documentação tão minuciosa quanto esta.
Colaborei em algumas áreas do conhecimento, escrevendo bibliografias. Nos
Estados Unidos, publiquei uma bibliografia sobre mercados camponeses e feiras,
uma bibliografia sobre Demografia Histórica, outra sobre a História de Sergipe.
Portanto, tenho consciência que fiz história. Fiz história pela minha contribuição às
diferentes áreas da ciências humanas que pesquisei e dei contribuições... seja
escrevendo artigos originais, seja fazendo bibliografias, seja ajudando outras pessoas
Essa é uma característica da minha personalidade. Herdei-a da minha mãe e
da minha avó materna... uma generosidade em termos colaborar e de fazer o bem.
Seja dar esmola... a quem pede na minha porta ou na rua, seja ajudando conhecidos
em pesquisas. Não tem um livro sobre história colonial brasileira - que saia hoje no
Brasil - que não tenha agradecimento a algum documento que eu tenha passado para
essas pessoas. Então, tenho consciência que colaborei com a historiografia brasileira.

465
Não teoricamente... sou um etnógrafo. Não tenho o menor constrangimento de dizer
que sou um bom pesquisador... um bom colecionador de documentos. Sou original
na interpretação de alguns temas. Corajoso em colocar problemas e também em
relacionar a pesquisa histórica com o presente. Não tenho teoria profunda... não me
envergonho porque a teoria passa e os fatos continuam.
De modo que essa é minha contribuição, em termos tanto de demografia
histórica, quanto de História dos africanos e seus descendentes no Brasil, assim
como para a história da sexualidade. Depois de Gilberto Freire, de Paulo Prado...
pertenço a geração mais recente que iniciou esses estudos. Tenho como colegas...
alguns deles, pelo estímulo, até se consideram meus seguidores: Ronaldo Vainfas,
Mary del Priori e Laura de Melo e Souza. São pessoas com uma profundidade
analítica maior que a minha porque são historiadores, mas freqüentemente eles citam
os meus trabalhos e os documentos que lhes passei.
A minha pessoa vai ficar na História do Brasil como o homossexual que mais
lutou pela cidadania dos gays, lésbicas e travestis. Embora, pessoalmente, goste do
termo homossexual, lastimo que as lésbicas se recusem a utilizá-lo para se auto-
identificar. Poderíamos utilizar termos específicos apenas quando nos relacionamos
entre nós. Porém quanto ao movimento em si... com a sociedade heterossexista,
parece-me ser politicamente correto usar o termo homossexual, englobando todas
essas categorias distintas. Na única reunião do grupo SOMOS que participei, há
quinze anos atrás... se não me engano na Politécnica da USP, fiquei chocado com o
separatismo lésbico.
Nessa reunião, estava a Alice do Coletivo das Feministas Lésbicas de São
Paulo... aquela que há poucos instantes interrompeu esse depoimento, reclamando
pelo fato de estarmos ocupando uma mesa no cantinho de um salão - enorme - de
exposição sobre visibilidade lésbica... para ela nós estaríamos atrapalhando a
exposição. É lastimável a incompreensão desta pessoa, presente desde o começo do
movimento homossexual. Porém, nessa reunião também estavam o Edward MacRae,

466
o Jorge Beloqui e outros líderes. Eu era um dos mais novos, mas já era uma pessoa
mais ou menos visível. O GGB já havia sido fundado, era um grupo que estava se
salientando... talvez já tivesse um ano de existência! As lésbicas se colocavam numa
posição de se acharem mal contempladas... diziam ser alvo de discriminação.
Queriam se separar para ter maior visibilidade. De fato, elas se separaram do
SOMOS para fundar o GALF (Grupo de Atuação Lésbico-Feminista)... o primeiro
grupo lésbico.
Quando fiz o livro sobre o lesbianismo no Brasil, o fiz com intenção de
contribuir para essa minoria tão pouco visível. Porém, nos últimos três anos me
envolvi numa polêmica!... achava que o movimento homossexual brasileiro, assim
como o Encontro Brasileiro de Homossexuais, devia manter esses nomes. As
lésbicas, contudo, insistiram que fosse chamado de Movimento de Homossexuais e
Lésbicas. Então, demonstrei o equívoco que seria cometido, na medida em que
lingüística e politicamente o termo homossexual envolve tanto gays quanto lésbicas.
Mas criou-se toda uma polêmica sob a justificativa que lésbicas não são gays.
A provocação - feita durante este depoimento - já chega a ser de um nível que
considero pequeno. Na verdade a história vai mostrar este equívoco, pelo qual fui
acusado de discriminar as lésbicas... só pelo fato de achar que o nome do movimento
devia chamar: Movimento Homossexual Brasileiro. Nesse caso, questiono esta
atitude. Por que não escrevi O Homossexualismo Feminino no Brasil? Porque estava
tratando especificamente do lesbianismo! Porém, no que se refere a um movimento
que reúne gays, lésbicas, travestis, transexuais e recentemente bissexuais, será
preciso acrescentar uma nova minoria a cada reunião... ou então utilizar um termo
universal. A palavra homossexual foi inventada por um gay, o Benkert, e parece-me
que a sociedade entende seu significado perfeitamente. É completamente redundante
e falho, em termos de comunicação, querer falar em lesbianidade e lesbofobia se se
pode falar em homossexualidade e em homofobia... incluindo tanto a discriminação
dos gays quanto das lésbicas. Na verdade, essa pretensa visibilidade das lésbicas

467
reflete uma boa dose de androfobia. Infelizmente as lésbicas do primeiro mundo,
assim como as do Brasil... que estão entrando pelo mesmo caminho, têm um ódio,
uma fobia ao homem, a qual considero negativa e prejudicial. Repito, a história há
de mostrar este equívoco!
A minha colaboração para o movimento homossexual foi tanto prática, quanto
intelectual. No sentido de resgatar as histórias no passado, de realizar bio-
bibliografias de personagens célebres que praticaram o homoerotismo. Em relação à
história do lesbianismo, descobri personagens, literatura, episódios que até agora não
tinham sido revelados. Para os travestis também, na medida em que descobri o
primeiro travesti na história do Brasil. Francisco Manicongo, na cidade Salvador em
1591. Portanto, em termos da história da homossexualidade o meu trabalho serve de
fonte e servirá de inspiração para muitos outros trabalhos.
Não me interesso teoricamente pela história contemporânea do movimento
homossexual. Não sei se é porque participo nela, sendo uma peça importante nesse
movimento... do que propriamente uma postura, um distanciamento epistemológico.
Na medida em que sou ator e analista ao mesmo tempo... isso me constrange! Tenho
uma identificação maior, um gosto pessoal pela história colonial, pela história do
século XVI, XVII e XVIII. Deixo isso para o Edward MacRae, para os outros
estudarem o movimento homossexual.
Tratei dessas diferentes áreas em que considero que a minha pessoa prestou
uma colaboração importante. Falo isso não com cabotinismo ou como auto-
promoção, mas porque acredito que a verdade deve ser dita sem falsa modéstia. O
meu trabalho, o meu afinco e a minha garra devem servir de estímulo e emulação
para que mais pessoas assumam essas diferentes áreas e setores. Por falta de outros
colaboradores tive que assumir com exclusividade.
Pela minha vontade, gostaria de me concentrar exclusivamente no estudo e na
reconstituição da história dos sodomitas luso-brasileiros perseguidos pela Inquisição.
Este é meu tema predileto. Não trabalharia com AIDS, deixaria o ativismo para

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outros, pois em termos de preferência gosto de estudar a história inquisitorial. Por
falta de outras iniciativas fui obrigado a abraçar mais áreas. Espero, portanto, que
essa reconstituição sirva de estímulo para que mais pessoas dividam o trabalho,
reconstituindo toda história da homossexualidade no Brasil.
No que se refere ao ativismo, enquanto líder gay, ouvi do teólogo-pastor
Thomas Hank - da Comunidade Outras Ovelhas de Buenos Aires - chamar-me duas
vezes de Patriarca do movimento homossexual. Fiquei orgulhoso porque geralmente
me chamo de Decano. Atualmente, sou o homossexual que durante mais tempo,
ininterruptamente, participa do movimento homossexual. Era o João Antônio
Mascarenhas. Em 1977, ele foi o primeiro a ter a idéia de organizar os homossexuais
em nosso país, trazendo o Winston Leyland ao Brasil - diretor da editora Gay
Sunshine - para fazer conferências sobre liberação homossexual.
Mascarenhas é um dos idealizadores, senão o idealizador do jornal o
Lampião! Fundador do grupo Triângulo Rosa. Infelizmente largou o movimento,
embora às vezes ainda dê alguma assessoria. Se não fosse João Antônio
Mascarenhas, nem o movimento homossexual, nem o GGB seriam tão fortes. Ele
deu assessoria ao GGB inúmeras vezes, escreveu ofícios... seu arquivo está todo
conservado na UNICAMP.
Mantive contato com as lideranças históricas do movimento homossexual,
com os dinossauros, mas foi muito superficial. Estive uma vez na casa de João
Silvério Trevisan, mas nunca tomei partido na questão da Convergência Socialista...
inclusive o Jimmy Green está presente aqui na ILGA. Não gosto de participar de
encontros nacionais, internacionais... de associação nacional. Não gosto de participar
de assembléias. Não tenho aspiração, nem ambição política, para ser chefe de
departamento, para ser presidente de associação nenhuma. Sempre gostei de
trabalhar com ativismo local... acho que me sinto mais a vontade!
Com Peter Fry, tenho uma posição extremamente crítica. Os trabalhos dele
sobre homossexualidade no Brasil pecam por uma falta de visão política... na medida

469
em que ele considera que a pessoa está homossexual e que não é homossexual. Não
existe o ser homossexual, mas o estar homossexual. Acho um equívoco! Se ele tem
dúvidas quanto à homossexualidade ser um definidor de sua própria existência, para
mim, assim como para milhões de gays e lésbicas, o ser homossexual implica numa
existência distinta, não separada... numa alternativa a essa sociedade heterossexista.
Em relação ao movimento homossexual, a posição de Peter Fry foi de
desprezo. O prefácio do livro de Néstor Perlongher - O Negócio do Michê -, ele diz
que o michê representa uma minoria que resiste heroicamente a identidade
homossexual, é uma visão extremamente irresponsável... na medida em que vinte por
cento dos assassinos de homossexuais são michês, rapazes de programa com
problemas de identidade. São homossexuais egodistônicos. Peter Fry teve uma
contribuição negativa em termos da liberação homossexual, apesar de ter tido a
coragem de participar do corpo editorial do Lampião... logo quando chegou ao
Brasil, e ter sido processado junto com outros editores durante a ditadura.
Meu contato com outros líderes do movimento homossexual foi muito
superficial. Encontrei Darcy Penteado uma ou duas vezes, tivemos conversas
rápidas. Tenho os seus livros, algumas gravuras... inclusive com autógrafos, mas não
tive maior contato. Aguinaldo Silva... desprezo!!! Como editor responsável do
Lampião, esse indivíduo ficou com o riquíssimo arquivo do Lampião... com o final e
a dissolução do jornal. O Grupo Gay da Bahia escreveu pedindo a transferência
desse arquivo. Na ocasião era o mais organizado. Eu mesmo escrevi insistentemente
para ele, mas o arquivo foi destruído. Por acaso tive a oportunidade de comprar um
livro, escrito pelo Ruddy, hoje ele é um transexual, com os dizeres: “- Eu Ruddy,
com oferta ao Lampião. Ruddy.” Comprei num sebo. Sinal que: ou Aguinaldo Silva
vendeu o material do Lampião, ou então o destruiu com as cartas, manuscritos e
fotografias... tudo isso se perdeu! A posição atual de Aguinaldo Silva, criticando-me
e dizendo que não quer rótulos, negando o seu passado de militante homossexual, o
desqualifica a ficar na história da liberação homossexual.

470
João Antônio Mascarenhas, considero uma personalidade importantíssima,
apesar de sua personalidade elitista, pelo fato de ser uma pessoa que possui bens, o
seu perfeccionismo... mas é muito generoso! Ele deu uma contribuição fundamental
na organização do Grupo Gay da Bahia, assim como em outras atividades do
movimento homossexual. O Edward MacRae, atualmente mais envolvido com o
estudo sobre drogas... sobre o Santo Daime, também foi fundador do grupo Alegria-
Alegria... uma dissidência do SOMOS. Ele teve uma polêmica com Trevisan, pois
posicionou-se apenas como um pesquisador, não aparecendo como um dos
participantes dessa entidade... mas o considero uma pessoa correta.
Richard Parker é uma estrela, o expert internacional a respeito da
homossexualidade no Brasil... mas muito influenciado por Peter Fry no que se refere
a visão chamada de construcionismo social da homossexualidade, da qual não
participo, na medida em que sou um essencialista. Considero a homossexualidade
como um componente universal, definidor de personalidades para milhões de
indivíduos.
Até então era o Decano, a partir de agora fui nomeado o Patriarca... orgulho-
me muito por isso! Não pretendo abandonar o movimento homossexual... nunca!
Quero ficar até o final dos meus dias como militante, mesmo quando já tivermos
muito mais direitos conquistados. Isso faz parte do meu temperamento, da minha
maneira de ser... continuar polemizando e reivindicando os direitos humanos para
essa minoria.
A minha contribuição principal foi a fundação do Grupo Gay da Bahia. Este
grupo liderou inúmeras campanhas nacionais, exerceu um papel fundamental na
fundação de outros grupos como: o Dialogay de Sergipe; Grupo Lésbico da Bahia; o
Centro Baiano Anti-AIDS; o Grupo Gay do Amazonas; e o próprio Dignidade...
atualmente considero este último grupo mais dinâmico e estruturado que o Grupo
Gay da Bahia. Foi me vendo na televisão que Tony Reis, fundador do Grupo
Dignidade de Curitiba, teve o desejo de ser alguém igual àquele gay que ele viu

471
falando do Grupo Gay da Bahia. Neste sentido, considero que a minha contribuição
ao movimento gay brasileiro foi, é e está sendo profícua, na medida em que ajudei a
criar outras lideranças.
O Grupo Gay da Bahia infelizmente não tem outras lideranças. Não que eu
seja monopolizador, mas os principais coordenadores do grupo, os mais dinâmicos,
de nível universitário, que falam outras línguas... dois deles casaram-se com outros
gays e foram para o exterior. Aroldo foi para a Alemanha e Hédimo Santana está na
Austrália. Infelizmente tivemos um coordenador muito dinâmico que foi afastado
por problemas de má conduta.
Atualmente, Marcelo Cerqueira, é o grande amor da minha vida. No encontro
da ILGA completarei dez anos de união com ele. Casamos no dia 08 de junho de
1994, numa cerimônia realizada no sindicato dos bancários em Salvador... oficiada
pela pastor Onaldo Pereira da Igreja Pacifista Cristã. Nesses dez anos, ele tem sido a
minha grande força, é quem me dá estímulo... quem me inspira em muitas atividades.
Uma pessoa mais simples que o Aroldo, mas que nos últimos anos se tornou
universitário. Ele está cada vez mais envolvido com o GGB, com a prevenção da
AIDS e que hoje - 22 de junho - estará presente quando eu receber o prêmio Filipa
de Souza. Esta personagem foi a primeira lésbica a ser torturada e perseguida pela
Inquisição portuguesa em 1593... descobri e divulguei esse dado.
Este prêmio de direitos humanos me será outorgado hoje. Ele é concedido
pela Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas de São
Francisco. É o principal prêmio de direitos humanos de homossexuais no mundo.
Juntamente com outros dois ativistas: um da Tailândia e outro da Nova Zelândia.
Nesses quinze anos de luta pelos direitos humanos que estou envolvido, esse prêmio
me orgulha pelo reconhecimento da minha contribuição... de uma forma significativa
à maior visibilidade atual e histórica dos homossexuais: gays, lésbicas e travestis no
Brasil.

472
Fui vítima de graves ameaças a minha integridade física. Há uns cinco anos,
fui ameaçado depois de ter dito e divulgado que Santos Dumont era homossexual.
Vou concluir esse longo depoimento, afirmando que se Jean Genet disse que a
homossexualidade foi uma benção para ele, a homossexualidade foi uma graça para
mim. Ela tornou-me mais gracioso, cheio de graças. Enquanto cidadão... enquanto
ser humano, ela fez de mim uma pessoa que prestou contribuição à humanidade. Foi
muito significativo o fato de ter assumido a minha homossexualidade, ao invés de
ter-me mantido na clandestinidade. Pelo meu depoimento, pela minha coragem,
pelas cartas que escrevi, pelos textos que divulguei... estou certo que centenas, ou até
milhares de jovens, de pessoas que se assumiram, tornaram-se menos infelizes!
Não me arrependo um minuto sequer de ter feito esta opção. No meu caso foi
uma opção. Optei por tornar explícita a minha orientação sexual mais reprimida.
Espero ser lembrado como alguém que acreditou na felicidade... que acreditou no
sexo e no amor entre pessoas do mesmo gênero como um direito fundamental de
cidadania. O amor é um direito humano fundamental. Termino - como já fiz muitas
vezes em conferências - com um poema de Fernando Pessoa: “ O amor é essencial.
O sexo é um acidente. Pode ser igual ou pode ser diferente”; ou com uma frase
minha que se tornou o primeiro slogan do movimento homossexual brasileiro: “É
legal ser homossexual”.

473
Segunda Rede:

Os Membros da Redação do Lampião.

Nome do Local e data Idade à Local e data Textos Local e data


colaborador de época da da conferidos da
envio do conferência conferência enviados autorização
texto pelo correio do texto
Antônio Osasco-SP 39 anos Rio de Rio de
Carlos em Janeiro-RJ Janeiro-RJ
Moreira197 20/03/1997 _________
em 27/05/07

27/05/97
Alceste Osasco-SP 45 anos Na Rio de
Pinheiro198 em residência Janeiro-RJ
20/03/1997 do professor _________
no Rio de em
Janeiro. Em
09/04/1997. 25/03/97
Dolores Osasco-SP 39 anos Na Rio de
199
Rodriguez em residência Janeiro-RJ
20/03/1997. da jornalista _________
no Rio de 09/04/97
Janeiro. Em
08/04/1997.

197
Surge como Membro Colaborador do jornal no Rio de Janeiro a partir de junho de 1980 (Nº
24), passa a aparecer na ficha técnica como membro da redação (Nº32) e permanece até a extinção
em junho de 1981(Nº 37).
198
Surge como Membro Colaborador do jornal no Rio de Janeiro a partir de abril de 1978 (Nº 0),
passa a aparecer na ficha técnica como membro da redação (Nº32) e permanece até a extinção em
junho de 1981(Nº 37).
199
Surge como Colaboradora do jornal no Rio de Janeiro a partir de setembro de 1980 (Nº 27),
passa a aparecer na ficha técnica como membro da redação (Nº32) e permanece até a extinção em
junho de 1981(Nº 37).

474
. Nasceu no Rio de Janeiro (capital),
em 23 de agosto de 1958.

. Diretor da Divisão Gráfica da UFRJ.

. Estudos Acadêmicos: Comunicação


Social - Jornalismo na SUAM

Antônio Carlos Moreira.

475
No primeiro contato Antônio Carlos
Moreira demonstrou um interesse imenso em
colaborar. Como não sou do Rio de Janeiro,
sempre fiquei hospedado na Zona Sul, ele se
prontificou a levar-me até sua residência na
Zona Norte. A caminho do local fomos
conversando sobre a pesquisa. Pela janela do
carro meus olhos de turista presenciaram,
além do túnel, a continuação da mesma
cidade. Já no apartamento, ele mostrou um
quadro panorâmico que até aquele momento
desconhecia: o Rio de Janeiro visto da Zona
Norte. Enquanto carioca, Antônio Carlos
Moreira explicou a diferença entre as duas
regiões. Muito a vontade, começou a narrar
suas experiências de garoto que cruzou o
túnel para estudar na Zona Sul, dedicar-se
aos movimentos sociais e à imprensa
alternativa. Para efeito de referência
consegui entender suas razões em recuperar
tal distinção para a elaboração da narrativa.

Rio de Janeiro, RJ,


26 de agosto de 1995.

476
“Afastei-me demais do movimento quando o jornal acabou. Sou um
dos órfãos do Lampião... se é que podemos dizer assim!? Não participei
de mais nada.”

Meu nome é Antônio Carlos Moreira. Nasci em 23 de agosto de 1958 no


bairro de Laranjeiras na cidade do Rio de Janeiro. Sou de uma família de classe
média baixa... de origem bem humilde. Minha mãe é mineira, veio para o Rio ser
empregada doméstica. Meu pai é português, veio para o Brasil com quinze anos. Ele
tinha uma carrocinha para vender frutas. Meus pais se conheceram, casaram e foram
morar numa espécie de cortiço... próximo ao Catumbi. Alguns anos depois mudamos
para uma casa modesta no Estácio. Quando tinha nove anos nasceu meu único
irmão... ele é temporão! Tudo foi tranqüilo neste momento da infância. Não há
nenhum fato marcante, nenhuma tragédia! Foi uma vida comum: brincadeiras na rua,
discussões em casa, almoço de domingo... acontecimentos corriqueiros de uma
família de classe média baixa.
Aos sete ou oito anos apareceram alguns aspectos da homossexualidade:
brincadeiras, jogos e desejos. A orientação sexual começou a ficar mais consolidada
aos treze anos.
A formação escolar provocou uma mudança radical na minha vida. Fiz o pré-
primário e o primário numa escola Batista, chamava-se Escola Vitória. Até terminar
o ginásio sempre estudei perto de casa... no Estácio. Depois fui para uma escola na
Praça da Bandeira, o Luther King, onde terminei o primeiro grau... no auge da
ditadura em 1968! Era uma escola modelo, muito interessante porque trabalhava
com a comunidade. Havia um espaço enorme, com muitas festas, muitos eventos.
Desde cedo envolvi-me na organização destes eventos. Foi um período muito
interessante porque comecei a me desligar do perfil familiar.

477
É engraçado porque meus pais nunca interferiram nisso. Eles também não
tinham condições para dizer: “- Olha, você tem que fazer isso ou aquilo!” Eles
queriam que eu fosse bem sucedido, mas não sabiam como me orientar... assim fui a
luta!
Aos quatorze anos, terminando o ginásio, posso dizer que começo a minha
vida homossexual efetiva... apesar de ter uma vida dupla porque namorava. Neste
período, conheci um cara quase da minha idade. Ele fazia o segundo grau, um curso
técnico de publicidade no Colégio Ignácio Azevedo do Amaral, no Jardim Botânico.
Resolvi estudar neste colégio na Zona Sul, uma seara que não era a minha.... eu era
da Zona Norte!
No Rio há uma diferença enorme entre a Zona Sul e a Zona Norte... isso é
muito marcado! Para os habitantes que não são da Zona Sul costuma-se dizer que é o
pessoal do além-túnel. Há uma forma de comportamento diferente. Isso é visível no
comportamento do adolescente: nos gostos, no vestuário, no lazer, nas gírias, na
forma de andar em grupo, enfim num monte de coisas. Então, consegui romper com
meu espaço onde vivia desde a infância e comecei a conhecer outras possibilidades,
entre as quais estava a opção profissional.
Quando sai da Zona Norte senti a novidade no sentido da questão cultural.
Passei a conviver com pessoas que faziam teatro. Havia um bar em frente a escola
onde estudava no qual Chico Buarque bebia todo sábado. Nós freqüentávamos esse
bar e ficávamos bebendo com ele. Não tinha nada daquela tietagem de fã puxando o
saco, na verdade era um programa e todo mundo cantava... era interessante! Desta
forma, havia outro nível de informação circulando... talvez essa seja a grande
diferença: os que consomem a dita cultura urbana e os que a produzem. Acredito na
possibilidade da concentração de renda ser influente. Sem dúvida, a Zona Sul tem
um contingente de pessoas com maior poder aquisitivo. Porém, isso necessariamente
não significa que outros bairros distantes da Zona Sul deixem de interferir na
produção cultural urbana.

478
No período da adolescência, comecei a fazer teatro na Escola de Teatro
Martins Pena. Havia também as atividades do colégio, como entre outras coisas a
organização dos festivais. Na verdade nunca fiquei parado. Não ficava em casa,
sempre tinha uma atividade para fazer... sempre! Neste colégio, estava fazendo
técnico de publicidade... era um colégio público.
Estávamos na época dos cursos profissionalizantes, quando reformularam o
segundo grau acabando com os antigos cursos Clássico e Científico. Essa escola
possuía cursos como: técnico de publicidade, tradutor e intérprete, desenho. Havia
um público interessante em função deles. Essa escola ficava na Rua Jardim Botânico
a caminho da PUC no Rio de Janeiro.
Desde os quatorze anos já freqüentava os lugares de pegação. Paralelo a tudo
que contei tinha minhas atividades homossexuais. Tudo começou na Cinelândia. Eu
vinha de uma festa em Copacabana com um amigão de infância. Falava-se que tinha
muito viado na Cinelândia, então pintou a curiosidade: “- O que é isso?” Por um
bom tempo freqüentei a Cinelândia. Logo de início fomos paquerados, saíamos e
fomos sendo apresentados a outros, começamos a conhecer as boates, os lugares de
pegação e isso foi crescendo.
O meu outing foi aos quatorze anos, mais ou menos em 1972. Entretanto,
quando estou falando da Martins Pena, isso é por volta de 1976. Nesse caso, estou
mostrando que essas coisas aconteciam em paralelo. Quando fiz teatro no Martins
Pena, havia um grande grupo de homossexuais. Nós terminávamos as aulas e
saíamos, para os lugares ou para as festas - na época tinha dezoito anos.
Na minha vivência, quando comecei a freqüentar as ruas aos quatorze anos,
não sentia a pressão da ditadura. Não tinha consciência do que existia politicamente
na cidade, não tinha a menor informação, mas não percebíamos a opressão sobre a
homossexualidade. É até engraçado porque nessa época a Cinelândia estava toda
quebrada por causa das obras do metrô. Na Praça Floriano, em frente ao Municipal,
havia um grande buraco. Então, um grupo de pessoas costumava freqüentar o que

479
chamávamos de Via Ápia. Naquele tempo já era um lugar de pegação, existiam
michês, mas não era um lugar violento como é hoje em dia. As pessoas passeavam
em grupo, ficavam conversando... era um lugar iluminado. Em frente, existia a
aeronáutica. O engraçado é que não era difícil pularmos o muro para trepar com os
soldadinhos, perto do aeroporto Santos Dumont... ficava a maior paquera a noite
inteira!
A repressão era muito específica: para as manifestações de rua, passeatas, o
exército perseguia as organizações. Essa repressão não existia nos espaços de
freqüência homossexual: boates, saunas, locais de pegação. Nós não sentíamos os
efeitos da ditadura perseguindo homossexuais como acontecia na Argentina.
Por volta de maio de 1977, não sei exatamente se era este mês, estávamos na
hora do intervalo das aulas - eu estudava a tarde neste período -, de repente,
começamos a ver uma movimentação louca, caminhões do exército, militares e
aquele zum-zum-zum na escola e as pessoas comentando: “- Estão indo para a PUC!
Vão invadir a PUC!” Eu não sabia nada, não tinha a menor referência e comecei a
me interessar: “- O que é isso que tá acontecendo!?” Era a primeira grande
manifestação de estudantes no Rio de Janeiro. Isso aconteceu no período final da
ditadura quando os movimentos sociais começaram a se reorganizar.
No primeiro semestre de 1977, vários movimentos começavam a ressurgir no
Brasil inteiro... eles tentavam dar uma resposta ao governo autoritário. Passei a
interessar-me por aquele movimento todo. Comecei a ir a PUC com alguns amigos
do segundo grau e logo ensaiamos um pequeno movimento secundarista. Nós
trabalhávamos mais em nível cultural... dentro do colégio. Não tínhamos nenhuma
orientação política, obviamente não estávamos ligados a nenhuma organização.
Porém começamos a nos antenar com aquela história.
Em 1978, prestei o vestibular e entrei para a faculdade... fui fazer
comunicação. Nesta época, aproximei-me de uma organização chamada MEP -
Movimento de Emancipação do Proletariado -, uma organização marxista-leninista...

480
bem rígida! Apesar de ser a mais porra-loca das organizações... era composta por
pessoas de classe média com pouca inserção no dito operariado. O pessoal da célula
básica era de Santa Tereza. No final de 1978, já estava na faculdade. Paralelo ao
meu percurso formal, obviamente continuavam existindo as minhas saídas.
Isso é engraçado porque estava num trabalho político onde a questão
homossexual não era bem aceita, porém todos os meus amigos sabiam... inclusive os
amigos heterossexuais. Nesse período conheci o jornal Lampião, acho que em maio
de 1979, mas separei as duas atividades. Fui ao Lampião, depois de um ano e pouco
de sua existência. O embrião do movimento homossexual no Rio já estava
acontecendo: o grupo SOMOS/RJ. Ingressei no grupo ao mesmo tempo em que
comecei a trabalhar no Lampião.
Havia a extorsão da polícia apesar da ditadura não ter reprimido os
homossexuais. A patrulhinha sempre deu em cima e procurou extorquir dinheiro...
acho que isso é normal, a polícia faz esse jogo em qualquer regime. Entretanto, não
tinha relação direta com o processo político. No final de 1978, o movimento do
grupo SOMOS/RJ começa a se esboçar no Rio... tudo a boca pequena! O grupo
ainda não estava estruturado porque as pessoas não sabiam exatamente o que
queriam fazer, mas a gente sabia o que estava acontecendo.
O movimento homossexual foi, sem dúvidas, uma conseqüência da “abertura
política”. Quem começa a organizar os grupos são pessoas que de uma certa forma
vêm do movimento político... ou porque não puderam se expressar, ou porque
discordavam da forma de organização dos centralismos democráticos, então
resolveram partir para algo que tivesse mais a ver com sua identidade usual. Essas
pessoas, utilizando a expressão corrente, abandonaram a dita “luta maior”. Esta é
uma das brigas iniciais do SOMOS tanto no Rio quanto em São Paulo.
Essas pessoas tiveram experiências com organizações de esquerda,
basicamente o Partidão, e acabavam meio que reproduzindo seus esquemas. Porém,
seja de que organização fosse, elas traziam para o grupo sua experiência. Então,

481
durante as discussões indagavam: “- Têm ou não estatutos!? Como o grupo se
organiza? Tem uma estrutura hierárquica ou é um colegiado? Tem diretoria ou não
tem!?” Isso tudo era reflexo das experiências com organizações de células
políticas... o que provocava brigas!!
O jornal Lampião também estava para sair... confesso que não me liguei no
lançamento do número zero, nesse momento estava envolvido com o movimento
político formal. Em 1979, conheci o Lampião, fui a redação do jornal falar com o
Aguinaldo Silva quando já estava no terceiro período de jornalismo. Então, conheci
o jornal e me interessei... queria colaborar com meu trabalho.
Quando visitei o Lampião pela primeira vez - a redação ficava num prédio
comercial -, aproveitei para comprar uns livros, anunciados na biblioteca gay
divulgada pelo jornal. Tinha uma figura fantástica que trabalhava na administração:
o seu Maurício. Ele era o zelador e o administrador do jornal, um senhor de
cinqüenta e poucos anos que participou da Segunda Guerra, foi militar... era uma
figura meio neurótica!
Ele zelava pelo jornal como se fosse dele... aparentemente não se apresentava
como homossexual. Então ele me atendeu: “- Ah! O Aguinaldo!! Ele não pode te
atender. Volta outra hora!... O que você quer, comprar livro!?” O seu Maurício
tratava todo mundo assim! Então, eu disse: “- Não! Eu só quero conversar com ele!
Eu vou esperar.” Quando o Aguinaldo chegou o seu Maurício disse-lhe: “- Pô
Aguinaldo, esse cara taí!! Eu falei para não te esperar. Você disse que não podia
atender e não sei o que...!!” O Aguinaldo disse: “- Ah! Pode deixar seu Maurício.” O
Aguinaldo comentou logo em seguida: “- O seu Maurício é sempre assim!” Depois
fiquei sabendo que era mesmo... uma figura absolutamente louca!
Conversei com a Aguinaldo, disse que conhecia o jornal, estava fazendo
comunicação e que estava interessado em escrever para o jornal. Paralelamente,
estava começando a participar do grupo SOMOS no Rio. O Aguinaldo perguntou:
“- Você tem alguma idéia de pauta!?” Eu falei: “- Olha!... de um tempo para cá estou

482
querendo escrever sobre algo que tenho observado.” Nos anos setenta, era muito
comum vários programas de TV apresentarem personagens bem estereotipadas em
relação ao homossexual. Desta maneira, havia personagens com esse perfil no
programa dos Trapalhões, nas novelas... então resolvi escrever uma matéria sobre
como a televisão trabalhava a imagem do homossexual. Nessa altura do campeonato,
isso me incomodava porque já tinha clareza da diversidade do comportamento
homossexual. Não existe um padrão, mas não me enquadrava naqueles estereótipos...
achava aquilo um absurdo! Ser retratado só daquela forma, visto que existiam outros
tipos!
O Aguinaldo achou legal e disse: “- Tudo bem! Escreve.” Eu comentei ainda:
“- Eu também vou fazer umas viagens, devo ir a algumas cidades de Minas Gerais.
Posso fazer um roteiro para o Lampião!” Não me lembro que cidades eram, mas a
viagem referia à encontros de estudantes... nesse meio havia o movimento político
junto! Ele aceitou: “- Então você traz os artigos! Se ficar legal eu publico.” Esse
serviço não era pago... era uma colaboração.
Fiz o trabalho, retornei com os artigos e ele riu um pouco do texto... porque
era meio raivoso! Identificam-se chavões do movimento estudantil num texto
falando sobre homossexualidade... era uma característica meio engraçada! Porém,
ele gostou, depois me pediu para escrever outros textos. Passei a freqüentar quase
diariamente a redação do jornal, para conhecer as pessoas, para me inteirar mais e
até mesmo conversar. Na redação encontrei inclusive um amigo que conhecia desde
os quinze anos de idade: Alceste Pinheiro. Atualmente ele é professor da UFF -
Universidade Federal Fluminense -, por causa de uma briga besta dentro do jornal
somos grandes inimigos hoje! Naquela época, porém, era um grande amigo.
Além do Alceste Pinheiro tinha o Francisco Bittencourt, o Adão Acosta e as
pessoas que conheci freqüentando a redação do jornal... quase diariamente
estávamos juntos. O Aguinaldo estava lá todo dia, assim como o Francisco
Bittencourt e o Alceste. Isso num primeiro momento, depois agregaram-se algumas

483
pessoas que vieram dos grupos como a Dolores Rodriguez, o Aristides Nunes... este
último chegou a ser jornalista da Rede Globo, morreu de AIDS recentemente.
O jornal passou a ter uma vida diária, cada pessoa tinha um trabalho... até
aquele momento parece que o Lampião era meio burocrático. O jornal ficava
fechado o dia inteiro e no final da tarde as pessoas se reuniam ou no período
próximo ao fechamento da edição nós começávamos a freqüentar diariamente o
espaço. Assim, a redação estava sempre aberta. Passamos a ter uma chave da sala.
Não recebíamos nada por esse trabalho, era voluntário e passamos a organizar um
arquivo que chamávamos de memória gay... até botamos uns anúncios no jornal! A
sede era na Rua Joaquim Silva, na Glória... o número não me lembro! Era num
prédio comercial que ainda existe.
Havia então a minha participação no Lampião e no SOMOS/RJ. No grupo, as
reuniões eram basicamente na casa do Eduardo Guimarães - ele também morreu
recentemente -, ou na casa do João Carneiro... ambos moravam em Copacabana. Os
novos integrantes eram admitidos através de uma reunião de recepção que ocorria
uma vez por mês. Fazia-se uma festa na casa do Eduardo, então explicávamos qual
era o objetivo do grupo. O grupo era dividido em subgrupos: festas, estudos,
finanças... existia uma pequena parcela feminina no grupo. Os subgrupos tinham
reuniões periódicas num calendário estipulado por eles próprios.
Eu participava muito dos subgrupos de estudos e de festas. Às vezes fazíamos
reuniões maiores e convidávamos pessoas na Casa do Estudante Universitário ou no
Teatro Cacilda Becker. No início do SOMOS/RJ, o João Antônio Mascarenhas
participava do grupo, assim como participou do início do Lampião, mas depois de
algum tempo houve divergências e ele acabou se afastando dos dois.
Antes de acontecer tudo isso, eu estudava comunicação em uma faculdade
particular chamada SUAM que ficava em Jacarépagua. Com a experiência que
possuía do segundo grau, encontrei algumas pessoas e resolvemos montar uma
comissão de estudantes pró-Centro Acadêmico. Queríamos montar um CA,

484
elaboramos um jornalzinho chamado Pro Que Der e Vier, fazíamos encontros... eu
estava em todas essas frentes! Era um leque de atividades acontecendo ao mesmo
tempo. Porém, as atividades não se misturavam. Por isso às vezes confundo uma
coisa com a outra quando faço o relato. É engraçado porque transitava em várias
frentes.
Entre 1977 e 1978, havia uma movimentação política: as organizações
estavam voltando às ruas, havia passeatas, começou a campanha da anistia e
surgiram jornais alternativos como: Movimento, Versus, O Fato, Em Tempo. Nesta
época, começaram a explodir bombas nas bancas de jornal... assim instaurou-se um
clima de terror no Lampião: “- Ah! Nós também temos um jornal alternativo!!
Queiramos ou não também falamos de política! O que vamos fazer então!?!”... não
era sobre política institucional, mas não deixava de ser política!
Aconteceu uma história engraçada com esse seu Maurício. Ele resolveu fazer
um monte de armadilhas, botava fios de cabelo para saber se alguém tinha entrado
nas salas. Desta forma, todo dia era um ritual: ele preparava todas as portas,
verificava tudo para que pudéssemos sair, no dia seguinte ele novamente verificava
tudo para saber se nada fora violado para que pudéssemos entrar... ou se não tinha
uma bomba dentro da redação! Para nosso descontentamento nunca aparecemos na
lista dos “jornais subversivos”... uso o termo reconhecendo que era uma expressão
forjada pela ditadura! Por outro lado, nem um jornal subversivo sequer citava o
Lampião quando falava na lista dos jornais alternativos.
Desta forma, nós estávamos num limbo... dou risada porque a esquerda não
nos achava seus aliados e a direita não achava que éramos de esquerda. Neste caso
indagávamos: “- Meu Deus! Mas o que é isso!??” Era engraçado porque o objetivo
inicial do Lampião não era ser um jornal exclusivamente homossexual... ele queria
tratar a voz das minorias sociais e políticas. Nesse sentido, tinha a questão do índio,
do negro, das mulheres, dos homossexuais. Porém, era muito complicado porque os
outros movimentos - movimento negro, movimento feminista - tinham pessoas ditas

485
respeitáveis (intelectuais) ligadas aos movimentos de esquerda e elas não queriam se
comprometer com um grupo homossexual... não queriam misturar as coisas. Neste
caso, o preconceito ainda era muito forte! Por isso a idéia de um jornal das minorias
não vingou. Os únicos que falavam das minorias eram os homossexuais... nós
escrevíamos sobre tudo! Quando se falava em feminismo era uma lésbica que
acabava fazendo. Não era porque o jornal não quisesse, mas porque as pessoas
ligadas à outros movimentos minoritários simplesmente se afastavam... com medo de
ser identificada com a causa homossexual. Isso é uma coisa engraçada!!!
O jornal tinha uma tiragem média de nove mil exemplares. Era distribuído
basicamente no Rio de Janeiro e em algumas bancas de São Paulo e o encalhe era
pequeno - aproximadamente vinte por cento -, para uma publicação mensal essa cifra
não era considerável. É um encalhe muito bom, mas mesmo assim o jornal não
conseguia ir em frente. Nós não conseguíamos arrebanhar outros movimentos para o
jornal. Essa tendência do jornal acabou na metade de sua existência, então ele se
tornou basicamente homossexual. Não existiam colaboradores dos outros
movimentos.
O Lampião surgiu da reunião de um grupo que queria se sintonizar com um
momento: a “abertura política”. Ele estava ligado mais na questão do movimento
artístico, da liberação da censura do que a criação do movimento homossexual. O
jornal não articulou os grupos de militância homossexual porque não era um espaço
para reuniões dedicadas a esse objetivo... ele nunca promoveu nenhum debate sobre
a homossexualidade. Essa postura era algo que sempre questionava e achava
estranho. O Aguinaldo era o editor do jornal, a pessoa que basicamente o conduzia e
ele não gostava deste tipo de atividade.
Em 1977, todos os movimentos sociais começavam a se organizar: o
movimento estudantil, o movimento negro - sendo estruturado ao longo dos anos
setenta -, o movimento feminista - já estruturado -, havia um trabalho com os índios,
assim como a atuação das Comunidades Eclesiais de Base... isso tudo já existia!

486
Porém ainda estávamos sob censura, não havia um veículo onde se pudesse colocar
essas questões.
Da reunião do núcleo fundador do Lampião surgiu essa vontade de criar um
jornal, cujas páginas pudessem dar voz a todas essas tendências... isso foi importante
para aquele momento do processo de abertura democrática. O jornal precedeu a
anistia que ocorreu um ano depois de sua existência. O Lampião fez a primeira
grande entrevista com o Gabeira, falando sobre a tanguinha que ele usara, falando
sobre comportamento e coisas do gênero... tudo fora trazido pelo chamado “Verão
da Abertura.” O Lampião já existia há um ano.
O Lampião foi premonitório, ele antecedeu a esses desdobramentos e pode ter
servido de pontuação, mas ele não organizou esses acontecimentos... em momento
nenhum! Talvez eu tenha que corrigir isso mais adiante! Depois de um certo tempo,
começaram a surgir alguns grupos homossexuais. O jornal passa a falar sobre os
grupos, mas não abre suas páginas... não dedica artigos! Na verdade, ele até falou do
SOMOS da Argentina, mas não era um jornal voltado à militância homossexual. É
claro que quando os grupos começaram a surgir começamos a receber suas cartas e
endereços, então o jornal passou a publicar uma coluna com o endereço dos grupos,
pedindo aos grupos novos que também mandassem os seus endereços. Era uma
maneira de informar a quem quisesse interagir com os grupos de militância.
O jornal foi cobrir o Encontro Nacional de Grupos Homossexuais
Organizados (EGHO) que ocorreu em São Paulo, através de militantes que
colaboravam com o jornal como eu, João Silvério Trevisan, Dolores Rodriguez e o
Francisco Bittencourt... este último era o representante do Lampião. Entretanto, o
jornal não estava ali organizando, dando patrocínio ou apoio. Não existia isso no
Lampião, em momento nenhum isso pode ser observado... o jornal não organizou
nada! Ele participava como jornal mesmo, abrindo espaço onde tinha que abrir.
Nas páginas do Lampião quando surgem manchetes como “Bichinhas brigam
pelo poder”, elas expressam o desprezo que o Aguinaldo Silva tinha pelos

487
movimentos homossexuais. Ele igualava o movimento, por exemplo, ao movimento
do PT que estava se formando... no início do partido! Como se o movimento
homossexual fosse um partido e quisesse brigar com o PT, com o PMDB ou o PDS
da época e tomar o poder. Neste caso era um desprezo explícito do Aguinaldo Silva
pelo movimento homossexual em contraponto à idéia dos homossexuais se liberarem
através do seu cotidiano: estarem ocupando a rua, dando pinta, namorando... sei lá!!?
Pela imagem que o Aguinaldo nos passava, ele não achava que o movimento
homossexual pudesse levar a algum lugar. Aliás, ele dizia: “- Vão fazer uma
passeata pra todo mundo levar porrada ali mais adiante!!”.
O Aguinaldo tinha uma postura muito crítica aos movimentos. Não sei se ele
enquanto jornalista teve alguma experiência desagradável com a esquerda!? Se for
esse o caso, talvez ele tenha levado isso para o Lampião. O Aguinaldo era meio
ácido quando referia a presença dos grupos no jornal. Essa postura começou a criar
um grande racha do jornal com a turma de São Paulo, liderada basicamente pelo
Trevisan. João Silvério Trevisan era um ativista homossexual... como continua sendo
até hoje! O Trevisan queria o jornal voltado para a vertente da militância, enquanto o
Aguinaldo afirmava: “- Que nada! Isso é besteira! Não vai vender jornal. Se
fizermos isso o jornal não sobrevive um mês! Ele vai virar um veículo oficial do
movimento homossexual... não tem que ser assim!!!”
Não era um veículo do movimento homossexual porque o Aguinaldo editava
o jornal, ele levava o Lampião nos braços até o Jornal do Comércio para ser
impresso... no carro dele! O jornal não tinha como sustentar o aluguel apesar do
Lampião ser uma empresa. O Aguinaldo alugava uma sede para o Lampião no Rio...
com esta estrutura ele dava o tom que queria ao jornal. Logo nos quatro primeiros
números, havia mais artigos tentando resgatar uma dignidade da homossexualidade,
artigos de intelectuais, não só brasileiros, mas principalmente europeus... espaços
dedicados a arte homoerótica!

488
Depois o jornal começou a mudar, começou a usar e abusar de muitas
expressões do gueto... intensificando essa tendência! Neste ponto, começou a
divergência de algumas pessoas com o Aguinaldo... O Aguinaldo achava importante
usar todas as palavras para esvaziar o seu conteúdo pejorativo! Ele acreditava que o
desgaste das expressões negativas poderia acontecer caso as usássemos
constantemente. Parece que era uma discussão que o movimento americano
conduziu e também provocou um racha lá. Enquanto outra vertente, pelo contrário,
achava que o jornal deveria tratar a questão com mais dignidade. Nesse sentido, o
Aguinaldo falava: “- Não! E a bichinha de Madureira? Ela lê Sartre!? Ela vai ler
Daniel Guérin?”...
A capa do jornal expressava um aspecto que poderia não coincidir com o
conteúdo. Eram usadas expressões como a bicha, o viado... tanto que a festa de
aniversário do jornal chamava-se Bixórdia. Esse neologismo fazia um paralelo com
mixórdia... para indicar um local onde acontecia de tudo. Isso deixava o Clóvis
Marques, o próprio Peter Fry que é professor da UFRJ e o Trevisan... assim,
indignados! É claro, Aguinaldo não era o dono do jornal. Quando o João Silvério
Trevisan mandava um artigo, o Aguinaldo tinha que publicar, mas era um briga
louca!! o Darcy Penteado era meio conciliador. Ele costumava falar assim: “- Pô!
Não precisa disso não!”... tentava apaziguar as desavenças. Assim, nosso jornal foi
andando e resistiu ao processo contra o Antônio Chrysóstomo.
No jornal existe o primeiro rompimento com a visão moralista, mas ocorreu
um problema na metade de sua existência. Justamente quando a “abertura” está
clara, o jornal já está numa fase tranqüila definido como um jornal basicamente gay,
usando na capa a palavra viado, bicha, indo para as bancas, usando palavrões no seu
texto, a exemplo do Pasquim e do Repórter, ocorreu um problema que caiu como
uma bomba no jornal e o desestruturou: o processo contra o Antônio Chrysóstomo.
Até hoje acredito que os membros não tenham um consenso sobre o fato,
confesso que também não tenho uma opinião formada sobre essa história, mas

489
alguns acusavam o Chrysóstomo e outros o defendiam... alguns membros tinham
medo de ser envolvidos nesta situação.
O Chrysóstomo era um jornalista de temperamento muito forte, tanto que
brigou com uma parcela significativa do pessoal envolvido com a produção da MPB.
Pessoalmente, ele escrevia artigos críticos no jornal O Globo... pixando mesmo!! Às
vezes ele extrapolava em relação ao comentário sobre um trabalho, atacando
diretamente a pessoa responsável por sua produção e com isso amealhou uma ordem
de inimigos enorme.
Nessa história do processo parece que uma vizinha o teria denunciado por
maus-tratos a uma garota que ele adotou. Por sinal, a menina era filha de uma
mendiga que ficava na porta do prédio onde era o Lampião. Essa pessoa parece ter
sido uma cantora: Aline. Junto com Chrysóstomo já foi para o limbo... nunca mais se
ouviu falar dessa cantora. Ela chegou a lançar dois ou três discos, mas nunca mais se
ouviu falar em Aline.
Com o processo começou o inferno, o Chrysóstomo foi preso e depois
processado. Nessa época, pessoas como Francisco Bittencourt, Clóvis Marques,
Darcy, ficaram preocupadas. A preocupação era que todos fossem incriminados por
envolvimento com menores... e foi barra pesada!! A partir daí o jornal basicamente
era do Aguinaldo. Isso aconteceu no último ano de existência do jornal... foi no final
de 1980.
No ano em que o Aguinaldo começou a trabalhar para a Rede Globo de
televisão, escrevendo o Caso Especial, depois foi ser redator do programa Plantão
de Polícia. Ele começou a se afastar, deixando o jornal nas minhas mãos, nas mãos
da Dolores Rodriguez, do Aristides Nunes e do Francisco Bittencourt... aparecendo
poucas vezes na redação, basicamente para “fechar” o jornal. Nessa fase eu já era
redator, diagramava o jornal, fazia a arte final. Comecei a arrumar anúncios para
ganhar o dinheiro necessário a sobrevivência do Lampião e para receber alguma
coisa. Nós tínhamos que ganhar dinheiro!! Para sustentar as despesas do jornal!

490
Nessa mesma época, a briga entre o Aguinaldo e o João Silvério Trevisan se
acirra. O Aguinaldo passa a não publicar mais os artigos do João Silvério, dizendo
que eram coisas que não tinham o menor interesse e que ninguém queria ler... até
chegar ao ponto de ataques pessoais!!! O João Silvério achava aquilo um absurdo e
mandava mais artigos, alguns chegavam a ter dez laudas... dou risadas porque eram
verdadeiros ensaios! O Aguinaldo não publicava e começava a briga pelo telefone.
Isso aconteceu até o ponto de torrar o saco e todo mundo acabar desistindo.
Nesse meio corria o processo contra o Chrysóstomo... aquela história ainda
em inconcluso! Quando entramos no ano de 1981, o Aguinaldo resolve acabar com o
Lampião, dizia que estava insatisfeito, queria ganhar dinheiro... que trabalhava,
trabalhava e aquilo já não lhe dava mais tesão. Então, tentando ganhar dinheiro, o
Aguinaldo resolve montar uma revistinha que teve dois números, chamava-se
Pleiguei... mas foi um fracasso!!!
Nessa questão do processo, não podemos dizer que era a repressão do sistema
porque o argumento era moral e bons costumes. Não foi o ministério público que
iniciou o processo. Não recordo exatamente se foi alguma mulher... ou algum
senhor, advogado, que resolveu instaurar um processo contra o jornal!? Essa pessoa
até podia ser de direita, mas foi uma manifestação da qual não observo nenhuma
ligação organizada. Posso estar enganado, não tenho elementos para avaliar, mas até
onde conheço, não havia um movimento específico, explícito contra o jornal. Havia
uma pessoa raivosa, assim como pessoas que vêem a televisão e acham que tem
muitas cenas de sexo, começam a bombardear e a fazer movimento. Esse processo
partiu de um movimento deste nível... não de uma repressão da ditadura.
Sobre o fato da esquerda querer cooptar os homossexuais, havia a
Convergência... os trotskistas sempre se interessavam pelas causas minoritárias.
Neste caso, não só homossexuais, como negros, mulheres. Eles apoiavam a idéia
trotskista de revolução permanente. Quando Trotsky era parceiro de Lênin, ele já
colocava essas questões.

491
No Brasil, a Convergência Socialista tentava fazer isso. Tanto é que dentro da
Convergência tinha uma facção gay, tinha um núcleo feminista. Era engraçado
porque no grupo SOMOS de São Paulo existia uma facção que chegou a sair: a
Facção Gay da Convergência Socialista. Tratava-se de um grupo trotskista que
editava um jornal chamado Versus... muito bom! Nos dez primeiros números foi o
melhor jornal de cultura editado no final dos anos setenta. Parece que isso foi
transferido para o PT... a Convergência era uma das organizações que compunham a
colcha de retalhos deste partido.
A homossexualidade parece-me uma preocupação da esquerda, não da direita.
No PMDB não havia espaço para discussão... apesar de um ou outro político de
direita se manifestar ou dar seu apoio. Naquela história da constituição, por exemplo,
quando quiseram colocar “para que não haja nenhuma discriminação de sexo, raça
ou identidade sexual”, alguns políticos de esquerda eram simpatizantes e até votaram
a favor, mas o partido em si não apoiou essa causa. Acho que o Partido dos
Trabalhadores trabalha com essa questão, faz essa cooptação, mas cooptação parece
um termo meio pejorativo... na verdade ele trabalha mesmo. O PT tem um trabalho
interessante com a questão homossexual.
Há algum tempo atrás existia um grupo homossexual de operários no ABC
ligado ao PT. Os próprios homossexuais dirigiam o grupo, não era nenhum
heterossexual que fazia esse trabalho. Também não quero estabelecer divisões...
imagine ter grupos de atuação separados!? Ao meu ver o processo acontece em
conjunto.
É claro que há uma repressão específica... não podemos ignorar isso. Há
repressão ao comportamento homossexual, à identidade, mas também não é se
isolando nos guetos ou criando uma luta muito particular que iremos resolver o
problema... é uma opinião muito pessoal! Acho que a forma de atuação tem que
estar envolvida com outros segmentos... pois tudo faz parte da sociedade. Neste
sentido, estou falando da estrutura existente. É tudo a mesma coisa, senão fica-se

492
isolado como na sociedade americana: “- Aqui é o espaço do negro! Ali começa o
espaço do chicano! Mais ali naquela rua começa o espaço de não sei quem...” Não se
visualiza todo o conjunto, mas os pedaços.
Pelo que se percebe, a sociedade brasileira não comporta esse tipo de divisão,
apesar de tudo há uma tolerância. A sociedade brasileira é muito mais tolerante com
as diferenças. Não estou negando a discriminação, mas do pouco que conheço,
comparando em relação à Europa, em relação aos Estados Unidos, o brasileiro é
muito mais tolerante. Por exemplo, quando o problema está na sua casa pode haver
brigas, mas a sociedade em geral tolera o viado na casa do vizinho. Não há riscos de
tomar porrada... é claro que sempre tem os “skinheadizinhos” da vida. Têm esses
“grupinhos” e tal, mas é muito menos do que nos Estados Unidos!
Nos anos setenta, a esquerda não levantava a bandeira da liberdade para os
homossexuais. Ela não oferecia a liberdade porque não tinha condições... ou a
esquerda era clandestina ou estava nos movimentos sociais - por exemplo: na
associação de moradores, no sindicato, na associação de escola -, mas não existia
enquanto partido legal. As organizações clandestinas não tinham voz... então essa
discussão sobre homossexualidade nem era colocada.
Esta preocupação surge com a “abertura”, à época que deu-se a formação do
núcleo de origem do Partido dos Trabalhadores. Porém, o Partido dos Trabalhadores
é interessante porque já nasce fazendo uma crítica ao socialismo real.
No PT havia uma diversidade de trotskistas, stalinistas, marxistas-leninistas,
enfim uma gama de tendências. Entretanto, sempre se fazia uma crítica a questão
homossexual: “- Não, Cuba é importante, mas tem que haver uma democracia em
relação a homossexualidade.” Havia uma crítica à Albânia e à própria União
Soviética. Porém, pelo menos na minha vivência, além da crítica que percebi, acho
que não ofereceram essa liberdade. Os mais ortodoxos NÃO OFERECIAM
MESMO. O PC do B, pelo que lembro do camarada Even Roxa e sua tribo, queria
mais era botar viado para trabalhar na lavoura... e não ofereceram mesmo! Talvez

493
hoje com a expressão que sobrou do PC do B, com a Jandira Fegali... ela tem um
discurso diferente, mas não era assim até pouco tempo.
Por outro lado o movimento homossexual sempre deu porradas em Cuba no
sentido político. Sem querer se colocar como um movimento de direita, mas sempre
deu porradas... sempre! Participei pouco no número do Lampião dedicado à questão
da homossexualidade em Cuba porque estava fora, mas sei que boa parte do material
foi trabalhado pelo Francisco Bittencourt e pelo Aguinaldo. Em pouco tempo, eles
conseguiram receber artigos... confesso que participei pouco dessa edição, não
saberia dizer a origem dessa pauta...
No dia a dia comecei a absorver as atividades do jornal porque tinha muito
trabalho a fazer. Primeiro fui colaborador, depois me tornei redator. O jornal não
tinha dinheiro para pagar ninguém, mas fui ficando ali... era como um bar que
comecei a freqüentar todo dia. Então, fui fazendo os amigos... e naquele dia se não
fosse a redação para conversar, parecia que não tinha feito nada. A visita ao
Lampião diariamente era quase um vício. Dolores Rodriguez era a pessoa que, junto
comigo, mais freqüentava a redação. Era a única mulher, lésbica, que trabalhou na
redação como colaboradora permanente... talvez ela tenha escrito menos. Neste caso,
começamos a absorver tudo.
Das mulheres que participam... há muitos artigos da Leila Míccolis. A Leila
conhecia o Aguinaldo, mandava colaboração, mas não participava das reuniões de
pauta... não tinha essa relação com o jornal! Ela estava no SOMOS/RJ, depois
participou no AUÊ em Vila Isabel. Aliás, ela estava na briga do SOMOS/RJ que
acabou num racha que deu origem ao AUÊ... no meu modo de ver foi algo
totalmente personalístico. A Leila junto com o Eduardo Neiva queriam formar um
grupo que começou na casa deles: o SOMOS/RJ. Eles queriam um grupo para eles,
porém o grupo não comportava mais ser da Leila e do Eduardo. Já era um
movimento, tinham cento e tantas pessoas que dispunham a se reunir, discutir, fazer

494
atividades. As reuniões na CEU - Casa do Estudante Universitário - tinha gente pra
burro.
O que lamento é que se brigou muito, tanto no jornal quanto no movimento.
As brigas para ser a liderança é que matavam. Acho que isso fez com que se
realizasse pouco. Hoje todo mundo comenta que foi importante: “- Ah! fantástico!
Ainda na ditadura teve um grupo com cem pessoas!”... fizemos um encontro, mas
entendo que fizemos pouco e quase nada foi registrado.
A maior parte do arquivo do Lampião ficou com o João Silvério Trevisan. Era
um arquivo com recortes, carta dos leitores, fotos do Lampião... eram fotos que
recebíamos. Havia também alguns livros. Pelo menos oitenta por cento do material
ficou com o João Silvério Trevisan. Isso foi um acordo feito com o Aguinaldo com o
final das atividades do jornal. Fiquei meio puto porque fui eu que organizei aquilo.
Acho que deveria ficar com o material... mas tudo bem!! O João Silvério Trevisan
chegou a fazer um trabalho muito interessante, usando boa parte daquele material em
um livro de ensaios sobre a homossexualidade que saiu pela Max Limonad... não
recordo o nome agora... Devassos no Paraíso.
Em relação a memória do movimento, o João Antônio Mascarenhas ficou
com uma parcela do material sobre o início da história dos grupos de militância,
assim como a Leila e o Eduardo devem ter a outra. O Eduardo Guimarães ficou com
uma parcela maior que a Leila porque participou um bom tempo, o João Carneiro
também deve ter outra parcela. Isso ficou meio perdido porque nesse período muitas
pessoas morreram de AIDS. Escreveu-se algumas coisas, alguns textos, alguns
relatórios... até sobre o Primeiro Encontro. Desta forma, o material ficou meio
disperso. Acredito que ainda temos que resgatar esse material para se ter idéia da
formação dos grupos, do que se discutia, enfim do que foi a origem do movimento
homossexual.
Basicamente fiquei com algumas coisas - como cópias de documentos -, mas
doei tudo que tinha... doei várias coisas do movimento político para a Fundação Rio,

495
onde fica o Centro de Cultura Alternativa... na época era organizado pela Maria
Amélia Melo. Doei exemplares do Lampião, os manuais da campanha da anistia. O
engraçado é que ninguém queria aquele material. Doei tudo porque já não tinha mais
lugar para guardar, era muita coisa. Sou como traça, adoro papel... vou recrutando
tudo!
Eu tinha coleções significativas do jornal. Agora esse material está num lugar
onde pode ser consultado. Fiz questão de fazer uma doação completa para a
biblioteca da ABI, outra para a Biblioteca Nacional, como forma de se ter o jornal
para consulta em algum lugar. Caso contrário, não haveria em nenhum desses dois
lugares. Acho que são locais de referência para ponto de consulta. Nos dois lugares,
já existiam alguns números esparsos, mas eu levei a coleção completa, do número
zero ao 37, para eles.
O Lampião morreu antes do tempo! No que diz respeito à discussão política,
naquele tempo a grande imprensa estava tomando o espaço da imprensa alternativa.
O que aparecia nas páginas do Opinião, do Movimento passaram para as páginas
políticas do JB e da Folha de São Paulo, ou para os suplementos especiais desses
jornais. Porém, a questão do comportamento, em relação à homossexualidade, só
começa a aparecer no final dos anos oitenta. Liderada pelo jornal Folha de São
Paulo. Foi o primeiro jornal que começa a tratar nos seus cadernos sobre cultura e
cotidiano... porque viado deixa de ser cultura e passa a ter o cotidiano! Mais ou
menos quando ocorre a campanha pelas diretas... ou mais no final dos anos oitenta
Parece-me que isso tem a ver com a entrada do Martinar Suzuki para o jornal.
Então, começa a ocorrer uma discussão, por exemplo, com matérias sobre casais
homossexuais. Não há mais aquela ótica dos homossexuais como doentes,
pervertidos, mas do cotidiano dessas pessoas que são homossexuais. Isso só começa
a aparecer no final dos anos oitenta. Neste caso, observa-se que este espaço ficou
vazio de 1981 até o final dos anos oitenta.

496
O jornal acabou antes do tempo. A imprensa se referia aos crimes
homossexuais ou então os colocava no caderno de cultura... porque eram os
homossexuais ilustres, os artistas expoentes de alguma coisa ou então quando se
referia a produção de TV, eventualmente um filme. Porém, não havia uma cobertura
sobre o comportamento. Quando surgiu a AIDS, as matérias tornaram-se
reacionárias. De um modo geral, no Brasil todas as empresas jornalísticas são
familiares, devido a este fator talvez a imprensa brasileira sustenta esse ranço
reacionário. Os grupos familiares custam a tratar qualquer outro comportamento,
cuja forma fuja ao padrão tido como normal. Pode ser qualquer coisa, não precisa ser
especificamente a homossexualidade. Neste caso, eles demoraram a tratar do
assunto... o Jornal do Brasil até hoje não trata!
Por exemplo, a cobertura da ILGA... não houve!! Cobriu-se os travestis:
“- Ah! Que gracinha do pessoal que vai de patins pra avenida.” Cobre-se uma parte!
Entretanto, a parte política que seria interessante, não se cobre. Neste sentido, o
jornal fez uma falta muito grande. Hoje em dia até há publicações, como o Nós Por
Exemplo que é o jornal de maior permanência depois do Lampião, mas não conheço
as pessoas que o fazem. Tenho respeito pelo trabalho deles, mas é um jornal que não
consegue ter grande expressão.
A revista Sui Generis, ela está no seu número cinco, é a primeira revista no
Brasil sobre o tema... uma revista para os homossexuais classe A! Ela também não
tem expressão como publicação homossexual... não consegue ser!! Até hoje, ainda,
temos esse buraco. É lamentável o jornal ter acabado. O João Carlos Rodrigues, uma
pessoa importante que colaborou muito para o Lampião, sempre comentava isso:
“- É um absurdo! Nada foi colocado no lugar do Lampião! Não existe nada... nem a
grande imprensa absorveu isso!!!”
No Lampião havia intelectuais, profissionais de imprensa e todos eram
homossexuais que escreviam sobre as questões homossexuais... dando a sua visão.
Com uma ótica profissional de jornalista. Isso não existe hoje em dia!! O Nós Por

497
Exemplo não tem esse perfil. São até homossexuais, mas não são jornalistas... é um
pouco meio amador. A Sui Generis nem se fala! Acho que ela pega uma outra coisa,
ela quer ser a Marie Claire Gay.
O jornal tratou da questão homossexual desde o início, mas ele virou
exclusivamente homossexual da metade de sua vida em diante. Os redatores do
jornal, se considerarmos o grupo do Rio, trabalhavam muito com o cotidiano dos
guetos. O que seria o dia a dia na rua, no gueto, na boate, tanto é que num
determinado momento, vem uma sucessão de matérias - Prostituição. Hotéis.
Masturbação -, procurando ter a maior abrangência possível: saunas, roteiros de
lugares de pegação. Entretanto, não era comum ver pessoas com o jornal debaixo do
braço. Nós tínhamos um retorno, sabíamos que havia um público significativo entre
uma parcela mais intelectualizada, mesmo que criticassem aquela forma de se
comunicar ... às vezes tida como “chula”.
Hoje em dia, caso se pergunte às pessoas de um nível de informação mediano,
com escolaridade de primeiro grau, talvez essas pessoas não se recordem do jornal.
Mesmo pessoas da minha idade, com trinta e sete anos que seria o público da época,
elas não se lembram do Lampião. Assim, acredito que não atingia muito, apesar do
Aguinaldo impor essa linha editorial ao jornal. O jornal atingia um público mais
intelectualizado, talvez mais informado, como o pessoal que estivesse ou na
universidade ou tivesse alguma informação prévia... acho que não atingia o gueto em
cheio! O jornal comia nas pontas dos guetos, atingia só uma parcela. Atendia mais
ao pessoal que tinha alguma informação e queria saber mais.
Mesmo em seções mais populares como Troca-Troca, para troca de
correspondência entre leitores, é interessante porque eu tinha dúvida sobre a eficácia
desta seção. De vez em quando eu botava um anúncio com o meu endereço,
inventava um anúncio com um pseudônimo, por exemplo “Amante grego”, este foi
um dos anúncios que botei lá, com as descrições... recebi para mais de duzentas

498
cartas!!! Pelo perfil dessas cartas, foi possível observar que havia pessoas
comprando o jornal só para ler a seção Troca-Troca.
A minha descrição não era elitista, mas era bem abrangente para ver o que
chegava, então escrevia: “Ah não! Tô a fim de foder mesmo. Tenho um pau
grande”... e coisas do gênero. A maior parte das cartas eram de pessoas que estavam
na universidade. Eram pessoas bem articuladas. Pelas cartas percebia que tinham
informação. É engraçado, nunca tinha pensado sobre isso... é uma questão
interessante. Se o jornal atingia o gueto? Acho que pelas minhas primeiras
impressões, parece-me que ele comia pelas beiradas mesmo... ele não atingia o gueto
a fundo.
No movimento todos liam o Lampião. As pessoas do gueto chegaram a
participar do movimento, os grupos eram bem ecléticos... O SOMOS/RJ era bem
eclético. No SOMOS/RJ, havia dificuldade para estruturar o grupo de estudos,
porém o grupo de eventos e festas transbordava. Nós percebíamos que poucas
pessoas queriam discutir a homossexualidade, elas queriam mais era ter um lugar
onde seguramente pudessem flertar com pessoas interessantes. Ali, então, poderia se
estabelecer um ciclo de flertes, e de relações, sem ter que ir para o gueto expor-se...
acho que no grupo era bem diverso.
O perfil destas pessoas que freqüentavam o grupo, eram daquelas informadas
com o movimento lá fora. Elas queriam estabelecer um parâmetro com o Brasil, ou
eram pessoas que tinham dificuldade de se assumir enquanto homossexual, neste
caso pessoas tímidas que vinham discutir ou porque tinham dificuldade de conhecer
alguém. O pessoal que dava a cara no mundo representava uma parcela reduzida...
isso também é interessante.
Assim que terminou o Lampião, o movimento começou a se fracionar. É
engraçado porque o Lampião não tinha uma gerência, mas quando o jornal acaba,
começa o fracionamento dos grupos. No Rio, o SOMOS/RJ se esvazia
assustadoramente, em São Paulo o SOMOS/SP se extingue. Parece-me que era o

499
momento, talvez pudesse ser alguma coisa conjuntural, mas que não sei precisar!
Talvez com a “abertura”! Acho forçado dizer que o fim do jornal tenha provocado o
esvaziamento dos grupos... jamais diria isso! Formalmente, esse jornal não adotava
essa postura. O jornal e o movimento estavam distanciados. Nesse final do Lampião,
nem notícia de grupo tinha mais! O Aguinaldo não queria saber de grupo nem
pintado na sua frente. Não sei se outras formas de expressão começaram a surgir
porque nos anos oitenta começou a ocorrer uma liberação. Apesar da AIDS, a
homossexualidade invade o espaço urbano de forma mais efetiva... ela deixa de ser
só o gueto.
Hoje, já anos noventa, é muito mais comum ter homossexuais em qualquer
lugar, objetivamente se expressando sem o menor problema, seja em bares ou nos
espaços culturais. Não é mais necessário ir só para a boate gay ou no barzinho gay.
Atualmente, paquera-se em qualquer lugar... pelo menos no Rio de Janeiro, conheço
pouco São Paulo! No Rio de Janeiro acontece isso em qualquer lugar, num bar,
numa disco ou num espaço dançante. Há uma mistura muito grande. Isso começou a
ocorrer dos anos oitenta em diante.
Nos setenta não havia isso, ainda tinha porrada por parte da garotada... apesar
da paquera com os meninos da aeronáutica, era diferente! Hoje a coisa está mais
diluída. Porém, no começo dos anos noventa, passa a existir um negócio que não
consigo classificar como grupo... é algo bem mais pessoal: o Triângulo Rosa. Ele é
liderado por um psicanalista chamado Paulo Fatal... isso no final do SOMOS/RJ. No
caso de se fazer uma pesquisa em jornais, de 1982 até o final dos oitenta, este
psicanalista se intitula o porta-voz dos homossexuais. Os jornais sempre gostam de
ter o porta-voz de alguma coisa. Desta forma, no Rio era sempre o Triângulo Rosa e
esse Paulo Fatal. No meu entender, ele era de uma boçalidade... o cara era muito
personalista e ficou nisso!! Houve o GGB que se manteve, mas que hoje é uma
estrutura una, o objetivo é o Mott. O João Antônio Mascarenhas também participou

500
da criação do Triângulo Rosa... criou de novo! Ele sempre participa na fundação,
mas, não sei o por quê, é engraçado que sempre sai depois.
O Lampião foi importante para o movimento como forma de divulgar que os
grupos existiam... nós dávamos os endereços! Na cobertura do Primeiro Encontro,
teve um número quase todo dedicado ao evento. O Primeiro Encontro ocorreu em
São Paulo, por volta de 1980. Parece-me que foi a única vez que o jornal, como um
todo, dedicou suas páginas para o movimento, mas ele não se mobilizou... isso que
queria deixar claro!!
O corpo editorial original sofreu transformações até o final do Lampião. O
jornal vai se fragmentando, os onze editores responsáveis começam a sair, o jornal
passa a ser escrito pelos colaboradores. Nos primeiros números era aquele tesão,
todo mundo colaborou, mas o jornal dá trabalho fazer porque ele tem um cotidiano.
Neste sentido, além de algumas pessoas não quererem assumir o trabalho do jornal,
elas também não queriam se expor. O Clóvis Marques era redator do Jornal do
Brasil, por exemplo, e foi uma pessoa que logo quis se distanciar do jornal... até
queria sair do Conselho Editorial! E depois de um tempo saiu!! O nome dele some
do Conselho Editorial... ele abre mão da sua parte. A Esquina Editora era uma
empresa, então todo mundo ali era cotista, todo mundo botou uma grana inicial para
aquilo existir.
O Peter Fry raramente colaborou, ele publicou alguns artigos, mas depois que
o jornal andou pelas próprias pernas, ele não participava mais. Acho que é
importante dizer que esses conselheiros não se reuniam para fazer uma reunião de
pauta, para decidir a linha editorial do jornal, enfim para decidir os rumos do jornal.
As pessoas que tocavam o jornal é que decidiam isso, eventualmente as pessoas que
não participavam mandavam uma sugestão de pauta ou mandavam seu artigo sem se
preocupar com uma pauta. E isso cabia ao Aguinaldo editar ou não... porque a edição
ficava na mão do Aguinaldo.

501
Na realidade as duas pessoas que tocavam o jornal eram o Aguinaldo e,
sempre ao lado dele, o Francisco Bittencourt. Os colaboradores mais freqüentes
eram o Alceste Pinheiro, eu, a Dolores Rodrigues, o Aristides, o Adão Acosta - que
fazia parte do Conselho Editorial, mas que depois era freqüente como colaborador e
não como gestor -, o João Carlos Rodrigues que escrevia de vez em quando - era
uma pessoa que colaborou muito com o jornal através de idéias, sugerindo muitas
pautas... foi um cara importante para o jornal.
Existia um intercâmbio com o pessoal do Gay Sunshine, através do João
Silvério... através do pessoal de São Paulo! Essa era a ponte com o movimento
americano, ou com o movimento europeu, através do João Silvério. Considero o
Trevisan a pessoa com a melhor visão intelectual do jornal, apesar de concordar um
pouco com Aguinaldo. Não totalmente, mas no sentido que o jornal tivesse a forma
que ele propunha, caso contrário não seria um jornal interessante, seria um jornal de
ensaios, neste caso teria uma abrangência muito menor... segundo meu ponto de
vista.
Eu participei no SOMOS/ Rio. No final dos anos oitenta, freqüentei o Atobá,
sediado em Magalhães Bastos, subúrbio do Rio. Um grupo que começou há muito
tempo, mas sempre ficou lá no cantinho dele. Eu o freqüentava porque gostava do
espaço, mas no final das contas já não queria mais participar do movimento... vamos
dizer que não tinha mais muito saco! Já tinha outros interesses e me afastei muito
das pessoas, menos de alguns amigos pessoais, os quais foram comigo para os
grupos de trabalho. Porém, algumas pessoas, como o Veriano por exemplo, vejo só
de vez em quando... encontrei-o recentemente na passeata da ILGA.
Afastei-me demais do movimento quando o jornal acabou. Sou um dos órfãos
do Lampião... se é que podemos dizer assim!? Não participei de mais nada. Não sou
mais um homossexual militante, dou risadas porque sou um praticante. Freqüento
todos os lugares, tenho curiosidade em saber tudo o que acontece - todo lugar novo,

502
toda publicação -, conheço muito gente, vou aos lugares, mas sem o compromisso de
antes com o movimento.
Neste período, estava nas minhas atividades como jornalista... fui cobrir
economia, trabalhando no Jornal do Brasil. Depois fui para o Jornal do Comércio.
Trabalhei de oitenta e três a oitenta e sete como sub-editor na Revista INFO. Uma
revista sobre informática. Então fui cobrir esta área. Depois, em oitenta e sete, fui
para a Universidade Federal do Rio de Janeiro... lá trabalhei no Núcleo de Vídeo,
num projeto de pesquisa da produção cultural dos anos oitenta. Atualmente, dirijo a
gráfica da universidade.
O modelo dos grupos dos anos noventa, em relação aos anos setenta, pelo que
vejo nos dias de hoje é diferente. Ele está menos preocupado com uma estrutura de
poder como naquela época. Hoje não se pergunta: “- Quem é o dono do grupo?
Quem vai conduzir a discussão?”... ou se afirma: “- Porque sou mais viado do que
você e posso te dizer como ser.” Parece que hoje tem menos isso! A questão está
mais voltada no sentido da associação... algo onde há atividades culturais e o
indivíduo se integra.
No que se refere a discussão política da homossexualidade, ela está diluída no
contexto, assim como estão um monte de questões. Depois da queda do muro,
muitos referenciais tido como paradigmáticos deixam de existir... ficam meio
perdidos! Neste sentido, acredito que os grupos voltaram com uma força muito
grande, não pela questão política, mas em função da AIDS. Trata-se de uma questão
de preservação dessa forma de expressão das pessoas. Assim, aproveitou-se a
situação para discutir um pouco. Porém, como as questões estão diluídas não há uma
pontuação. Nesse final de século, pós-moderno, tudo é um amalgama. Tanto é que
não se sente a expressão desses grupos, mas eles existem!!!
Nós tivemos um congresso internacional no Rio que foi importante, foi
bonito, mas não teve essa repercussão. As informações não conseguiram chegar no
gueto... e a culpa não foi dos meios de comunicação!! Não precisava de um Globo

503
ou de um Jornal do Brasil para fazer isso, parece-me que era necessário uma
mobilização política mesmo. Nesse sentido, ainda não há essa dimensão política
como existia antes. Os contextos, contudo, são diferentes.
Aquele encontro que fizemos em São Paulo, em 1980, teve uma repercussão
do cassete... não houve quem não falasse dele! Tivemos talvez uma repercussão
maior do que o encontro da ILGA... pelo menos em termos de relação com os guetos
e a mídia. Com exceção da Folha de São Paulo, o restante da mídia não deu a menor
importância. Nesse momento, a Folha tem um papel importante.
São questões das quais não tinha esse distanciamento. Pode ser que isso me
impeça de ter uma visão objetiva sobre o problema, mas de qualquer forma, como já
comentei, esse amalgama pós-moderno, essa coisa hedonista, abafe um pouco a
questão dos direitos, a questão da identidade, enfim as questões que são mais
importantes. Atualmente, as pessoas estão preocupadas com um espaço que lhes foi
dado, enquanto o espaço da coisa bonitinha do consumo, do corpo, do ser e não sei
mais do que.
O movimento está estagnado neste negócio, ele não conseguiu fazer a crítica
disso. O viado é mais um consumidor do pedaço, mais um potencial de consumo a
ser explorado. A revista Sui Generis é isso: “- Somos Consumidores”. Ao invés de
ocorrer um movimento de cidadãos, ocorre um movimento de consumidores. Não
interessa se inserir no plano social como indivíduo, mas interessa se inserir no
mercado enquanto consumidor. Basta ler as pesquisas que indicam: “-Ah! Os
homossexuais não se casam, então, tem uma reserva de dinheiro melhor para poder
gastar consigo e com seus namorados”.
É claro que isso acontece só para a parcela de classe média para cima. Nas
favelas, o contingente homossexual fodido está fora, continua sem nenhuma
identidade, continua absorvendo aquele padrão de homossexualidade marginal. Até
pode ser o modelo marginal, desde que seja aceito conscientemente, inspirando a
crítica: “- Ah! Eu sou assim!” Não aquela assimilação como resultado da

504
discriminação. Neste ponto, parece que não se conseguiu até esse momento trabalhar
essas questões políticas... nesses dez, doze ou quatorze anos de movimento!
Nos anos setenta não havia anúncios na TV, com uma estética objetivamente
homossexual, vendendo produtos. Naquela época, o movimento homossexual e o
Lampião não contribuíram para que o consumo se instalasse descaradamente na
sociedade... Imagina!!!? Não mesmo. Nos anos setenta nunca houve na novela das
oito um casalzinho de rapazes bonitinhos se manifestando. A discussão é
interessante, mas são bonitinhos, são de boa família, eles têm dinheiro... têm um
carrinho!
Não, o jornal e o movimento não contribuíram para isso. Parece que isso tem
a ver com a questão da conjuntura atual, com a questão do neo-liberalismo no
mundo, com essa questão da queda do muro... a globalização. As certezas políticas
ruíram um pouco, abrindo-se espaço para a questão do mercado. Hoje em dia, o
mundo inteiro fala em mercado. Ninguém fala mais em cidadania, em país, a questão
é o mercado. Como fazemos parte do todo, nós também somos pegos por esta forma
mais hedonista.
Não saberia explicar o por quê, mas o hedonismo sempre esteve próximo do
comportamento homossexual... talvez como uma forma de compensar a
discriminação! Desta forma, o homossexual tem que ser o melhor, tem que estar
bem, sempre construir uma imagem que os outros aceitem o tempo todo... Porém,
não resta dúvida que esta situação faz parte do melê desse final de século. Assim,
nenhum movimento está dando conta, estão todos perdidos: os movimentos de
esquerda, os sindicato, enfim... tudo! Os sindicatos também estão querendo ser
consumidores. Nas manifestações os caras dizem: “- Não! Queremos ser
consumidores também!!!”... não sei!!!? Parece que é mais um momento da história,
talvez mais adiante iremos falar um pouco melhor sobre este impasse.

505
. Nasceu no Rio de Janeiro (capital),
em 22 de março de 1952.

. Jornalista, Professor da área de


Comunicação na UFF.

. Estudos Acadêmicos: Cinema,


Autodidata em Jornalismo

Alceste Pinheiro.

506
Desde o primeiro contato, Alceste
Pinheiro demonstrou ser uma pessoa
determinada. Com um pedido categórico,
para que pudéssemos conversar ao telefone,
não poupou a outra pessoa que atendeu a
ligação ao mesmo tempo. Marcamos a
entrevista para um final de tarde. Semanas
depois nos encontramos em sua residência.
Apesar do apartamento ser num andar
elevado, o alarido pueril era ouvido ao
longe. Para contar suas experiências,
acomodou-se numa confortável poltrona, da
qual, sempre em nível de opinião pessoal,
teceu críticas contundentes ao coletivismo.
Com um tom de voz ríspido estilhaçou as
organizações políticas e os movimentos
sociais. No local, surgiu uma gata siamesa,
sem nome, que atendia simplesmente por
“Gata”. Com ar curioso, a gata rondava o
gravador. Alceste Pinheiro, pouco tempo
depois, a chamou batendo com a mão no
braço da poltrona. Ela pulou no colo de seu
dono, onde ficou até o final da gravação.

Rio de Janeiro, RJ,


20 de outubro de 1995.

507
“... não acredito que nenhum movimento tenha me dado algo, ou
tenha feito minha vida mais feliz, ou tenha melhorado as minhas
condições como homossexual: não fizeram absolutamente nada!!”

Meu nome é Alceste Pinheiro. Nasci em 22 de março de 1952, na cidade do


Rio de Janeiro. Fui criado no subúrbio, em Coelho Neto, onde praticamente vivi boa
parte da minha vida. Minha mãe e meu irmão vivem lá até hoje. Ela já está chegando
aos setenta anos. Em 1978, meu pai morreu com sessenta anos. Ele era um homem
de formação meramente secundária. Sempre preocupado com a educação dos filhos.
Dele, a única coisa que recordo é o fato de me colocar para estudar.
A minha geração ainda foi criada respeitando os pais, ao contrário da geração
atual. Na minha vida, por exemplo, jamais chamei o pai ou a mãe por você. Tanto
que até hoje chamo minha mãe de senhora, um tratamento característico da minha
geração. E me surpreendo quando encontro pessoas que tratam os pais
informalmente, nunca tive este hábito. Fui criado por uma família relativamente
severa. Por viver num bairro pobre e de periferia, tinha liberdade para brincar, com
muito espaço e segurança, então fui criado muito solto. Na minha família a única
obrigação era estudar.
Aprendi a ler em casa, com uma pessoa conhecida. Fiz o ginásio no Colégio
Pedro II e o Segundo Grau numa escola do Estado. Nunca tive experiências em nível
de organização política. Nunca fui dirigente de nenhum diretório, nem na escola
secundária, nem na universidade, não era algo que me preocupava. Minha
participação foi mais intelectual do que propriamente de ação. Politicamente, meu
pai era relativamente conservador, gravitando de uma posição da direita democrática
à esquerda, em função das circunstâncias políticas. Sempre fui uma pessoa

508
marcadamente de esquerda, mas no sentido meramente intelectual. Nunca tive
participação em grupos.
No que se refere a esta questão, enquanto algumas pessoas possuem
experiências de ação, com uma produção intelectual meramente reduzida, outras
conciliam as duas questões, atuam ao mesmo tempo que fazem uma intensa reflexão
intelectual. No meu caso nunca ocorreu isso. Sempre fui meio preguiçoso para agir.
Num certo sentido, acreditava ser perda de tempo atuar politicamente. Preferia
estudar ou me dedicar à algo mais prazeroso. Isso, contudo, não significa que deixei
de participar em reuniões de grupos. Estive presente em manifestações políticas nos
anos setenta e oitenta, mas nunca me juntei a nenhum diretório, a nenhum partido
político, porque não era o meu jeito. Nesta questão, sempre me considerei um
anarquista.
Se não me engano, entrei para a universidade em 1974. Meu objetivo inicial
era fazer publicidade, mas mudei para o curso de cinema. Apesar da minha
formação, trabalhei com jornalismo até 1990. Fui atuar nesta área por causa da
perspectiva de trabalho. Optei por terminar o curso de cinema, mas em função da
vigência profissional investi na formação jornalística. Pela época pensava: “- Não
vou trabalhar com cinema. Afinal de contas, ganho meu salário na área de
jornalismo. Assim, não vou ter possibilidade de mudar minha vida e começar tudo
do zero.”
Atualmente, acredito que foi enriquecedor, porém acho que não soube
conciliar bem essa questão. Na universidade, não quis estudar jornalismo
formalmente, porém por entrar no ramo tive de fazê-lo de maneira informal. No
início não tinha clareza do que fazia - por exemplo, ser reprodutor de posições e
interesses hegemônicos -, mas tinha consciência da posição que deveria adotar, ou
seja, democratizar o saber, a informação e o conhecimento. A minha formação
jornalística encerra uma visão social da profissão, do jornalismo enquanto

509
instrumento de transformação. Não era uma formação para o mercado, hoje em dia
teria profundas dificuldades com esta questão.
Quando escrevia talvez não tivesse objetivos claros, mas possuía uma certa
consciência que exercia uma função social, ligada a divisão do poder. De certa
forma, sabia que exercia uma função crítica enquanto jornalista. Afinal, aquele papel
me foi delegado esfericamente e deveria ser respeitado. Neste sentido, acredito que o
papel da cultura e da informação pode alterar rumos. Porém, não sei se considerava
como o caminho à solução dos problemas. O certo é que eu tinha consciência da
função que exercia no processo social.
Na minha vida nunca passou pela cabeça ter um diploma. Hoje em dia, toda a
sociedade prepara este espírito. A pessoa quer se tornar editor, se possível ir para o
aquário e em pouco tempo ser diretor. Acredito que a destruição da escola pública
gera conseqüências desta natureza. As escolas particulares estão imbuídas de
propagar o espírito competitivo, assim como a televisão, o cinema, enfim tudo
embute esta idéia de luta por um espaço no mercado. O principal objetivo é reservar
um lugar no mercado. Isto faz com que a vida dessas pessoas se torne mais difícil, a
sociedade é um funil apertado e quanto mais você se afasta da base, maior é a
seleção.
Antigamente era possível abrir mão do espírito competitivo, porém ele
prevaleceu e, aparentemente, continuará prevalecendo. Nunca tive problemas desta
natureza, não pretendia alcançar mais do que queria. Desta forma, acho que minha
geração perdeu, particularmente por não ter ambição. Hoje a ambição é elevada ao
posto de virtude, enquanto na minha época era vista como um vício. Sinto-me um
pouco derrotado porque idealizo a construção de uma sociedade mais justa, onde as
pessoas valham pelo que são e não pelo que têm.
Face a vitória do mercado, das idéias de Hayek, de Von Mise, acho que minha
geração se sente meio derrotada. Homens dos anos sessenta, setenta, com uma
consciência social bastante abusada, ainda vêm sendo derrotados. Embora não

510
perceba o desânimo deles, os vejo muito animados com a vida, satisfeitos,
conscientes que fizeram o que podiam. Pessoalmente, preferia uma sociedade
sustentada noutros moldes. Por esta razão, afirmo que minha geração se sente
profundamente derrotada.
Penso assim por experiência com o trabalho, convivo com jovens e os
observo. Essa nova geração, entre dezoito e vinte e dois anos, está profundamente
imbuída do espírito capitalista, possui uma visão de mercado, e o espírito
competitivo é muito acentuado. São pessoas que possuem uma relação diferente com
o próximo, muito aquém dos que compunham a minha geração. Os jovens de hoje
têm plena consciência do processo social, mesmo assim preferem abrir mão da ação
social que possa transformar a sociedade, preferem se conformar e fazer concessão
ao stablishment. Querem ser grandes jornalistas e grandes publicitários junto ao
mercado.
Comecei a trabalhar em jornais a partir de 1975. Estava passando pela rua, vi
uma redação, era do Diário de Notícias, e entrei: “- Olha, estudo comunicação.
Gostaria de ver como é a redação do jornal”. Comecei a trabalhar no jornal Diário de
Notícias. Em 1976, fui trabalhar no Globo, quando atuei na seção de esportes. Lá,
trabalhei até 1978. Coincidentemente, na época da fundação do Lampião, o
Aguinaldo Silva era redator no Globo. Ele sempre falava comigo sobre o assunto,
embora nunca tenha me convidado para ser um dos sócios do Lampião.
Sempre mantive relação com a grande imprensa, trabalhei em empresas como
O Globo, Jornal do Brasil, Editora Abril, O Dia. O Lampião foi minha única
experiência fora deste meio. Em 1979, me tornei sub-editor de esportes no Dia,
onde permaneci alguns meses. Quando saí fiquei disponível por algum tempo. Nesta
época fiz trabalhos como Free Lancer e comecei a fazer o Lampião. Se não me
engano, passei todo o ano de oitenta e parte do ano oitenta e um neste jornal.
Parece-me que foi uma experiência de um grupo de amigos. Não sei de quem
foi a idéia. Inclusive, uma vez estive numa reunião, na qual estavam algumas

511
pessoas que compunham o núcleo fundador: Aguinaldo, Francisco Bittencourt, Adão
Acosta, Gasparino Damata, Jean Claude Bernardet, João Silvério Trevisan, João
Antônio Mascarenhas e Peter Fry. Não me lembro se havia mais algumas pessoas. A
reunião foi em Copacabana na casa do João Antônio Mascarenhas.
Havia uma divergência, devido a proposta de João Antônio Mascarenhas. Ele
queria fazer um jornal prestador de serviços, para esclarecimento de homossexuais.
Neste sentido, o jornal seria produzido para aquele homossexual do interior, ele
poderia ler um livro e se esclarecer... a minha posição não era esta. Possuía uma
visão mais anarquista que a dele. Achava que o jornal devia ter uma atuação mais
ampla. Propriamente, não deveria ter uma ação política centrada neste meio.
Politicamente, o jornal devia ser mais conseqüente.
Em determinado momento, o Mascarenhas largou o jornal. Embora
continuasse efetivamente no expediente, não tinha mais nenhuma participação. O
Aguinaldo ficou o tempo inteiro editando e praticamente tomando conta do jornal. O
Francisco Bittencourt também estava junto. O Trevisan escrevia muito, assim como
o Darcy Penteado. Nesta fase, este era o principal grupo de editores do jornal. O
resultado era muito bom. Nesse período, evidentemente, se precisava de gente para
colaborar, para ajudar e para dar o informe. Foi assim que os grupos homossexuais
começaram a se aproximar do jornal e a ocupá-lo. No meu entender este foi o pior
período, em termos de qualidade e de resposta comercial do Lampião.
Um pouco antes da minha entrada, o jornal era um órgão instrumentalizado. O
Lampião era o porta-voz de grupos gays que existiam no Rio e São Paulo. O
Aguinaldo não gostava dessa idéia, posteriormente rompeu com esta prática. O
jornal passou inclusive a ser execrado por essas organizações. No tocante à política
mercadológica, isso representou um fracasso absoluto, porque não havia outro
público para substituir aquele que deixou de ser atendido. Nós tínhamos um público
que acabamos perdendo e não conquistamos outro. Neste período, o grupo em torno
do João Antônio Mascarenhas basicamente dominava o jornal. Eles o fizeram até

512
muito bem. Hoje em dia, passada a confusão, considerando, entre outras questões, a
experiência que possuo com jornalismo, o trabalho deles certamente contribuiu para
ampliar meu horizonte.
Nesta fase, entretanto, estava muito longe do Lampião, praticamente não fazia
nada, até intensificar a minha participação, eventualmente podia comprá-lo e lê-lo.
Acho que colaborei num número, contudo, minha participação era praticamente nula.
Foi a partir de 1979, quando fiquei sem trabalhar em grandes jornais, que senti
necessidade de fazer alguma coisa nesta área, cuja atuação se dava mais como um
fórum independente. Assim, voltei à ajudar o Aguinaldo Silva.
À época, encontrei o Antônio Carlos Moreira na rua. Ele era meu amigo
desde garoto, ainda nem pensava em estudar jornalismo. Eu o conheci na fase que
comecei a freqüentar o meio homossexual, entre 1972 e 1974. Nós freqüentávamos
um lugar em comum e acabamos nos conhecendo. Depois houve, enfim, o caso com
um rapaz que eu estava afim de namorar e o Antônio Carlos foi namorado dele.
Quando ele estava entrando para a universidade, encontrei com ele (Antônio Carlos)
que disse: “- Ah! Estou colaborando com o Lampião. Aparece lá... conheço muito o
Aguinaldo.” Foi o que aconteceu, acabei indo a redação.
No Lampião, participei de um grande impasse porque não havia uma linha
definida. Parecia-me que o estilo proposto pelo jornal debutava. A fórmula do
Lampião havia se esgotado. O jornal sofria, face aos homossexuais organizados,
uma crise de relação e de identidade. Havia muito dificuldade neste relacionamento.
Desta forma, as avaliações sobre o que fazer com o jornal se iniciaram. Era um
jornal que não possuía recursos financeiros. Enfim, era um momento que o jornal
vivia numa crise muito grande.
O Lampião surge num período que precede por pouco tempo o Grupo
SOMOS/SP, acompanhando, de certa forma, o início de suas atividades. Acho que o
próprio Trevisan montou este grupo, mas era um negócio que eu não concordava.
Depois surgiu o SOMOS/RJ, era um grupo de militância do qual eu estava afastado.

513
O Antônio Carlos participava do Lampião e do grupo SOMOS/RJ, junto com um
outro rapaz angolano que saiu do seu país. Havia uma ocupação do jornal pelos
grupos homossexuais.
O Antônio Carlos Moreira, por exemplo, participava no SOMOS/Rio e no
Lampião. Ele rompeu com o SOMOS, se não me engano, no momento em que o
grupo rompeu com o jornal, porque naquele momento ele achou que era mais
negócio ficar no Lampião. Então, nesse período já peguei um pouco do pessoal dos
movimentos. Antônio Carlos Moreira, esse rapaz angolano que não me lembro do
nome. A Dolores Rodriguez também veio nessa fase. Essas pessoas tinham
participação nas duas partes.
Eu não tinha nenhuma relação com o movimento homossexual. Ela sempre
foi muito conflituosa. Primeiro porque eu não gosto de movimento, nem de
associação, nem nada disso. Essas coisas não fazem parte do meu temperamento. Eu
gosto de executar o trabalho para não perder tempo com reuniões. Sempre achei que
os grupos são para quem tem vocação. Não é o meu caso. Nunca participei porque
não gostava da conduta e do comportamento daquelas pessoas, porém, isso é uma
posição muito pessoal. O meu contato com os grupos era apenas em função do
Lampião. Eu acabava tendo acesso às discussões, mas nunca fui de participar de
reunião de grupo para discutir, por exemplo, como se deve ser gay ou o que se deve
ou não fazer, não gosto dessas coisas.
Em determinada época se fez uma reunião de vários grupos organizados no
Rio de Janeiro. Eu fui como representante do Lampião, com mais outra pessoa da
qual não me recordo. Nessa reunião o pessoal do Lampião foi intensamente execrado
por essas organizações. Inclusive circulou um número em que atacávamos essas
organizações. Foi quando aconteceu a ruptura. Este período é caracterizado pelo
rompimento com os grupos. Eles passaram a fazer pressão no Lampião. O Aguinaldo
queria o rompimento, o que acabou acontecendo logo depois, embora o jornal
continuasse dando notícias dos grupos de militância. Na verdade, ele não queria mais

514
que o movimento engendrasse a pauta. Nesse momento, ele passou a fazê-la. E nós
fizemos um trabalho muito bom. Hoje em dia mesmo, quem visita as páginas do
jornal observa sua boa qualidade.
Por um lado, perdemos o apoio desses grupos que de alguma forma
sustentavam o jornal, por outro lado não conhecíamos o mercado “etéreo”. Hoje em
dia, trabalho paralelamente com o conceito de mercado e o de segmentação. Foi
depois desta fase que comecei a estudar mais profundamente a questão do
jornalismo, entre outras coisas, enveredando pela sua produção, administração do
jornal, foi assim que pude perceber os fatos e chegar a algumas conclusões.
Nós fazíamos um bom produto, mas tínhamos um mercado muito limitado.
Não se pagava pelo trabalho dos colaboradores, as pessoas não recebiam
basicamente nada. No final do jornal recebi alguma colaboração, mas durante muito
tempo trabalhei sem receber nada. Eu e o Antônio Carlos, por uma série de fatores
podíamos trabalhar no jornal. Eu possuía algum dinheiro, estava com vontade de
fazer aquilo e depois voltei a trabalhar em outro lugar, mas o jornal conseguiu se
sustentar por um bom tempo. Até que finalmente chegou um momento que não dava
mais.
Logo que cheguei, parte do grupo que deu origem ao jornal o havia
abandonado. O João Antônio Mascarenhas se afastou, por divergências políticas
com o Aguinaldo e o Francisco Bittencourt. O Bernardet nunca teve uma atuação
intensa e continuava distante. O Peter Fry, nesta fase, não possuía nenhuma ligação
com o jornal. O Adão Acosta estava envolvido com o próprio trabalho, atuando
como jornalista do Última Hora. O Gasparino Damata já era um homem doente,
parece-me que morreu pouco tempo depois. O Darcy Penteado sempre escreveu seus
textos, sempre mandava os artigos. A fase principal vivida pelo jornal se deu no
momento que este pessoal estava atuando. Assim, o jornal era feito no Rio pelo
Aguinaldo Silva e o Francisco Bittencourt e pelo Trevisan em São Paulo.

515
Há um período que o Trevisan se afasta, não formalmente, mas
informalmente. Ele passa a escrever menos ou quase a não escrever. Depois ele volta
a escrever um pouco, mas não tinha gerência sobre o jornal que era produzido.
Durante um período, a participação dele na hora de produzir, pautar, decidir o que
seria o jornal, foi muito pequena ou quase nenhuma. Ele volta, participa muito bem
do número sobre deficientes físicos e produz um belo texto no número sobre
prostituição masculina.
O Adão Acosta se afastou, mas a história dele era engraçada. Pela lei, a
empresa de cotas limitadas deve haver pelo menos um empregado. E o Adão Acosta
era formalmente o empregado do Lampião. Era funcionário com carteira assinada e
tudo. Como era uma questão pró-forma, ele nunca aparecia na redação. Ele
desapareceu por muito tempo. Quando percebeu que devia voltar, tentou se
rearticular, mas diferia das posições do jornal e as pessoas reclamavam.
Nesta fase, ocorre uma reestruturação do jornal, a partir do número trinta e
três muda o corpo de redatores. Isto parece ter sido uma decisão do Aguinaldo. Ele
resolveu mudar o expediente do jornal, mas foi uma questão política dele. Quando o
Trevisan se re-agrupou a nós, também defendeu fazer a mudança. O Aguinaldo e ele
estavam muito tensos, tanto que hoje os dois não se dão. Parece que de uma certa
amizade, houve um rompimento. Havia tendência à animosidade entre eles, um dos
motivos que os levou a se afastarem. Lembro que houve comentários meio
aborrecidos sobre um ou outro. Quando o jornal fechou, eles já estavam meio
rompidos. Esse problema se aguçou devido às posições do Aguinaldo.
O Aguinaldo pensa o seguinte: “- Ah, o cara foi assassinado. Ele sabia que
não devia levar o bofe pra casa. Se levou a culpa é dele”, ou: “- Ah, tem um cara que
está com AIDS. Ele sabe que não pode assumir práticas de risco. Se o fez também é
culpado”. O Trevisan achava isso um absurdo. Porém, o Aguinaldo tem uma visão
diferente do processo, acho que a história dele o conduziu a adotar este tipo de
posição liberal, ou seja: “- Você é responsável pela própria integridade. Trate de se

516
cuidar”. E isto me parece que também levou a uma ruptura bastante acentuada entre
os dois.
O Aguinaldo Silva praticamente sustentava economicamente o jornal. Na
época que cheguei, ele ainda trabalhava no jornal O Globo. Ele saiu depois porque
não pretendia permanecer naquele jornal. Muita gente acredita que ele saiu por causa
da televisão, não é verdade, ele saiu do Globo e foi se dedicar intensamente ao
Lampião. Então, ele saiu antes, até já havia feito alguns trabalhos para a televisão.
Mais tarde, ele conseguiu um contrato efetivo com a TV Globo.
O Aguinaldo decidiu rediscutir a idéia de jornal e começamos a pôr outro
caminho: “- Vamos fazer um jornal mais de reportagens e com menos questões
teóricas.” Nesta nova etapa do Lampião fizemos dois números antológicos, até hoje
os considero excelentes. Um sobre prostituição masculina, lembro que pautei este
número, o outro sobre o Ano Internacional do Deficiente Físico, uma idéia do
Aguinaldo. Este número se voltou à discussão sobre o sexo e deficiente físico. O
jornal teve bons resultados. O Lampião, neste caso, tornou-se mais informativo e
menos formativo. Possuía um número maior de reportagens e menor de panfletos.
Em vários aspectos, para nós era bastante gratificante fazer o jornal. Por
exemplo, sabíamos que nosso trabalho era interessante. Os jornalistas que conheciam
o Lampião, em geral, o consideravam um bom exemplo de jornalismo. Porém, no
que se refere ao mercado perdido, ele não foi reconquistado, nem substituído por
outro. Acredito que os próprios homossexuais, com uma visão política mais ampla
do processo, também não se interessavam pelo jornal. Eles preferiam ler o Opinião,
o Movimento ou seja que jornal fosse, mas não se interessavam por aquele tipo de
produção. Neste sentido, nós chegamos a um impasse que se dissolveu com o tempo.
Num exemplar que traz Lula na capa e noutro sobre Cuba, o Lampião quis
discutir o papel da esquerda, mas da liberdade sexual que a esquerda não levava em
consideração. Essa questão nos levou a indagar: “- Pô, mas que esquerda é essa?”.
Então, tratava-se de tentar fazer um viés pela esquerda. Na verdade, a grande

517
frustração de algumas pessoas foi a esquerda formal não ter dado a devida
importância ao jornal. Nessa época, ocorria a mudança de consciência das pessoas,
com relação a posição do Lula. No que se refere a este ponto, recentemente estava
vendo o Vicentinho na televisão dizer: “- Não, nós temos muito homossexuais no
sindicato. São os caras que mais trabalham.” Na verdade, estava sendo colocada a
questão da liberdade, não a questão da homossexualidade propriamente dita.
Na época se acreditava, sobretudo com base em estudos teóricos, que a maior
quantidade de mulheres ou homossexuais agredidos o era por operários e moradores
de periferia. Ao meu ver, não via o problema sob este prisma. Achava que em
lugares como o que fui criado, num subúrbio de periferia, a aceitabilidade era até
mais razoável do que numa classe média. Tinha essa impressão por experiência
pessoal. Passei uma certa época da vida freqüentando periferia e era mais aceito do
que na classe média. Mas como disse é muito mais uma impressão subjetiva do que
uma posição calcada em bases objetivas.
Recordo que ocorreu o problema das bombas em bancas de jornal, também
participávamos destas reuniões. Bastava as bancas venderem os jornais alternativos
para serem estouradas. Desta maneira, as bancas começaram a recusar o produto.
Para resolver esse problema, fui a duas ou três reuniões com esses jornais, para
organizar uma manifestação contra esta atitude. Eu representava o Lampião naquele
núcleo de jornais que estavam sofrendo atentado: o Pasquim, O Repórter, Em
Tempo; este último funcionava no mesmo prédio da redação do Lampião e tinha sido
alvo de atentado. Enfim, vários jornais estavam sendo vítimas de terrorismo.
No período que começou a estourar as bombas nas bancas de jornal não me
preocupei absolutamente. Sempre achei que isso não funcionaria. No meu entender
achava que essas bombas existiam para os outros. Nunca me senti ameaçado, com
nenhum temor. Aliás, sempre fui meio falastrão, como não era ligado a nenhuma
organização, nunca fui preso e nem molestado. Nessa época de repressão política
brava, não tive nenhum problema porque nunca fui aparelhado.

518
No local onde era a sede do Lampião, havia duas salas muito pequenas. Uma
ocupada para a redação do jornal e outra servia à administração. Havia também uma
cozinha e um banheiro minúsculos. Quando nós estávamos neste espaço, fazíamos a
pauta do jornal mensal que era dividida. Eu estava lá diariamente, para conversar,
para tomar um café, para escrever alguma coisa, tomar alguma providência, para
fazer o espelho das páginas, enfim, para fazer o jornal.
A grande maioria das pessoas escrevia seus artigos em casa, enquanto
algumas poucas escreviam na redação. Eu especificamente escrevia lá. Havia então o
período de fechamento do jornal. Começávamos a fechar as páginas, fechávamos o
correio sentimental primeiro, o qual foi deixado de lado algumas vezes. Depois as
páginas eram fechadas uma a uma até o final. Depois levávamos o Lampião ao
Jornal do Comércio para ser rodado e acompanhávamos sua impressão. Nós
tínhamos trinta dias para fazer todo este trabalho.
Havia uma sede no Rio e, se não me engano, havia outra em São Paulo. Isso
tudo era gasto que o jornal acabou não comportando. Chegou um momento que não
havia mais condições econômicas reais. Desta forma, fizemos o investimento, havia
sucesso intelectual e jornalístico, mas que não se sustentava enquanto mercado. Só
sobreviveram os jornais que tinham uma base econômica muito sólida.
O Aguinaldo ficou com o local, quando se encerraram as atividades do jornal.
Ele ainda tentou fazer uma revista. Editou uns dois ou três números, mas também
não conseguiu encontrar o tom. Ao meu ver a revista poderia ter dado certo. Ele já
possuía uma visão de mercado, sabia o tipo de revista que queria, conhecia o público
para o qual seria dirigida, porém não tinha pessoas capazes de ajudá-lo neste projeto.
Por exemplo, eu tentava, mas não conseguia fazer o que ele queria.
Era uma revista que publicava foto de homem nu e eu não sabia fazer aquilo.
Acho que poderia ter dado certo sob o aspecto mercadológico, mas também não
funcionou muito bem. Era uma revista na qual eu assinava o horóscopo como
Madame Urânia, ela tinha forma de revista de bolso, pequena, com fotos de rapazes

519
nus. A idéia era que a capa motivasse a compra e, depois, o conteúdo, o correio
sentimental, por exemplo, motivasse mais a compra, assim o processo cresceria em
escala geométrica. A idéia do correio sentimental já existia no Lampião. E fazia um
sucesso absurdo. Os jornais que surgiram depois, transformaram esta idéia em um
negócio. No Lampião, o correio sentimental era feito gratuitamente pelo jornal.
Há outro dado importante, nós tínhamos um cadastro magnífico de nomes.
Certa vez, uma pessoa que freqüentava o espaço xerocou todo o material. O cadastro
do Lampião era algo extremamente valioso. Não sei onde ele foi parar, só sei que
alguém xerografou, mas não me interessa dizer quem o fez. É óbvio que eu não tinha
cabeça para pensar onde poderia publicar aqueles dados.
Hoje percebo que nós não possuíamos nenhuma idéia de mercado. Não nos
preocupávamos com isto. Os jornais que vieram, passaram a utilizar o correio
sentimental como fonte de renda, como percebo nesses jornais que pego de vez em
quando. Então se manda a carta para lá, pagasse uma quantia e a carta é publicada.
Depois a pessoa que se interessa pelo anúncio escreve para o jornal, paga outra
quantia para receber a carta desejada. É um negócio que em termos gerais funciona
assim. Atualmente existe uma firma em São Paulo que faz cadastro para casamento e
a vinculação neste serviço é paga. Desta forma, nós não tínhamos idéia acerca disso,
em parte por causa da formação, tanto minha, como do Aguinaldo e do Francisco
Bittencourt.
No que se refere a participação do jornal no mercado, sua presença nas
bancas, poderia ter sido mais conseqüente. O Aguinaldo talvez tenha estas
informações arquivadas. O número de vendas de um determinado período, em que
locais vendia mais. Na época não percebia problemas como a perda de um mercado e
a inexistência de outro. O fato de atuarmos num campo absolutamente etéreo, sem o
reconhecimento deste mercado, foi um problema que invariavelmente ocorreu no
jornal.

520
Quando se olha para aquele período com uma visão mercadológica, de fato a
posição sugerida por João Antônio Mascarenhas parecia a mais correta. Nós
tínhamos que fazer um jornal especialmente para aquele público, cujo interesse era
ler sobre homossexualidade. Exclusivamente, o jornal era visto como algo dedicado
às bichas. Naquele momento, estas questões não nos preocupavam. Não havia
interesses neste sentido. Assim, esta perspectiva já havia sido eliminada, nem era
considerada por mim.
O mercado não conseguiu absorver um jornal com as características do
Lampião. Houve várias expressões presentes na imprensa alternativa, como o
jornalismo de oposição, tipo social democrata ou centro esquerda, esse era o caso do
Movimento, que foram perfeitamente incorporados com o processo de
democratização. A Folha de São Paulo, de certa forma, tenta cobrir este espaço.
Havia mais áreas, como jornais alternativos de bairros, também conseguiram um
setor dentro da grande imprensa; jornais alternativos do interior de São Paulo, uma
região muito forte no Brasil, que a Folha de São Paulo cobriu com edições especiais.
Enfim, praticamente todas as áreas foram sendo absorvidas.
Agora nos anos noventa, a Folha de São Paulo desenvolveu formas de se
dirigir ao público homossexual. Algumas vezes, a Folha tem feito um caderno
especial, porém de muito em muito tempo. Por isso, acho que o esquema
desenvolvido nesta área ainda não foi absorvido. É obvio que não o fazem porque
não perceberam. Não têm idéia que se este trabalho fosse feito por profissionais,
abririam-se as portas do maior e melhor mercado consumidor do mundo.
Um percentual muito grande de homossexuais está no mercado trabalhando.
Em função das circunstâncias sociais, do preconceito, o homossexual sabe que
precisa se impor como profissional. A sociedade ainda é muito arbitrária no seu
tratamento. Para a pessoa que se preparou, a vida inteira, para ser um grande
executivo, ser homossexual é uma merda. Ela é punida por isso. Neste sentido, eu

521
digo: “- Não tenha medo, o homossexual adora sair sábado para saçaricar. Adora
comprar roupa, consumir, gastar dinheiro e viajar.”
Nos Estados Unidos há agências de viagens preparadas para um mercado
segmentado. No Brasil é uma burrice não haver isso. Por exemplo, quando se abre o
Guia Quatro Rodas da editora Abril, um veículo usado por todo mundo, ele não
serve ao homossexual. Neste caso, o homossexual que viaja para o interior do Brasil,
não vê nenhuma informação que lhe seja útil. E isto é algo simples e barato, fácil de
ser feito por uma grande editora. Possivelmente este tipo de questão que estou
discutindo, já pode ter sido estudada na Abril ou na editora Globo. Ela Pode ter sido
inviabilizada, principalmente em função da nossa cultura.
As publicações visando exclusivamente o mercado homossexual são mal
feitas. Tecnicamente são muito ruins porque não há grana para fazê-las. As grandes
editoras brasileiras poderiam investir, como fazem as grandes editoras americanas,
detentoras de um mercado magnífico. E os brasileiros não aproveitam este grande
mercado. Estou falando de um grande mercado de informação. Ninguém absorveu
esta área, não soube trabalhar ou não soube fazer, talvez não se interessou,
provavelmente por razões de ordem moral e cultural.
Tive acesso às informações, mesmo em publicações homossexuais como Nós
Por Exemplo e Sui Generis, sobre o encontro internacional que houve no Rio,
notícias sobre o encontro nacional que ocorreu em Curitiba, e fico indagando o que
essas pessoas estão discutindo. Não observei nenhuma discussão objetiva nesses
encontros. Na última vez que estive trabalhando nestas ocasiões, havia grupos que se
degradavam entre si, e uma parte das revistas noticiava as fofocas e os namoros
desses encontros. No fundo, esses eventos parecem um local onde os grupos de
homossexuais vão se encontrar para conseguir trepar, porque não existe nada que
seja básico e fundamental. Há muitas questões prementes.
Atualmente, observo algum sentido no movimento homossexual por causa da
AIDS. A ação do Luiz Mott no Grupo Gay da Bahia. Ele tem uma ação específica

522
como o combate à AIDS... mas na grande maioria do movimento não observo
nenhuma discussão relevante. O gasto deste tipo de energia poderia ser empregado
em vários outros movimentos, como organizações de bairros, sociedades
comunitárias, em função de outras questões, onde poderia estar se discutindo esta
questão. Por exemplo, um plano de ação social importante que catalise toda esta
energia. Mesmo nos movimentos que trabalham com relação a AIDS. Alguns deles,
evidentemente, são formados por gays. Por exemplo, o GAPA. - Grupo de Apoio a
Prevenção da AIDS - é uma organização onde atuam muitos homossexuais, ninguém
coloca esse grupo como uma organização homossexual, não tem sentido, é como
criar um movimento excludente e isso não me parece correto.
A violência não é exclusiva contra homossexuais. Este problema deve ser
visto dentro de um contexto. Não basta o argumento: “- Ah! Bom é preciso ver a
quantidade de homossexuais mortos.” Esta polêmica foi levantada pelo Luiz Mott,
até respeito, mas também questiono a quantidade de velhos que são mortos de
maneira violenta, a quantidade de mulheres e crianças que são agredidas. Não se
trata de uma violência dirigida. Pode até haver uma violência dirigida à este
segmento, porém tanto quanto aos outros.
Pode haver um movimento preocupado com a violência, mas isso não motiva
uma organização voltada exclusivamente a um segmento. Todos esses movimentos,
com poucas exceções, não se atêm a uma questão especificamente. Não existe
apenas a questão da violência contra o homossexual, mas a questão pode ser
chamada da seguinte forma: “- Vamos discutir a questão da violência?”. E com todos
os desdobramentos possíveis, não se limitando a aspectos sobre repressão e punição
ao comportamento homossexual. A situação da violência deve ser discutida com
profundidade. Ela existe em função da questão social. Neste sentido, não estou livre
da questão da pobreza, cujo debate tem problemas de interpretação.
Por isso, faço distinções entre o problema social e o econômico. Há grandes
erros de argumentação como: “- Ah! A violência é uma questão social”. Entretanto,

523
as pessoas logo levam a discussão para o lado econômica. Não se trata disso. A
questão social pode ser vista em função do planejamento que a sociedade impõe,
como apelos que a leva a reagir de alguma forma, sobre um determinado padrão de
conduta. A impossibilidade de alcançar o que a sociedade considera como ideal,
pode gerar um problema social. Acredita-se que ninguém vai matar por causa de um
par de tênis, mas na verdade a pessoa é capaz de matar outro porque é mais
importante ter o par de tênis do que andar descalço. Desta forma, acredito que
problema social é visto com pouca profundidade, mas é apenas uma visão subjetiva.
Muito antes do movimento gay se tornar algo aceitável, presencio esta
história. O João Antônio Mascarenhas ainda hoje é um militante respeitável. Basta
ver sua luta pelo movimento homossexual junto à Constituinte no final da década de
oitenta. Entretanto, ele possui uma visão diferente da minha geração, cujas
preocupações eram de outra natureza. O fato de dizer: “- Sou homossexual”, já era
algo mais brando quando comparada à dele.
Pessoalmente, estou mais imbuído desse espírito porque a homossexualidade
nunca foi problema para mim, como provavelmente deve ter sido para o João
Antônio Mascarenhas. Não me lembro na vida de ter tido problema nenhum neste
sentido. Todas as vezes que fui discriminado, por ser homossexual, tinha muito mais
pena da pessoa que me discriminava. Nunca me senti prejudicado e também não fico
discutindo a minha sexualidade. Não preciso dizer para ninguém que sou bicha,
mesmo porque ninguém tem nada a ver com isso. Eu trepo com quem quero e não
tenho que explicar isso a ninguém.
O fato é que as pessoas tinham um certo nível de liberdade antes dos grupos
homossexuais existirem. Devido à luta, travada nos anos sessenta, pelo direito da
pessoa ter sua expressão sexual garantida. Isso facilitou a vida do homossexual. De
alguma forma, o movimento homossexual nunca conseguiu compreender que, na
verdade, não houve uma perseguição sistemática ao gay. Eventualmente, um
homossexual podia se defrontar com um policial. Acredito que a repressão nos dias

524
de hoje é até maior. Amigos meus afirmam que nos anos da ditadura se vivia melhor
como homossexual. Neste sentido, não me parece que houve repressão ao ponto de
se conclamar: “- Ah! Precisamos fazer alguma coisa... porque assim nós seremos
aceitos por sermos homossexuais”. No fundo, os movimentos queriam uma
aceitabilidade social da homossexualidade, porém, o eixo desta discussão gira em
torno de uma aceitabilidade enquanto ser humano. É desta forma que se pode
conseguir aceitabilidade social
Não havia repressão política. Ao contrário do que aconteceu com outros
movimentos sociais. O que melhorou a situação do homossexual foi a luta pela
liberdade, desencadeada pela Contracultura, em favor da livre expressão sexual,
contra o racismo, enfim uma luta política em outras áreas que permitiu a aparição
dos movimentos em favor da homossexualidade. O desatamento das amarras não se
deu por causa do movimento gay, pelo menos não foi assim no Brasil.
No Brasil não houve política pública contra homossexuais. Aqui existem
posições preconceituosas individuais, com sérias conseqüências sobre a vida do
indivíduo. Não me lembro de nenhuma política repressiva à homossexualidade,
nunca soube que houvesse, na minha vida não assisti a qualquer repressão acentuada,
por exemplo, agressões físicas como ocorreram nas unidades norte-americanas,
como Stonewall em Nova Iorque.
Os ecos das idéias sobre movimento homossexual são transportadas de um
país com legislação contra a homossexualidade. As formas de luta norte-americanas
acabaram se transferindo e as preocupações são expressas assim: “- Ah! Se nos
Estados Unidos é assim porque então não trazer para o Brasil”. Pelo simples fato que
no Brasil não havia este tipo de problema. Em São Francisco, por exemplo, há
bairros inteiros de gays. Só que gay pode viver em qualquer lugar, não precisa viver
num bairro isolado.
Importar essa situação é, no mínimo, não perceber a realidade do próprio país.
É evidente que as idéias norte-americanas estão fora do lugar quando elas vêm pro

525
Brasil. Primeiro porque a sociedade americana é muito mais organizada no que se
refere a sua relação com o Estado. Segundo, as questões nos Estados Unidos eram
muito mais angustiantes, há uma severa repressão no tocante a esta expressão sexual.
Havia estados em que prevalecia uma proibição à prática homossexual. Parece-me
que até hoje há estados em que a sodomia é crime.
Atualmente, no Brasil, não existe nenhuma lei que impeça a prática
homossexual. Neste sentido, para um movimento desta natureza, não há base de
sustentação para exigências como: “- Nós estamos aqui para protestar porque a
polícia nos reprime”. No que se refere atitude policial com relação ao gay, é possível
encontrar alguns que eventualmente agridam um homossexual, mas não há repressão
pública formal por parte do Estado.
As pesquisas de historiadores sobre a homossexualidade no Brasil, como Luiz
Mott, Ronaldo Vainfas, colega meu da UFF, e outras pessoas que pesquisam nessa
linha, apresentam a prática homossexual como presente na sociedade brasileira,
desde sua formação como povo, em 1600, 1700. A maior parte dos processos,
movidos pelos tribunais do Santo Ofício no Brasil, não se refere à questões
especificamente religiosas ou de bruxaria, mas de homossexualidade. Os trabalhos
de Vainfas e Luiz Mott indicam que mesmo em face de uma repressão criminosa,
isso era muito rarefeito.
Eu sei que existe veado desde os dez anos. Havia um que o tempo todo
passava rebolando na porta da minha casa. Quando o víamos nós dizíamos: “- Olha
Madame Fifi”. É uma coisa que a sociedade sempre teve e absorveu de alguma
maneira. O fato de existir lugares freqüentados por homossexuais não é resultado da
luta homossexual, mas das mudanças, muito mais culturais do que políticas, que
ocorreram nos anos cinqüenta e sessenta. Sem esta visão de reformulação cultural
não é possível entender o surgimento desses movimentos.
Antes do Lampião havia alguns grupos, há um antiquíssimo, cuja sede ainda
funciona no centro da cidade do Rio de Janeiro. Acredito que é grupo homossexual

526
mais antigo do Brasil, mas que nunca teve este caráter de movimento político. Trata-
se da Turma OK. Hoje em dia o grupo mantém as mesmas características. Nunca
teve nada a ver com o movimento gay. As pessoas que o compõe fazem bailes,
fazem shows de música. Porém, elas nunca quiseram fazer um movimento atuante
no processo de reflexão social. Elas visam muito mais a busca do prazer. Neste
sentido, os considero mais interessantes. Muitas pessoas conhecem esse grupo que
não tem nada a ver com política. Nunca participou de nenhuma central comum
operária.
Antes do Lampião existir, já existiam boates gays, só que em menor
quantidade. Eu mesmo freqüentei boate gay no início dos anos setenta. Néstor
Perlongher, num de seus livros, fala sobre os lugares onde os gays se reuniam nos
anos sessenta, contudo, eram locais mais discretos.
O Lampião não queria ser porta-voz dos grupos homossexuais. Não era o
perfil do jornal, ele tinha um objetivo mais amplo, discutir diversas questões e não
ser apenas um jornal de homossexuais. O que ocorreu, é que havia esta idéia,
compartilhada por um grupo bastante expressivo, que fizeram os números iniciais
lhe dando este caráter. E foi um jornal com bastante êxito, embora não fosse um
jornal perfeitamente profissional, visto que era feito por amigos, mas que obteve um
grande sucesso.
Nós possuíamos, à época que cheguei, uma expectativa de luta mais ampla
que a questão homossexual propriamente dita. Agora sobre o fato de já existir um
movimento por direitos políticos, não sei se é possível creditar este fato ao Lampião.
Isto ainda carece de uma base de estudos para investigar e constatar tal suposição. O
fato é que na verdade não existia movimento organizado, em torno dos direitos civis,
antes do Lampião, isto realmente não existia.
Esta era a visão que tinha do problema. Acreditava que o jornal deveria ser
engajado numa luta geral. Assim, a questão sexual também seria colocada, mas
como parte de uma luta mais ampla. Atualmente, talvez até acredite que o João

527
Antônio Mascarenhas estivesse correto. Neste sentido, não estou tecendo uma
hierarquia de valores, mas considerando as diferenças que existiam na época.
A questão da luta homossexual, na verdade, deve passar por uma luta em
favor da dignidade do ser humano, do direito pleno da pessoa ser como ela é. Não da
defesa de uma especificidade a duras penas. Isso me parece pouco sério e me leva a
não concordar com tal atitude. Mesmo assim há pessoas que defendem este
propósito, mas não acredito que nenhum movimento tenha me dado algo, ou tenha
feito minha vida mais feliz, ou tenha melhorado as minhas condições como
homossexual: não fizeram absolutamente nada!!
Ninguém tem que ser aceito por ser ou deixar de ser homossexual, tem que
ser aceito como um ser humano. Outro problema, desta exigência por aceitabilidade,
é que se queria importar padrões de comportamento heterossexual - o casamento
bem arrumado, a mãozinha dada no cinema - outro ponto era garantir a
respeitabilidade dos guetos enquanto espaços de homossexualidade, quando isso
tudo era uma bobagem. A homossexualidade não é definida pelo lugar que se
freqüenta, mas com quem se dorme. Hoje, tenho consciência que me sentia muito
mais aberto em participar de um movimento estritamente político do que em
participar de uma organização gay. Isto não me daria prazer.
Esse grupos não representam todos os homossexuais do Brasil. Na verdade,
ninguém é representante de todo mundo. A questão da representatividade morre
face a modernidade. Essa questão da representação portanto está liquidada. Se
questiona, por exemplo, o que é representar alguém? Algum deputado representa
alguém? Da mesma forma, será que este movimento pode representar todo mundo?
Parece-me que não. Primeiro porque a maioria dos homossexuais nem querem ser
representados. Há um percentual absurdamente grande de pessoas que nem se
consideram homossexuais.
Esta questão beira o ridículo, acreditar na existência de um homossexualismo
comum a todos... isto não existe. Cada pessoa representa sua própria vontade de

528
trepar. Não dá para reunir este universo de visões de mundo, de humanidade, da
própria sexualidade, de prazer sexual, de afetividade, contido em cada ser humano,
juntar tudo e dizer: “- Ah! Homossexualismo é isso tudo”... isto não tem nem sentido
teórico. A homossexualidade, para as pessoas, é apenas um impulso que se tem
quando surge o desejo de trepar. Neste caso, temos de considerar a grande
quantidade de pessoas que vão trepar com pessoas do mesmo sexo, mas não tem o
menor espírito homossexual.
Para as pessoas que participam destes grupos deve ser ótimo. Algo parecido
com uma terapia. Deve haver um bom espaço de atenção e até de ação. Entretanto,
os resultados sempre serão limitados, mesmo porque boa parte das pessoas não se
sente representada, nem gostaria de ter aquela representação... às vezes nem gostaria
de saber que ela existe. Eu não me sinto representado por nenhum grupo deste tipo.
E acredito que a maioria nem sabe que estes grupos existem. Quando se anda pelas
ruas e se pergunta a alguém sobre isto, certamente a resposta será de
desconhecimento. O que pode haver é uma representação nominal, mas não uma
representação real.
Neste caso, como existem grupos de gays, lésbicas e sei lá o quê, o próximo
passo será arrumar um grupo de bissexuais, depois alguém formará uma associação
dos heterossexuais que vai representar noventa por cento da humanidade. Não vejo a
questão sob este prisma. Então, não acho que esses movimentos tenham feito nada
por mim. No sentido de ter aumentado meu nível de liberdade. Algumas pessoas até
ganharam dinheiro com isso. Nada melhor do que você ter, nos guetos, um esquema
de serviços voltado aos homossexuais, ganhar dinheiro com saunas, com boates.
Quando acho que homossexual, como todo mundo, tem que ir a qualquer boate.
Porque tem que ir em boate para homossexuais? Em breve, então, teremos uma boate
especifica para negros, outra para mulatos, para tarados, sadomasoquistas. É o tipo
de conduta que interessa ao sistema. Isto me inquieta bastante.

529
Converso com gays dos anos quarenta e cinqüenta, porque me interessa ouvi-
los, e percebo que eles raramente assumiam sua orientação sexual. Estas pessoas
dizem assim: “- Na minha época não era assim. Hoje tudo quanto é cara é veado”.
No fundo, eles são muito conservadores. É claro que na época deles a
homossexualidade era mais escondida. Devia ser menos prazeroso, visto que era uma
relação mais difícil. Nesses anos, prevalecia uma rígida divisão de papéis sexuais,
delimitando o lugar da bicha e do outro, não havia espaço para uma relação afetuosa.
No período que vivi a adolescência, ainda existia a questão da virgindade
feminina. Fui adolescente até o final dos anos sessenta. Nos anos setenta a minha
sublime adolescência estava terminando. Em 1970 eu tinha dezoito anos e começava
o período da adolescência simbólica. A partir desta década a situação tornou-se mais
tranqüila para todo mundo. Havia mais liberdade. Um namorado já podia transar
com a namorada. Tornou-se freqüente a relação do pré-casamento.
Hoje, é perfeitamente razoável que o menino de dezoito ou dezenove anos,
viaje e transe com sua namorada de dezesseis. Assim como o menino de dezesseis
transe com a namorada, de quinze ou quatorze, na sua própria casa. Porém na minha
época ainda não era assim. É preciso considerar que já são filhos daqueles pais que
abriram esse caminho. Esta liberdade, de certa forma, também contribuiu para que a
oferta heterossexual aumentasse.
Nos anos sessenta a situação começava a mudar, o sistema passava por uma
alteração. Os anos setenta e oitenta compõe um período mais suave, quando
contraposto a contemporaneidade. Em função da AIDS, talvez a situação esteja um
pouco diferente. Hoje observo uma sensível redução do interesse pelo mesmo sexo
entre as pessoas mais jovens. Sobretudo, analisando por outro lado, a partir dos anos
sessenta aumenta a oferta do comportamento heterossexual.
Hoje em dia, aquele rapaz com namorada ou aquele senhor casado sai menos
a caça de uma transa eventual, por tesão, por vontade ou por necessidade material. A
prática homossexual eventual deve acabar. Mesmo, com a noção de sexo seguro. As

530
pessoas têm uma disponibilidade heterossexual maior do que antigamente. Na troca
de parceiros, elas se questionam sobre o risco destas relações. Entretanto, se aquilo
for absolutamente importante para elas, não há campanha de prevenção que vá tolher
estas pessoas. Porém, cada vez mais se cria uma nódoa em torno do homossexual
eventual. Atualmente, em função da cultura que se desenvolve em torno da AIDS, a
relação eventual tende a decair.
Esta tendência eclode na forma de conselhos como: “- Tenha um parceiro só.
Tome cuidado com o seu marido porque ele pode ter relações extra-conjugais.”
Antigamente, antes da AIDS, os homossexuais eventuais eram muito freqüentes. Por
exemplo, entre pessoas que se encontravam na rua esperando ônibus, às três horas da
manhã, conversavam e dali a pouco se dirigiam para um motel. O rapaz que podia
sair da casa da namorada para ir numa festa, ele encontrava uma pessoa e transava.
As pessoas eventualmente mantinham relação homossexual. Algumas delas
deixavam que a situação eventual se tornasse permanente, outras permaneciam na
relação eventual por um vasto tempo, outras deixavam de manter estas relações. Elas
aconteciam, eram normais entre os pares que obedeciam as regras. A tendência deste
relacionamento é acabar cada vez mais. Neste sentido, está ocorrendo uma seleção
natural, entre aspas, porque não gosto dessas palavras. Isso vai acabar um pouco por
força da AIDS, mas acho que muito mais por influência do sistema, proporcionando
uma tendência à aceitabilidade do bissexualismo. Ocorrerá uma grande eclosão de
bissexuais em detrimento dos homossexuais eventuais.
No que se refere homossexualidade, acho que vamos nos europeizar e
americanizar. No sentido da relação manter-se entre duas pessoas assumidamente
homossexuais. O grupo de homossexuais estritamente convictos irá sustentar a
relação entre iguais. Atualmente se faz campanha para o casamento homossexual,
enquanto os heterossexuais estão querendo acabar com esta instituição. Nós vamos
entrar nessa de ter uma vida normalizada. Em pouco tempo os homossexuais vão se

531
apresentar aos pais, vão fazer pedidos oficiais de casamento, levar para morar juntos,
adotar crianças e constituir famílias.
Acho que esta tendência vai prevalecer porque para o sistema é melhor que
funcione assim. Em função da visão política, isso representa a perda da rebeldia que
acompanhava o homossexual. Desta forma, talvez esteja ocorrendo uma mudança
cultural, ficará tudo confortável, os homossexuais terão suas boates, seus clubes e
suas saunas. O sistema prefere que seja assim, inclusive irá trabalhar para isso, a
partir dos meios de comunicação e da cultura.

532
. Nasceu no Rio de Janeiro (capital),
em 07 de maio de 1957.

. Jornalista.

. Estudos acadêmicos: Comunicação na


Faculdade Hélio Alonso.

Dolores Rodriguez.

533
O consentimento de Dolores Rodriguez
anunciava um encontro positivo. A vontade
de escutá-la não era por acaso, depois de
ouvir tantos homens, ela seria a primeira
mulher a falar. Marcamos a gravação para o
período da manhã na sua casa em Botafogo.
Momentos antes da gravação pude constatar
a jovialidade de Dolores Rodriguez. Ela
sentou-se ao meu lado para contar suas
experiências, cruzando um braço enquanto
gesticulava com o outro. Demonstrou muita
compreensão, no que se refere à ressonância
do papel masculino ao ofuscar o papel
feminino. O pouco conhecimento do
comportamento sexual e a juventude dos
movimentos sociais, segundo as inferências
que teceu, representavam capítulos recentes
na vida de todos nós. Durante toda a
narrativa buscou canais para a compreensão
entre as necessidades pessoais e as
contingências sociais.

Rio de Janeiro, RJ,


23 de outubro de 1995.

534
“...creio que não adianta se organizar num movimento, caso o
mesmo não queira discutir o problema dos outros à sua volta.”

Nasci no dia sete de maio de 1957, em Jacarépagua no Rio de Janeiro... sou


carioca! Quando nasci havia muito mato em Jacarépagua, praticamente eram só
sítios e chácaras... não era como é hoje! Morei naquela área de Jacarépagua até
1964... ainda havia bonde!! Hoje ainda tem muito verde, mas não se compara àquela
época. Depois nós nos mudamos para Maria da Graça, um subúrbio do Rio... perto
do Méier. Então, fiz o meu jardim de infância, o meu primário e no início do ginásio,
em 1967, meus pais se desquitaram. Durante pouco tempo, continuei morando em
Maria da Graça, porque naquela época mulher desquitada era vista como persona
non grata!
Nós nos mudamos de Maria da Graça e fui morar em Pilares... outro bairro de
subúrbio do Rio. Continuei meus estudos, fiz meu ginásio e voltei para o Méier, mas
morando noutro local! Lá terminei o segundo grau, fiz vestibular para jornalismo e
entrei na Faculdade Hélio Alonso em Botafogo! Fiz todo o curso superior morando
no subúrbio. No final da faculdade, vim dividir apartamento com um colega na
Glória. Desde então não saí mais da Zona Sul... moro nesta região até hoje.
Comecei a trabalhar muito cedo, com quinze anos, porque meus pais eram
desquitados. Resolvi começar a trabalhar, a fazer diversas coisas. Achava que não
podia ficar dependendo do dinheiro da minha mãe eternamente... acho que todo
mundo pensa assim. Talvez quando se tem pais desquitados, a necessidade fica mais
forte!? Comecei a trabalhar fazendo qualquer coisa, o que pintasse pegava para
fazer. Na minha vida, trabalhei em dez milhões de coisas. Depois de um certo tempo
fui trabalhar com um tio que é ourives. Ele morava na mesma rua que eu quando
meus pais se separaram. Uma vez, meu tio foi trabalhar na cidade e foi assaltado...
ele ficou meio traumatizado! Desta forma, ele precisava de uma pessoa de confiança

535
para ir na cidade, a qual fizesse entrega de mercadoria, pegasse encomenda, fizesse
pagamentos... e eu fazia isso.
Eu ia para casa dele de manhã, pegava as encomendas, botava numa bolsa,
pegava o ônibus e ia para a cidade. Caminhava o centro da cidade inteiro com aquela
bolsa, cheia de ouro... olha que coisa maluca!!! Andava de ônibus, para cima e para
baixo. Nunca me aconteceu nada! Levava as mercadorias para os ouríveres da
cidade: anéis, pulseiras... tudo em estado bruto! O meu tio moldava, eu levava para
eles lapidarem e montarem as jóias. Então eles pesavam aquela mercadoria, davam a
quantidade em ouro-barra e pagavam a mão de obra. De qualquer forma eu ia
carregada e voltava carregada... não tinha jeito!!
Trabalhei com eles muitos anos, inclusive durante um período da faculdade.
Porém, com a história de estudar em Botafogo, andar a cidade inteira, a noite ir para
a faculdade e depois voltar pro Méier... era muito cansativo! Com esses contatos fui
trabalhar numa joalheria em Ipanema. Era um prédio comercial, a joalheria ficava no
quarto ou no terceiro andar desse prédio. Não era uma joalheria de beira de esquina.
O público era bastante seletivo, só clientes cadastrados ou pessoas conhecidas que
compravam lá. Foi uma época boa na minha vida, todas as meninas que trabalhavam
na joalheria eram universitárias, pessoas muito legais... uma época gostosa que gosto
de lembrar!
Para fazer faculdade, tinha vontade de fazer psicologia ou jornalismo. A
definição por jornalismo foi porque escrevia muito, lia muito, o que me influenciou
na hora de optar por este curso. Passei na Hélio Alonso. Na época era considerada a
melhor faculdade de jornalismo do Estado, a mais moderna, a mais progressista...
acho que valeu a pena!
Não lembro, exatamente, como fui parar no Lampião. Aliás, foi com um
amigo, não sei se foi com o Antônio Carlos ou com o Aristides!? Parece que foi com
o Aristides! Ele era um amigo nosso, já falecido há alguns anos. Alguém me disse
que no Lampião estavam precisando de uma pessoa para ser revisora e que pagavam

536
bem! Naquela época eu fazia Free Lancer e fui trabalhar como revisora do jornal.
Não era minha primeira experiência como jornalista - como já falei -, mas fazer Free
Lancer não era nada muito seguro: “- Ah! Tem aquele Free Lancer para aquele
lugar!” Então, não podia contar com aquilo, eram serviços esporádicos que
apareciam.
Quando cheguei ao Lampião fui conhecendo uma pessoa, fui conhecendo
outra e comecei a me envolver com as histórias. Tomei gosto pelo que fazia! Fui me
envolvendo com o jornal, então acabei vestindo a camisa do Lampião. O jornal não
estava mais na fase glamourosa, com as celebridades que o fundaram. Já peguei o
Lampião na sua fase final. Não digo decadente, não é esse o termo porque o jornal
nunca foi decadente... em momento nenhum!!! Ele simplesmente acabou por falta de
vontade das pessoas. Acho que pelo cansaço do Aguinaldo, ele era o maquinista
desse trem! Peguei o jornal numa fase mais assentada, sem a presença dessas figuras
famosas, mais reconhecidas no meio social, enfim, mais badaladas! Porém, as
pessoas que se identificavam com a linha do jornal, não queriam que ele acabasse.
As pessoas vestiram a camisa do jornal, por diversos motivos, levando-o
adiante com a figura do Aguinaldo... o grande piloto desta máquina! Não lembro
quanto tempo fiquei, mas foi uma época bastante gratificante... aprendi muito
fazendo o jornal. É aquela história, a faculdade dá a teoria e nós pegamos a prática
no dia a dia. O Lampião me deu muito jogo de cintura, foi o primeiro compromisso
profissional com um jornal. Naquele período, pegava as matérias, fazia revisão,
comecei a conhecer as pessoas, a se envolver e a participar cada vez mais! Com o
tempo, não fazia só revisão, mas comecei a dar idéias, a participar das reuniões de
pauta e a dar sugestão de pauta.
Durante a ditadura no Brasil, não acho que os homossexuais foram
perseguidos. Acredito que se houve perseguição, foi porque “desde que o mundo é
mundo” é assim. Não creio que tenha sido uma posição política assumida: “- Não!
Vamos perseguir o homossexual!”... não foi o que aconteceu!! Esta perseguição é

537
natural da cabeça das pessoas. Naquele tempo, a ditadura não estava preocupada
com os homossexuais. Ela estava preocupada em reprimir a questão política. O
preconceito contra o homossexualismo vem neste bojo, pois é inerente às pessoas.
Não acho que seja uma posição premeditada!
No período da ditadura, a liberação continuava acontecendo no carnaval.
Havia a história do travesti glamouroso. Durante todos esses anos, a Rogéria
sobreviveu belissimamente, não sei se economicamente, mas ela ultrapassou essas
barreiras. Havia o cabaré Casanova, um ponto de referência, que durante a ditadura
sobreviveu, mas hoje em dia está na decadência.
O Lampião era na Rua Joaquim Silva na Lapa. Um bairro bem marginal do
Rio. Passado anos, continua sendo um bairro meio esquecido pela cidade. Ainda
hoje, é um lugar badalado, mas é praticamente um submundo. Perto de onde era o
Lampião, há áreas de prostituição de mulheres, áreas de prostituição de travestis.
Caso passemos numa rua bem próxima do local, depois de oito ou oito e meia da
noite, há uma vitrine dos travestis, um leque deles que se prostitui na cidade.
Naquela época já era assim, hoje continua sendo.
Aquele pedaço da cidade, pertence a um bairro boêmio, com tradição
marginal. Madame Satã ganhou fama lá, com todas as histórias que conhecemos. O
interessante é que durante a época de marginália o cabaré Casanova sobreviveu. As
pessoas o freqüentavam sem nenhum de problema. Acho que do final dos anos
oitenta em diante, o cabaré entrou em decadência, mais por conta da marginalidade
existente no local e do público que começou a freqüentá-lo!
A violência sempre existiu, mas temos de fazer a dicotomia entre a violência
ingênua, dos anos sessenta e setenta, e a violência moderna.
Hoje, naquela área do Casanova, perdeu-se um pouco dessa “marginália
inocente”. É preciso deixar bem claro, a violência existia, mas era diferente! As
pessoas passaram a ter medo de sair à noite, o público que começa a freqüentá-la é
mais barra pesada. Enfim, acho que é uma questão social. Aparece a questão da

538
droga que modifica toda a panorâmica da violência no Brasil. A violência é
massificada pelos meios de comunicação.
Tenho amigos que chegaram recentemente do norte do país, eles estavam
morrendo de medo... não é a primeira vez que isso acontece! As pessoas de fora do
Rio de Janeiro quando ouvem falar da cidade, dizem pelo menos um: “- O Rio!!!
Vou lá, mas não vou sair de casa!!! Meu Deus!! O que será que vai acontecer na
esquina!!? Será que vou ser assaltado!!?”... o Rio é visto assim pelas pessoas por
causa da televisão.
Não estou dizendo que não há violência, mas não é tudo isso que é
divulgado! Apesar da violência, as pessoas estão vivendo suas vidas... senão era
toque de recolher! Ninguém sairia mais na rua! A violência não é uma característica
primordial do Rio de Janeiro. Em outras regiões do país, contudo, as características
não chegam a ser tão exacerbadas.
Historicamente, a Lapa é conhecida como uma área reservada. Há prédios
bastantes antigos. Dentro do contexto da cidade é um bairro pobre, no qual se
encontra uma população de classe média-baixa e de classe baixa-baixa. Lá, moram
pessoas com poder aquisitivo baixo. A Lapa fica a cinco minutos do centro
financeiro da cidade. Naquela época já era assim e hoje continua sendo. O Lampião
ficava naquele reboliço, naquela confusão! A sede era num prédio antigo, em duas
salas bem pequenas... essa necessidade de ter um endereço comercial! E era ali
naquelas salinhas que acontecia tudo!
Depois que comecei a me envolver com o jornal, passei a viver uma rotina
quase diária. Independente do que fosse fazer, tinha um compromisso, mesmo que
não fosse trabalhar passava lá. Era legal estar com as pessoas. O Aguinaldo é
bastante espirituoso, muito engraçado. Era legal ir ali, pois caso estivesse de baixo
astral, iria rir ao chegar lá. Era um ambiente de trabalho para cima. Por mais
problemas que todo mundo tivesse, tinha sempre alguém fazendo uma gaiatice. Nas

539
piores fases que o jornal passou, havia desânimo, mas sempre aparecia alguém para
levantar o astral de todo mundo.
As piores fases não se devem ao Lampião, especificamente, mas à história da
imprensa alternativa no país! É muito difícil manter um jornal alternativo. Aliás, já
está difícil manter grandes jornais, como o Jornal do Brasil que está numa séria
crise, O Globo é outra questão, ele não tem só o jornal, mas todo um aparato por
detrás dele, entretanto, há jornais com grandes dificuldades em se manter. Nesse
sentido, se um jornal grande já tinha esse problema, um jornal alternativo sofria
muito mais. Principalmente no que se refere a manutenção dos assinantes, à
publicidade, mesmo às finanças... porque é muito dinheiro que envolve a
manutenção do jornal!
Nos anos setenta e oitenta, um jornal alternativo voltado para o público gay
era muito difícil de ser mantido. Alguns assinantes foram progressistas, mas havia
dificuldade em conseguir assinaturas, pois as pessoas têm medo de assinar uma
publicação gay. Elas não sabiam como o jornal chegaria na casa delas, não queriam
que os outros soubessem sua preferência sexual, ou às vezes nem eram gays.
Naquela época era mais difícil do que hoje. Basicamente, o jornal procurava
se manter por assinaturas. Porém, se num dia o jornal estava em alta, no outro estava
em baixa... parecia que vivia numa Montanha Russa! Às vezes, o Aguinaldo botava
dinheiro do próprio bolso para rodar o jornal, mantendo-o na praça. Ele não fazia
isso para ter um jornal e aparecer na mídia, mesmo porque o público era restrito, mas
mais por preocupação em manter algo que ele havia criado... era um filho dele!
Geralmente, a pessoa quer que o filho siga seu caminho e continue em frente, pois é
difícil ver todo o trabalho de criação se perder! A decisão do Aguinaldo em acabar
com o jornal foi por desgaste mesmo! Depois de tempos, insistentemente tentando, o
sujeito cansa!
Nessa questão, posso dizer que o Aguinaldo era a força motriz do jornal.
Porém, ele começou a escrever, para a TV Globo, os episódios do Malú Mulher.

540
Colocou uma peça que ficou em cartaz muito tempo, chamada As Tias. Enfim, ele
começou a ter outras áreas de interesse. Além de ser o jornalista que criou o
Lampião, era um escritor que começou a fazer sucesso... começou a ficar mais
conhecido! Essa questão dele escrever para o Malú Mulher foi fundamental na sua
vida. E as pessoas mudam, todos mudam... é um caminho natural! Tanto mudamos
que o jornal mudou!
A imprensa alternativa no Brasil segue esse caminho, primeiro bota o número
um na rua, depois bota o segundo, e o Lampião foi feliz porque teve uma sobrevida
muito grande. Se se fizer uma pesquisa, chegamos a conclusão que a maioria dos
alternativos sobrevive um ano no máximo... quando chega a tanto!!! A maior parte
dos jornais alternativos não passa do terceiro mês. No terceiro mês, o jornal tem uma
queda e não sobrevive. Já trabalhei em muitos alternativos, por isso digo que é muito
difícil!
Hoje em dia, quando alguém me chama, visto que já conheço o meio: “- Ah!
Você não quer conhecer a editora de um grupo e tal?” Eu digo: “- Se for alternativo
tô fora!!!” Não é que não acredite nele, mas a verdade é que não tenho mais ânimo!
Todo mês é aquela história: “- Meu Deus! Não vai ter dinheiro pra botar o jornal na
rua!!” Assunto não falta, mas infelizmente não temos essa característica de contar
com o apoio das pessoas, para elas comprarem o jornal. Um mês conseguimos um ou
outro cliente, depois o cara já não quer renovar o contrato para fazer a publicidade.
Na verdade, acho que é mais o medo de comprar uma idéia, vestir aquela camisa.
Pelo menos no momento, não estou querendo fazer trabalhos nessa linha... pode ser
que amanhã mude de idéia!!
A idéia do Lampião era de ser um jornal de minorias, para discutir a questão
do negro, da mulher, da ecologia. Porém, o jornal não conseguiu conciliar isso, ele
se tornou um jornal voltado só ao homossexual, masculino e acho que branco.
Naquela época, não tinha muitos jornalistas negros e homossexuais. É aquela
história, havia o movimento feminista, o movimento negro, mas não havia nesses

541
movimentos a discussão da causa homossexual. Atualmente ainda se discute um
pouquinho, mas naquela época não se discutia nada... prevalecia o preconceito!
Essa novela da rede Globo de televisão - A Próxima Vítima - está abordando a
questão do negro. Nela tem uma família de classe média com um filho gay.
Recentemente foi apresentado um capítulo interessante, no qual o irmão, num
diálogo com a namorada, comenta sobre o fato da mãe achar que o rapaz é gay. Na
mesma hora ele diz: “- Meu irmão não é gay! Ele não é homossexual!” Depois a
personagem faz um corte, no sentido de entender que aquilo não é problema, mas
que problema é o fato dele: ter um bom currículo, ter experiência profissional e não
conseguir um emprego no mercado de trabalho porque é negro... isso é preconceito!
Porém, o fato dele pensar: “- Meu irmão não é homossexual! E pronto!”... isso não é
preconceito! Então, foi uma abordagem interessante. Não sei se as pessoas
perceberam essa nuance!? Nesse trecho fica muito claro: “- Eu sou negro, sou
minoria, mas o gay é - pelo amor de Deus! Longe de mim! -, é mais minoria
ainda!!!”
Naquela época, essa atitude era ainda mais acentuada. Havia os movimentos,
para discutir a negritude: “- Enquanto negro, somos todos submetidos ao preconceito
das pessoas, mas enquanto negro e homossexual...!? Nem pensar!!” A Lecy Brandão
apoiava muito o jornal. Ela falava por exemplo: “- Eu sou mulher, sou negra e sou
homossexual.” Nós costumávamos brincar que ela sofria três vezes com o
preconceito, primeiro por ela ser homossexual, depois por ser negra e por último por
ser mulher... acredito com certeza nessa hierarquia! Se sou mulher e sou negra, sou
discriminada. Porém, se sou mulher, negra e homossexual, então está tudo acabado!
Pode trancar a pessoa no armário e esquecer que tem alguém ali dentro. E o
Lampião, apesar de ter o Adão, não escapava deste problema.
O jornal tentou ser representativo de todas as minorias, mas não adiantava
tentar, não adiantava ser aberto para essas questões: os representantes da própria
causa tinham que se manifestar. Não adiantava o Lampião abrir suas páginas à

542
mulher! Quantas mulheres escreveram lá? Quem eram? Qual era a parcela da
população? Desta forma, é preciso entender o contexto. Não acho tão simples dizer:
“- Claro que o Lampião foi machista!”... a explicação não é essa!
Se fizermos uma pesquisa sobre os grupos homossexuais daquela época,
perceberemos que a participação da mulher era minoritária. No SOMOS/RJ tinha
98% de homens e 2% de mulheres. Hoje em dia o movimento feminista cresceu
muito, mas a participação das militantes homossexuais ainda é muito pequena. A
mulher não tem o histórico do discurso, estamos aprendendo isso agora. É recente a
história das mulheres irem a luta, brigar, estar participando do mundo masculino... o
mundo que temos, é um mundo masculino.
O Lampião não ficava atrás disso! Tanto que ao verificarmos os editores do
jornal, são todos homens! Isso não é uma questão gratuita. Não é dizer que não
houvesse mulheres com capacidade para estar ali... na verdade havia! Porém, a
questão é: “- Será que elas estavam dispostas!? Será que elas estavam preocupadas
com esta forma de encaminhamento?” Então, acho que é uma questão mais
profunda... da antiga briga entre o homem e a mulher. Só sei que o Lampião não
conseguiu escapar desta regra.
Havia muitas mulheres que escreviam para o Lampião, mas não havia as que
participavam do jornal. Eu, particularmente, fui para o jornal para fazer revisão,
conheci as pessoas e acabei vestindo a camisa. Isso foi uma conquista pessoal. Fui
crescendo, fui participando, comecei a dar opinião, comecei a escrever artigos, a
fazer entrevistas com algumas pessoas, mesmo assim quando se faz uma leitura do
jornal, percebe-se que nessas horas a participação é bem pequena... isso fica muito
claro!! Então, acho que é amando mesmo! É uma briga onde tem que se estar vinte e
quatro horas de prontidão.
O Lampião foi pouco representativo do público feminino. O homem não
escreve sobre a mulher. No jornal até havia esta preocupação, mas ele não podia
assumir essa bandeira. Quem teria que assumi-la seriam as mulheres. E eram poucas

543
as mulheres que estavam dispostas a ter uma participação mais efetiva. Quando
lemos o jornal, percebemos que a participação das mulheres é minoritária.
Infelizmente, trata-se mais de uma questão da mulher homossexual preservar
a própria identidade, de não querer aparecer. O homem tem esse “privilégio”, ele se
apresenta mais. A mulher homossexual tem mais pavor em se posicionar, em ir à
luta, em brigar.
Durante a Conferência Internacional da ILGA que houve no Rio, a Folha de
São Paulo foi o único jornal que cobriu o evento! Nenhum outro jornal do Brasil fez
isso, O Globo publicou alguma coisa en passant. Sou assinante da Folha, então
tinha mais informação. Porém, não há informação sobre como está caminhando o
movimento organizado atualmente. Não sei dizer se o movimento seria
representativo, tenho as minhas dúvidas. A mulher está aprendendo a se posicionar
recentemente, a ter discurso político.
Até que ponto a mulher vai conseguir ficar em igualdade com o homem
dentro dos grupos organizados? Numericamente, as mulheres não estão conseguindo
chegar a essa igualdade... com certeza a mulher é minoria!
Uma associação de gays, lésbicas e travestis é complicada!! Travesti é
homem, ele só está se travestindo, mas a postura dele não muda... é de homem! A
cabeça dele é de homem, ele vai estar se sentindo superior a mulher, não porque ele
quer, mas porque a sociedade faz o indivíduo ficar assim. Desta forma, questiono:
será que neste sentido o grupo é representativo!?
Na hora de discutir, por exemplo, a história do Lobo Mau e da Chapeuzinho
Vermelho, será que o grupo de mulheres conseguirá dizer que a Chapeuzinho
Vermelho foi comida pelo Lobo Mau porque o Lobo Mau era mais poderoso... caso
haja consenso. Ou será que o homem vai ganhar porque a Chapeuzinho Vermelho
foi comida porque era burra! Mas por que ela era burra e o Lobo Mau era homem?
Então, ele foi mais esperto!? É um jogo com uma linhazinha muito tênue. É um
negócio complicado!! Alguém pode até xingar, mas o homossexual foi criado como

544
homem. Ele tem cabeça de homem, por mais que a cabeça esteja aberta! Nós ainda
não temos essa prática da discussão pela igualdade, estamos começando a
engatinhar. Por isso, reflito muito, questionando essa questão da representatividade.
O Lampião teve uma participação na movimentação política dos anos setenta
e oitenta, mas ele não foi o piloto. Parece que foi mais uma questão das pessoas que
viveram naquele contexto. Na época, estávamos saindo de uma ditadura,
começávamos a respirar a “democracia”. Era a época de abertura política. Nesse
sentido, a sociedade começou a se posicionar como um todo, exigindo direitos que
estavam guardados na gaveta na época da ditadura.
Desta forma, todos os movimentos sociais começaram a se posicionar
politicamente: as mulheres começaram a se organizar, assim como os negros, nos
bairros e nas favelas começaram a se criar associações de moradores, o
empresariado. Tudo estava muito disperso, então a sociedade começou a se
organizar e o movimento homossexual também, pois eram pessoas que participavam
dessa sociedade como participam até hoje. Afinal, nada disso ficou esquecido,
apenas estava adormecido: guardado na gaveta!
Há um contexto maior que se refere ao período da abertura, o qual influencia
esses movimentos que começam a se organizar. Também penso que as pessoas
perceberam: não adiantava se organizar em outros movimentos. Como já disse, os
grupos feministas não estavam preocupados em discutir a questão da
homossexualidade, eles não estavam preocupados em discutir a questão da mulher
negra... posso afirmar isso de cadeira!
Infelizmente, uma pessoa que já faleceu, com a qual militei muito, uma das
pessoas mais bonitas que conheci na vida - se não estou enganada, ela escreveu
alguns artigos para o Lampião -, foi uma professora da PUC chamada Lélia
Gonzalez. Nós participamos de um encontro feminista no sindicato dos
metalúrgicos... na Ana Neri em São Cristovão!

545
Naquela época, lembro como se fosse hoje, estávamos discutindo a questão da
mulher do campo, da a mulher doméstica... da mulher em tudo quanto é lugar!
Entretanto, quando se falava um pouquinho da negra... pronto! nem pensar!! Tanto
que houve uma discussão, num dos grupos, sobre o futuro das meninas pobres de
uma determinada região do Rio de Janeiro. Uma das mulheres da mesa levantou e
falou: “-Nesse grupo, temos que encaminhar essas meninas para aprenderem
trabalhos manuais, como costurar, cozinhar...” A Lélia subiu nas tamancas,
questionando: “- Por que? Porque são mulheres pobres!? Por isso é mais fácil botá-
las num curso de corte e costura!? Quer dizer que se ela é pobre e negra, então vai
ser empregada doméstica!!?” Desta forma, creio que não adianta se organizar num
movimento, caso o mesmo não queira discutir o problema dos outros à sua volta.
Como havia homossexuais que participavam nesses movimentos, eles
começaram a perceber que não existia interesse em discutir a questão do
homossexualismo. Assim, o caminho que encontraram foi se reunir em grupos
específicos. Neste aspecto, o jornal contribuiu para facilitar a comunicação entre
esses grupos.
Os grupos existiam independentes do jornal, entretanto o jornal ajudou a
mostrar a cara desses grupos, a divulgar suas idéias, porém também mostrava que
não era exclusivamente voltado ao público gay. Esse segmento estava mais
preocupado em discutir sua sexualidade, estava se organizando. Nem era o caso de
uma reorganização, pois até então não existia - pelo menos não tenho informação -,
de que antes dessa década já houvesse grupo homossexual. Houve um grupo em São
Paulo, onde havia grupos mais atuantes... acho que foi o precursor!
O Lampião não era porta-voz dos grupos, ele simplesmente divulgava sua
existência. Na minha opinião, tenho claro isso para mim, o jornal não foi a mola, ele
ajudou a divulgar a existência desses grupos. O Lampião se preocupava em ter uma
visão política da questão, mas acho que o jornal não incentivava a criação de grupos
homossexuais. A proposta não era esta, mas era mostrar que existiam gays em todas

546
as áreas de atividade. Pessoas que estavam batalhando no seu trabalho, pessoas não-
gays, parecidas com essa proposta do GLS - hoje são chamadas de simpatizantes -,
que estavam na vida. Como faz muito tempo que não pego no jornal, posso até estar
cometendo algum erro!!!
O Lampião divulga o Primeiro Encontro Nacional de Homossexuais nas suas
páginas. De uma certa maneira, ele ajuda os grupos a se organizarem. Nesse
Primeiro Encontro, ele era um órgão aberto para passar as informações dos grupos,
mas autônomo para poder trabalhar tranqüilamente. Se não me engano, para a
cobertura desse Encontro, o jornal não pagou ninguém para cobrir, a pessoa foi
porque militava. Lá, ela aproveitou para fazer a cobertura e mandar ao jornal. O que
é diferente do jornal que paga um correspondente. Neste caso, o correspondente tem
um compromisso com aquele órgão. Não foi isso que aconteceu! As pessoas o
fizeram por livre e espontânea vontade. Não havia compromisso oficial com o jornal.
Não era o caso de mandar alguém específico para ir ao Encontro.
O Lampião só estava interessado em pegar uma entrevista aqui, em pegar
outro artigo ali, e botar isso no jornal. Na época, não havia nada na imprensa oficial.
Até então, só se ouvia falar de gay na revista Manchete, com os bailes de carnaval,
ou em matérias que abordavam a questão do homossexualismo de forma
preconceituosa.
Quando ocorre a cisão entre o jornal e os grupos começa o questionamento
por parte dos grupos em relação ao jornal. Numa série de situações, os grupos
começaram a questionar o Lampião... sobre essa posição dele ter uma linha menos
politizada. Mas, infelizmente as coisas não são como a gente quer! O jornal tinha
que se adaptar a uma questão real, o Aguinaldo botava dinheiro do bolso dele. Desta
forma, juntavam-se a questão financeira, os aborrecimentos crescentes e a sensação
de Montanha Russa que já descrevi, na crise que deu fim ao jornal.
Os grupos, por mais que fossem organizados, não conseguiriam manter um
jornal. Mesmo porque o jornal não era representante dos grupos. Eles não podiam

547
cobrar nada! Na verdade, os grupos cobravam as posições que queriam, mas
poderiam não ser correspondidos.
Cito outro exemplo da novela A Próxima Vítima, os grupos feministas estão
questionando uma personagem machista que agrediu uma mulher. Na trama, a
personagem pegou a mulher trepando com outro homem na cozinha. Na perspectiva
do grupo feminista, o autor da novela não podia abordar a questão daquele jeito. Eu
tenho opiniões diferentes!
Certamente é uma agressão! Isso faz parte do inconsciente coletivo, o homem
pode pensar: “- Ele está justificando, caso minha mulher me traia, então posso
matar... posso machucar!” Afinal, o homem está vendo na televisão! Concordo com
a preocupação das feministas, mas também não posso censurar a novela! Trata-se de
um folhetim!! O autor coloca como vilã essa personagem que foi agredida. Desta
forma, percebo que as duas partes têm as suas razões!!!
Pensei nesse exemplo, para comparar com a situação do Lampião com os
grupos homossexuais. A questão dos grupos organizados quererem que o jornal
fosse politicamente correto. Realmente, por exigência dos grupos houve discussão.
Porém, os interesses não caminhavam juntos.
Não creio que um caminho deva prevalecer sobre o outro... não pode ser
assim! Temos que ter democracia para mostrar o lado das porradas e discutir por quê
foram dadas. Desta maneira, chegaremos a um denominador comum. Caso
mostremos só as porradas, elas não vão acabar porque deixaremos de discuti-las,
assim nunca chegaremos ao ponto crucial de encerrar a questão.
No Brasil, a discussão sobre homossexualidade não é tão sectária, como nos
Estados Unidos. Lá os caras partiram para a porrada! Não estou dizendo que no
Brasil não tem isso - na verdade tem -, mas o movimento busca mais esse lado
alegre. A passeata que encerrou a Conferência da ILGA em Copacabana é um
exemplo disso. Os brasileiros têm esse poder de serem mais alegres, de buscar um
outro caminho, apesar de haver muita violência. Porém, no mundo todo há essa

548
violência contra o homossexual. O movimento em si procura outros caminhos que
não seja o sectarismo... posso estar errada, mas essa é minha opinião pessoal!
Quando os movimentos começaram a se organizar no Brasil, acho que há
influência das idéias norte-americanas, pois essas se deslocam para o mundo. De
forma geral, os gays lêem e se informam bastante. São pessoas preocupadas em ficar
antenadas com o que está acontecendo. O indivíduo absorve essa influência de uma
certa maneira. Porém, não sei em que medida isso pode ter encaminhado a questão
até um determinado ponto. Afinal, o Brasil é muito peculiar, tem o carnaval, tinha o
Baile dos Enxutos. No nosso país, por mais que se queira discutir com seriedade, há
um pouco da galhofa, há um pouco do mis-en-scene... temos mais jogo de cintura!
Hoje em dia, nem sei como está a questão do movimento organizado. Leio
algo a respeito, algum amigo ou outro me informa sobre o assunto. Após a
organização de grupelhos, grupos e grupos grandes, em todo o Brasil, na década de
setenta e oitenta, o movimento foi se esvaziando... Esse movimento organizado só
volta a tomar fôlego com a questão da AIDS. Neste momento, voltamos a saber de
grupos reunidos para discutir a questão da homossexualidade, para discutir política,
mas intrinsecamente ligada a questão da AIDS. Atualmente, os movimentos do
mundo inteiro estão politizados, por conta da questão da AIDS. Não vejo esse
debate separado! Em alguns lugares do mundo, os grupos estão organizados porque
querem cobrar seus direitos, mas a grande maioria dos grupos está organizada por
causa da questão da AIDS.
Como no início a AIDS era apontada como uma doença homossexual, esse foi
o caminho que homens e mulheres acharam para se preservar. Está mais que
comprovado que não é uma peste gay, mas a AIDS foi muito importante nessa
reorganização. De forma até mais importante porque é uma doença muito séria. Para
lutar contra a epidemia juntaram-se ao público gay: os pais, mães, irmãos, irmãs,
conhecidos, primos, os quais foram tocados por essa doença. Além das pessoas que
tentam organizar a sociedade e mostrar que não é uma peste gay, mas que todo

549
mundo tem que se unir contra a AIDS. Caso fiquemos esperando pelo governo, vai
morrer todo mundo.
Independente do papel do Lampião, o público gay começou a ser descoberto.
Muita gente ganhou dinheiro. Temos um autor famoso que se especializou em fazer
peças para o público gay, pegando atores globais ou não globais, garotões, e pôs no
palco para contar algum tipo de estória. Então, a galera vai assistir esses espetáculos
porque junta o útil ao agradável: “- Vou fazer porque as bichas vão! Elas têm
dinheiro, elas gostam e pronto!!”
A grande imprensa, assim como os grandes comerciantes, começam a se
posicionar porque percebem que o grupo gay se mantém informado, tem um alto
poder aquisitivo, culturalmente é bem colocado, enfim, é um público consumidor
muito importante. Quem tem essa visão começa a incorporar esse público, pois
antigamente isso era muito pulverizado. Assim, as pessoas começam a se organizar
para chegar até esse público.
Surge assim uma literatura mais voltada para o público gay, as universidades
passam a discutir a questão, as pessoas do Lampião são convidadas para discutir o
papel do jornal, os movimentos sociais convidam membros do movimento
homossexual para debates nas faculdades, realmente, começamos a discutir a
homossexualidade. Apareceram peças de teatro, começaram a surgir, com mais
intensidade, alguns filmes endereçados ao público gay. O interesse foi crescendo e o
jornal veio nesse bojo. Enfim, o Lampião foi importante para a divulgação desses
eventos, para mostrar que existia a boate gay, existia uma literatura gay. Ele
contribuiu nessa divulgação, ao ponto de se tornar uma bandeira mesmo!
Quando o Lampião acabou, as pessoas ficaram órfãs. As publicações que
existiam eram muito fracas, não tinham periodicidade, não tinham dinheiro para se
manter... hoje em dia ainda há esse problema! Atualmente, a única revista brasileira
é a Sui Generis, não há outra com boa qualidade. Na verdade, há outras publicações,
não estou desmerecendo nenhuma delas, elas são voltadas para o consumo político,

550
consumo visual, festivo. Elas são voltadas para o público gay masculino, muitos
homens bonitos, pelados, seminus... muito músculo e pouca informação! Porém,
depois do Lampião não me lembro de nenhum jornal voltado à reflexão... só a Sui
Generis que está surgindo agora.
Hoje em dia, há uma gama de pessoas interessadas em tudo. O
homossexualismo está mais aberto, mesmo assim há o preconceito... não adianta!
Haverá brigas, conquistas... isso não vai mudar! Há essa novidade GLS, mas o
preconceito vai continuar. É uma questão que não será ganha facilmente, tratam-se
de idéias arraigadas há anos na cabeça das pessoas... não sei se elas estão afim de
mudar.
Quando se fala de homossexualismo, na verdade estamos discutindo a
sexualidade de homens e mulheres. Essa discussão é uma carga muito pesada. O ser
humano não consegue resolver esse problema. É uma questão séria em nossa cabeça.
Discutir a sexualidade, definir o que é normal e o que é anormal, o que pode e o que
não pode. Questionar a forma como sinto prazer e o por quê não sinto prazer de
outro jeito.
Tanto que as pessoas dão importância em saber com quem fulano trepa: seja
no local de trabalho, na escola, no prédio. Elas estão sempre interessadas: “- Ele é
casado? Ele é solteiro? Ele tem amante? Ah! Aquela moça não sai com homem!
Que coisa estranha!? Será que ela é sapata!! Aquele cara não me engana, ele é
casado, mas acho que desmunheca!” É impressionante como as pessoas se
preocupam com a sexualidade do outro.
Mesmo num papo informal! Numa brincadeira! Sentada com os colegas ou
comendo, a pessoa escorrega e já está falando: “- Fulano está comendo sicrano
porque não vai bem no casamento”, ou: “- Ihh! Mas aquele cara!? Quem diria!? Ele
tá comendo um monte de garotinha no trabalho!!” A sexualidade é o fator em torno
do qual gira a conversa. Se fulano está trepando com uma mulher bonita ou com uma
mulher feia, se só fala em mulher ou não fala.

551
É impressionante como a sexualidade gera tanta preocupação. A sexualidade
é muito importante para as pessoas, temos que discutir esse assunto! De forma geral,
a mulher discute a sexualidade do ponto de vista homem-mulher, enquanto o homem
só pensa no próprio prazer. Hoje em dia, temos um ganho nessa área, afirma-se que a
mulher não tem prazer porque o homem só pensa em si próprio. Mas, por que o
homem só pensa nele? Por que ele foi criado para pensar assim?
Atualmente, já se pensa sobre a questão: o homem está perdido diante da nova
mulher. Ele não sabe mais como se posicionar nesse mundo, está em crise porque a
mulher avançou e ele parou. Esse homem que parou tem tanto medo dessa nova
mulher - “como sempre teve” -, que parte para a agressão. Ele é mais forte
fisicamente! Especificamente neste ponto, está a questão do poder sexual do homem:
o momento da violência sexual, o espancamento e o estupro de mulheres, o aumento
do abuso sexual de crianças.
Alguém pode me provar que estou errada, mas a televisão tem uma parcela de
culpa nessa violência. Ela reforça esse tipo de comportamento do homem machista,
do homem dono do mundo, do homem dono da mulher. Quando se liga a televisão,
presenciamos essa questão claramente. Nesse sentido, esse homem é convencido de
que é dono de tudo, mas no seu dia a dia, ele vê que não é dono de nada. A única
forma que tem para continuar se sentindo dono de alguma coisa, é usando a força!
Seja na porrada física, nas atitudes que ele toma. E isso tudo passa por onde!? Pela
sexualidade!! No dia em que o homem e a mulher tiverem essa discussão
esclarecida, creio que vamos ter outra visão do mundo.
Quando o homem descobrir o significado do prazer e perder o medo numa
cama, ele vai ter mais consciência de si próprio. O homem tem medo do próprio
corpo! Ele não gosta de ser tocado! Na semana passada, li um artigo no JB sobre o
alto índice de câncer de próstata, porque o homem não vai ao proctologista: ele tem
medo do toque retal. O homem, depois de uma certa idade, tem que fazer este exame
periodicamente, assim como a mulher tem que fazer exames para prevenir o câncer

552
de útero e de mama. Ele tem o médico para cuidar disso, mas não vai porque tem
medo: “- Nem pensar!!!”
Quem nunca ouviu uma história ou presenciou o fato de alguém estar
passando na rua, ou dentro do ônibus, e de repente esbarra a mão no bumbum de um
cara. O homem vira para trás já querendo te bater! É um negócio tão engraçado! Ele
tem pavor! Por que esse medo do homem!? É o medo da passividade, ao certo ele
deve pensar: “- Não! Se alguém ver passar a mão na minha bunda, vão pensar que
sou viado!” Esse é o grande problema, o homem morre de medo dessa possibilidade:
“- A mulher! Passar a mão na minha bunda!! O que ela vai pensar de mim?”
Por que o homem sacaneia tanto a bicha? É porque tem medo daquilo, para
ele é impraticável ver aquele negócio. O homem precisa se conscientizar da
sexualidade dele. Mas tem de fazê-lo discutindo, não fazendo essa papagaiada.
Nesse sentido, vamos conseguir um ganho maior do que todos que já tivemos até
hoje. Enfim, é uma questão sobre a qual estamos começando a engatinhar. No dia em
que o homem tiver esta resposta clara, acredito que vamos mudar muitos aspectos
dessa sociedade... em todos os níveis, inclusive o de poder. O sexo ainda é um fator
predominante de poder.

553
Segunda Rede:

Os Colaboradores do Lampião.

Nome do Local e data Idade à Local e data Textos Local e data


colaborador de época da da conferidos da
envio do conferência conferência enviados autorização
texto pelo correio do texto
João Carlos Osasco-SP 47 anos Rio de Rio de
Rodrigues 200 em Janeiro-RJ Janeiro-RJ
21/03/1997. _________ em
01/04/97 27/03/97
Luiz Carlos Osasco-RJ. 51 anos Na Rio de
Lacerda201 Em residência Janeiro-RJ
21/03/1997. do escritor _________
no Rio de 09/04/97
Janeiro. Em
07/04/1997
José Salvador- 49 anos Na Rio de
Fernando BA. Em residência Janeiro-RJ
Bastos202 25/03/1997 do jornalista _________
no Rio de 10/04/97
Janeiro. Em
10/04/1997
Alexandre Osasco-SP 44 anos Na Brasília-DF
Ribondi203 em residência
21/03/1997. do jornalista __________ 05/05/97
em
Brasília.Em
05/05/1997

200
Surge como Membro Colaborador do jornal no Rio de Janeiro a partir de fevereiro de 1979
(Nº 11), permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).
201
Surge como Membro Colaborador do jornal no Rio de Janeiro a partir de julho de 1979 (Nº 16),
permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).
202
Surge como Membro Colaborador do jornal no Rio de Janeiro a partir de agosto de 1978 (Nº
04), permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).
203
Surge como Membro Colaborador do jornal em Brasília a partir de junho de 1978 (Nº 02),
permanece até a extinção em junho de 1981(Nº 37).

554
. Nasceu no Rio de Janeiro (capital),
em 11 de julho de 1949.

. Escritor, jornalista, roteirista e diretor de


cinema e TV

. Autodidata. Bolsa Vitae Literatura, 1993.


Bolsa Rockfeller/ National Video
Resources, 1996.

. Autor de João do Rio, uma biografia,


1996; O Negro Brasileiro e o Cinema,
1988. Série Cantoras do Rádio, 1985-
1987 (vídeos); Um Retrato
de Johnny Alf, 1996 (Vídeo)

João Carlos Rodrigues.

555
Solicitei o depoimento de João Carlos
Rodrigues algumas semanas antes de nos
encontrarmos. Objetivamente, ele perguntou
quando estaria no Rio, então acertamos a
data e o local da entrevista. Fui surpreendido
por uma doce sensação de familiaridade, sua
residência era próxima ao Rio Palace Hotel.
Afinal, não fazia tanto tempo que ocorrera a
XVII International Lesbian and Gay
Conference. Em Copacabana, algumas ruas
já não eram mais novidade. Porém, era
inconcebível não conhecer a Avenida
Atlântica. Logo pela manhã, não tive
dificuldades em chegar a sua residência.
Com espirituosidade, João Carlos Rodrigues
revigorou as experiências vividas. As
referências eram pautadas pelo biografia que
acabara de concluir sobre João do Rio.
Retomando a própria história de vida, ele fez
uma autêntica arqueologia do
comportamento humano na capital carioca.
Durante a narrativa, João Carlos Rodrigues
trançou o ritmo acelerado das palavras com
risadas alegres e gírias de malandro.

Rio de Janeiro, RJ,


20 de outubro de 1995.

556
“Antigamente havia organizações de divertimento - o Caçadores de
Viados, o Baile dos Enxutos -, sem serem politizadas. Então a novidade
seriam as organizações politizadas.”

Nasci no Rio de Janeiro, no dia 11 de julho de 1949. Os meus avós, paternos e


maternos eram nordestinos. Minha família é toda atípica, uma vertente veio para o
Rio de Janeiro em 1910, a outra veio em 1920. Meus pais nasceram no Rio de
Janeiro. As primeiras lembranças da infância: morava com meu pai, minha mãe e
umas tias... irmãs do meu pai. Vivíamos na Rua Barata Ribeiro, em Copacabana.
Numa casa muito velha que já foi derrubada. Essa casa era muito grande, com
muitos quartos e muita barata. Minha família era do Partido Comunista na época do
meu nascimento, cuja legalização durara pouco... inclusive o Partido voltara a
ilegalidade novamente!
Certa vez, vi um objeto que não sabia o nome. Quando uma criança vê um
copo pela primeira vez, geralmente não sabe como chamá-lo. Depois aprende porque
ouve alguém dizer pelo nome. Assim, perguntei aos mais velhos o que era aquilo.
Era uma impressora que rodava a Voz Popular. Na época, um desses jornais
clandestinos feitos pelo Partido Comunista. Em 1956, quando houve a invasão da
Hungria, meus pais saíram do Partido Comunista... na chamada Dissidência dos
Intelectuais! Na mesma época, saíram o Agildo Barata, pai do Agildo Ribeiro, o
Osvaldo Peralva, além de outras pessoas.
Na época de infância, o relacionamento com meus pais poderia ser melhor.
Sou o mais velho dos quatro irmãos. Na verdade, seria o terceiro filho, porém minha
mãe passou por dois partos, nos quais um menino morreu e uma menina nasceu
prematura. Depois veio meu nascimento, logo após nasceu uma irmã e
consecutivamente outro irmão e mais uma irmã.

557
Não gosto desta minha irmã mais velha. Ela é uma pessoa muito
desagradável. Não falo com ela há anos. Para dar uma idéia do porquê, já mudei de
profissão várias vezes, pois quando decido fazer algo, ela resolve fazer o mesmo.
Parece uma tentativa de competição ou de aproximação, mas não estou afins de
curtir nada disso! Ela fala alto, é o tipo chato que gruda... isso no espiritismo chama-
se encosto!
Quando nós éramos crianças, ela sempre aprontava coisas terríveis... mordia
as professoras. Como era o mais velho, os professores chamavam-me porque éramos
alunos da mesma escola. Como éramos de turmas diferentes, os professores
buscavam-me na sala de aula, ao invés de chamar meu pai ou minha mãe! Neste
caso, minha irmã sempre aprontava para ver se eu resolvia. E eu não estou afins de
resolver problema de ninguém! Não sei se chamam isso de falta de solidariedade,
mas digo: cada um tem que cuidar de si! Não é possível depender de uma pessoa
para resolver seus problemas! Cada vez mais, minha irmã arruma problemas para
girarmos em torno dela: ela tem esse jeito! Quando criança, ela gostava de brincar de
ficar doente para minha irmã mais nova cuidar dela. Enrolava o braço, fingindo que
estava engessada... deve ser alguma carência! No caso, quem teria algum motivo
para ser carente, acho que seria eu. Fui o filho que nasceu após dois partos sem
sucesso. Ainda morávamos nessa casa grande com as minhas tias. Quando ela
nasceu, a casa antiga já fora derrubada. Meus pais moravam num apartamento
menor. Nesse caso, eu devia entrar mais em competição com ela do que ela comigo...
Na escola, fiz um cursinho antes do primário: o pré-primário. Depois. fiz o
primário no Colégio São Fernando. Aliás o Luís Carlos Lacerda estudou no mesmo
colégio, mas em anos diferentes. Esse Colégio São Fernando ficava em Botafogo...
era estranhíssimo!!! Tinha nome de santo, mas não era católico. Quando cresci,
descobri ser uma dissidência de outro colégio. Parece que uma professora e uma
diretora - elas eram amantes -, brigaram num outro colégio tradicional... não sei qual.
Elas saíram e fundaram esse Colégio São Fernando. Eram muito respeitadas, mesmo

558
sendo amantes que, para os anos cinqüenta, era o mais aberto possível. O ensino era
bom. Um grande número de professores abandonou o antigo colégio, levando os
alunos para esse novo. O Luiz Carlos Lacerda, cujo apelido é Bigode, pode explicar
essa história melhor... ele era mais adiantado.
Depois fiz admissão no Colégio Pedro II, entrei para fazer o clássico. Para
entrar na universidade, prestei vestibular na área de História... passei! Como foi na
época do governo Médici, parei de estudar e comecei a fazer teatro. Participei da
peça Roda Viva do Zé Celso Martinez Corrêa aqui no Rio. Inicialmente, atuei na
parte técnica, além de atuar um pouco como ator, durante trinta dias que mudaram
minha cabeça para sempre. Desta forma, passei por este percurso, mas não voltei
mais aos estudos, pois já levava uma vida muito definida. Na época, o teatro era algo
de extremissíssima vanguarda, principalmente esse grupo ligado ao Zé Celso.
O Zé Celso dirigiu Roda Viva fora do Teatro Oficina. Ele lançou atores hoje
famosos, todos mais ou menos dessa época. Pedro Paulo Rangel e Zezé Mota foram
os que ficaram mais famosos! Porém, nessa peça havia atores como a Marieta
Severo. Quando a peça foi para São Paulo, não fui com o elenco, mas um dos atores
adoeceu e fui fazer umas substituições lá, depois não fiz mais... fiquei sem fazer
teatro e cai noutra. Como era da Zona Sul do Rio, morava em Ipanema na época,
presenciei o movimento da Contracultura. O comportamento meio hippie prevalecia
na minha forma de agir, mas era algo mais politizado. Sempre tive esse lado meio
político.
Em 1972, fui em auto-exílio para São Francisco nos Estados Unidos. Vivi lá
um ano. Peguei o finalzinho da efervescência da época: a volta dos soldados do
Vietnã. Perto de São Francisco, conheci uma colônia de nudismo, todo mundo ficava
sem uma peça de roupa. Não era nenhum lugar pago, mas os hippies tomaram conta
do espaço. Experiências que achava interessante, bem no estilo de São Francisco. Na
cidade, havia vários bairros onde só viviam homossexuais.

559
Não quis ir para Londres, onde todos se refugiaram, apesar de estar num
grupo próximo do Caetano Veloso. Um tio meu morava em Londres porque teve
seus direitos políticos cassados. Enfim, a tendência seria ir para Londres, mas não
gostava tanto da cidade: não queria ir para Londres! Preferi ir para São Francisco
porque gostava de Frank Zappa, Timothy Leary, de LSD. Gostava mais do ambiente
desta cidade com sol, praia... enfim, coisas mais ao estilo de um carioca. Não vi
nenhum brasileiro, sequer conheci algum! Achei uma boa experiência, para aprender
a falar inglês, pois quando alguém vai ao exterior, caso a pessoa permaneça num
grupo de brasileiros, ela não aprende a língua! Conheço pessoas que foram para
Londres, até hoje não falam inglês direito, nem podem ver um filme sem legenda.
Provavelmente, alguma outra falava inglês, por exemplo, na hora de comprar algo.
Desta maneira, o que adiantou!?
Em São Francisco, já tinha a Gay Sunshine, embora só tenha conhecido o
Winston Leyland cinco anos atrás! Antes de ir para São Francisco, escrevi para o
Gay Sunshine, não tanto por ser gay, mais por ser underground, assim como escrevi
para outras publicações. O Gay Sunshine foi um dos poucos que me respondeu...
engraçado! Anos depois conheci o Winston Leyland porque ele vem muito ao Brasil!
São Francisco também tinha esse lado!
Em 1973, estava em Nova Iorque, morei lá um ano. Trabalhava num emprego
careta, era subgerente de um cinema na Quinta Avenida... um cinema até chique!
Quando voltei para o Brasil, fiquei trabalhando como crítico de cinema num jornal
chamado Crítica. Em 1977, fui trabalhar na Embrafilme, primeiro na parte
comercial, numa distribuidora, depois entrei na parte cultural. Acabei como editor da
revista Filme e Cultura, na qual o Jean Claude Bernardet era um dos componentes
do Conselho Editorial.
Conheci o pessoal do Lampião quando ainda estava na parte comercial. O
Adão Acosta fazia os contatos, foi uma das funções que ele exerceu no jornal. Desta
forma, o Adão apareceu na Embrafilme, mostrando o jornal e perguntou se alguém

560
queria escrever para o Lampião. Disse que queria, fiz o contato e fui na reunião...
acho que apareço no número dois ou três! No número sobre o processo, no qual é
solicitada a opinião de algumas pessoas. É o primeiro número que faço algo, acho
que tem uma opinião minha lá! Foi assim que entrei no jornal!
O Lampião, digamos assim, é uma dissidência jornalística do Opinião e do
Pasquim. De certa maneira, jornalisticamente é uma mistura do Opinião e do
Pasquim, feito sobre o ponto de vista gay. O Aguinaldo trabalhou no Opinião e a
primeira entrevista que eles deram, antes do Lampião sair, foi no Pasquim. O
Pasquim tinha um lado aberto para a sexualidade, embora fossem machistíssimos!
Inclusive, a maioria dos jornalistas do Pasquim acabou ficando reacionária, mas eles
deram guarita ao Lampião. Havia o Chrysóstomo que eu não conhecia. O Aguinaldo
trabalhou no Globo, Última Hora... era um escritor! Nesse sentido, o Pasquim deu
muita força no início. Essa entrevista é antes do primeiro número do Lampião,
apresenta o lado político do jornal. Como começou exatamente a “abertura”, não
dava mais para o Aguinaldo escrever artigos no Opinião, um jornal com outras
pretensões políticas, onde, aliás, o Bernardet também escrevia. O Aguinaldo ou o
Bernardet poderiam explicar melhor como saíram do Opinião. Talvez o Clóvis
Marques também possa. Desta forma, houve esse lado, eles acharam que a questão
política já deveria ser tratada de forma diferente!
Acredito que sempre houve tendência política no Lampião... não era algo só
para fazer igual! A Sui Generis, por exemplo, não tem nenhuma pretensão com a
reforma dos costumes, é apenas uma revista de serviços gays, com um certo bom
gosto, mas é mais uma revista do que um jornal. A Sui Generis não é crítica, ela é
apenas jornalística... no sentido mais ameno! O Lampião tinha esse compromisso
com a “abertura”, com uma série de questões a serem resolvidas.
Não peguei a divergência com o João Antônio Mascarenhas, ocorrida no
início do Lampião... só ouvi contar! Conheci o João Antônio Mascarenhas muito
tempo depois, parece-me uma pessoa pouco objetiva e pouco profissional. Não deve

561
ser mole fazer um jornal com ele! Profissionalmente, ser comandado por ele seria
difícil! Acredito que o jornal aconteceu porque o Aguinaldo era um jornalista. Ele
era a pessoa que sabia a rotina de jornal: “- Tem de fechar no dia tal! E o fotolito!? E
não sei mais o que!!?” Ele tinha todas essas preocupações, mas vou falar sobre isso
depois.
Como havia morado em São Francisco, desejei escrever. Quando morava nos
Estados Unidos, já existia essa mania que hoje se chama Coalizão Arco-íris. Nos
Estados Unidos, esse reverendo Jesse Jackson a chama de não sei o que Rainbow, ou
seja, para ele reúne gay, preto, índio, mulher, enfim, todas as pessoas excluídas do
sistema. Isso representava o centro da filosofia Yippie. Não se trata da filosofia
Hippie, mas havia os Yippies que eram politizados. Num pequeno período, durante a
Guerra do Vietnã, isso existiu e tinha tudo a ver. Não eram os Yuppies! Os Yuppies
são os caretas de terninho! Quando voltei ao Brasil, puxei o jornal para esse lado
porque me interessava... não só a mim! Achava importante colocar aqueles assuntos
na pauta, politicamente era uma forma de não guetificar o jornal. Era uma saída tanto
para nós quanto para os outros. Por um lado, as idéias vindas da América do Norte,
ficam fora do lugar no Brasil porque vêm de um país protestante... e o Brasil é bem
diferente!! Por outro lado, o Brasil é um país muito influenciado pelos Estados
Unidos, principalmente a classe média que geralmente é mais politizada! Desta
forma, acredito que, apesar de tudo, as idéias foram bem vindas!!
Além do que, vivemos numa sociedade muito misturada. Temos a história da
antropofagia do Oswald de Andrade, pega-se a coisa de fora para transformarmos
numa coisa nossa. Por isso, acho que essas idéias são bem vindas, porque senão
ninguém organiza nada para nós. Caso todo mundo fique achando: “- É, porque eu
passo na casa da dona fulana, ela não discrimina, então tudo bem!” Não é bem
assim!!
Eu publico no Lampião com objetivo político. Queria construir uma utopia ao
estilo de São Francisco. Na minha cabeça, queria ajudar a construir algo que reunisse

562
todos os segmentos, para melhorar. Hoje em dia, percebo algo que não tinha me
dado conta: eu era anarquista, mas na época achava que era maoísta. Atualmente,
ainda acredito ser de extrema esquerda. Mas não gosto de fazer provocação! O
esquema não é jogar pedra na cabeça do Papa, o ideal é fazer com que não exista
mais Papa... na realidade isso é mais conseqüente à longo prazo. Meu objetivo,
basicamente, era esse. Aliás, acho que fiz o que propus.
Lembro que escrevi um artigo sobre a lei cautelar. O Lampião foi um dos
jornais que mais fez ações contra a lei cautelar. Essa instrumento permitia à polícia
pegar sujeito na rua! Ele podia ficar três dias preso, no quarto dia comunicariam ao
juiz. É claro que isso não passou!! Mesmo assim, outros jornais da imprensa nanica
demoraram a se manifestar, porque pensavam assim: “- Não! Quem sabe não pega
ladrão em ponto de ônibus!? Ele merece ser preso!” Não era o caso!! E o sujeito que
não era ladrão? Ele podia estar no ponto do ônibus e a polícia pensar que era ladrão!!
Basicamente, a lei cautelar pegaria as pessoas namorando na rua, era algo que podia
atingir diretamente a liberdade das pessoas. Posteriormente, os outros jornais
passaram a publicar artigos contra a lei cautelar! Entretanto, o Lampião foi o
pioneiro.
Certa vez, fiquei responsável em arrumar a entrevista com o Gabeira. Arranjei
essa entrevista na praia de Ipanema, pois freqüentava a mesma praia que ele. Havia
uma pessoa, a Mirna Grzlich, que fez o contato. A entrevista foi feita, teve que ser
regravada porque a fita não registrou nada. A primeira entrevista foi melhor!! O
Gabeira tem um livro no qual relata mais ou menos este fato... acho que é o
Crepúsculo do Macho. Só que ele não cita o nome das pessoas. No livro, ele escreve
assim: “os homossexuais chegaram com seu gravador.” Ao invés de falar o nome das
pessoas... coisa de maluco! Nessa época, o Aguinaldo Silva estava na entrevista, ele
já tinha doze livros publicados. Fui também um dos idealizadores da entrevista com
Abdias Nascimento. Sugeri idéias sobre tudo o que referia ao movimento, por

563
exemplo o contato com o movimento negro, isso era feito comigo ou através de
mim!
Depois contribui na área mais ligada à cinema. Cheguei a fazer algo que
ninguém sabe, mas vou contar agora. No Lampião, há um anúncio que ocupa uma
página inteira do filme Embalos de Ipanema do Antônio Calmon. Paguei do meu
bolso o fotolito, fingindo ser um anúncio! Através da Embrafilme, consegui tirar
esse fotolito, pagando um preço barato... claro que não paguei uma nota! Dei para o
Lampião, como se fosse um anúncio, porque me interessava mostrar que o jornal
podia prestar esse serviço. Desta forma, outros anunciantes poderiam fazer o mesmo.
Era a melhor maneira do jornal crescer e das pessoas virem a ser pagas. Caso
houvesse anunciantes, o Lampião poderia assumir as características de um jornal
como o Pasquim que pagava seus colaboradores. Não lembro em que ano fiz isso,
deve ter sido no segundo ano. O certo é que todo mundo trabalhava por vontade
própria.
Duas pessoas trabalhavam muito na redação: Alceste Pinheiro e Antônio
Carlos Moreira. Os dois passaram a se odiar, parece que continuam na mesma
universidade e ainda não se falam... não sei o por quê. Coisa de gordinhos, os dois
são gordinhos. Eles faziam esse rame-rame da redação: “- Pega o fotolito! Pega não
sei o que! Faz a revisão! Leva não sei pra onde! Vai ver na gráfica se está pronto!?”
Essa mão de obra, quando comparada com os dias de hoje, parece o trabalho da
Idade da Pedra... atualmente tudo é feito pelo computador...
Quando estava na cidade, sempre freqüentei as reuniões de pauta na redação...
sempre!!! Todo final de tarde estava lá, gostava de ir para conversar com eles. O
próprio cotidiano era bem agitado! Cheguei a ver reuniões de pauta bem agitadas na
parte da manhã. O Francisco Bittencourt e a Dolores também ficavam muito no
local. Basicamente, esses quatro ficavam no redação: Francisco Bittenccourt,
Dolores, Alceste e Antônio Carlos. O Aguinaldo era o editor, ele supervisionava esse
lado todo. Algumas vezes, o Adão também aparecia na redação. O Lampião era

564
impresso à noite no Jornal do Comércio. Por duas vezes, fui ao Jornal do Comércio
com eles para ver o fotolito.
Acho que o jornal é pioneiro, é importante exatamente porque cobria várias
facções que, a medida do possível, não entravam em choque. Estava interessado, a
minha maneira, nessa questão do arco-íris. Havia outro lado, exatamente o contrário,
que dedicava-se ao serviço gay: peças de teatro, etc. O Adão dedicava-se muito a
esse lado Show Business. O Alceste e o Aguinaldo dedicavam-se mais à reportagem.
Eles eram as pessoas interessadas nessa questão porque são mais repórteres do que
articulistas... embora na verdade o Aguinaldo também seja articulista!
Eu não sou bom repórter como eles. Caso uma pessoa recuse um pedido para
uma entrevista, não insisto mais! O repórter não é isso, ele tem que encher o saco da
pessoa até conseguir a entrevista. Se for entrevistar, às vezes brigo quando a pessoa
fala algo que não concordo... isso também está errado! O repórter tem que provocar,
tem que fazer o outro gritar e não pode querer estrangular a pessoa. Desta forma,
reconheço que sou um bom articulista, sou um bom crítico. O Alceste era ótimo
repórter, assim como o Antônio Carlos. Enquanto o Aguinaldo podia ser tanto
repórter quanto articulista. Raramente participei das entrevistas, embora elas fossem
para fazer perguntas, não era bem reportagem, eram mais para entrevistadores!
Participei de algumas: a do Gabeira, a do Abdias, além de outras que não me lembro
no momento, uma foi com o ator Anselmo Vasconcelos...
Desde a adolescência, começo a desenvolver o lado político. Ser filho de
comunistas é como ser filho de beata, a pessoa automaticamente é puxada para esta
tendência. Porém, não sou comunista, nem marxista, considero-me anarquista. Nesse
sentido, também tenho um lado de rebeldia. Sou muito isolado, não gosto de
obedecer nada. Mesmo no Lampião, eu não ficava na redação o dia inteiro. Eu até
me considerava como parte do grupo, porém gosto de manter uma distância crítica
do assunto. Desta forma, estava no jornal porque queria, não porque precisava. Não
queria me promover. Pelo contrário, tinha um emprego público e aquele jornal só

565
poderia ter me atrapalhado. Não atrapalhou porque não havia preocupação em
perseguir ninguém por essa causa.
Por incrível que pareça, o que atrapalhou o jornal foi o surgimento dos grupos
de gays organizados... depois do tal congresso!! Claro, no movimento gay tem que
ter isso! No momento em que houve o congresso gay, esses grupos começaram a
pressionar o jornal! Não recordo o ano em que aconteceu... isso tem no jornal.
Inclusive, esse é um dos motivos pelo qual o Aguinaldo não está querendo falar. O
Aguinaldo sempre foi contrário aos grupos, hoje em dia ele é ainda mais. Ele
acredita que os grupos não são representativos. Essa era uma das acusações que se
fazia. Quando aparecia uma pessoa e dizia: “- Eu represento os homossexuais da
Paraíba”, sem nunca termos conhecido nenhum grupo de lá, não podíamos dizer se
era verdade ou não. O grupo do Luiz Mott, por exemplo, não existia e não existe até
hoje... outros dizem que existe! Quando afirmam que o Grupo do Luiz Mott, em
Salvador, distribuiu não sei quantas mil camisinhas no carnaval da Bahia... quem
tem certeza que essas camisinha foram distribuídas!? Não Basta alguém mandar uma
nota para o jornal dizendo que distribuiu.
O problema é que os grupos queriam que o jornal fosse porta-voz deles...
quando não era!!! O jornal tinha donos que precediam a existência dos grupos, entre
os quais, vários não eram de grupo nenhum... alguns até eram contra os grupos. Na
verdade, parece que o Trevisan, o Darcy Penteado e o pessoal de São Paulo, foram
ligados a grupos. Eles forçavam a barra. Inclusive, em alguns momentos, o
relacionamento do Aguinaldo com o Trevisan, não sei se pessoalmente, mas
politicamente chegou a quase bater de frente! O Trevisan defendia que o jornal devia
ser porta-voz dos grupos, enquanto na minha perspectiva achava que não devia...
No meu modo de ver, o jornal devia mostrar todas as tendências, inclusive os
movimentos... mas não podia ser só isso! Não sei porque, mas parecia uma tentativa
de dominar a redação. Neste caso, havia os grupos com ex-seminaristas que odiavam
os travestis, enquanto os travestis, por sua vez, eram reacionaríssimos politicamente.

566
Havia de tudo, era uma situação muito eclética. Desta forma, acreditava que a
melhor maneira de lidar nesse meio era defender a idéia do arco-íris. No jornal cada
um tinha seu espaço, assim mantínhamos as propostas de todos. Isso era melhor do
que sustentar uma única proposta da qual as outras pessoas fugiriam!
Neste caso, uma pessoa que procurasse informações sobre a programação gay
no Rio de Janeiro, encontraria. Porém, caso a pessoa abrisse um jornal que fosse
porta-voz do grupo SOMOS, um grupo bem radical da época, ela não gostaria. Da
mesma forma, o pessoal do grupo SOMOS que fosse ler o jornal e tivesse só
travestis de biquíni, também não agradaria. Por incrível que pareça, ser democrático
era a melhor forma de resolver este problema, apresentando no jornal um pouco de
tudo. Isso ajudava a tolerância entre as diferenças, caso elas permanecessem
separadas seria pior!
Apesar do jornal não ser um porta-voz, acho que o Lampião serviu para
articular os grupos... até pelo lado Show Business. Nessa época, a Praça Tiradentes
voltou a fervilhar como um ponto gay. Ela era mais interessante que a Cinelândia!
Na Cinelândia, a pessoas são muito comportadas... é muito profissional! Não era o
caso da Praça Tiradentes, lá existia uma aura de boêmia... um negócio muito doido!
Teve inclusive uma festa chamada Gueifieira, onde era o Teatro São José... hoje não
existe mais! O Teatro São José foi uma das melhores casas noturnas do Rio.
Primeiro porque podia entrar todo mundo, os gays que freqüentavam eram maioria,
mas não era um ponto especificamente gay. Tinha show de travestis, cantando com a
própria voz... eles não faziam dublagem! No São José, cabia duas mil pessoas.
Houve momentos sensacionais. Um pouco do leitor do Lampião era constituído
assim. Nesse sentido, houve um lado de prestígio do Lampião. Madame Satã, o
primeiro bandido gay mais conhecido, nessa época estava vivo. Uma vez, ele chegou
a reclamar, dizendo que no seu tempo as bichas não eram incentivadas como
naquela época. Madame Satã usou um termo ótimo para definir o papel do Lampião!
Incentivar!

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O Antônio Chrysóstomo, um produtor de música já falecido, fez espetáculos
de aniversário do Lampião... duas ou três vezes! Uma vez no Teatro Carlos Gomes,
as outras no Teatro Rival. Nos espetáculos de aniversário, por causa do
Chrysóstomo, apareciam cantores conhecidos. Pessoas realmente expressivas:
Angela Maria, Johnny Alf. O Johnny Alf, por exemplo, talvez seja o primeiro cantor
e compositor gay brasileiro. Ele não fala da vida dele, mas é algo óbvio! Por isso, eu
acho interessante. Tem um jeito meio gay, não precisa sair de saia ou com uma
peruca roxa até a cintura, como o Cauby Peixoto! Nesse ponto de vista, era uma
pessoa muito discreta. O Johnny aparecia na festa, tocava Eu e a Brisa... era o
máximo!
O final do Lampião aconteceu por vários motivos!! Parece que havia um
detentor dos direitos da marca Lampião, ele ameaçava processar a todo momento. O
jornal não estava dando dinheiro - se é que algum dia deu -, mas parece que
começou a dar prejuízo; o Aguinaldo devia estar de saco cheio porque fazia tudo, o
tempo inteiro. Não faz sentido a pessoa não ganhar nada depois de anos, gastando
muitas horas de trabalho, quando podia estar ganhando dinheiro. Os grupos estavam
enchendo o saco, chegavam cartas chamando-o de traidor da causa, cartas exigindo:
“- Ah! Vai botar isso...!!!”, e ele comunicando: “- Não vou botar matéria
nenhuma!!!” Havia esse lado irritante das divergências! E esse período coincide
exatamente com a fase que o Aguinaldo deixa de ser escritor e passa a ser roteirista
de televisão.
Por volta de fevereiro de 1981, no número trinta e três do Lampião, o jornal
sofre uma reestruturação. Não sei se coincide com a época do processo do
Chrysóstomo. Possivelmente, o processo do Chrysóstomo contribuiu para o final do
Lampião. Ele foi acusado de corrupção de menores, por causa de uma menina de
nove anos. Provavelmente era tudo mentira, mas o Chrysóstomo chegou a ser preso.
Creio que o processo começou quando Lampião ainda não tinha acabado. O
Chrysóstomo era um dos donos do jornal. Por causa disso, houve uma ameaça

568
concreta, ou um conselho de advogados ameaçou, não sei ao certo, de acusar o jornal
por pregar a corrupção de menores. As penas por corrupção de menores são
gigantescas!! Nesse caso, para o Chrysóstomo sair do Conselho seria preciso
dissolver a sociedade. Não era possível tirar um sócio e os outros ficarem. Assim, os
sócios aproveitaram a saída do Chrysóstomo e decidiram acabar com o jornal. Não
tenho certeza desta história, o Aguinaldo nunca abriu o jogo, foram questões que
notei e todos os fatos começaram a coincidir.
Acredito que os sócios começaram a querer sair, havia pessoas que
praticamente nunca colaboraram: Clóvis Marques nunca escreveu uma linha;
Gasparino Damata colaborou muito pouco, mas ficou doente e morreu; o Bernardet
escreveu pouquíssimo... o que me deixou mais espantado!! O único artigo do
Bernardet que recordo, é uma crítica do filme Eu Matei Lúcio Flávio do Antônio
Calmon. É uma crítica muito violenta e corajosa, ele publicou num livro chamado
Piranha Num Mar de Rosas. Essas pessoas praticamente não colaboraram.
Por outro lado, há outros que engrossam as páginas do jornal. O Trevisan era
o mais disciplinado do grupo de São Paulo, aquele que colaborava mesmo. Como o
Antônio Carlos e o Alceste, colaboradores que ficavam na redação o dia inteiro. No
caso do Alceste e do Antônio Carlos, creio que foi a primeira atividade mais
profissional, mesmo que não ganhassem nada, a experiência serviu como estágio:
aprenderam a fazer um jornal na prática, ao invés de estudar na universidade... foi
bom para eles!!! Embora, hoje em dia, o Alceste trabalhe mais como professor do
que como jornalista. Fora da universidade, o Alceste é editor de jornais e revistas.
Na época do Lampião, parece que era muito ligado aos jornais de esportes. Enquanto
o Antônio Carlos, comanda a parte de editoração na UFRJ. Desta forma, as pessoas
aprenderam, não foram atividades em vão... Não foi um tempo desperdiçado.
O Lampião formou opinião sobre várias questões. Nessa idéia do arco-íris,
havia preconceito de umas cores contra as outras. A maioria das pessoas envolvidas
com o movimento negro visava aceitação da sociedade. De certa forma, os gays

569
também, porém o Lampião não queria a aceitação pela sociedade burguesa bem
comportada. Ao contrário dos negros que estavam mais unidos para este objetivo.
Numericamente, a maioria das pessoas quer ser normal. Isso é muito complicado,
uns querem ser absorvidos pela sociedade por causa de suas diferenças, os outros
não querem tanto. Nesse sentido, quando gays e negros estavam juntos, alguns
falavam: “- Ah! Porque nós temos o mesmo problema!”; então o outro dizia: “Não!
Não temos não!!!” Havia preconceito de preto contra gay, de gay contra preto, de
mulher contra lésbicas.
Na época, as pouquíssimas lésbicas eram infernais. Elas eram as mais
radicais! As lésbicas brigavam muito, queriam pressionar mesmo. Isso foi antes da
explosão das lésbicas. Para dar uma idéia, só havia a Maria Betânia de cantora. Não
existiam essas outras quinhentas mil, todas assumidas, que apareceram depois.
Quando o Lampião acabou, a Angela Rô Rô ainda não tinha aparecido.
Havia também um grupo estranhíssimo, o Antônio Carlos e o Alceste podem
falar dele, não que eles fizessem parte, mas conheciam melhor, chamado:
Homossexualista. Esse grupo não era de homossexuais, mas eram homossexualistas,
seja lá o que isso signifique... Parece que a Glória Perez e a Leila Míccolis, junto
com outras pessoas, participavam. Esse era o grupo carioca mais insuportável. Eles
apareciam não se apresentando como gays, fingiam não ser, era uma coisa assim...
muito esquisita. Havia um grupo querendo não sei quantas páginas em cada número
do jornal. Não sei se foi esse grupo Homossexualista. É claro, acredito que uma
página deveria ser dada, mas não metade das páginas!!! Esses grupos falavam mal
um dos outros... era fogo!!!
Além do que, havia pessoas difíceis. Um montão de travestis implicava com
os ex-seminaristas: o Trevisan, o Alceste, além de outros. O Alceste não tem um
comportamento típico, mas o Trevisan tinha um pouco... até hoje ainda tem! Uma
feição meio sacrificada, de abnegado. Concordo com essa postura, mas não precisa
ficar esfregando na cara do outro que logo começava a implicar. O Francisco era

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uma pessoa chata! Nesse ponto, acho que havia uma certa razão, pois o Francisco era
muito rigoroso com o trabalho na redação, pensava assim: “- O que!? Vai beber num
bar de crioulos, ao invés de ficar tomando conta do boletim?!” Porém, é preciso
admitir, todos eles fizeram trabalhos importantes para o jornal.
O Lampião surge como um jornal para discutir as minorias, mas nunca foi
voltado exclusivamente à homossexualidade. No final do Lampião, contudo, o
pessoal que comprava o jornal fica órfão. Há todo um lado específico que a grande
imprensa não cobria, como a parte do Show Business, do cinema. Neste sentido, o
público do Lampião realmente fica órfão. Não acredito que o Aguinaldo se
arrependa de acabar com o Lampião, caso se arrependa é bobagem dele! Foi um
jornal muito importante, mas acabou na hora certa também. Não avacalhou, não
entrou em nenhum partido. Acredito que o jornal se portou bem, começou quando
devia e acabou no momento exato.
No final do Lampião, o Aguinaldo tentou fazer uma revista pornô que não
deu certo... graças a Deus!!! O Aguinaldo não leva jeito para esse tipo de revista,
tem que ser muito cafajeste. Além do que, os modelos contratados eram muito feios.
Ninguém iria comprar! Esse tipo de revista brasileira sempre foi difícil de pegar...
mesmo hoje em dia. Certamente, as revistas americanas são mais consumidas, mas
por um outro motivo, por causa dos modelos que eram mais bonitos que os
brasileiros. É claro que quando as pessoas compram revistas para olhar homem nu,
elas vão preferir pessoas bonitas.
No final de oitenta e um, o Lampião perde suas propriedades, a grande
imprensa começa a se apropriar de sua linguagem. Isso não acontece só com o
Lampião, mas com toda a imprensa nanica. Aliás, o destino dela é esse. Depois dos
anos setenta, ela é absorvida. Isso significa que ela conseguiu romper com os tabus.
Desta forma, tem-se que arranjar outros tabus para depois de alguns anos serem
absorvidos novamente. Essa é a tendência de quem é politicamente ativo. No

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momento que a idéia é absorvida, o mesmo não deve acontecer com a pessoa que a
produziu, penso que deve-se arranjar outra causa.
A linguagem da grande imprensa mudou após o Pasquim. Hoje em dia, já vi
palavrão no Estadão, no Globo. Jornais diários lidos por velhinhas, elas não devem
gostar de certas coisas! O Estado de São Paulo foi último jornal a abrir sua
linguagem, ele chega a ser conservador demais... e não precisa!! É preciso dizer que
numa época o Aguinaldo voltou a escrever em outros jornais - no Jornal do Brasil,
além de um outro que não lembro -, o Trevisan nunca deixou de batalhar, só que
passou a escrever livros. Realmente, na questão eles eram os dois mais militantes. O
Adão parece que foi fazer shows, Miss Viado lá em Juiz de Fora. Pelo meu lado,
resolvi pesquisar a Belle Époque Gay: o João do Rio.
No início do século, a homossexualidade era considerada uma questão
médica. A pessoa não era condenada, era como se fosse um erro fisiológico: a pessoa
nasceu assim. No Brasil, tornou-se comum acreditar naquela noção que o ativo não é
homossexual. Neste caso, muita gente não era considerada homossexual: todo
mundo acha que o homem casado ao sair com outro homem, fará o papel de homem,
mas geralmente não é assim! Ele deixa sua mulher em casa, mas vai atrás de outro
papo. Em suma, tem toda essa questão do lado oculto, teríamos que pegar pessoas
para relatar essas experiências.
Nos anos vinte, havia travestis, com o João do Rio descobri dois: um
chamado Darwin. O grande número dele era a evolução da espécie, então ele entrava
de homem, fazia um striptease e virava mulher; depois havia outro chamado Mirco.
Os dois afirmavam que não eram brasileiros, mas argentinos. Há um caso de travesti
no livro Devassos no Paraíso do Trevisan, da condessa Didi. Era um travesti
brasileiro que foi à Alemanha, como se fosse mulher, para se casar com um conde.
Porém, a mãe do conde desconfiou e mandou um médico examiná-la. Didi disse que
ia se arrumar e se suicidou... isso em 1917! Desta forma, vê-se que malandro

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também se arrumava. Os travestis não eram perseguidos, mas eram mal vistos!
Quando descobertos, não eram presos, mas internados num sanatório.
No Rio de Janeiro, o movimento homossexual sempre foi gigantesco no
passado. Fiz a biografia do João do Rio, foi o primeiro escritor gay brasileiro, foi
publicado pela Top Books. Assim, levantei toda a obra dele. Desta forma, é possível
vê-lo cobrindo as ruas do Rio de Janeiro. A homossexualidade era muito comum,
havia poucas mulheres na cidade. No início, a maioria das mulheres eram pretas,
analfabetas. Depois vieram as polacas que eram prostitutas. Neste período, até mais
ou menos 1920, havia três homens para cada mulher... já imaginou o que devia ser!!?
Havia até uma piada que contei ao Trevisan, mas ele não publicou, mais ou
menos assim: “- Qual é a diferença do comerciante francês para o comerciante
português no Rio de Janeiro?” A resposta era a seguinte: “- Bem, é que o
comerciante francês faz da mulher empregada e o comerciante português faz do
empregado mulher” Neste sentido, havia os tais chamados rapazes do comércio que
eram garotinhos imigrantes, eles chegavam ao Brasil com quatorze anos, sempre
tinham um sujeito que os protegia e traçava os meninos... depois os meninos
cresciam e casavam! É uma tradição que vem da Antigüidade grega e árabe.
No centro da cidade, sempre existiram cabarés, onde travestis se exibiam e
também havia um público gay misturado. O cabaré, porém, é outro tipo de ambiente.
Ninguém dança, a luz não é apagada, pagamos uma cerveja e vemos um show, mas
sempre houve o cabarés: Casanova, Novo México... isso desde os anos trinta!
Sempre teve baile travesti no Brasil, mesmo nessa época do João do Rio.
Parece que viado se chama assim porque na Lapa havia um bloco chamado
Caçadores de Viados, mas eram os viados que compunham o bloco. Li isso na
biografia do Herivelto Martins, o marido da Dalva de Oliveira. Sempre ouvi falar
desse bloco, Caçadores de Viados, mas pensava que as pessoas saíam para bater nos
viados... não era o caso! Eram homens que saíam vestidos de mulher. No livro uma

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pessoa pergunta ao Herivelto: “- Mas eram homens vestidos de mulher ou eram
homossexuais?” E ele responde: “- Eram homossexuais.”
Quando acabou o bloco dos Caçadores de Viado, ele se transformou no Baile
dos Enxutos do São José... primeiro no Teatro República. Eram os parentes da
Marília Pera que promoviam o evento. Ela descende dos grupos de teatro de revista.
Um ramo da família ligado a parte do pai, Pera, a outra a parte da mãe, Marzulo.
Esses Marzulo organizavam o baile. O primeiro foi em 1949, mas parece que foi
simplesmente porque não cabia mais gente no Caçadores de Viado. Assim, passaram
para um teatro maior... essa é a impressão que tenho! Esse baile aconteceu até
oitenta e alguma coisa. Era muito bom porque misturava tudo! Depois vieram os
Galas Gays.
Não sei porque se chama Baile dos Enxutos, me disseram que na época era
porque os bombeiros jogavam água na porta para ninguém entrar. Nos anos
cinqüenta, às vezes era proibido, então as bichas saíam correndo e enxutas
conseguiam entrar... sem se molhar com a água que os bombeiros jogavam! O Rio de
Janeiro sempre teve essa tradição, São Francisco é a cidade com tradição, parece que
Nápoles também tem. Geralmente são as cidades litorâneas que têm tradição gay.
O Baile dos Enxutos era muito bom, acontecia num lugar onde cabem três mil
pessoas, com três andares, entrava de tudo que se possa imaginar! No último andar,
as pessoas trepavam de verdade, nos outros dois elas ficavam conversando. Na parte
de baixo, era um salão enorme, onde todo mundo dançava com orquestra ao vivo.
Aparecia a Marlene, Emilinha Borba, cantoras da mitologia Gay brasileira, bons
cantores de carnaval que ficavam dez minutos e iam embora... enfim era muito bom!
Fui nos últimos sete bailes.
Na escada para o terceiro andar, onde as pessoas transavam - no qual eu não
subia porque prefiro fazer certas coisas entre quatro paredes-, vi uma cena inusitada:
um policial militar transando com um Pato Donald! Não se via a cara de quem era,
mas a pessoa tinha arriado as calças e estava transando com o PM. Poderia ser uma

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pessoa horrorosa, velha... não interessa! Era um mito! Haja fantasia sexual: comer o
Pato Donald nas escadas do Teatro São José! Vi isso! Parecia um Fellini: era uma
coisa inacreditável! Havia também o concurso de fantasia dos travestis. Eles se
vestiam de Rei Sol, de rainha não sei o que, vi roupas assim com gola de três metros
de altura! Era algo feérico!
No mesmo lugar, durante o ano, aconteceu o Gueifieira que lotou... depois
acabou! Sem querer enterrar o carnaval carioca, o Guilherme Araújo acabou fazendo
isso. Ele trouxe para cá, Zona Sul, o Gala Gay e acabaram destruindo o Teatro São
José. Lá no centro era melhor, pois pessoas de todas as classes participavam. Quando
acabava o desfile das escolas de samba, as pessoas iam à Praça Tiradentes. Elas
entravam no baile ou ficavam do lado de fora. Por isso era bom, porque tinha de
tudo, além disso havia os pré-carnavalescos. Todos os sábados antes do carnaval!
Eles começavam um ou dois meses antes! E o evento começava a crescer, vinham
turistas. Nos bailes, vi o costureiro japonês Kenzo, completamente louco no meio do
salão... vi coisas inacreditáveis: como a verdadeira Raquel Welch ser barrada porque
já tinham entrado quatro iguais!
Recentemente, faleceu o Mário Vale, um grande amigo do José Fernando
Bastos. Desde os anos sessenta, ele organizava os bailes de carnaval numa gafieira
chamada Elite. Os bailes do Elite eram para gays de família. Lá eles podiam dar
beijinho, abraço, dançavam, podiam fazer tudo, só não podiam trepar no salão! No
Baile dos Enxutos do São José já tinha o terceiro andar, onde todo mundo trepava.
Muita gente que freqüentava o Elite, tinha horror do São José que era considerado
baixo! No Elite não entrava travesti. Os travestis também não gostavam de ir porque
era outra turma. Posteriormente, misturou tudo, mas houve uma época que era
separado: os travestis e os outros. Os códigos eram diferentes! Nos anos cinqüenta,
os mais afeminados chegavam a fazer a sobrancelha, mas andavam de óculos
escuros para ninguém ver. A melhor forma de paquerar no Amarelinho, entre outros

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lugares, era abaixar os óculos e deixar a outra pessoa ver a sobrancelha feita: “Ah! É
um deles! Podemos dar encima!”
No que se refere a Brasil, há muitas designações populares - viado, bicha -,
bicha surgiu nos anos sessenta, este termo não era usado nos anos cinqüenta. A
modificação da linguagem, falando sobre a inserção da palavra gay, parece ter sido
nos anos oitenta. Não sei se o Lampião ajudou. Talvez. Não sei se teria a ver com a
utilização pelo Lampião. Não lembro. Na verdade, um nome tinha que ser usado!!
Os outros nomes da língua portuguesa eram todos pejorativos. Não se optou pelo
termo viado, ou qualquer outro da língua portuguesa, porque a imprensa preferiu um
que não fosse ofensivo. Desta forma, a palavra gay foi escolhida para se referir ao
grupos, não os definindo como homossexuais ou viados. Assim, o termo foi aceito
enquanto senso comum. Por isso gay foi mais usado. Parece que essa é a melhor
explicação.
Porém, caso se pense com rigor, será que as pessoas que se reuniam por causa
da Emilinha Borba não formavam um grupo de gays!? Na verdade era!! Conheci os
membros, fiz um vídeo sobre eles... conheci Emilinha Borba! São pessoas que se
conhecem desde os anos cinqüenta... até hoje têm clubes! Eles não têm mais sede,
não têm mais nada, mas se reúnem para fazer festinhas. Uma vez perguntei a um
membro, não me lembro o nome dele agora, mas ele falou que nos anos cinqüenta o
único lugar onde se podia dar pinta, dar gritos - e não acontecia nada -, era no fã
clube da Emilinha Borba. Na platéia da Marlene também. Embora a Marlene tenha
mais fãs mulheres do que homens. A Emilinha é esmagadoramente o contrário,
quase todos são gays de classe média baixa. Talvez, isso tenha sido um embrião de
algo mais organizado. Dar festas periodicamente, reunir-se, é algo organizado. Na
época, talvez eles não tivessem a noção de que eram organizados, mas no meu modo
de ver eles eram. Mesmo grupos como Os Caçadores de Viados mantinham uma
forma de organização.

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Do ponto de vista cultural, havia organizações não politizadas, mas que se
formavam com as características descritas. Nos anos sessenta, a situação muda um
pouco. Por volta de 1965, quando comecei a sair mais de casa, já era uma época mais
individualista. Só os mais pobres, aqueles que freqüentavam os shows da Emilinha
Borba, eram mais comunitários. O pessoal da Zona Sul era meio individualista.
Freqüentavam as boates, onde todo mundo se conhecia, mas não havia movimento.
Nos anos sessenta, existia uma boate em Copacabana chamada Sunset,
parecida com um piano bar, aqui perto da minha casa... Depois teve outra chamada
Alfredão, lá na outra ponta de Copacabana. Essa parece que não era especialmente
gay, mas deixava os gays dançarem uns com os outros. O dono era um crioulo muito
forte chamado Alfredão. O nome que se usava era “entendido”. Depois apareceram
boates para dançar, o Sotão e outra chamada La Cueva.
Cheguei a essa conclusão sobre a organização cultural, primeiro por causa da
pesquisa com o João do Rio. Falei que o Rio de Janeiro era igualzinho à 1910,
inclusive lugares como a Praça Tiradentes na contemporaneidade. As pessoas faziam
muita pegação nas ruas da cidade. Às vezes as pessoas não precisavam ir a canto
nenhum, andando pelas ruas já havia certas horas para caçar. Hoje em dia, por causa
da AIDS e da violência, ficou meio perigoso.
Essas ruas não eram tão explícitas, ficam perto da Praça Tiradentes. Lá todo
mundo bebia, depois caçavam indo para o ponto do ônibus, isso ficava meio
implícito. Embora não fossem profissionais... como hoje isso sempre existiu! Porém,
deixei de freqüentar esses lugares por causa de AIDS, porque estou mais velho...
seguramente devem haver novos lugares! Atualmente, existem lugares assim no
subúrbio, mas antigamente era tudo no centro. À noite todo mundo vinha para o
mesmo bar, não havia possibilidade do vizinho ver e dizer: “- Ih! Foi visto na Praça
Tiradentes... OOOOhh!!!!”... seria um escândalo!!
Outra coisa boa é a infra-estrutura de hotéis de transação em volta da Praça
Tiradentes. As pessoas saíam dos pontos de pegação e ficavam nos hotéis. Uma

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pessoa de subúrbio que venha a Zona Sul, coitada, tem de voltar para casa sozinha.
Ninguém vai andar de ônibus até não sei aonde para transar! Desta maneira, foi um
evento que esvaziou, ficou para a classe média, ficou para o turismo. Quando até
acho que os turistas gostavam mais do outro jeito, exatamente porque era esquisito.
Tinha general vestido de madame... na época havia coisas incríveis!
No Rio de Janeiro era assim, não sei se em São Paulo, mas nunca precisou ter
bordel de homem, parece que nos anos setenta havia, mas não era muito o costume.
Havia isso no Rio Grande do Sul, na Bahia também, porque era tão reprimido que
ninguém nem podia sair na rua. Assim, tinha que ser escondido. No Rio sempre foi
mais aberto. O local em que ficam todos os rapazes com o pau de fora parecia a Via
Ápia em Roma, onde há aquelas estátuas de deuses nus! Passava-se por uma fileira
de quarenta pessoas que transavam ali mesmo. Acontecia isso no centro da cidade,
perto do aeroporto Santos Dumont! Atualmente, não sei por onde ocorre isso, mas
com certeza deve ocorrer em algum lugar da cidade. Trata-se de um subconsciente
da cidade! Não acaba nunca.
No período da ditadura militar, houve uma vida homossexual no Rio muito
ativa. Por incrível que pareça, aumentou o número de pessoas em atividades
homossexuais. É uma questão que deveria ser estudada. Em outros lugares do
mundo, como na Tailândia, o comportamento homossexual também explodiu nos
períodos de governo militar. O regime militar parece que ressalta o lado machista,
automaticamente é quando acontece uma proliferação maior da homossexualidade.
Não só no que se refere ao número de homossexuais, mas também no que se refere
ao número de bissexuais. A tendência atual é diminuir, não o número de
homossexuais, mas as especificidades afluírem num sentido burocrático. O indivíduo
pode ser o que quiser, ninguém é perseguido, mas formou-se algo parecido com um
gueto.
A Revolução de Costumes contribui politicamente à movimentação
homossexual, mas não contribui artisticamente. Há um livro de Dominique

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Fernandez (um escritor francês que mora na Itália) autor da biografia do Pasolini,
Pela Mão do Anjo, um livro muito bom que já saiu aqui no Brasil. Esse autor tem
outro livro chamado O Rapto de Ganimedes. Trata-se de um estudo sobre o
homossexualismo na arte, desde a Renascença. Ele chega a uma conclusão que
concordei... já sentia aquilo antes de ler o livro. Não vou dizer que ele prove, mas ele
me convenceu que quando o homossexualismo não era proibido, mas era mal visto,
os artistas para se revelar, tinham que realmente dar um tour de force gigantesco: na
forma, no estilo e no conteúdo. As obras ficavam faiscantes aos nossos olhos. Hoje
em dia como a expressão artística se tornou mais livre, ela tende a se burocratizar.
Os artistas se tornaram mais escatológicos. É chato porque os livros contemporâneos
tem descrições minuciosas das relações sexuais... os outros não tinham! Eles
apresentavam a questão mais psicológica, artística, ou tudo ao mesmo tempo. É claro
que hoje em dia democraticamente é melhor, mas parece evidente que o nível de
qualidade artística caiu. Não podemos mais afirmar que ser gay é sinônimo de bom
gosto.
No Brasil era melhor quando era misturado, devíamos continuar com o estilo
latino. Nos Estados Unidos, onde predomina a religião protestante, os homossexuais
são banidos e tem de criar outra sociedade... não tem outro jeito. Hoje em dia, no
Brasil, uma casa gay só tem gay! Antigamente não! Era melhor porque tinha de tudo.
Atualmente, nos bairros de subúrbio, nessas cidades satélites cariocas, equivalentes
ao ABC paulista - Nova Iguaçu, Duque de Caxias, entre outras -, têm boates gays,
bares gays... a quantidade é muito grande!!
No Rio de Janeiro, em São Paulo também, há pessoas que vêm das cidades
pequenas porque sentem-se muito agredidas. A tendência é migrar para a cidade
grande, onde ela passa por desapercebida no meio da multidão. No Rio de Janeiro,
ninguém vai perseguí-la por ser homossexual, enquanto na cidade de Caruaru pode
acontecer. Para o homossexual andar na rua de uma cidade pequena, as pessoas vão
jogar pedra. Quando o homossexual passa na esquina vão fazer: “- Ui, ui!” Em suma

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vão encher o saco, vão fazer uma série de humilhações, chateações que na cidade
grande não tem.
Hoje em dia, o consumo gay aumenta porque as pessoas, geralmente solteiras,
ganham relativamente bem e gastam consigo mesmas. Elas tem parentes, algumas
vezes, mas são pessoas sozinhas que vieram do interior. Pode ser que foram expulsas
de casa, então não mandam dinheiro nenhum. Assim, o dinheiro que ganham sobra
mais para gastar com o consumo gay do que para quem tem um filho. No que se
refere a números, isso é uma novidade. Hoje em dia, os solteiros representam um
grande número da população. Nem todos os solteiros são gays, mas um grande
número de gays sim! Antigamente, havia poucos solteiros: era mal visto ser solteiro!
Nos anos trinta, quarenta e cinqüenta, a maioria dos gays se casava e tinha filhos.
Ainda não se sabe utilizar bem o mercado gay... não chegou-se a esse ponto!
Por exemplo, parece que a Sui Generis está dando certo, porém já houve outras
revistas que não deram. Acho que essa está dando certo porque se expandiu para os
setores de classe média: boate, hotel. Por exemplo, um grupo gay vai fazer um hotel
gay na Praia de Copacabana. Ele foi comprado por uns americanos: o Hotel Riviéra.
Ele tem doze andares, foi comprado por grupos com dinheiro que estão investindo.
Desta forma, as boates são melhores, a música é melhor, o som é melhor.
Entretanto, a cultura gay não tem uma editora, parece que agora vai ter livros sobre
homossexuais, visando o público específico, mas ainda não tem. Mesmo os filmes
sérios, tratando da temática, são poucos... não tem um cinema!! Isso parece que pode
ainda ser expandido! No momento, os empresários estão começando a investir nesse
setor por causa da quantidade de pessoas.
Quando há uma tendência a assumirmos especificidade, porém, corremos um
risco seríssimo de assumir posições de extrema direita. No mundo inteiro, agora por
exemplo, só negro é bom, só negro sofreu e eles começam a se convencer disso. Eles
passam a pensar que só negro presta e ninguém mais presta... isso é fascismo às
avessas... está errado!!! O gay não chega a tanto porque a tendência é mais liberal,

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porém corre-se esse risco da mesma forma. De repente achar que só os gays
merecem viver, levando essa idéia ao extremo, pensar que só os gays vão para o céu.
O Papa diz que não, eu digo: “- Deus queira que não!” Deve ser chatíssimo! Em
cada partido político se abriu um escaninho. Dentro do movimento negro, isso gerou
uma divisão partidária, o negro do PT que não gosta do negro do PMDB, sendo que
antes todos eram de uma associação não partidária! Era melhor, pois todos se
encontravam e não havia problemas. Com os gays, era possível que os grupos
quisessem ser organizados por alguns partidos, os quais formariam suas alas
específicas... tudo bem! Isso é até bom!! Porém, quero dizer que não se trata de um
grupo espontâneo, tenho uma certa reserva com esses grupos partidários. Não só
porque sou anarquista, mas porque os grupos não são objetivos!
Outra similaridade com o movimento negro: é melhor que o negro brasileiro
se inspire no negro norte-americano e não no negro cubano da terra de Fidel Castro.
Além de ser mais moderno, não é política partidária, mas trata-se da política que está
no cotidiano do negro. Não é necessário estar num partido. Quando entramos num
partido, viramos funcionários do partido. Geralmente esta atitude anula a perspectiva
política. O partido pode mandar fazer algo que a pessoa, apesar de ser contra, é
obrigada a fazer. Como admitir uma pessoa politizada, como a Beth Mendes que
pertencia ao PT, não poder desobedecer a ordem de votar contra o Tancredo Neves?
Resolvo votar para não ajudar o outro candidato e me suspendem do partido!! Isso
não entra na minha cabeça!!! Não interessa o fato de achar que estou votando no
melhor!!?
Na ausência de um partido político, a conversa com o Estado é enfraquecida,
porém na minha forma de observar a questão, cada pessoa tem que chegar à sua
conclusão. Lógico, quem é mais fraco socialmente, menos atirado à política, deve se
organizar em grupo, mas espontaneamente!!! Isso não significa pertencer a um
partido!!! Aliás, pode ser até um partido! Quem quer ser deputado tem que ser pelo
partido! Não dá para ser candidato avulso, terá que ser por algum partido!! Nesse

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sentido, a pessoa deve escolher o melhor partido. Porém, há outros tipos de
atividades que também são políticas.
Antigamente havia organizações de divertimento - o Caçadores de Viados, o
Baile dos Enxutos -, sem serem politizadas -, então a novidade seriam as
organizações politizadas. Em breve, existirão muitos candidatos gays a vereador, o
que também não acho errado. Entretanto, os candidatos não devem usar apenas o
rótulo: GAY. O Gabeira parece um bom deputado, votei nele, mas é preciso dizer que
toda aquela história sobre sexualidade, culminou com a entrevista do Lampião. Não
era algo oportunista. No que se refere a questão gay, o Lampião já existia quando o
Gabeira chegou no Brasil. Mesmo no que se refere à liberação da maconha, Luís
Carlos Maciel foi a primeira pessoa a fazer isso... num jornal manuscrito chamado A
Flor do Mal! O próprio Lampião tem um artigo que eu escrevi sobre maconha. O
Gabeira, tempos depois, chegou dizendo que foi o primeiro a discutir a questão das
drogas. Desta forma, ele chegou como aquela pessoa que voltou do exílio, trazendo o
fogo de Prometeu para os bobalhões... só que aqui malandro já tinha caixa de fósforo
há muito tempo!
O Gabeira fala que não é gay na própria entrevista. Durante o exílio, parece
que ele teve um caso gay na Suécia, mas ele não é gay. Tanto que casou, tem mulher,
filho... Neste ponto, foi algo que achei um pouco manipulado. O Gabeira podia ter se
tornado uma pessoa oportunista, porém ele demorou a se candidatar. Foram mais de
dez anos para que ele fosse eleito! Caso ele fosse uma pessoa oportunista “malandro
tinha entrado numa errada”, elegendo uma pessoa que não tem nada a ver com a
história, fingindo que tinha. Então tem que tomar cuidado com isso porque é
perigoso.
Há uma forma de controle através da instalação desses movimentos no Brasil,
no sentido que para falar de homossexualidade “vamos nos dirigir aos
homossexuais”, esse é o problema: o princípio do fascismo. Fica algo meio
corporativista. No fascismo, havia uma assembléia onde as pessoas, ao invés de

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serem eleitas pelos bairros, eram eleitas pelas profissões - por exemplo:
Representante dos Metalúrgicos -, então vinha aquele pelego para falar. Nesse
sentido, corre-se esse risco. É mais fácil para o governo, ou para qualquer entidade,
dialogar com homossexuais olhando os grupos organizados na lista telefônica,
telefonar e pedir uma opinião. Não é preciso saber se aquelas pessoas são eleitas,
quantas são, a quem representam. Desta forma, elas passam a falar, sem caber-lhes o
direito de representarem ninguém.
Quem delegou ao João Antônio Mascarenhas representar os gays brasileiros
na Constituinte? Foi ele que pediu e foi! Tudo bem!! Pelo ponto de vista dele, está
certo! Estou falando do ponto de vista de quem agenda esse pedido. A pessoa não
quer saber se é representativo ou não. Além do que, há pessoas que gostam de se
exibir. Questiona se há alternativa numa sociedade como a nossa? Isso é outra
dificuldade porque acho que não! De certa maneira, a sociedade tende a ser assim,
poderia ser menos personalizado através de entidades mais abrangentes. Mas com
certeza, não vou querer entrar em nenhuma, sempre vou implicar com todas!
O movimento gay norte-americano faz um pouco de eco no Brasil, mais entre
as pessoas de classe média. Digo isso porque são pessoas que sabem ler inglês, estão
mais informadas. Elas tocam em questões que não chegam a atrapalhar. Entretanto,
o João Antônio Mascarenhas fez questão de ir na Constituinte, pedir um artigo de
não sei o que das quantas!? Porém, a legislação brasileira é a mais aberta do mundo:
nunca houve uma palavra condenando o homossexualismo no código penal! Como
se pode exigir algo permitindo o que não é proibido!? Ao meu modo de ver, basta
estar escrito: “- Ninguém pode ser discriminado por sexo” Já fica entendido que se
refere a qualquer tendência sexual. Juridicamente não era necessário botar: “...e suas
orientações sexuais.” Isso atrapalha politicamente, a Igreja não deixa! Por outro lado,
quando se mantém: “Proibida a discriminação por sexo”, todo mundo aceita! Caso
comece a especificar muito, o que vai acontecer!? O protestante não quer, o católico

583
enche o saco, o Papa excomunga, o Bispo reclama! Da forma como está, fica tudo
numa boa porque não é proibido, na minha visão o que não é proibido é permitido!
No código penal brasileiro, a idéia de alguém ser preso por homossexualidade
é impossível, tem que arranjar outro pretexto... mesmo na época da ditadura! O
processo contra o Lampião, não posso garantir nada, mas cheira um pouco a Igreja
Católica! Mesmo que não seja o bispo, enviando diretamente um fax, há advogados
que são ligados a Cúria. Pode até ser considerado uma questão do Estado, porém os
processos acabaram arquivados, as pessoas foram absolvidas porque não tinha como
condenar ninguém! O Lampião poderia ser pego pela lei de moral e bons costumes,
nem com isso conseguiram!!! No jornal não havia gente nua!! Não é proibido dizer
que é bom ser homossexual. Em suma, não tem um jeito de enquadrar no código
penal. Por isso achei meio exibicionista, e inútil, a presença do Mascarenhas na
Constituinte em Brasília.
A prostituição no Brasil não é proibida, mas é proibido fazer trottoir e ser
dono de uma casa de exploração sexual. Hoje em dia, entram menos imigrantes, mas
houve uma época em que vinham muitos. Desta maneira, o imigrante tinha que se
virar e as mulheres eram bonitas. E temos que ser realistas, porque uma moça
bonitinha vai trabalhar numa fábrica de oito às oito!? Ficar morta de fome para
ganhar um salário mínimo, se tem a grana do português que paga um apartamento!??
Não sou moralista, acho melhor ela aceitar o português... quem sabe ela pode
partir pra outra? Ou casar com o português e ficar viúva? Não há porquê obrigar uma
pessoa a ter uma profissão mal paga, se ela tem uma chance de ir para um outro
mundo. Não acho que isso é proibido, as pessoas querem trabalhar menos e ganhar
mais. A prostituta não é proibida de cobrar para trepar. Então se questiona: é uma
missão!? É algo positivo? Precisa passar no analista!? Eu não sei!!! Só sei que no
Brasil nunca houve leis proibindo o homossexualismo e a prostituição. Neste
sentido, esses comportamentos proliferaram.

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Vou falar uma coisa horrorosa aqui, todos estão numa nova democracia, mas
digo o seguinte enquanto anarquista: democracia sem cultura se torna prejudicial. É
claro, todo mundo vota, mas caso a maioria seja composta por débeis mentais,
evidentemente a democracia está servindo para os débeis mentais mandarem... então
está sendo péssimo!!! A democracia devia ser acompanhada pelo ensino, pela
cultura, para que o número de débeis mentais fosse minoria. Como acontecia nos
anos cinqüenta e sessenta, quando a maioria das pessoas no mundo inteiro eram mais
ilustradas, e a cultura se expandia, e não se retraía como hoje.
A esquerda brasileira tem um grande defeito, acha que o povo em si é bom!!!
Não!!! É claro que tem pessoas boas, mas evidentemente uma pessoa que morre de
fome não pode ser boa. Ela tem que arranjar comida fazendo bondades ou maldades.
Quem acorda de manhã, sem emprego, com cinco filhos, terá que fazer alguma
maldade até o meio dia para se alimentar, ou vai roubar, ou vai prostituir, ou vai
fazer alguma para suprir aquelas pessoas que dependem dela.
Esses grupos militantes, mais sérios, tinham que batalhar por coisas mais
práticas. Volta e meia, os políticos se xingam de não sei o que!!! É uma
demonstração de preconceito contra o homossexual. O Nordeste é muito reacionário,
foi lá que estraçalharam aquele vereador, cortaram a cabeça... aquela coisa típica de
nordestino do interior brasileiro. O nordestino, normalmente, é muito preconceituoso
contra o homossexual... muito preconceituoso!!!
É o mesmo caso dessa confusão toda por causa do Zumbi gay, claro que o
Luiz Mott fez tudo errado. A pesquisa dele não se sustenta um minuto. E os imbecis
dos militantes negros ao invés de atacar a pesquisa, ficam falando as maiores
imbecilidades contra os gays. Nesse sentido, há preconceitos!!! Havia problemas
quando os negros apareciam para discutir. Os negros ostentam o mito do machão
negro, achavam que os homossexuais iriam apalpá-los ou coisa parecida. Um
vexame!

585
Quando todo mundo está na sarjeta, todo mundo é muito amigo, quando
começam a sair começam as confusões! Por exemplo, as prostitutas são muito
ligadas a homossexuais, mas quando começam a se dar melhor, querem que o
homossexual comece a lavar a cozinha, vá varrer chão, lavar privada. Mesmo nos
motéis, nesses meios lúmpen, a tendência é botar o homossexual num papel
subalterno. As prostitutas, quando podem, elas põe o homossexual para baixo. Desta
forma, a pessoa tem que se afirmar a cada segundo, por isso que os homossexuais
são tão estereotipados... é verdade mesmo!!!
A reivindicação por uma delegacia gay, inspirada na delegacia da mulher,
poderia ser algo reivindicado por estes grupos. Tendo em vista o número de
assassinatos existentes e que ninguém soluciona!!! A existência de uma delegacia
especializada, para as pessoas se queixarem, ajudaria bastante. Este lugar poderia
contar com profissionais habilitados em desvendar chantagem e não sei mais o que.
Inclusive, com a criação de um fichário da cidade inteira para cruzar informações,
com dados pessoais. Por exemplo, um assassino entrando por uma portaria, caso ele
esteja fichado num lugar centralizado, já dá para tentar identificar!! O gay que é
assaltado em sua casa não tem lugar para dar queixa. Vira chacota de delegado.
Isso nunca foi pedido em nível de direitos, nem sequer pensaram nessa idéia!
Seria uma conquista política. Parece algo maluco, um anarquista falar sobre a
criação de uma delegacia. Porém, acredito que isso é necessário para a maioria das
pessoas. Por exemplo: o caso do irmão do José Celso Martinez Corrêa foi
esclarecido porque trata-se de uma família de intelectuais, que não teve medo em
divulgar que o filho era homossexual. Eles ficaram encima do caso e encontraram o
culpado, depois o preso fugiu, mas foi reencontrado e voltou para cadeia. Neste
sentido, tem que haver pressões para quem é pobre e foi morto ali na Lapa. É preciso
que haja algum lugar onde alguém possa fazer uma queixa.
Acredito, porém, que se há um serviço a fazer - não sou eu quem vou fazer -,
é o desta delegacia especializada, além de uma série de questões essenciais. Só

586
grupo consegue fazer, uma pessoa só, duas ou três não adianta nada! Isso é: só grupo
com advogado! É preciso uma delegacia específica para investigar crime contra
gays, tem delegacia para turista, tem para mulher. Por que não pode ter delegacia
específica para gay!? Morre muita gente por causa disso, o número é enorme. No
edifício ao lado do meu, há dois anos atrás no carnaval, dois estrangeiros foram
mortos por um garoto de programa. Ele nunca foi achado, matou os dois caras. Foi
fazer programa com um, o outro estava dormindo e deve ter acordado na hora da
briga, matou a faca!!! Depois saiu andando pela porta afora. O Urbano, que conheci
quando fiz o vídeo da Emilinha Borba, era o presidente do fã clube, também morreu
na casa dele. Um garoto de programa o matou, deu quinhentas mil facadas!!! Uma
pessoa importante como o irmão do Zé Celso Martinez. O que ele é!? Não é pouca
coisa! Não pode ficar impune!
As primeiras informações sobre AIDS no Brasil saíram no Lampião. O
esclarecimento sobre a AIDS era muito importante, inclusive fui uma das pessoas
que não levou o dossiê muito a sério. Em suma, achei que era um terrorismo careta
para as pessoas deixarem de sair, de transar e tal. No início, principalmente aqui no
Brasil, demorou um pouco para a doença aparecer. Os casos eram quase todos em
São Paulo, demoraram a aparecer os primeiros casos no Rio... não sei por quê...
Ainda hoje, há mais casos em São Paulo do que no Rio. Na minha cabeça é curioso,
porque pelo lado meio devasso, deveria haver mais casos de AIDS no Rio, mas isso
não quer dizer nada!! Paris é um dos lugares com mais casos de AIDS, uma cidade
absolutamente discreta! Não se vê uma bicha dando pinta... nada!!! A França inteira
tem um dos maiores índices de contaminação. Desde o início, tornou-se o segundo
país em número de doentes. Desta maneira, é possível dizer que cada país, ao seu
jeito, tem a sexualidade, apresentando-a em público ou não. Entretanto, sempre achei
estranho que em São Paulo o número fosse maior do que no Rio.
No início da crise da AIDS, foi tudo complicado. A primeira questão estava
ligada aos médicos, acreditava ser exagero deles... mas infelizmente não era!!!

587
Conheço muitas pessoas que morreram de AIDS, não foram poucos não, muitos no
meio artístico: pessoas menos conhecidas, além dos mais conhecidos. A semana
passada mesmo morreu Carlinhos Prieto, irmão da Adriana Prieto. Ele era
maquiador. Uma pessoa conhecidíssima de todos nós no Rio de Janeiro, inclusive do
Aguinaldo Silva. Todo mundo conhecia o Prieto! Ele era assim hermafroditasinho,
um tipinho assim que quase não tem mais. Logo que ele surgiu nos anos sessenta,
com dezesseis anos, era uma loucura, ele não podia pegar o ônibus sozinho que os
tarados queriam agarrar! Como outras pessoas, ele morreu a semana passada.
Coitadinho! E teve o dramaturgo Vicente Pereira e outros tantos amigos. Eu sobrei, e
ainda não descobri porque...
Os grupos brasileiros deviam cuidar destas questões. Na verdade são os
grupos americanos que estão cuidando. Por exemplo, os casos criminais ocorridos no
Brasil, são reclamados lá! Não são os grupos daqui que cuidam desta questão.
Evidentemente, no Brasil, alguém deve ter escrito sobre isso. No grupo do Luiz
Mott, ele até fala um pouco, mas não tomam iniciativas completas. Não reivindicam
uma delegacia gay! Nesse sentido, é preciso ser bem incisivo.
Assim como para a questão do seguro desemprego! Todos os ganhos,
envolvendo pessoas que eram gays, foram conseguidos pelos grupos de ajuda aos
aidéticos... não pelos grupos gays!!! No início, não havia assistência médica para
pedidos de tratamento da AIDS, esse serviço médico não era prestado. Os primeiros
a conseguir, foram os médicos de vítimas da AIDS: mulheres ou homens. Na
verdade, essa também devia ser uma reivindicação dos grupos gays. Os grupos não
servem só para fechar e dizer: “- No carnaval vamos fazer uma banda Carmem
Miranda.”
Não acredito no final destes movimentos! Porém, não entendo por que
discutir um item que não existe na Constituição Brasileira, proibição ao
homossexualismo, em vez de lutar por questões mais necessárias, como prender os
assassinos das pessoas! Parece uma preocupação centrada no próprio umbigo. Além

588
do que, talvez esses grupos não sejam muito numerosos, devem ter três ou quatro
pessoas, mas fingem que são!!! Como eles também não tem tempo, não tem
condições, não cobram mensalidades, para ampliar suas atividades, eles não tem
fundos para fazer uma viagem para Brasília. Como é que eles vão!?
Esses grupos brigam muito, imagino que tem muito problema de egos, nunca
fui de nenhum. Nesse sentido, fica difícil ir no grupo, onde alguém roubou seu
namorado e ter que continuar conversando com a pessoa... são climas muito
passionais!!! Porém, eles ajudaram em alguma coisa, hoje tem um certo respeito a
quem é gay. Antigamente era maldição, depois era o engraçadinho. Hoje em dia já
tem até na televisão. As pessoas começam a ver que os gays não são nem
engraçados, nem malditos, mas são pessoas comuns. O estereótipo diminuiu
bastante: não dão gritos, nem estão chorando, levam uma vida cada vez mais
tradicional.
A maioria dos gays são contra os grupos, mas não sustentam uma posição
como a do Aguinaldo ou, de certa maneira, como eu faço. Pelo contrário, são contra
pelo lado reacionário, pois acham que grupo nem pode existir. No meu modo de ver,
grupo não resolve, mas pode existir... isso é bem diferente! Sempre há pessoas que
acham que ninguém sabe que elas são gays. Elas só vão descobrir quando forem no
grupo um dia, porém noventa e oito por centro são reconhecidas a olho nu... então
fica difícil!! No que se refere a uma análise desse desinteresse, parece que o sujeito
não quer ser abordado na rua por ser gay, mas ele é abordado igualmente... só que se
referindo a outra coisa!! Como acontece no movimento negro, caso seja feita uma
mostra de arte negra amanhã, na platéia haverá alguns negros, mas a maioria será
branca. Como não há interesse por si mesmo, torna-se muito difícil trabalhar a
questão.
Ser dono de um programa de rádio, pode influenciar muito mais do que ser
deputado, jornalista ou sei lá o que!!! O Aguinaldo Silva, por exemplo, escreve uma
novela que quarenta milhões vêem no mesmo dia. É claro que isso influencia mais

589
do que se ele escrevesse num jornal, ou se ele fosse ser deputado de um partido
político... por melhor que ele fosse!! Hoje em dia, a influência é feita através da
mídia. Entretanto, atualmente a imprensa é reacionária. No passado, a imprensa dava
força aos movimentos novos: Cinema Novo, Bossanova. Tudo isso foi estimulado
pela imprensa. Hoje em dia aparece uma pessoa nova, caem de pau encima porque
os jornalistas são menos cultos do que os anteriores, são deslumbrados e não críticos
da burguesia.
Não esqueçamos nunca que o Hitler foi eleito, então são aspectos que sempre
temos que ficar de olho. Não sou católico, nem protestante, mas, por exemplo, acho
esquisito ver um pastor quebrar Nossa Senhora Aparecida na televisão. Contudo,
acho mais esquisito ainda os cardeais católicos pedirem para cassar um canal de
televisão do protestante. Isso é desproporcional à falta que foi cometida!!! Ninguém
viu aquele negócio ao meio-dia na TV Record. Ao meu modo de ver, os próprios
católicos estavam olhando para tirar fotografia. Atualmente, está havendo brigas,
parece que o Rio é o Estado onde tem a maior quantidade de protestantes, quase
vinte e oito por cento, uma entre três pessoas! O protestantismo não tinha ninguém, a
doutrina cresceu encima da umbanda e do catolicismo... isso não tem volta!!! A
Igreja Católica devia ter uma outra posição, achei sua exigência desproporcional.
Sempre que se toca nesse assunto, penso que a Igreja Católica é anti-democrática,
assim como esse evangélico também deve ser, mas no geral, os feriados dedicados
aos dias dos santos deveriam ser ponto facultativo. No dia do Yom Kippur o judeu
não vai trabalhar, caso o país fosse muçulmano, na sexta-feira todo mundo virava de
bunda pra Méca. Qual o problema!? Não podemos obrigar um protestante a cumprir
feriado no dia de uma santa que ele é contra. Ele não acredita em Nossa Senhora!!!
Como obrigar uma pessoa a fazê-lo!? No Brasil a Igreja é separada do Estado!!!
No Brasil, há um lado que acho curioso, até precisa ser estudado. Tem uma
quantidade muito grande de ex-seminaristas que são abertamente homossexuais. Isso
é algo que sei a respeito, na hora do seminarista se formar para padre, os próprios

590
seminários desestimulam alguns, falam para nem entrar nessa carreira. Porém, não
acho que seja bem essa história, parece-me que a própria religião Católica Romana
tende a estimular esse comportamento e por outro lado punir. Há toda a mitologia
que apresenta a preocupação com a amizade fraterna e o medo da mulher. Além de
alguns santos como São Sebastião, um jovem bonito, ... um martírio! Nesse sentido,
há uma série de pontos que convergem para induzir a pessoa, então vem alguém e
diz: “- Não pode!!!” Parece-me algo meio sadomasoquista na Igreja Católica. Neste
ponto de vista, na doutrina protestante as pessoas estão banidas. Por isso que essa
questão do gueto é muito norte-americana... específico de país protestante! Em geral,
os protestantes costumam ser mais liberais, não os dessa Igreja Universal, mas tenho
uma certa simpatia pelos mais tradicionais. O núcleo da Igreja está na relação do
pastor e de suas ovelhas. Essas Igrejas protestantes são mais simples, dão esmola
para orfanatos, hospitais. Nunca dão esmola na mão dos mendigos que geralmente
vão beber. A maioria dos mendigos é alcoólatra, principalmente no Rio. Eles fogem
dos empregos que foram fornecidos, às vezes são despejados das favelas porque não
tem renda mínima para pagar o barraco. Então, cortam o barato da pessoa e as
jogam para baixo. É uma situação meio complicada, são pessoas que tiveram suas
vidas destruídas...
O mito da democracia racial brasileira, acabou servindo para democratizar as
relações acerca da orientação sexual. Esse mito tem de ser posto abaixo, tem de ser
rediscutido. A sociedade, muitas vezes, aceita mais facilmente um travesti do que
outro tipo de homossexual. É mais definido para a cabeça de quem é careta, um
homem que quer ser mulher. Na verdade, o travesti pertuba menos o ambiente do
que um homem que quer ser gay. Neste caso, apesar de tudo, o travesti é mais
aceitável. Mulher adora travesti, principalmente aqui no Rio. Programas femininos,
como da Hebe Camargo, sempre têm travestis falando: “- Como cozinho para o meu
marido. Como faço não sei o que!? Os vestidos que minha mãe costura!” Isso
acabou sendo meio que aceito pela mídia.

591
O Estado não persegue o homossexual, mas também não o protege, nem toma
conhecimento. No Brasil, uma das provas que não existe preconceito oficial contra
homossexual, é a inexistência de leis proibindo a prática Porém, uma das provas que
existe preconceito de grande parte da população, é o número de pessoas
assassinadas, ou roubadas, que ainda acham que está tudo bem.
Algo que não tem a ver, mas no final das contas acaba tendo, é crítica de arte
nos jornais. Atualmente é uma merda, ou a Folha faz aqueles artigos ininteligíveis e
chatas, ou o Globo faz aqueles artigos pasteurizadas. Neste sentido, penso que se
seria útil surgir um jornal onde houvesse críticas, mas que explicassem de forma
meio didática, porque esse buraco existe!! No mercado a melhor crítica de teatro que
houve no Brasil, foi do Décio de Almeida Prado. Nos anos cinqüenta ele escrevia no
Estadão. Ao lemos uma crítica do Décio de Almeida Prado, mesmo quando ele
destrói a peça, aprendemos alguma coisa. Não é uma análise de três linhas, ou um
comentário com raiva da pessoa.
Se se fizer um tablóide que cubra essas deficiências, acho que esse problema
acabará tendo saída! Não apenas essa idéia sobre crítica, mas sobre tudo! Desta
forma, acho que deveria haver uma publicação assim. Claro que depois de três anos
ela também seria chupada, todos os outros iriam se modernizar. Chamar a atenção
dos grandes que têm dinheiro. A tendência da publicação é se dissolver. Quem faz
isso, deve ter consciência que vai acontecer! A tendência da vanguarda é ser
absorvida. Desta forma, caso uma publicação queira continuar sendo vanguarda,
política ou não, ela tem de inventar outra coisa. Nos anos sessenta, a vanguarda do
cinema era o Godard fazendo seus filmes. Hoje em dia, qualquer anúncio da Coca
Cola usa a mesma técnica que o Godard usava, porém com outras intenções: para
vender uma marca que Godard deve vomitar só em ler o nome. Entretanto, a técnica
foi absorvida.
No início de século, há vanguardas em artes plásticas, teatro, e hoje em dia
observamos uma série de anúncios utiliza seus estilos para o business. Aliás, a

592
vanguarda é feita para isso, quando o resto da sociedade empata com ela, chegando
no mesmo lugar, de novo ela tem que sair correndo na frente. Porém, nem todos os
pessoas querem isso, nem são obrigadas. Como em política, há esse costume de nada
ser resolvido, sempre digo que em tudo deve-se ter um meio para puxar os outros.
Nesse sentido, sobre o Lampião houve um momento de fazer o jornal e houve outro
momento de acabar com o jornal. Acredito que o momento atual exige outro tipo de
resposta. Não sei qual. Isso deve surgir naturalmente.
Atualmente, não há nada para substituir um veículo como o Lampião. A Sui
Generis, por exemplo, não me atrai comprar. Ela é bem comportadinha, bonitinha, é
para vender, mas não é como o Lampião! Não tenho vontade de comprar Sui
Generis! Caso existisse algo como o Lampião, eu compraria. Essa Sui Generis é
meio guetinho!!
Hoje em dia tudo é muito fundamentalista. Isso não é bom! É um passo atrás.
É claro que democratizou. Porém, ficamos empacados. As pessoas ficaram mais
incultas... são broncas!! Elas não sabem nada! O brasileiro, coitado, não sabe nada!
Ele não sabe o que é Bossanova! Não sabe as coisas mais ínfimas da cultura de
anteontem. Que diria do Lampião! Tudo aqui tem de ser refeito do zero a cada dez
anos. Aliás, é por isso que somos subdesenvolvidos.

593
. Nasceu no Rio de Janeiro (capital),
em 15 de julho de 1945.

. Escritor, roteirista e diretor de cinema.

. Autodidata.

. Dirigiu entre outros: Mãos Vazias, 1972;


O Princípio do Prazer, 1979; Leila Diniz,
1987; For All: O trampolim da vitória,
1997

Luiz Carlos Lacerda.

594
No primeiro contato Luiz Carlos Lacerda
concordou com a entrevista num tom
compreensivo. Marcamos a gravação para
uma tarde de domingo, em sua casa no
Jardim Botânico. À caminho, observei uma
transformação, saí de um local onde persistia
a dualidade entre o mar e a cidade, para um
local onde casas e prédios adequavam-se ao
verde exuberante. Em sua residência o
ambiente era orquestrado, uma vez ou outra,
pelo som dos pássaros. Amigos o apelidaram
de “Bigode”, pude ver no seu rosto o motivo
do apelido. No local, um quadro do
charmoso James Dean, em tamanho natural,
concorria com a presença de Luiz Carlos
Lacerda. Momentos antes da gravação
conversamos sobre a pesquisa. Para contar
suas experiências, acomodou-se ao meu
lado. A referência à área de cultura e cinema
- escritores, livros, artistas, filmes -,
compuseram sua história de vida. Durante o
depoimento, manteve o tom compreensivo.
Em nome da liberdade, contudo, defendeu o
equilíbrio adequado entre o indivíduo e o
coletivo.

Rio de Janeiro, RJ,


22 de outubro de 1995.

595
“Como não pode ser militante de esquerda e homossexual ao
mesmo tempo!!? Qual é a contradição que existe entre uma coisa e
outra!!?” Desta maneira, vivenciava essa esquizofrenia dentro de mim.”

Nasci em Copacabana, no dia 15 de julho de 1945. As memórias da minha


infância têm imagens muito tranqüilas. Nos anos cinqüenta, Copacabana era um
balneário onde passeávamos pela praia, tomávamos sorvete, havia famílias
caminhando e muitos turistas. Naquela época, Copacabana possuía um clima muito
gostoso para se morar. Era um lugar chique e morava pouca gente.
Meu pai foi o único membro da família que se mudou para Copacabana. Ele
fazia cinema, esteve na produção de filmes como Rio Quarenta Graus... primeira
obra do Nelson Pereira! Nos domingos, o pessoal de cinema se reunia lá em casa
para ir tomar o banho de mar. Meu pai ia para cozinha fazer comidas, levava-me na
Praça 15 para comprar peixes, camarões... eu ia junto! Depois ele vinha para casa e
ficava na cozinha fazendo comida. Eu ficava ali admirado... por isso que cozinho.
Nós íamos à praia com o Nelson Pereira dos Santos, o Alex Vianny, esse
pessoal de cinema mais antigo, depois voltávamos em casa para almoçar... era uma
vida muito gostosa. Ao mesmo tempo, às vezes era muito difícil porque se hoje em
dia o cinema é complicado, naquela época era mais ainda. Havia momentos de
absoluta falta de dinheiro, de não ter comida, da minha mãe ter de recorrer a família
dela para podermos ter algum dinheirinho e pagar o aluguel... comprar nossa comida.
Isso nunca me impediu de ter uma infância bastante alegre. Na medida em que nos
meus aniversários, por exemplo, eram passados filmes de dezesseis milímetros -
filmes brasileiros -, apareciam artistas. Havia uma menina, filha de um grande amigo
do meu pai - também é minha amiga até hoje -, que nos seus aniversários aparecia o
Grande Otelo, entre outros atores que na época faziam cinema e rádio, a Angêla
Maria cantava. Era deslumbrante ver aquela gente toda! Ao mesmo tempo,
Copacabana naquela tranqüilidade, não tinha violência, havia muita liberdade, nós
brincávamos pela rua.

596
As minhas primeiras relações homossexuais rolaram nessa época... com
meninos da minha idade! A gente se escondia no último andar do edifício, em geral
tinha o guarda-móveis: uns lugares onde as pessoas guardavam tapetes velhos,
poltronas que elas não usavam. Havia um clima meio de sótão, com barulho da
máquina do elevador. As primeiras experiências infantis com a sexualidade pintaram
nesses sótãos empoeirados. Não tinha clima de pecado, mas um sabor de
transgressão.
Uma das primeiras relações homossexuais com pessoas mais adultas, também
aconteceram pelo fato de morar em Copacabana... foi com um estrangeiro. Era um
cara hospedado no Hotel Excelsior... Achei uma experiência fabulosa, pois como eu
era um garoto, fui envolvido naquele mistério de entrar escondido no hotel pelo bar
que dava para a praia, subir umas escadinhas e pegar o elevador para encontrar com
ele. Como era menor de idade, não podia entrar pela porta da frente com um cara e ir
para o quarto dele. De repente, já não era mais num sótão, mas um quarto com uma
cama, sem o perigo de chegar alguém de surpresa, como podia acontecer nesses
sótãos!
Havia muitos marinheiros americanos no Rio de Janeiro. Quando vinham os
navios para o Brasil, todos eles iam para aqueles bares em Copacabana. Lembro que
foi numa Semana Santa, a minha família tinha viajado e consegui transar com um
marinheiro americano na minha casa... para mim foi uma experiência assim
fabulosa! Isso aconteceu por volta de 1958. Já que estou contando essa história
pessoal, quero contar que minha primeira paixão, em relação ao mesmo sexo, foi
por um professor.
A história é assim: tive uma irmã mais velha que pirou muito cedo. Eu era
garoto quando ela teve um surto esquizofrênico e minha família se desestruturou. A
minha mãe se internava junto com ela, para não deixar que ela fosse maltratada nos
hospitais. Apesar deles serem caríssimos, faziam coisas horrorosas. O meu pai ficou

597
em casa, completamente prostrado, e eu fiquei sem diálogo, sem família, era
sozinho!
Nesta época, foi a literatura que preencheu essa solidão profunda. Comecei a
ler, ler, ler... exaustivamente!! Uma maneira de fugir da minha realidade que não era
legal. Através disso, conheci um professor de português e literatura. Ele me indicou
alguns livros e eu nutria uma paixão absolutamente platônica por ele. Ele era um
poeta - Cláudio Murilo Leal -, que por sua vez me apresentou ao Lúcio Cardoso,
meu escritor preferido, naquele bar Jangadeiros em Ipanema. Ao ser apresentado ao
Lúcio, na mesa ele fez um belo poema para mim e me arrastou para sua casa. O
Lúcio Cardoso foi minha primeira grande paixão, durante muitos anos. Ele era meu
escritor preferido e passou a ser uma figura muito importante na minha vida... até o
fim da vida dele, quando ele teve o derrame. Nesta época que estávamos juntos, eu
era bem garoto!
Através dele, conheci o poeta Walmir Ayala que me deu muita força. O Lúcio
começou a ler meus primeiros poemas. Fiquei conhecendo uma porção de pessoas
através dele, como Maria Alice Barroso, Nelida Piñon, Clarisse Linspector, para
mim isso era uma glória! Eu era um garoto que escrevia poesias, estava conhecendo
essas pessoas e aquele escritor me amava, estava apaixonado por mim... foi uma
coisa muito forte!
Na época, eu já era bissexual, tinha relação com meninas - namoradas -, e
transa com outros garotos. O primeiro caso mais forte foi com o Lúcio. Depois,
continuei minha vida dentro da bissexualidade. Não era uma opção assumida para
minha família porque eu tinha medo... imagina nos anos sessenta! Porém, através do
Walmir, uma pessoa assumidamente gay, via uma possibilidade de ter uma opção
sexual diferente da estabelecida pela sociedade, e no entanto de “ser respeitado.” O
Walmir era recebido nos lugares, publicava livros, ganhava prêmios, era citado,
tinha poemas dedicados pelo Carlos Drummond de Andrade... por pessoas “de
respeito!”

598
Estava acostumado a ver os garotos que apedrejavam a bicha louca na rua.
Nos anos cinqüenta assisti linchamento de gays em Copacabana - terríveis -, pelo
fato do cara ser afeminado ou ter um brinquinho. Às vezes, um travesti, ou mesmo
uma bicha louca que morava por ali era arrebentado. Chegavam uns machões e
começavam a dar socos na cara até tirar sangue!! Algo parecido com A Farra do
Boi... só que com um homossexual.
Isso me chocava muito. Sentia dentro de mim: “- Puxa, mas também tenho
tesão por homem! O que vou fazer com isso!? Tenho que fazer desse meu desejo
uma vida clandestina?” Não queria fazer isso. As minhas transas com as meninas
não era para encobrir nada, nem para dar satisfação à sociedade, muito pelo
contrário, era uma relação de carinho e também de tesão. Ao longo da minha vida,
isso foi se acentuando. Fui casado com muitas mulheres e com vários homens. A
minha sexualidade foi se encaminhando mais para a orientação homossexual. O que
não descarta a bissexualidade. Até hoje, muitas vezes, tenho relações heterossexuais.
Nesse aspecto da minha vida, tinha aquela paixão com o Lúcio, mas não
gostava muito da questão da sexualidade. Num certo sentido aquilo me traumatizou.
Ele só queria fazer o papel do ativo, isso era algo que me machucava muito.
Fisicamente me fazia sofrer. Aquela paixão por ele ficou rolando, mas eu fugia da
cama porque não era o nosso grande barato. Depois ele teve um derrame.
No que se refere ao percurso intelectual, sou completamente autodidata. Nem
terminei o ginásio, larguei tudo na época que veio o golpe. A cultura que tenho, foi
toda adquirida na base do autodidatismo mesmo... inclusive línguas. Ganhei um livro
do Lúcio, poesias completas do Rimbaud, e tinha um breve conhecimento do francês
que adquiri no ginásio, então comprei um dicionário. Li o Rimbaud inteiro, li o
Verlaine, li o Mallarmé, li o Baudelaire. Quando acabei de ler tudo isso, já sabia ler
francês. A minha base é autodidata MESMO.
Nunca fiz faculdade... nem o clássico! A literatura também desenvolve uma
memória visual e auditiva muito grande. Ficamos obrigados à acumular informações

599
para construirmos nossa cultura própria. Nesse processo do autodidatismo,
desenvolvemos determinadas sensibilidades, as quais uma pessoa que fez a
faculdade não precisa fazê-lo, pois já recebe aquilo de uma forma disciplinada e
didática. Quando estamos na vida, temos que aprender a nos ligar em papos, nas
viagens que foram feitas. Nesse sentido, desenvolvemos mais essas habilidades. A
minha formação foi se realizando desta forma. Sempre li muito, muito... muito!
Nunca parei de ler: três, quatro, cinco livros. Até hoje.
Em 1968, estava casado com uma menina, mas decididamente foi quando
resolvi mergulhar fundo nessa questão da vivência das relações homossexuais: “Eu
queria viver um amor. Eu queria morar com uma pessoa e ter uma vida!”
Eu era bem garoto quando fui militante do Partido Comunista (No livro do
Zuenir Ventura eu conto isso!) Publicaram uma antologia com vários poetas, em que
o Walmir Ayala apresentava a minha parte. Certa vez, saí de uma reunião do Partido
e falei para um dirigente: “- Saiu um livro de poesias meu. Eu queria te dar!” O cara
foi até a casa dos meus pais, meu pai era comunista também, para entregar o livro.
Quando ele viu a apresentação do Walmir, fez um discurso moralista: “- Ih! Esse
cara é um homossexual e não sei o que lá!!!” Nem falou da minha poesia! Eu fiquei
arrasado!!!
Desta forma, comecei a perceber a existência do preconceito até nos grupos
que se diziam libertários. Tinha um amigo que era homossexual e morava numa
favela. Ele era um líder no lugar, muito respeitado, todo mundo gostava dele e se
tornou muito amigo meu. Ele também era poeta. Quis recrutá-lo para o Partido
porque seria um ganho. Ele tinha contato com todo mundo da favela. Nós
poderíamos construir várias bases do Partido na Favela da Rocinha. Quando falei
para o pessoal que o havia convidado, fui repreendido na mesmo hora: “- Mas não é
possível!! Imagina, você não sabe que ele é homossexual!?” Então, pensava assim:
“- Porra, que loucura! Como não pode ser militante de esquerda e homossexual ao
mesmo tempo!!? Qual é a contradição que existe entre uma coisa e outra!!?” Desta

600
maneira, vivenciava essa esquizofrenia dentro de mim. Com certeza ela não era
minha!
Comecei a trabalhar muito cedo, tinha dezenove anos e, num certo sentido, a
minha libertação foi através do cinema. Saí de casa e fui para a Bahia fazer meu
primeiro filme. Conheci gente e me profissionalizei. Não ganhava dinheiro
suficiente para que pudesse sair de casa, mas vivia na casa das pessoas... conheci a
Leila Diniz muito cedo. Nós tínhamos quatorze anos, ela era uma pessoa de uma
liberdade absoluta, freqüentava comigo a casa do Lúcio... quando eu estava nessa
relação amorosa com ele.
Tive uma primeira relação com um ator da Bahia: o Echio Reis. Quando o
diretor do filme sentiu, começou o problema do preconceito. Isso era em Arembépe,
na época uma praiazinha de pescadores. Como eu era militante, com o golpe de
Estado fiquei desarvorado. Havia largado tudo na minha vida para me dedicar à
política, à construção do Partido e ao socialismo. Tudo por ideal a uma sociedade
que estávamos construindo, na qual eu acreditava.
Não sei também se isso foi um pouco a tábua de salvação, pois a minha vida
pessoal estava muito ruim: a minha irmã pirou, a minha família se desestruturou.
Desta forma, segurei-me nisso para poder sobreviver, ou seja precisava de uma
ideologia, de uma causa, de algo maior que me desse fôlego para continuar minha
vida. Fiquei muito mal quando veio o golpe!! À época, um amigo do meu pai que era
fotógrafo de cinema - o Ruy Santos -, estava passando pelo Rio para ir à Bahia fazer
um filme, então ele me convidou: “- Você não quer ser meu assistente?” Apesar do
meu pai fazer cinema, nunca tinha pensado nisso. Minha idéia era fazer uma
faculdade de jornalismo, cuidar mais da parte literária, publicar livros, enfim me
dedicar à poesia. Nunca tinha pensado no cinema como uma profissão! Desta
maneira, fui com esse amigo do meu pai para Arembépe.
Porém, pintou essa primeira paixão por esse ator, mas como o diretor sacou a
história e era amigo do meu pai, primeiro ele me obrigava a dormir no quarto dele -

601
para não ter possibilidade de ficar com o rapaz -, depois ele percebeu que isso não
adiantava. Ele botou o rapaz para dormir num salão enorme com os eletricistas,
maquinistas. Para esse rapaz também era difícil ficar ali, meio que vigiado por esse
pessoal para virar chacota do povão. Este ator sofria um tratamento diferenciado dos
outros atores, que moravam no seu quartinho decente. Era como se ele sofresse um
confinamento.
Quando acabavam as filmagens, nós saíamos para transar em uns barcos que
ficavam em alto mar, ou então numa lagoa que tinha ali perto, com uma água
quentinha, uma coisa maravilhosa. O diretor, porém, por punição, mandava trancar a
cozinha e colocar cadeado na geladeira, como se quisesse nos dizer: “- Ah! Vocês
querem ficar trepando!? Mas não vão comer!” Arembépe não tinha nenhuma
birosca, nós andávamos quilômetros para ir num armazenzinho vagabundo comprar
umas latas de sardinha, então abríamos as latas e comíamos aquilo. Era um
tratamento de repressão muito louco... policialesco mesmo!!!
Por outro lado, fiquei feliz porque foi minha primeira relação amorosa. Eu
estava começando uma vida plena, no que se refere ao afeto, à sexualidade, porque
se com o Lúcio a questão da sexualidade era meio desconfortável, com esse ator já
era algo que começava a fluir melhor .
No final dos anos sessenta, já estava desiludido com a questão da política.
Comecei a ver esse tratamento preconceituoso da esquerda, muitos amigos entraram
para a luta armada, dentro do partido via essa esquizofrenia moral. Eles queriam
fazer uma nova sociedade - libertária -, e ao mesmo tempo eram mais reacionários
do que a própria direita. Eles diziam de boca cheia: “- Na União Soviética não
existem homossexuais!” Nesse sentido, indagava: “- Mas o que tem a ver uma coisa
com a outra!? Não consigo compreender?” Mas depois, na vida, fui perceber que
realmente há! Em todas as sociedades fechadas - na Argentina, no Brasil -, a ditadura
de direita perseguiu homossexuais.

602
Mesmo na ditadura de esquerda, até em Cuba - um país que freqüento, vou lá
todo ano e dou aulas - nos anos setenta, o país tinha campos de concentração, nos
quais muitas pessoas foram presas... inclusive o Pablo Milanês. Depois, eles se
deram conta que isso era uma burrice, era um absurdo, e liberaram geral. O que
existe é um preconceito machista, mas isso é uma questão cultural. É um preconceito
que tem no Brasil, tem nos países latinos, onde essa imagem do macho sustenta o
totem da sociedade machista.
Percebi esse dado desde as pequenas coisas, como piadinhas, até os atos de
perseguição... que testemunhei quando era garoto! Nestes momentos de ditadura na
Argentina, no Brasil, pessoas foram presas porque eram homossexuais.
Principalmente na Argentina! Na época da ditadura, muitas pessoas vieram embora
para o Brasil, porque apesar da ditadura brasileira ser violenta, ela era um
pouquinho mais liberal. Na Argentina, se desconfiassem que um cara era
homossexual, ele era preso. E muitos foram assassinados!!!
A ditadura no Brasil, oficialmente, não perseguiu homossexuais. Ela não os
via como uma ameaça. É verdade que um indivíduo não era preso, nem torturado,
pelo fato de ser homossexual, mas a ditadura não admitia o comportamento
homossexual. No mundo inteiro já existiam organizações gays, principalmente nos
Estados Unidos e na Europa. No Brasil, uma organização destas não seria permitida.
Por outro lado, nessa onda moralista, não existia uma perseguição explícita,
mas a mesma permitia que as forças policiais perseguissem os homossexuais,
anonimamente, nos lugares de pegação! Os homossexuais eram presos, apanhavam e
eram torturados. Ninguém tinha coragem de ir para um lugar de pegação, era
perigoso! A polícia, a qualquer momento, podia prender o indivíduo, levá-lo para
uma delegacia e arrebentá-lo de porrada pelo fato de ser homossexual. Mas, não
tinha uma linha política... como nos países de esquerda!
Os países socialistas sempre viveram a questão da formação de uma nova
sociedade, onde devia haver o “novo homem”, onde estava excluída a possibilidade

603
da homossexualidade. Esse comportamento sempre foi considerado pelos ideólogos
das sociedades “novas” como um desvio da sexualidade “natural”.
No Brasil, não havia essa pretensão de construir uma nova sociedade ou da
construção de um novo homem, por isso não tinha uma perseguição oficial.
Prevaleceu o propósito de garantir interesses ameaçados antes do golpe militar. Não
fazia parte do programa político dos golpistas perseguir comportamentos sexuais.
Porém, a ditadura dava direitos aos militares e às forças policiais, antes de tudo
machistas, de uma formação machista, de cometer impunemente os crimes mais
terríveis contra esses homossexuais por conta própria.
Havia perseguição no sentido de cargos públicos. O cara que era
declaradamente homossexual não podia assumir cargos de direção nas repartições do
Estado... mesmo na área da cultura!!! Porque o consideravam um indivíduo com uma
moral facilmente manipulável: “- Esse cara!!! Se ele ficar na direção desse negócio,
vai botar uma porrada de garotões para trabalhar só porque comem ele!!” O
homossexual sempre foi visto de forma pejorativa, como se fosse um prostituto.
Sempre foi sinônimo de puto: “- Ah! Esse cara manipula o sexo a qualquer
preço! Ele é capaz de colocar um garotão, para assumir um cargo importante, só pelo
fato deles serem comparsas na cama.” Sempre houve essa visão! Na verdade, isso é
um reflexo da sociedade machista: os caras que comem as secretárias. Trata-se de
uma transposição da sociedade machista.
Retomando a narrativa dos anos sessenta, percebi que aquele grupo não era
um grupo nada libertário, na verdade era reacionário. O Nelson Pereira já tinha
aberto meus olhos dizendo: “- A esquerda organizada é muito moralista e
ditatorial...” Até hoje a esquerda partidária é assim, não só do ponto de vista sexual,
mas da própria criação artística: jogou no lixo poemas do Drummond, tentou
censurar milhões de filmes.
Em 1968, já estava meio desiludido quando tomei meu primeiro LSD. Nesse
momento, entrei muito profundamente nessa experiência com as drogas. Fiquei

604
tomando LSD durante muitos anos e fumando tudo. Vivi profundamente a
experiência da Contracultura! Saí de casa para morar em comunidade com uma
porção de gente. Fui pra Parati fazer filmes experimentais. No início o uso de drogas
gerou uma clareza imensa no sentido de seguir a minha felicidade pessoal. Isso era
mais importante do que qualquer coisa!
A experiência com as drogas durou de 1968 a 1972, quando aconteceu a
morte da Leila... Ela estava voltando de um festival de cinema! Nós tínhamos ido
com meu primeiro longa-metragem - Mãos Vazias, uma adaptação do romance do
Lúcio Cardoso -, quando morreu num desastre de avião. Eu fiquei em Londres, ela
resolveu vir antes e o avião caiu. Diga-se de passagem, o meu primeiro curta-
metragem, dos vinte que realizei, foi sobre Lúcio Cardoso, chama-se O Enfeitiçado.
Embora essa experiência com as drogas também possuísse uma certa
ideologia - no sentido de liberar a sociedade no que se refere aos preconceitos, a
história do Paz e Amor -, antes de tudo, era uma experiência a partir da
individualidade. Era fundamental para a questão da sexualidade não reprimida,
enfim, para poder ser feliz! Assumi publicamente a minha bissexualidade, comecei a
ter relações com mulheres e com homens de forma alternada e sexo coletivo!! Nós
vivemos experiências muito fortes e muito abrangentes.
Nessa experiência com a droga, percebi que os coletivos começaram a virar
grupos fechados, o que acabou repetindo aquela sistematização dos comunistas.
Neste sentido, eles dividiam o mundo em alienados, revolucionários e contra-
revolucionários; enquanto a droga nos dividia entre os “muito loucos” e os “caretas.”
Assim, nós repetíamos a forma da organização familiar. Havia uma família onde a
Leila era a mãe, o Nelson Pereira era o pai, às vezes a Vera Barreto Leite fazia um
pouco o papel da mãe, eu, o Arduino Colasanti, o Hélio Braga e outros, éramos os
filhos. Morando juntos, alternávamos todos os papéis existentes dentro de uma
família.

605
Quando eu começava a namorar algum menino que não era do grupo, eles
recebiam o garoto com uma certa caretice: “- Quem é esse estranho que vem aí!?”
Nós podíamos trepar lá fora, mas era muito mal visto trazer uma pessoa para viver
ali dentro. Comecei a perceber que também havia um patrulhamento... (essa
terminologia que o Cacá Diégues inventou é tão apropriada!!!).
Por outro lado, as pessoas começaram a morrer de overdose, a traficar meio
de brincadeira. Quando chegou a esse ponto pensei que não era isso o que eu queria!
O meu negócio era mudar o mundo, abrir a cabeça, e estava vendo todas tão
fechadas, repetindo a mesma historinha dos nossos pais: daquela família ideal... que
não tive porque a minha se desestruturou, substituída por esse grupo. Isso reforçou a
idéia de que a única saída era através da individualidade, tinha de descobrir algo
individual para mim.
Neste instante tive um surto... dei uma pirada!! Como já tinha um caso de
esquizofrenia na minha família, fiquei muito preocupado. Cheguei a ficar cinco dias
vendo coisas como se tivesse tomado ácido. Algumas pessoas até dizem que o ácido
tem efeito retroativo, então poderia ser isso... mas acho que não era!!
Na verdade, tempos depois descobri com a psicanálise que estava precisando
deste surto para me reestruturar. O próprio analista usava uma expressão: “- O caos é
uma ordem às vésperas do restabelecendo de uma nova ordem.” Fui no consultório
de um psiquiatra, levado por uma amiga minha! Cheguei lá e falei que estava louco,
chorava, ria! Ele disse: “- Não está!!” Contei rapidamente um pouco a minha história
e ele me mandou para um analista que, por sorte, era o Eduardo Mascarenhas. Ele
estava começando a carreira. E me ajudou a começar a minha vida. Devo tudo a ele.
Tudo o que eu possa ter de bom, de louvável, minhas limitações, minha
potencialidade, o Eduardo me ajudou a descobrir.
Comecei a estruturar a minha personalidade, resolvendo questões que as
pessoas diziam ser contradições terríveis. “- Se você transa com homem e também
com mulher, você é uma pessoa indefinida.” Amigos meus, gays inclusive,

606
cobravam isso! Afinal, sempre gostei da sedução das mulheres, assim como de
seduzi-las também. Ao mesmo tempo os homens ficavam putos, eu sendo bissexual
e atuando na área deles também. Havia uma questão do poder que eu exercia sobre
as mulheres. Elas ficavam fascinadas, até hoje ficam, com a minha diferença e
semelhança.
Essa época coincidiu com o lançamento do Lampião. Desta forma, achei que
tinha obrigação de colaborar. O jornal tinha uma proposta libertária, falava de um
assunto que ninguém falava no Brasil, ainda. Como em alguns momentos sentia-me
um pouco batalhador dessa causa, mas sempre na minha perspectiva individual,
achei que tinha de me juntar a eles, pelo menos para dar o meu testemunho pessoal...
para servir a alguma coisa! E comecei a escrever para o jornal.
Conhecia o João Carlos Rodrigues, o meu amigo de sempre! Conhecia o
Aguinaldo Silva, por causa da literatura... ele tinha publicado uns livros. O Francisco
Bittencourt que é poeta, ele também foi amigo do Walmir. Começaram a pedir para
escrever roteiros gays. Tinha amigos em São Paulo, conhecia lugares muito loucos.
Além do que, sempre tive uma veia humorística.
Na época do Lampião, já havia começado a análise. Portanto, a minha cabeça
investigatória, estava num processo criativo muito grande e muito rico. Escrevi um
artigo onde colocava que o travesti é a personificação do preconceito da sociedade
heterossexual com a homossexualidade. Para explicar melhor, ele se encerra no seu
próprio comportamento sexual, a ponto de chegar a mutilação.
Acho inclusive que eles exercem uma função ativa no ato sexual. Pelos
depoimentos que eles dão, na maioria das vezes é assim. Estão servindo a um
exército de preconceituosos: os caras enrustidos, homens casados, que à noite vão
dar o cu para uma entidade que não é propriamente um macho. Quando ele está
levando no rabo, tem um peito encostando nas costas! Desta forma, serve mais ao
preconceito do que à liberdade.

607
O enrustido é o neurótico e o travesti é o esquizofrênico. No fundo, o travesti
é o cara que não faz parte do universo da homossexualidade. Para ele só existem dois
papéis, dois espaços sexuais, dois palcos da sexualidade: o masculino e o feminino.
Ele faz tudo para se inserir nesse “feminino”. Ele quer virar mulher, não acredita que
possa ter uma sexualidade entre os homens. Nesse sentido, vira uma caricatura até a
mutilação. Muitos ficam loucos! Sem gozar a pessoa fica maluca!!!
Não acredito que a Roberta Close seja feliz. Ela não goza! A sexualidade é a
parte mais importante na vida do ser humano. É o que define tudo, até a profissão!
Se o indivíduo tem uma profissão maravilhosa, mas não goza, se suicida. Escrevi
esse artigo, colocando essas questões.
Foi um escândalo, mais uma vez outro grupo que achava libertário queria
censurar o meu artigo. O Aguinaldo Silva não queria deixar sair o artigo! O Darcy
Penteado, de São Paulo, mandou uma resposta me atacando. Na verdade levantei
esta questão para nós discutirmos mesmo. Achei legal virar um debate em torno de
um tema para pensar.
O Darcy escreveu que não era nada daquilo, defendendo os travestis de uma
maneira meio alegórica, me ofendendo pessoalmente. Que na verdade o bissexual
não existia, que era um homossexual mal resolvido. Se eu fosse bissexual para
prestar alguma satisfação à sociedade, não estaria assinando artigos num jornal gay.
Todas as minhas relações com mulheres foram explícitas, desde o primeiro momento
expus minha bissexualidade a elas e nunca enganei ninguém.
Porém, o Darcy escreveu este artigo e escrevi outro contestando. E meu
segundo artigo foi proibido! Eles fizeram uma reunião, e o Aguinaldo disse que não
poderia sair porque o jornal também era endereçado aos travestis. Disse que o
pessoal em São Paulo tinha ficado muito puto e que meu artigo não iria sair de jeito
nenhum. Exatamente como a censura da ditadura, a censura heterossexual que tanto
combatiam. A partir dessa recusa eu me nego a colaborar com um jornal que tem um

608
discurso libertário, mas que cerceia a liberdade de expressão. Por causa disso me
afastei, nunca mais colaborei.
Com o tempo, o jornal começou a trazer pôster com fotografia de garotão,
começou a ter outras características. Não tenho nada contra isso, até compro essas
revistas também, mas o Lampião deixou de discutir questões mais amplas. Isso
contribuiu para que o debate sobre homossexualidade virasse algo folclórico, só
mesmo de pontos de encontro, ou seja: se ficasse escrevendo os roteirinhos gays das
cidades que conheci, não teria briga com ninguém! O fato de querer polemizar,
querer discutir, levantar questões, era para não falar só sobre o óbvio. Queria ver até
onde chegava a possibilidade de pensar com o grupo!
Não quero dizer que por causa disso, o jornal tenha perdido sua importância
para a história do jornalismo brasileiro, assim como para a história do
comportamento no Brasil. O jornal foi muito corajoso porque nós ainda vivíamos
numa ditadura muito feroz e muito moralista!!!
O período da “abertura política”, sem dúvida alguma, vai ajudar o movimento
homossexual. Por exemplo, no meu filme Leila Diniz, feito em 1987, o meu
personagem, feito pelo Diogo Vilela, é declaradamente homossexual. Há cenas de nu
frontal de homens, fala sobre as drogas. Nesta época, o chefe da censura em Brasília,
queria cortar, apelei para o Conselho Federal de Censura, que era formado por
intelectuais, por unanimidade liberaram o filme para quatorze anos. Foi o que
permitiu o grande sucesso de público dele.
Todo processo de abertura política serve à causa da liberdade. Morei um ano
em Cuba, de 1992 a 1993, e pude testemunhar que não existe mais perseguição no
país aos homossexuais. Nessa altura da minha vida, não ficaria vivendo durante um
ano num país, caso houvesse perseguição.
“Morango e Chocolate” foi o filme que abriu o cinema cubano para o
mercado internacional, indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro e é um
filme que aborda a temática homossexual. Este filme não seria possível na época da

609
repressão. Hoje não existe mais isso, podemos ver travestis, há uma praia
freqüentada por gays, há bares gays. Não há mais esse problema.
Certa vez, o Fidel concedeu uma entrevista a um jornalista - se não me
engano ele era da Venezuela, que publicou um livro Un Grano de Maiz (em
português Um grão de Milho) -, na qual ele pede para as famílias cubanas terem
mais compreensão com seus filhos homossexuais. Tudo que está acontecendo em
Cuba é um reconhecimento do erro que eles cometeram: perseguir homossexuais e
confiná-los! Neste sentido, a abertura política em qualquer país do mundo ajuda a
liberar o comportamento, ajuda a liberdade de expressão artística e a sexualidade
também.
No que se refere à possibilidade do Lampião ajudar a aglutinar as
organizações homossexuais para lutarem politicamente pelos seus direitos!? No meu
caso, por exemplo, quando ouvi falar nesse jornal, fui logo correndo para colaborar.
O exemplo de um jornal defensor de idéias comportamentais de minorias criou
condições para que outros grupos se organizassem. É possível se organizar, é
possível lutar, é possível levantar bandeiras, ele foi super importante.
Antes dele não lembro de nenhuma que preceda essas organizações políticas
de homossexuais. Antes dos setenta, havia bares, boates, pontos de pegação, como
existem até hoje. Individualmente, sempre achava que isso daí era uma forma de se
excluir: “- Vamos para o “nosso lugar.” Sempre achei que o meu lugar era qualquer
um da sociedade - onde quer que fosse. Nunca me satisfiz com essa idéia dos guetos.
Não gosto dos guetos!
Por duas vezes, já levei porrada na cara em boates. Uma vez foi num bar em
Parati porque estava beijando um cara. Achava que tinha esse direito, pois ele vivia
comigo. Estávamos dando um beijo na boca, levantou um sujeito e me deu um soco
na cara. Mesmo assim, nunca abri mão de tentar exercer esse direito. Outra vez foi
numa boate heterossexual. Todas as pessoas estavam dançando e fui dançar com um
cara que vivia comigo. Um segurança disse que não podia. Questionei, afinal não

610
estava fazendo nada. Virou uma discussão, que foi uma loucura! Nesse sentido,
sempre fui um criador de caso. Sempre quis exercer minha liberdade de ser, onde
quer que estivesse. Ao meu ver, esses guetos sempre foram um curral permitido pela
sociedade, para nós ficarmos ilhados e podermos exercer essa liberdade permitida.
Como historicamente vivemos um processo de colonização mundial pelos
Estados Unidos, iniciado após a Segunda Guerra, a sociedade americana, branca,
anglo-saxônica, protestante, moralista, careta, influenciou a criação desses grupos de
luta por direitos civis. A questão do feminismo, assim como todas essas lutas de
todas minorias.
Os Estados Unidos sempre foi o país da liberdade individual, o indivíduo tem
o seu espaço garantido. Os grupos discriminados sempre foram muito oprimidos. A
liberdade é muito grande e a discriminação é maior ainda. Essa contradição,
contudo, talvez sirva dialeticamente à criação de algo novo.
É um horror quando os homossexuais querem ser o arremedo do casal
heterossexual, cuja função é ter filhos e construir a família. Os homossexuais se
juntam para gozarem juntos, amarem, e serem mais felizes. Só isso. Quando dois
homens ou duas mulheres começam a querer adotar criança, botar aliança no dedo,
querer casar na Igreja, acho ridículo, a gente está arriando as calças -no mal sentido-,
para os falos da sociedade nos enrabarem sem vaselina.
Acredito que deva haver algum instrumento que garanta os direitos do casal
homossexual. Como no caso do Jorginho Guinle e do Marco Rodrigues! O Marco
Rodrigues viveu os últimos vinte anos de sua vida com o Jorginho, que aprontava
pra caralho, tinha milhões de namorados, fazia o Marco sofrer. Mesmo depois de
doente o Marco levava o Jorginho de carro para todo canto, dedicou toda sua vida,
construíram muitas coisas juntos! O Jorginho já na fase terminal da AIDS, num
hospital nos Estados Unidos, assinou um papel que a mãe mandou e o Marco
Rodrigues ficou sem direito a porra nenhuma!! Essa família é rica, e ficou com tudo

611
que o Marco tinha direito. Nesse sentido, acho que deva haver algum mecanismo de
garantia.
A legislação não considera essa forma de relação, então do ponto de vista dos
direitos alguma coisa deve ser feita. Não sei exatamente de que forma. Porém, sou
contra essa questão da legalização do casamento. Isso não garante nada, o Brasil está
cheio de leis!
Acredito que por uma questão de justiça toda luta é válida. Porém, sou contra
essa prostração, essa posição de pedir a sociedade: o querer ser aceito. Não quero
convencer ninguém a me aceitar porque não estou enquadrado na maneira dele
pensar. Não me importo com esse cara... eu quero que ele se foda!!!
Nunca fui para os currais permitidos e organizados! Quero estar no meio de
todo mundo porque estou convencido que, como ser humano, tenho o mesmo direito
que qualquer outro. Desta forma, não tenho que pedir para a maioria homologar um
direito que nasci sabendo que tenho. A minha expressão é sexual, moral e artística...
não tenho que pedir licença para ninguém! Por isso, sou contra a oficialização do
casamento, mesmo no caso de heterossexuais. Só acho que deve haver um
instrumento que defenda essa história do patrimônio... para que os direitos não sejam
sacaneados como foi o caso Marco Rodrigues!!
Não é de leis que estamos precisando. Acho que os próprios homossexuais
têm que adotar uma posição de enfrentamento com dignidade. Enquanto for a
Isabela dos Patins, o palhaço do circo, ela é recebida até pelo presidente da
República. Porque é o fantoche, é um arremedo, é uma brincadeira, é o bobo da
corte!
Toda granfina tem um amigo viado que gosta da Liza Minelli, que é motivo
de chacota. Nas rodas sociais, isso é permitido! Porém, homem feito eu e outros
amigos que tenho, as pessoas já ficam desconfiadas. Recebem com certo temor
porque a minha abordagem é masculina. Quando falo que gosto de homens como eu,

612
na televisão, eles estão esperando que venha uma bicha louca falar, não um homem
como eu.
Hoje em dia, quando entro numa banca e caço uma revista gay, não sou mais
olhado como quando era adolescente. Naquela época, para conseguir uma revista,
tinha que esconder. Atualmente há revistas em todos os lugares. Ninguém olha a
pessoa diferente, senão ela não compra mais nada ali e o comerciante está
interessado em vender aquela porra!!! Ele não quer julgar ninguém moralmente! A
revista é tratada como produto, ela deixou de ser o fetiche que antigamente o cara
vendia escondido. Todos têm o direito de consumir o objeto do seu desejo.
Quando o Lampião pára de ser publicado, os grandes jornais não se
apropriaram do estilo do jornal. Acho que demorou muito para a grande imprensa,
incluindo a televisão, absorvê-lo.
Em 1986, o meu amigo Vinícius Mane apareceu nu, com a mão no bolso, na
televisão. As propagandas com figuras masculinas nuas, os anúncios de homens com
cuecas Calvin Klein podem ser para o público feminino, mas também são para o
público gay. Depois do jornal ter acabado, essa novidade da exploração do nu
masculino como objeto demorou mais ou menos uma década para começar a
aparecer. Atualmente, está em todos os lugares! Na capa da Revista de Domingo do
Jornal do Brasil de hoje, o tema é o comércio gay, hotéis para esse público. Os
artigos são sobre o potencial de consumo do público gay. Há vinte anos atrás, jamais
sairia um tema desses num jornal conservador e tradicional, como o Jornal do
Brasil... e eu acho legal!
Este processo foi muito lento. O Lampião perdeu essa luta e as pessoas
ficaram completamente órfãs. Voltou o consumo das revistas internacionais! Havia
algumas revistas brasileiras, meio pornográficas - não lembro os nomes agora -, mas
revistas de duração muito rápida, feitas em São Paulo. Se não me engano, a Playgirl
brasileira. Só sei que de vez em quando eu comprava umas revistas, mas elas
duravam cinco, seis, oito, dez números e acabavam. Neste sentido, nunca houve

613
nenhum grande jornal! Quando aparecem os grupos mais organizados - o SOMOS, o
Atobá -, eles próprios promovem material jornalístico, mas muito voltados para
temas da organização política.
De qualquer modo, tanto o Lampião, como os grupos organizados, serviram a
causa da liberdade individual. Suas contradições refletem as contradições e
imperfeições humanas, mas com a intenção de servir a luta pela liberdade.
Como pessoa de meu tempo, sinto-me privilegiado por ter estado, mesmo que
apenas na defesa intransigente de princípios que serviram a minha individualidade,
junto com o que havia de mais avançado na luta por uma sociedade menos hipócrita
e mais feliz.

614
. Nasceu em Salvador, Bahia,
em 11 de março de 1948.

. Advogado, Jornalista, Escritor, Promotor


Cultural.

. Estudos acadêmicos: Direito na PUC/RJ.


Autodidata em Jornalismo.

. Autor de A Bicha que Ri (com outros),


1978

José Fernando Bastos.

615
Quando conversei com José Fernando
Bastos pela manhã, ele solicitamente se
dispôs a dar a entrevista convidando-me para
aparecer no Teatro Rival à tarde. Ao descer
na Cinelândia, centro tradicional do Rio,
passei próximo a um dos bares mais
freqüentados da cidade: o Amarelinho. No
Teatro, aguardei alguns minutos, enquanto
isso observava a intensa movimentação das
pessoas. Logo, José F. Bastos apareceu,
conduzindo-me ao seu gabinete. No
momento da gravação acontecia o ensaio de
um grupo musical. Algumas vezes o som
dos instrumentos concorreu com sua voz.
Era comum as pessoas entrarem no gabinete.
Fui abrigado pela agitação do local. Durante
o depoimento, José Fernando Bastos estava a
vontade com a sucessão de eventos,
referendando sua narrativa através da
convivência profissional e artística.

Rio de Janeiro, RJ,


23 de outubro de 1995.

616
“O jornal Lampião pode servir de marco, pois não tínhamos medo
das palavras. Defendíamos minorias, como gay, mulheres, aleijados,
negros etc... ”

Nasci no dia 11 de março de 1948, em Salvador na Bahia. Era pequeno ao vir


morar no Rio... vim com a família. Na época tinha entre oito e nove anos, quando vi
já estava em Copacabana! No Rio, três fatos marcaram minha chegada: primeiro, foi
a morte da Aída Curi, quando a jogaram de um prédio, foi o maior escândalo no
Brasil inteiro; segundo, foi a conquista do primeiro campeonato mundial de futebol
do Brasil na Suécia... o terceiro acontecimento!? Foi qual meu Deus!? Entre 1957,
1958!? No momento só recordo desses dois!! A morte da Aída Curi aconteceu num
prédio em que eu havia morado... foi parecida com o assassinato da Claudia Lessin!
Morei em Salvador até os oito, nove anos de idade, depois vim embora para o
Rio de Janeiro, morei em Londres, morei dois anos em São Paulo e voltei para o Rio.
Depois, retornei muito à Salvador, mas não me adapto em outro lugar do mundo que
não seja o Rio. Adoro São Paulo, adoro Salvador, adoro Londres! Tenho ido muito
em Nova Iorque, mas não pretendo mais sair do Rio de Janeiro. Nas viagens misturo
lazer e trabalho.
Na infância, tive um bom relacionamento com meus pais. Meu pai era ligado
à exportação de cacau, era uma pessoa extremamente careta, a minha mãe era dona
de casa. Tenho uma irmã quatro anos mais nova. Ela é casada e mora em Salvador.
Moro em Ipanema com minha mãe e meu padrasto. Quando meu pai faleceu, minha
mãe era casada há vinte e quatro anos com ele, agora ela está casada a vinte e seis
anos com meu padrasto.
Sou filho de uma família de classe média. Eles puderam me pagar um bom
estudo. Estudei no Mélo e Souza, depois fiz exame para o D. Pedro II. Lá fiz novas

617
amizades. Na época dos estudos, no Colégio Pedro II, eu era terrível... era terrível!!
No Colégio Pedro II, o inspetor me proibiu de usar sandália havaiana. Muita gente
era do subúrbio e eu morava em Copacabana, poucos moravam por ali e já havia
saído a sandália. Naquele época, era horrível homem andar de sandália!
Em nível de formação, sempre tive muito sorte na vida. Além de ter estudado
espanhol no colégio, já estive quinze vezes em Buenos Aires. Sempre estou ao lado
de pessoas que falam espanhol, e agora, falo bem. Consigo falar inglês corretamente,
pois foram quatro anos de estudos, assim como francês. No caso do alemão, falo o
suficiente para ser entendido, da mesma forma que os alemães falam português com
três visitas ao Brasil. Também trabalhei como tradutor!
No curso pré-vestibular, já era um aluno mais sério. Na PUC, havia matérias
inexistentes em outras faculdades, como Doutrina Social da Igreja, Teologia
Dogmática, então eram padres chatíssimos! Entretanto, gostava da turma! Tanto que
passei no vestibular da UEG - na época chamava-se assim porque era na Guanabara,
não era UERJ -, mas fiquei numa faculdade paga: a PUC. Minha mãe ainda disse:
“- Como pode!? Você prefere cursar uma faculdade paga e não quer estudar numa
faculdade gratuita!!?” Fiz isso porque tinha colegas que entraram na PUC!!
A primeira vez que fui preso, foi quando invadiram a PUC. Eu tinha um
ativismo político, militei um pouco no Partido Comunista Brasileiro, mas era um
movimento mais ligado à faculdade. Eles me prenderam como prenderiam a
qualquer um. Tenho sorte por ter alguns amigos influentes e ser sobrinho de um
político conhecido, embora ele também tenha sido caçado: o Valdir Pires, ex-
governador da Bahia. Fui preso, não detido, porque nunca cheguei a dormir lá. Fui
preso com pessoas bastante conhecidas hoje em dia, uma delas é o ator Buzza
Ferraz, filho do armador Hélio Ferraz, outra é o embaixador Hugo Gutier, a cantora
Joyce, a Bali (irmã da Ciça Guimarães), pessoas que foram presas junto comigo
quando a PUC foi invadida. Nós fomos todos presos na mesma leva.

618
Sou formado em direito pela PUC. Porém, larguei tudo e fui embora do
Brasil. Passei quatro anos morando em Londres, trabalhando na BBC, onde virei
jornalista. Nesse sentido, a BBC - onde todo mundo quer acabar a carreira -, foi o
local onde comecei. Fui trabalhar como jornalismo porque descobri que detestava ser
advogado... isso no quinto ano do curso de direito! Contudo, eu me formei e fui
embora para Londres. Quando cheguei à cidade tinha um amigo que morava lá. Um
ator paulista, também já falecido, o Edgard Aranha. Em São Paulo, ele fez Navalha
na Carne e outras. Este amigo perguntou se eu queria trabalhar na BBC!? Fiz o teste
de locução e fui reprovado. Fui aprovado só como repórter.
A primeira matéria que fiz na minha vida, foi sobre a peça A Ratoeira de
Ágata Chrystie. A peça estava há vinte e cinco anos sendo apresentada no mesmo
teatro. Em Londres, também trabalhava numa loja de disco. Durante esse período,
um inglês descobriu que o Ronald Biggs estava no Brasil. Fizeram uma entrevista
com o Biggs, ilustrada com fotos de Copacabana, Ipanema e Leblon! Na época desta
reportagem, a temperatura estava menos oito graus na Inglaterra, então, no outro dia,
comprei minha passagem de volta para o Brasil.
Depois que voltei, comecei a trabalhar em jornais que já encerraram suas
atividades: Correio da Manhã, Última Hora... já comentaram até que fecho jornais!
Também trabalhei como Free Lancer em algumas revistas. Atualmente, tenho uma
firma que faz assessoria de imprensa.
Houve uma época que estudei música com meu grande e saudoso amigo
Gonzaguinha. Quando ele escreveu uma música chamada O Trem, a censura proibiu.
Então, ele teve que mudar o título para que a música passasse pela censura...
aconteceu a mesma coisa comigo! Fui preso pela segunda vez, quando o ministro
Ângelo Calmon de Sá, hoje o famoso ex-dono do Banco Econômico, viajou para o
exterior. Então, coloquei num jornal: “- Esperando por ele no Brasil estão Ali Babá e
os outros trinta e nove.” A polícia me prendeu, queria que me retratasse. Desta vez,

619
levei muito soco na orelha e fui registrado no DOPS. Nesse sentido, as duas vezes
que fui preso, não tinham nenhuma relação com o Lampião.
Não fundei o Lampião, fui chamado depois porque fazia crítica de teatro e
música. O Lampião era composto por jornalistas respeitados, como o Aguinaldo
Silva, o Chrysóstomo, por escritores respeitados, como o João Silvério Trevisan, o
próprio Darcy Penteado, Celso Curi. Como já tinha feito alguns trabalhos para o
Antônio Chrysóstomo, fui convidado por ele e pelo Aguinaldo Silva para fazer parte
da equipe do Lampião. O Aguinaldo ainda não estava na Rede Globo de televisão.
Gostaria de deixar bem claro, embora o Lampião fosse taxado como jornal
gay, na verdade era um jornal que defendia minorias: o homossexual, a mulher, o
negro, o aleijado. Eu mesmo fiz uma matéria com um anão... foi a matéria mais
difícil que já fiz na vida!
O pessoal do Lampião achou por bem que a redação fosse numa rua,
pequenininha, que tem na Lapa, esqueci o nome dela. Porém, eu fazia minhas
entrevistas, datilografava em casa e levava para a redação... eu ia muito à redação!
Nessa época ainda não havia computador! E o jornal era rodado na Tribuna da
Imprensa. Não tínhamos máquinas para fazer o jornal, havia o diagramador, mas ele
era rodado num grande jornal. Como vários jornais pequenos fazem até hoje, várias
publicações são rodadas na Tribuna da Imprensa!!
Também fui convidado para tomar conta do Correio de Copacabana, outro
jornal da imprensa alternativa. Ele era mensal, passou a ser semanal e durou cinco
anos. Eu e um amigo tomávamos conta do Correio de Copacabana. Era o Mário
Vale, organizador, por trinta anos, dos bailes de carnaval do Elite. Ele faleceu de
câncer. Havia artigos do Carlos Eduardo Novaes, moda com a Aziza Perligeira e
sobre assuntos médicos! As pessoas também falavam do Correio de Copacabana: “-
Ah! Esse jornalzinho gay!” Falavam assim por causa da coluna assinada pela
Glorinha Pereira. Quis que essa moça assinasse a coluna, por isso ela rendeu muito!

620
A Glorinha era proprietária de uma sauna no Flamengo... que ainda existe! O
anão que entrevistei estava nesta sauna. Como já queria fazer uma matéria com ele, a
Glorinha ligou e fui até a sauna. Tentei conversar com o anão, mas ele não quis
papo. Para minha surpresa, certa vez vi esse anão no Acapulco... um bar que não
existe mais, era freqüentado pelo pessoal de teatro! Eu estava, exatamente, com a
Lecy Brandão, conversando num grupo. Sentei para conversar com ele. Ele contou
que as pessoas tinham pena dos anões e dos aleijados, e debochavam deles. Disse
que queria fazer uma reportagem séria com ele, acabou o papo muito
agressivamente, mas deu essa entrevista.
Outra entrevista com grande repercussão, foi dada por um travesti: Eloína.
Pela primeira vez, ela contou como funciona uma operação transexual. Antigamente,
as pessoas pensavam que o pênis era cortado, na verdade ele é embutido. A Eloína
também contou como os travestis usam o silicone: eles cortam o peito para colocar
uma bolsa de plástico, na qual o silicone é injetado... não é posto diretamente em
contato com a carne! Não se põe silicone na nádega, mas no quadril porque senão
provoca problemas. Por isso, acontecem vários acidentes com travestis.
Sofri outro processo por causa de uma crônica chamada: A Vida Íntima dos
Comissários de Bordo... embora não tivesse citado nome de companhia nenhuma! A
associação dos comissários de bordo só desistiu do processo porque no próximo
número ameacei publicar o nome dos comissários gays das companhias de aviação.
Confesso que fui muito cruel, mas era um humor bem parecido com a atual Casseta
& Planeta. Desta forma, eles desistiram do processo.
Publiquei isso no Correio de Copacabana e no Lampião, pois o Lampião era
vendido no Brasil e o Correio de Copacabana na Zona Sul do Rio. Porém, o Correio
cresceu tanto que acabou sendo vendido em Ipanema e em Botafogo. Fiquei
trabalhando no Correio de Copacabana e no Lampião. Foram jornais que duraram
muito, levando em consideração que os dois eram periódicos da imprensa
alternativa... o Pasquim foi o que durou mais tempo!

621
O Lampião era tão porta-voz do movimento homossexual, quanto do
movimento negro, do movimento feminista, dos deficientes físicos. Da mesma forma
que fiz entrevistas, para o Lampião, com a Maria Leopoldina, com a Eloína, travestis
conhecidos, concomitantemente participava de entrevistas com o Ney Matogrosso,
Elis, Carlos Eduardo Novaes, Ivan Lins, Simone, Mário Lago, As Frenéticas,
Emilinha Borba, Marlene, Emílio Santiago, Lennie Dale e muito mais.
Mantínhamos, também, matérias sobre o preconceito na América Latina,
sobre países como Cuba, México, a própria Argentina... embora nós tivéssemos
correspondentes na Argentina! Desta forma, fizemos uma série de matérias não só
sobre o Brasil. Quando viajava, fazia matérias sobre Belém, Salvador, entre outras
cidades brasileiras, fiz matéria sobre Londres, Budapeste e de algumas cidades que
conhecia no exterior. Assim, fazia com que as pessoas conhecessem todos os
preconceitos que o homossexual, a mulher, o negro, o aleijado, passavam noutros
lugares.
Na época, recebíamos cartas de minorias, então andamos mandando uma
espécie de mala-direta para alguns. Eles reclamavam sobre o teor abrangente do
jornal, proibindo que o mesmo chegasse à casa deles. Nós explicávamos que era um
jornal que defendia as minorias, não era um jornal gay, especificamente, tanto que
alguns colaboradores não eram gays. Então, era um problema, às vezes as pessoas
não entendiam!
Politicamente, o jornal teve muita influência, foi muito importante na época.
Algumas pessoas da elite intelectual do Brasil respeitavam o jornal. Inclusive
pessoas que trabalhavam no Pasquim, é o caso do Millôr, do Ziraldo, do Jaguar, eles
brincavam conosco, nós brincávamos muito com eles e eles nos deram muito apoio.
Havia vários grupos que colaboravam com o Lampião. Porém, não tenho nenhum
exemplar, mas até hoje conheço pessoas que colecionam. Quando o jornal acabou,
fiquei trabalhando como Free Lancer para um jornal de Nova Iorque.

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Sempre gostei de conviver com pessoas mais inteligentes que eu! Uma das
coisas mais ridículas que existe é o intelectualóide! Por exemplo, o fato dos pseudo-
intelectuais quererem analisar a homossexualidade, ou de vê-la como uma doença,
procurando explicações como: “- Ah! Porque foi mimado”, ou: “- Ah! Porque vestiu
de mulher e virou gay.” Acho que isso não tem essa explicação. Os pseudo-
intelectuais estão procurando algo que não existe!! O jornal Lampião pode servir de
marco, pois não tínhamos medo das palavras. Defendíamos minorias, como gays,
mulheres, aleijados, negros, etc... Nós podíamos ser bichas, ser pederastas, ser
homossexuais - podíamos ser qualquer coisa -, porque não tínhamos esse temor.
Comparando, mais ou menos, com a torcida do Palmeiras, quando outras
torcidas tentaram ofendê-la chamando-a de porco... ela adotou o nome! A torcida do
fluminense, meu time, que chamavam de pó de arroz, ela começou a soltar pó de
arroz. No princípio é uma ofensa, mas desde que você assume aquilo... não há
problema!
Fui super pixado porque cheguei em Salvador, em 1960, com uma calça
vermelha, lá não se usava calça vermelha, algo que no Rio já era comum. Hoje é
horrível, mas na época se usava muito. Atualmente, essa moda de usar brinco não
pega mal, até o Romário usa brinquinho, mas antigamente ouvia-se comentários
maldosos: “- Ahhhhh! Ele usa brinquinho!!!” O heterossexual, indiscutivelmente,
acaba aceitando comportamentos lançados por homossexuais, como se dissessem:
“- Pronto! Sou homem mesmo!”... isso é legal!! Assim como essa moda de ir a
cabeleireiro - não é o meu caso porque sou careca -, além de uma série de coisas que
começaram com os gays porque eles tem mais coragem.
Gosto muito de escrever críticas sobre escola de samba. Costumo dizer:
“- Olha, sei tudo sobre Escola de Samba!” Tenho uma ala no Império Serrano há
vinte e seis anos. Em 1972, quando fui desfilar por essa Escola de Samba - e até
ganhamos - as pessoas perguntavam: “- Mas e a tua família!? O que a tua família vai

623
achar!!?” Então, já fazia isso antes de virar moda. Entretanto, se alguém quiser
conversar comigo sobre a Revolução Russa em inglês, converso sem problemas.
Nós somos privilegiados. Porém, alguns desses privilegiados tem medo das
coisas que acontecem, tem medo de falar das doenças, enfim tem medo de falar de
tudo! Eu não tenho medo de nada! Estou me jogando para o que der e vier! Não
estabeleço diferença de espécie nenhuma entre ninguém. Acho inclusive que por
causa disso, nenhum político se assume como gay... só eu conheço oito! Quando eles
se assumem, parece que a eleição está perdida. É o caso do ex-deputado Edésio
Frias, da deputada do Partido Verde aqui no Rio, Solange Amaral, ela vive com uma
moça há muito tempo, além de outros tantos que não sabemos! Não sei se devia estar
falando essas coisas, mas acabei falando!!
Detesto quando a pessoa diz: “- Fulano morreu da maldita! Fulano morreu
daquilo! Mais um que se foi!” A AIDS é uma doença conseqüente de uma série de
questões, tanto que está diminuindo entre homossexuais... se bem que o homossexual
ainda pertence ao maior grupo de risco! Porém, a doença está aumentando entre
mulheres, crianças. Eu mesmo, no Hospital Gafre Guine, adotei uma menina aidética
de oito anos no setor pediátrico... a Bebel! Aliás, ela não me conhece mais, mas a
tomei como se fosse uma afilhada. De quinze em quinze dias vou lá, mas não gosto
de falar sobre isso.
Comecei minha vida muito tarde, era noivo quando larguei tudo, a dois meses
do meu casamento, e fui embora para Londres com um ator conhecido Depois,
voltei, tive um filho, vivi com mulheres. Atualmente, tenho a vantagem de não estar
casado... acho difícil juntar as escovas de dentes!! Comecei a freqüentar lugares gays
em 1970. Exatamente quando o Brasil foi tri-campeão, lembro disso perfeitamente!!
Foi quando abriu a Sótão, a melhor boate que o Rio de Janeiro já teve... era uma
época em que eu saia muito.
Na minha vida, penso que poderia ter realizado mais projetos. Só acho que as
coisas acontecem muito tarde comigo! Escrevi minha primeira peça em 1980, com

624
trinta e dois anos, quando poderia ter escrito em 1970, com vinte e dois anos. Há um
livro, no qual participei com várias pessoas do Lampião, chama-se A Bicha que Ri. É
uma coletânea de crônicas! Porém, A Bicha que Ri era uma das crônicas. Foi o único
livro que escrevi, não o fiz sozinho, mas com mais quatro ou cinco pessoas.
Foi um livro bastante vendido, mas nunca tive pretensões de ser escritor. No
momento, estou escrevendo Rivalidades: Tricot nos bastidores. O livro é baseado
nos assuntos engraçados que aconteceram comigo no Teatro Rival, em relação às
pessoas ligadas à música, ao teatro. Posso contar algumas passagens, por exemplo,
tem um grupo chamado Boca Livre, certa vez recebi um telefonema no Rival, a
moça perguntava se o espetáculo era de graça, disse que não, então a moça dizia:
“- Ah! Mas li no jornal que era boca livre! Então estou pensando que é de graça!?”
Outra história se refere a Thamara Koorax, as pessoas a chamavam de Thamara
Xerox ou Thamara Tóxax. A pior confusão que achei foi a do Café Concerto! As
pessoas ligavam para o Rival perguntando se o teatro estava em obras, depois
comentavam: “- Ah! Mas no jornal está escrito café concerto!”... e eu tinha que
explicar! Uma vez ligou uma moça de Miracema, ela estava chorando porque queria
falar com o Aquiles do MPB 4, mas eles estavam em cena, então disse para ela que
não podia tirar o MPB 4 de cena. A mulher começou a me ofender pelo telefone!!!
Entre todas, a melhor é a de uma cantora que não posso falar o nome. Já é
uma senhora. Ela tinha direito a colocar vinte convidados por dia no teatro, mas teve
um dia que ela botou setenta. A Angêla Leal, dona do Teatro Rival, me chamou e
disse que no borderô tinha setenta pessoas... convidados desta cantora. Bati no seu
camarim, ela me chamava de seu Zé: “- Pode entrar seu Zé.” Então falei com ela:
“- Olha fulana! Está acontecendo o seguinte, a senhora tinha direito a colocar vinte
pessoas no teatro, mas colocou setenta! Vou ter que botar no seu borderô!” Ela
levantou, teve um ataque histérico, dizendo: “- Me admira o senhor!! Entrar no meu
camarim para fazer essa proposta indecente! Nem meu marido, casado comigo a

625
quarenta anos, NUNCA botou no meu borderô! Como é que você vai botar no meu
borderô!?”
Para esclarecer tive que buscar o borderô, explicar que era um papel, no qual
se controla a freqüência de um teatro, descrevendo quantos pagam, quantos foram
convidados, quantos tiveram desconto na entrada... tudo exige um borderô! A
súmula de um jogo de futebol, quem foi substituído por quem. Desta forma, só
queria explicar que ela botou no teatro cinqüenta convidados a mais do que o
combinado. Porém, ela entendeu tudo errado! Foi muito engraçado! Fica mais
engraçado sabendo quem é, mas nem no livro vou dizer o nome dela.
No Brasil, há um fato que não cheguei a presenciar, mas havia um delegado
no Rio de Janeiro chamado Padilha. Na época que as calças eram justas, ele usava
uma laranja para fazer um teste. Ao parar duas pessoas na rua, ele botava a laranja na
calça da pessoa, caso a laranja não descesse, então ele prendia a pessoa porque não
se podia usar calças justas.
Hoje em dia, por exemplo, na rua não se joga pedra numa bicha, ou correm
com uma navalha atrás. Antigamente, os caras se juntavam em grupo para bater na
bicha! Apesar de nunca terem me apontado na rua, pois nunca ostentei um jeito mais
feminino. Porém, antigamente não havia essa violência que há hoje... não tinha o
problema da AIDS! Nesse sentido, havia essas vantagens. Não sou saudosista, mas
penso que o momento exige mais cuidados porque as coisas realmente mudaram.
Achei importante aquela passeata gay que ocorreu nos Estados Unidos, acho
importante que tenha acontecido uma passeata similar no Rio de Janeiro, assim como
acho importante a existência de um jornal chamado Nós Por Exemplo, mas parei de
participar, porque chegou uma época que para montar um espetáculo para travestis
no Rio, as pessoas diziam: “- Chama o Zé Fernando!!!” Então, é porque sei escrever
com humor mas não só para travesti.
O Grupo Gay da Bahia, por exemplo, achava um absurdo eu escrever
espetáculos de travestis, os quais fizeram muito sucesso como: Gays Girls,

626
Hoolywood Gay. Eram espetáculos no auge do Teatro Alaska, com Nélia Paula, a
vedete Rogéria: os melhores travestis do Brasil. O grupo achava que era exploração!
Na verdade, os artistas queriam se vestir de mulher para trabalhar, então não havia
nenhuma exploração em fazer um texto para o espetáculo. Nós tivemos alguns
atritos, mas depois ficou tudo bem. Porém, não acredito que o público cobra muito
esta posição.
O público cobra uma posição política do ídolo, não é o meu caso, sou
jornalista anônimo. Atualmente, escrevo para um jornal no Rio, não posso dizer o
nome porque não assino a coluna. O que escrevo, é algo que cobram muito. Porém,
acho que conscientização é muito difícil! Infelizmente o homossexual e o travesti ou
são extremamente inteligentes ou são extremamente ignorantes. Nesse sentido, acho
que devemos uma satisfação, em termos.
Oitenta por cento do público gay tem o nível cultural abaixo da média, em
relação a estudo... até pela forma que a vida política assumiu no Brasil. Respirar é
um ato político! Desde que nascemos, já realizamos um ato político: o próprio
nascimento. Há vinte por cento do segmento que tem medo de perder um trabalho,
de perder o apoio da família. Não tenho medo de nada, tanto que não sinto temor de
falar a palavra AIDS.
Fui a Stonewall há um ano atrás, onde aconteceu a primeira resistência gay...
sempre dou um pulinho lá! Ela fica no Village, onde existem perto de oitenta casas
gays. A Stonewall, além do jornalzinho, tem joguinhos e fazem questão que no
fundo da boate aconteçam coisas. Não é preciso ir a um hotel. De certa maneira,
quando essas idéias vêm para o Brasil, elas são projetadas através do Lampião.
Nesse sentido, o brasileiro que mora fora, quer trazer coisas que o Brasil não
assimilou.
Acho que o gay, o negro, o aleijado e a mulher são mais preconceituosos, em
relação ao gosto sexual, do que o heterossexual que, para mim, também não existe.
Porém, tem uma frase ótima da Angêla Rô Rô, uma grande amiga minha -

627
assumidíssima -, num programa de televisão perguntaram se ela era bissexual, então
ela disse: “- Não! Não tenho um pênis na coxa! Não tenho os dois sexos, então não
sou bissexual! Não sei!? O que é bissexual!?”
Nunca me preocupei em apresentar a namorada, ou a esposa, para minha
família... embora já tenha tido. Acho que se pau fosse feito para xoxota, ele teria
forma triangular. Ao mesmo tempo, não tenho nada contra! Neste aspecto, gosto de
citar uma frase da Norma Bengel, dita a certo tempo atrás: “- Eu acho sexo lindo.
Seja de homem com homem, mulher com mulher ou até de homem com mulher!”
O que me violenta é receber muitas cantadas de travestis. Nunca transei com
um travesti, pelo menos ele como travesti... não sei se tempos depois alguns deles se
transformaram! Para mim não combina pinto-peito. Acho que nunca colocaria um
peito ou me operaria, mas não conheço a cabeça de uma pessoa que quer fazê-lo.
Tenho um amigo que não transa com japonês, tenho outro amigo que não transa com
aleijado. Não tenho o mínimo problema com anão, com negro, pelo contrário, não
gosto realmente é do muito branco... aquele que podemos ver o chato lá atrás dos
pentelhos brancos. Isso é uma questão de gosto.
Não tenho problema nenhum em relação as necessidade de cada um. As
pessoas entram e saem da minha casa, converso com elas. Na Itália os homens
andam de braço dado, o cumprimento na Argentina é um beijinho... independente de
onde estejam!! E na Argentina, a repressão era terrível há dez anos atrás! Não se
podia conversar com uma pessoa na esquina.
Meus amigos: a Roberta Close, com quem não tenho problemas, e o Carlos
Imperial, uma pessoa a quem devo muito profissionalmente... ele morreu com o
protótipo do machão. Trato a Angêla Leal, dona do teatro, da mesma forma que a
empregada, embora ela não trabalhe diretamente comigo, então para mim é tudo a
mesma coisa. São seres humanos com talento ou sem talento, bonitos ou feios.

628
. Nasceu em Mimoso do Sul,
Espírito Santo,
em 12 de dezembro de 1952.

. Jornalista.

. Estudos acadêmicos: Comunicação na


Universidade de Brasília.

Alexandre Ribondi.

629
Quando contatei Alexandre Ribondi,
pedindo para fazer uma entrevista, pelo tom
de voz notei sua surpresa ao telefone.
Contei-lhe sobre a pesquisa e disse que
gostaria de ir ao seu encontro em Brasília.
No início de uma noite de domingo fui
recepcionado por um homem, cujas palavras
denunciavam a sonoridade do português
europeu. Ele avisou que chamava-se Rui e
não era o Alexandre, para logo em seguida
apresentar-me a Alexandre Ribondi. Nós,
três, fomos nos acomodar na sala do
apartamento. Rui ficou numa mesa de onde
não podia vê-lo, pois sentei num sofá
intermediário, de onde vi Alexandre Ribondi
se acomodar numa rede. Havia uma janela
próxima à rede e pude ver um cartão postal
da cidade: a Torre de Televisão de Brasília.
Durante a gravação A. Ribondi não
economizou palavras e bom humor para
contar suas experiências. As piadas, as
risadinhas, as gargalhadas eram a argamassa
para a construção da narrativa. Algumas
vezes, por causa do barulho dos aviões, ele
teve que falar mais alto. Junto conosco, Rui
permaneceu em silêncio até o final da
gravação.

Brasília, DF,
19 de novembro de 1995.

630
“Na minha vida, marcada por momentos estratégicos da história,
fui atravessando todos! Na verdade, peguei estes momentos históricos,
continuo pegando e espero pegar muitos outros ainda!!”

Meu nome é Alexandre Dumas Valadares Ribondi, mas com o tempo passei a
ser só Alexandre Ribondi, às vezes sou A. Ribondi e a maior parte do tempo sou só
Ribondi. Nasci no dia 12 de dezembro de 1952, portanto o mês que vem faço
quarenta e três anos, em Mimoso do Sul no Espírito Santo. Nem conheço a cidade!
Minha mãe assinou a falência da sua fábrica de bala no dia que nasci! Desta
maneira, meus pais saíram da cidade. Eles moravam em Mimoso. Dizem que é muito
bonitinha, uma pequena cidade progressista. Não conheço, mas é na fronteira com o
estado do Rio de Janeiro.
Na época que nasci, meu pai trabalhava como desenhista do estado do
Espírito Santo. Ele chamava-se Firmino. Já é morto! No dia 25 de dezembro fará
dezoito anos que morreu! Por causa da sua personalidade, do seu relacionamento
com minha mãe, ele trabalhava em outra cidade. Assim, o via de vez em quando. Era
uma pessoa simpática, inteligente, doce, criativo. O tipo ídolo da casa... o herói dos
filhos! Hoje, talvez haja uma cumplicidade entre irmãos - somos três irmãos -, em
relação ao nosso pai.
Nosso pai era a imagem genial da casa, uma pessoa muito querida! O
relacionamento com meu pai, por causa dele morar em outra cidade, era distante.
Também era distante por ele ser tão idolatrado, porque o idolatrávamos, o púnhamos
num pedestal, enfim, nem chegávamos perto. Nesse sentido, havia essa distância
com meu pai, mas era um relacionamento calmo, tranqüilo, sem maiores desavenças,
bem do jeito dele: tranqüilo.

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O relacionamento com a minha mãe era uma bagunça! Dou risadas porque
tinha que ser com a minha mãe! Minha mãe é minha mãe!!! Minha mãe chama-se
Irene. É uma mulher muito especial!
Era assim o relacionamento com meu pai e com a minha mãe. Minha mãe me
ensinou a fazer escândalo quando precisa, a gritar, a ser agressivo com as pessoas, a
ser muito grosso. Meu pai me ensinou a ser assim meiguinho, calminho. Desta
maneira, sou uma mistura dos dois!
Fui criado em todo Espírito Santo. Meus pais nunca passaram mais de dois
anos em cada cidade. Em especial, não sou de nenhum lugar. Talvez possa dizer que
sou de Cachoeiro de Itapemirim!? A cidade grande que servia de referência! Fiquei
em várias cidades ao redor de Cachoeiro! A cidade grande para ir ao cinema, para ir
ao médico, era sempre Cachoeiro de Itapemirim. Podem dizer que sou de Cachoeiro,
mas não sou!! De maneira geral, sou do Espírito Santo e de Brasília, pois moro na
capital desde 1968... então sou daqui!!!
Não tenho lembrança da minha cidade natal! Tenho lembranças do Espírito
Santo como minha terra natal. É muito forte e muito especial, pois acho que minha
pátria é minha infância, o resto é exílio! Meu permanente exílio longe da minha
infância, para a qual sempre quero voltar: o Espírito Santo. A paisagem, é a Serra do
Mar, a Mata Atlântica, são as orquídeas, as borboletas e o beija-flor do Espírito
Santo. Coisas que já não existem mais por causa do desmatamento! Quando nasci o
Espírito Santo tinha cinqüenta por centro de floresta, hoje só tem um por cento. Foi
um desmatamento enorme!!
Tenho uma lembrança bonita da minha infância... muito bonita mesmo! A
paisagem era linda, as brincadeiras eram bem divertidas. Sou da última geração que
não teve televisão. Passei a ver televisão com doze anos de idade. Foi quando entrou
televisão pela primeira vez na minha casa. Na hora que a televisão foi ligada, estava
passando um programa chamado Super Bazaar. Esse programa era apresentado pela
Edna Savaget e pela Tânia Scher.

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Não sei se sabem quem são!? A Edna Savaget faz críticas de livros e a Tânia
Scher é uma atriz que aparece de vez em quando nas novelas. Elas tinham um
programa a tarde para mulheres. No programa se fazia crítica de livros que... é claro,
eram indicados por elas. Também se ensinava como se portar à mesa... como comer
azeitona! Tinha aula de decoração.
Estava passando esse programa na hora que ligaram a televisão!
Pertenci à última geração que se deu ao luxo de não ter televisão em casa. O
que foi um lucro, pois brincava muito na infância. Subia em árvore, tinha estilingue,
carrinho de rolemã, brincava com cachorro, brincava de truque, à noite ficava
brincando de roda... de passar anel! Na minha infância brinquei demais... sempre no
Espírito Santo!
Talvez essa história de não ter uma cidade específica no Espírito Santo tenha
marcado de alguma forma minha personalidade!!? Sou muito agitado! Não gosto de
ficar muito tempo no mesmo lugar! Gosto muito de viajar! E gosto de viajar da
maneira mais tradicional possível: de carro! Nada de avião, nada dessas coisas
complicadas!! Gosto muito de lugar esquisito! Posso ir aos lugares óbvios e fáceis,
mas eles não são fascinantes! Gosto de subir montanha, descer montanha, gosto
demais!! Porém, caso a estrada seja esburacada, o lugar seja meio selvagem... isso
me fascina por causa das lembranças!
No Espírito Santo, quando era criança, não havia nenhuma estrada asfaltada!
Nós viajávamos de carro com meu pai e minha mãe. Era uma aventura.!! Para fazer
mudança, pegávamos um caminhão velho e púnhamos toda a mudança! A minha
cachorra ia amarrada encima do caminhão... sempre tinha um cachorro que viajava
junto!!
O fato de não ter tido a casa paterna, permanente e sólida, para onde sempre
voltamos, talvez isso tenha me marcado! Estou sempre com vontade de mudar!
Recentemente, passei três anos fora do país, tem três meses que voltei, já estou
imaginando qual será o próximo lugar para onde vou. Gosto muito de me

633
movimentar! E a casa onde minha mãe mora, há dezessete anos, não é minha casa.
Nunca morei lá! Então, sou um total estranho quando entro na casa dela!!
Comecei a estudar em Cachoeiro de Itapemirim. O meu Jardim de Infância
ficava numa praça com uma piscina enorme. Tinha um ônibus que nos pegava! O
uniforme era calça azul, camisa branca e uma batinha. Hoje em dia, não se usa mais
bata para as crianças nas escolas. Parecia um vestidinho abotoado atrás, amarrado
com laços dos dois lados, todo pregoadinho! Meninos e meninas usavam batas
igualzinhas. Na frente da bata tinha um bolsinho, parecia uma bolsa marsupial de
canguru, no qual estava escrito nosso nome. A cor da bata indicava o grau, por
exemplo, para o primeiro ano a bata era abóbora, para o segundo ano era azul e
assim por diante.
Essa foi minha primeira escola! Nela, aprendíamos a nos socializar: brincar
com crianças, comer bolacha sem espalhar farelo pelo chão - isso é engraçado -,
aprendíamos essas coisas! Não fui alfabetizado neste período! Atualmente, há uma
certa ânsia em alfabetizar as crianças rápido, pois conta pontos para o orgulho dos
pais: “- Meu filho já está alfabetizado!” Também é algo que observo nas crianças de
hoje! Nesta época, freqüentava escolinhas de bairro ou o Jardim de Infância, onde
não éramos alfabetizados! Ninguém falava nisso!! A preocupação era brincar, contar
histórias, ouvir histórias para aprender a contá-las! Nós aprendíamos a recitar com a
professora que repetia conosco!
Fui alfabetizado com sete anos de idade. Entrei no Grupo Escolar Aristide
Freire, em Colatina. Recentemente estive lá, há dois meses, levei o Rui - que está
aqui conosco - para ver a escola onde fui alfabetizado. Foi uma decepção!! Na minha
lembrança, o pátio era imenso, a escadaria era imponente, mas quando revi a escola
era apenas uma caixinha de fósforos, bem feinha, bem suja, bem pobre.
Minha mãe não pode me levar no primeiro dia de aula! No dia anterior, ela
pegou uma pasta de couro do meu irmão, ele não a usava mais, colocou um lápis,
uma borracha e um caderno usado que também era do meu irmão! A pasta de couro,

634
ironicamente lindíssima, tinha dois clipes em couro que fechavam por cima, essas
pastas não existem mais, só em feira de antiguidade do Bixiga, lá em São Paulo!! Ela
arrancou as folhas usadas do caderno, não era caderno novo, era caderno velho
mesmo, com as páginas arrancadas, porque minha mãe gostava de jogar na nossa
cara que tudo era caro e educar filho custava muito! No primeiro dia de aula, fui de
mãos dadas com meu irmão mais velho. Ele ficou na porta me esperando, fiquei ali
sentadinho! Não estava com medo, na verdade não sentia nada, mas meu irmão
estava preocupado!
Na primeira aula fiz uma porção de “é”, agarrado um no outro. Logo em
seguida, fiz a mesma letra de cabeça para baixo. Acho engraçado porque devia ser
para aprender a segurar o lápis! Depois me alfabetizei com um processo rápido e
fácil. Foi um aprendizado muito rápido e com muita intimidade!
Tenho uma memória inacreditável! tenho mesmo!! Uma memória com
precisão absoluta para momentos marcantes na minha vida!!! As pessoas se
surpreendem com a minha memória! Porém, esqueço o nome de todo mundo, não sei
o nome de ninguém! Por exemplo, não recordo nem do rosto, nem do nome da
primeira professora. Deve ter sido muito desimportante para mim! Lembro da
segunda professora: Dona Rosa. No segundo ano, já estava em outro colégio! Nunca
estudei dois anos no mesmo colégio... nunca!!! Só na universidade que fiquei mais
de dois anos, onde foi um atropelamento constante de semestre para semestre.
Dei-me muito bem com as letras, como me dou até hoje!! Por isso sou
jornalista e gosto de escrever. Desde quando era pequeno, sempre gostei de escrever!
Aprendi a escrever em casa, sozinho, antes do período escolar, por mera curiosidade,
pré-destinação mesmo!! Escrever é a coisa mais importante que faço na vida! Não há
nada mais genial, nem que me dá mais prazer!! Bom!? Viver com quem gosto dá
muito prazer!! Porém, escrever é algo que também faço com prazer, muito prazer
mesmo!! Deixa-me feliz!!

635
Quando entrei no primário, Tinha uma enorme preocupação com a minha
grafia. Acho que todo mundo teve!? Até pegar um certo estilo, eu bordava as letras!
Isso provocou uma grande confusão na minha vida. Hoje em dia, aos quarenta e três
anos, não tenho um estilo de letra definido! Procurei tanto a melhor forma, mas
nunca encontrei, pois ficava fascinado por todas! Por causa disso, escrevo com a
letra que tiver vontade! Numa hora a letra sai de um jeito, noutra hora sai de outro!!
Serve qualquer letra!!!
Achava a forma da minha mãe escrever bonita! Também achava a forma do
meu pai escrever bonita! Depois os meus irmãos tinham a letra tão bonita! As
professoras tinham letras bonitas do mesmo jeito! Enfim, queria imitar a letra de
todo mundo!! Todo mundo escrevia bonito!!! Era algo que me fascinava bastante:
pegar uma caneta na mão e ficar escrevendo num papel branquinho.
Tinha uma amiga, morreu o ano passado, que dizia que o prazer de sua vida
seria ter uma papelaria, para ter lápis, borrachas e papéis branquinhos! Acho que
também tenho esse desejo!! Só para ficar rabiscando, mas rabiscaria todos os
papéis!! Meu namoro com a escrita vem desde antes do primeiro ano primário!
Escrevo com muita facilidade! Hoje em dia, não me custa nada sentar num
computador e escrever! A frase brota com muita naturalidade!
Na escola fazia boas redações, era muito bom em redação, então foi apenas
um dom que desenvolvi! Um dom impressionante por causa da minha intimidade
com a língua portuguesa. Não foi nada que desenvolvi a partir do zero. Tinha
facilidade de articular idéias e formular a escrita! Muita clareza ao escrever as frases,
o pensamento correto e as frases rápidas que comunicavam imediatamente!
Numa reunião quando todo mundo discute e depois decide: “- Vamos
escrever um texto a partir disso!” Imediatamente faço o texto, pois nunca tive
problemas nesse sentido. A facilidade que tenho para escrever, a falta de problemas
que tenho para transformar uma idéia numa frase, sempre foi a coisa mais natural da

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minha vida. Aprender línguas também, sempre tive facilidade para aprender línguas
muito rápido.
A gramática nunca me perturbou! Na minha época, chamávamos os bons de
“bamba.” Eu era bamba em português. Passava com dez em português porque não
precisava pensar! Quando a professora explicava uma regra gramatical, compreendia
da maneira mais natural. Não conseguia acreditar que alguém não compreendesse,
pensava que era mentira!!! Achava que as pessoas diziam aquilo para brincar
comigo, pois na minha cabeça era tão óbvio, tão explícito, enfim nunca consegui
acreditar que era difícil. Já em matemática, nunca aprendi nada, nada, nada, nada,
nada, nem conta de dividir!! Até hoje não sei fazer!! Sou bem tapado! Na verdade,
sou bem tradicional! Gosto de português e não gosto de matemática, gosto das
ciências humanas e não gosto nem um pouco das ciências exatas.
Essa história de ficar no máximo dois anos numa escola, tem a ver com as
constantes mudanças dos meus pais. Porém, mesmo que ficasse na mesma cidade,
sempre mudava de escola por algum motivo, às vezes por causa de brigas, uma vez
fui expulso... sempre acontecia alguma coisa! Essa história das brigas e da expulsão
tem a ver com meu temperamento. Sempre fui o aluno que tirava a maior nota, mas
que também ficava na categoria dos difíceis.
Estudei o quarto ano ginasial, num colégio conhecido como Liceu
Cachoeirense, mas que na verdade chamava-se Ginásio Estadual Muniz Freire. Na
época era uma escola pública muito boa: o grande e imponente colégio da cidade.
Neste colégio, os alunos estudavam até o quarto ano ginasial, hoje em dia, depois da
reforma do ensino, acho que equivale à oitava série do primeiro grau.
Estava nesse colégio quando tinha quatorze anos, fazia a quarta série do
ginasial! Nele, havia cinco turmas: turma “A”, só para rapazes; turma “B”, só para
meninas; depois turma “C”, novamente para rapazes; a turma “D”, novamente para
meninas; e a turma “E” que era mista, para repetentes e alunos problemas. Estudava
na turma “E” porque eu era muito complicado! Dava trabalho para todo mundo, mas

637
era o único que passava com nove virgula oito no final do ano. Eu era muito
exibido, como sou até hoje! Queria competir com os professores, então era
arrogante, muito peito empinado!! Se a professora dizia alguma coisa, respondia na
hora! Não levava desaforo para casa!!
Dou risadas porque foi o jeito que ensinaram em casa!! Na minha casa a
educação era a seguinte, minha mãe pegava os três filhos pelo queixo, levantava a
cabeça e falava: “- Um Ribondi não anda de cabeça baixa! Vai para lá e não traga
desaforo para dentro de casa! Não chega em casa chorando porque senão apanha
outra vez! E falou duvide! Deu uma ordem, questione a ordem imediatamente! Se o
professor falou para fazer, pergunte o por quê! Se ele não souber explicar, não faça!”
Meus pais ensinavam essas atitudes para nós! Então imagina!!? Nós chegávamos na
escola com a corda toda! O professor falava alguma coisa, nós dizíamos: “- Não
faço!!”, ele punha de castigo: “- Não fico!!” Isso criava muita confusão dentro dos
colégios.
Na época que estudei, eram quatro anos de primário, quatro anos de ginásio e
mais três anos de estudo numa área mais específica: Científico, para os rapazes que
queriam fazer medicina, engenharia; Contabilidade, para os pobres que estudavam
de noite, assim já saiam com uma profissão técnica; Normal, para as meninas que
saiam com o título de professora primária e prontas para casar; Clássico, para o
resto que não sabia o que fazer da vida, pois não se encaixavam em nenhuma das
outras áreas.
Não queriam fazer Científico porque odiavam matemática! Não precisavam
fazer Contabilidade porque não eram exatamente pobres! Não queriam fazer Normal
porque não seriam professores mesmo! Então, faziam o Clássico porque eram mais
criativos, mais porra loca! No curso, aprendíamos inglês, francês, latim, grego,
história, gramática histórica, biologia, filosofia e era muito bom!!
No Clássico, tive uns arranca rabos com a professora de inglês! O nome dela
era Luci Coimbra, era um professora maravilhosa! Um dia, ela entrou na sala justo

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na hora que estava falando para uma amiga: “- Eu vou ao banheiro fazer xixi e já
volto!” Dona Luci entrou na sala falando assim: “- Que horror!!! Esse mundo está
perdido! Um menininho falar para uma menininha que vai no banheiro fazer xixi!”
Então respondi: “- Escuta Dona Luci, eu falo que vou fazer xixi, vou fazer coco, vou
bater punheta, falo que vou tirar neca do nariz, falo que vou cagar, falo o que quiser
e a senhora não tem nada a ver com isso!!”
Outra vez, uma professora de francês disse que eu tinha sotaque de
marinheiro bêbado quando falava francês. Olhei bem para ela e perguntei: “- A
senhora já andou com algum marinheiro bêbado para saber disso!!!?” Com essas
respostas eu era aplaudido na sala de aula! Meus colegas faziam: “- UAU!!!” Esse
desacato aos professores era considerado o máximo! Sempre brigava com os
professores e acabava na secretaria às gargalhadas.
Meu pai não assinava boletins, o que era obrigatório!! Ele autorizava o filho
a assinar! Se não queríamos ir a aula, também não éramos obrigados! Eu chegava na
escola e dizia: “- Ontem não vim à aula porque não quis.” Enquanto na minha casa
ninguém perguntava porque não fui à escola!? Ninguém nem tocava no assunto!!!
Podia matar aula, ficar dentro de casa, sentado, lendo gibi que ninguém falava nada!
Isso sempre criou muito problema!! Eu era conhecido como altivo, rei na barriga,
metido a besta, filho do Ribondi... aquelas coisas de cidade pequena! Até hoje sou
conhecido como o altivo! Brasília pensa que tenho um rei na barriga!
Na adolescência, era meio escondido... meio solitário!! Ihhhh! Eu falei tão
baixo, deixa gritar e gargalhar: EU ERA MEIO SOLITÁRIO!. Na verdade, era
meio solitário! Tinha amigos, mas gostava de ficar em casa lendo. Durante muito
tempo, não tive consciência de como era mandão! Meu irmão mais velho, inclusive
bem mais velho - já é avô e tudo! -, sempre diz que desde criança eu não fazia o que
não quisesse! Regra número um: as pessoas tinham que fazer o que eu queria!
Sempre fui mandão e muito convincente. Característica do signo: sou
Sagitário. O sagitariano é um líder, ele manda. Sagitário é o que demove, comove e

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remove pelo mundo. Nesse sentido, sempre fui capaz de convencer todo mundo do
que quero! O que quero é certo, tem que ser feito!! Até hoje consigo convencer as
pessoas! Faço uso da palavra para convencer porque gosto de fazê-lo!!
Em 1960, quando teve a inauguração de Brasília, eu morava em Colatina, a
cidade mais rica do Brasil. Foi um ano muito feliz, não só na minha vida, mas foi o
ano da bossanova, o ano do Juscelino, o ano do Sputinik, o ano que me alfabetizei.
Colatina estava sendo calçada, era a cidade que mais produzia café no mundo. Por
isso, era a cidade mais rica do Brasil. Diziam que Colatina era chamada de Suíça
brasileira. Imagina em 1959, morava num prédio de quatro andares com elevador no
interior do Espírito Santo. Alguém poderia imaginar!? Isso era o que há de mais
luxuoso!
Do apartamento onde morava, eu via um letreiro luminoso no outro prédio.
Sabe como que era o letreiro luminoso!? Ele passava as notícias, era muito
moderno!!! Perto de lá, havia uma loja, uma filial de construção, com uma marquise,
na qual tinha uma torneira imensa escrito: Casas Anzol. Da torneira caia água na
marquise, mas a água da marquise não caia na gente. Isso para mim era o máximo de
maravilhoso. Gostava de caminhar em Colatina, achava que tudo era bonito. Tinha
um bar chamado Hi Fi, muito chique. Essa cidade de Colatina estava crescendo,
sendo calçada... era muito dinâmica!!
As rádios tocavam bossanova o dia inteiro! Brasília fora inaugurada! Diziam
que as casas eram todas de vidro e as calçadas eram rolantes, quem visitava Brasília
ficava maravilhado porque a cidade era fascinante! Essas imagens ficaram demais na
minha cabeça. No dia em que Brasília foi inaugurada, ouvi tudo sobre a inauguração
no rádio. Nesse sentido, Brasília tinha esse caráter feliz de 1960. O ano de ponta na
minha vida! Foi uma alegria! Meu pai era motoqueiro. Então, foi um ano muito feliz
na minha vida.
Saí de casa com quinze anos. Lá em casa, meu irmão mais velho saiu com
quinze anos, meu irmão do meio saiu com quatorze e eu saí com quinze. Primeiro

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porque meu pai dizia que era a idade de filho sair de casa. Para ele, não é sério esse
negócio de filho ficar dentro de casa. Depois ninguém estava mais agüentando
mesmo!! É engraçado porque unia-se o útil ao agradável e todo mundo saía!!! Vim
morar em Brasília... sozinho!!
Escolhi Brasília porque meu pai sempre foi um grande poeta. Ele achava a
coisa mais linda do mundo uma cidade construída no meio do nada! Desta forma,
filho dele tinha que morar em Brasília. Quando mudei para Brasília, ele veio comigo.
Meu irmão do meio também veio, mas nós não morávamos juntos. Ele ainda mora
em Brasília. Porém, nós nunca moramos juntos aqui! A minha vida não tinha relação
com a vida dele. Um nunca serviu de amparo para o outro! Apenas morávamos na
mesma cidade!! Quando vim, meu pai plantou uma árvore e pôs o meu nome nela!
Dou risada porque a árvore existe até hoje!! Vir para Brasília tinha esse caráter
poético... um pouco por causa do meu pai!
Entretanto, também há outro motivo! Quando era criança, tinha uma folhinha
lá em casa, na qual cada mês era dedicado a uma cidade do Brasil, uma delas era
Goiânia! Para um menino do Espírito Santo, entre 1961 ou 1962, Goiânia era o lugar
mais longe que havia! Na fotografia, as casas eram todas avermelhadas... agora sei o
porquê!!! As casas eram vermelhas porque a fotografia era péssima, a qualidade da
impressão era ruim!! Aquelas fotografias meio esmaecidas, onde tudo ficava róseo!
É gozado ver o tijolo claro! Então, achava que aquela era a cor real de Goiânia.
Depois, também tinha uma vizinha que disse ter vindo a Goiânia de navio! É
divertido porque achava fascinante: ir de navio a uma cidade que não tinha mar, nem
rio grande! Porém, achava que era possível! Tinha curiosidade de ver como
funcionava o navio! Então queria conhecer Goiânia, onde as casas eram todas
avermelhadas! A cidade mais próxima de Goiânia era Brasília, então vim e fiquei em
Brasília.
Sempre gostei muito de Brasília! Hoje em dia, tenho muitas reservas com a
cidade. Porém, é a minha cidade, é a minha referência. Em Brasília, se precisarem

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entrar em contato comigo, é só ligar para a universidade e eles sabem onde me
localizar!! Em São Paulo, nem no Rio, ninguém saberia, mas em Brasília sabem!
Tanto que fiz minha carreira, sou conhecido, consigo chegar aos lugares onde
preciso chegar. Tem vinte e oito anos que moro e trabalho em Brasília, então acabou
se tornando a minha cidade. Hoje em dia, continuo com vontade de ficar em
Brasília.
Quando cheguei em Brasília, para estudar, entrei numa escola pública
conhecida como Elefante Branco. A partir dessa época, passei a morar sozinho!! Nos
dois primeiros anos, meu pai me mandou dinheiro. No terceiro ano que estava em
Brasília, entrei para o curso de comunicação, na universidade, e comecei a trabalhar
num jornal. Não fiz cursinho, era outra irreverência! Só fiz o curso Clássico de
Letras! Fui fazer prova com uma amiga chamada Âmbar. O pai dela não queria
deixar. Desta forma, tive que sair da minha casa, passar na casa dela, ela teve que
pular a janela escondido, para nós fazermos o vestibular.
Não sabia nada de matemática, nem de física, nem de química, mas passei. O
vestibular foi para a Universidade de Brasília. Na universidade, não fui eu que
escolhi jornalismo, foi o jornalismo que me escolheu. Nunca tive a menor dúvida, fiz
o curso de jornalismo e virei jornalista. Nem me o lembro o dia em que disse: “- Eu
vou fazer é jornalismo!” Isso nunca foi dito porque era jornalismo mesmo, a vida
inteira.
Passei a ser aluno da UnB! Porém, achava muito chato estudar na
Universidade de Brasília, era monótono, pouco criativo!! Continuei desacatando os
professores na universidade. Certa vez, fazendo o curso de Introdução à Sociologia,
falei para uma professora que conhecia o assunto melhor do que ela!! Essa
professora se chamava Clair Baxa. Ela era americana e já voltou pros Estados
Unidos. Não lembro qual era o assunto!? Na época, estava fazendo tradução
clandestina para um trabalho sobre Mao Tsé Tung. Então falei: “- Olha, eu conheço

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esse assunto de forma mais apurada do que você!” Então ela inquiriu: “- Prove!!” E
eu disse: “- Sente-se aqui onde estou e me dê o giz!” Fui e dei uma aula.
Na época, tinha de dezessete para dezoito anos! Imagina um aluno fazer isso
com uma professora, mas eu fazia esse tipo de coisa!! Mais um exemplo de que era
muito convincente!! Até hoje sou bom no bate-boca! Sou muito articulado! Não é a
toa que sou comentarista da TV Bandeirantes! Faço comentários! Sento lá na frente
e comento!
Por outro lado, também não gostava da UnB por motivos meus! Na
universidade, não conseguia pensar, não tinha espaço! Ao meu ver, já não fazia mais
sentido estudar para prova. Essa preocupação não existia mais para mim. Imagina se
iria fazer prova!!? Prova era para criança! Era assim que funcionava!! Não tinha
paciência de ficar sentado ouvindo o que outra pessoa falava. Nessa época, já
trabalhava para me sustentar.
Neste período, havia censura no país, devíamos tomar cuidado com o que
disséssemos porque poderíamos ser presos! Porém no jornal onde trabalhava, Jornal
de Brasília, o clima era muito agradável.
A minha vida estava tomando outro rumo! Comecei a fazer teatro, ao mesmo
tempo usava drogas e fazia um trabalho político. Droga não combinava com trabalho
político. O trabalho político era o auge do conservadorismo moral, da caretice! As
drogas eram uma loucura total. E eu fazia os dois! Além disso, tinha amigos sendo
presos! Pessoas que tinham de tomar cuidado com a atuação política!
Desde o Segundo Grau no Elefante Branco até na Universidade, já me
aproximo das pessoas contrárias ao regime militar. Quando era secundarista em
Brasília, observava os acontecimentos um pouco de longe. Na época, tinha uma
amiga, cujo namorado pertencia às lutas clandestinas. Tive outro amigo que está
desaparecido até hoje. Isso durante o segundo grau!
O meu irmão do meio fez trabalho político. Nesta época, ele foi parar em casa
fugido da polícia! Meu pai foi da resistência contra Getúlio Vargas no Brasil, por

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causa disso foi preso! Portanto era natural que entrasse nessas coisas até por causa
da família.
Para um adolescente daquela época era tão importante ser de esquerda,
trabalhar com grupos clandestinos, como para um adolescente atual é importante
surfar, ir a boate, ser teen ... essas coisas antipáticas de hoje em dia! Naquela época,
ser de esquerda era a coisa antipática do jovem! O adolescente tinha que ser de
esquerda, pois não havia hipótese de não ser! A aproximação da esquerda era a única
opção! No Brasil havia uma situação tão primária, tão tosca, tão primitiva que ou
éramos de esquerda ou éramos de direita. Acho engraçado porque não tinha o PSDB!
Não existia a alternativa em cima do muro!! Era uma sociedade muito infantil, como
ainda é até hoje!
No Brasil, era muito difícil não ser de esquerda! Por isso eu era!! Apesar de
tudo apontar para que não fosse de esquerda!! Não que fosse de direita, mas eu
usava drogas, fazia teatro, fazia suruba!! Eu era mais a tigresa de unhas negras, que
trabalhou no HAIR, do que trabalho clandestino! O que aconteceu depois com as
pessoas se liberando através do trabalho político, já acontecia conosco aqui em
Brasília, em 1968, 1969. Só que ninguém nos ouvia, pois éramos muito poucos, mas
já sabíamos que o trabalho político não resolveria nada! Contudo, era um canal de
sobrevivência.
A esquerda era conservadora nesse sentido! Sempre senti esse tipo de
cobrança, em todos os momentos! Isso é engraçado, não sei o porquê, mas não
questionava a situação! No fundo, penso que desprezava muito essas pessoas! Por
causa do meu rei na barriga, tinha um imenso desprezo por elas! Não queria saber
nada delas! O primeiro sujeito que me deu aulas de marxismo, tempos depois, se
tornou prefeito de uma cidade estratégica para a luta clandestina do interior aqui em
Goiás. Acho que ele mora lá até hoje. Quando lembro dele, sinto um desprezo
enorme. Engraçado! Nem carinho consigo sentir, mas um grande desprezo por esse
bobo, pelas coisas que ele dizia!! Que bobagem!!!

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Quando entrei para a universidade, não participava de nada organizado, mas
conheci muita gente! Tive uma namorada gaúcha chamada Hilda Henck. Ela me
levou para uma casa, muito longe, onde aconteciam as reuniões de célula! Essas
casas muito longe eram onde estamos agora, no Guará!! Porém, na época o lugar era
longe porque era complicado chegar aqui! Comecei a participar de grupos, a fazer
esses trabalhos clandestinos, a fazer encontros, distribuíamos panfletos. Porém,
nunca cheguei a ser da alta cúpula, nem soube de nenhuma ação armada! Trabalhava
mais na base, para fazer tradução, fazer panfletagem.
Isso aconteceu durante uns dois anos na universidade! Entretanto, uma noite a
polícia foi na minha casa procurar por eles. Os policiais fingiram ser da cidade de
uma das meninas. Eles diziam que o pai havia morrido e precisavam encontrá-la para
dar a informação. Então, perguntaram se poderia levá-los. Percebi que era a polícia,
tomei banho, os fiz ficar esperando na sala e os levei para uma casa errada. Depois
vim embora fugindo!
Meses depois, quando já não mantinha nenhuma relação com as pessoas, a
polícia entrou na minha casa, onde morava com outras pessoas que faziam teatro!
Nessa época, embrulhei em plástico os livros de Mao Tsé Tung e enterrei no fundo
do quintal. A casa e o quintal ainda existem! É engraçado, sinto vontade de ir na casa
e pedir licença para desenterrar o meu livro de Mao Tsé Tung! A polícia invadiu
nossa casa, quebrou tudo, prendeu muita gente. Era algo terrível... pavoroso!!! Era
um período monstruoso. Desta forma, presenciei e vivi a repressão na época da
ditadura.
Há aquela história das pessoas dizerem que os heróis são burros! Eles só são
heróis porque não têm consciência! Acredito que fazia isso!! Para mim era a coisa
mais natural do mundo ir a reunião política, fugir da polícia, encontrar com um
amigo, acender um cigarro de maconha, fumar dentro do prédio, enquanto nossa
casa era quebrada por policiais!! Hoje em dia, esse amigo trabalha com cinema e
mora no Rio.

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Na época, nós voltamos em casa, quase toda derrubada pela polícia, para
pegar maconha! Afinal, nós não íamos fugir da polícia sem maconha! Que
absurdo!!? Ora!!! Dou risadas porque tudo tem limite!!! Nós estávamos tensos,
nervosos!! Tinha que ter maconha!! Entretanto, não tinha consciência do genial que
era fazer isso! Não tinha mesmo!!! Depois me disseram que era genial fazer isso!
Poucas pessoas faziam isso!! Não era uma contradição para mim, era o natural, era a
vida!! Tinha que fazer tudo aquilo, portanto não era nada árduo! Na verdade, era
árduo porque a vida era difícil naquela época, mas essa contradição não tornava
minha vida nem um pouco mais difícil!!
Quando quis fugir para Belo Horizonte, procurei pessoas de luta clandestina
que não me ajudaram em nada, porque era apenas o Alexandre maconheiro e viado!!
Porém, consegui fugir com outro menino! Fomos para o nordeste. Durante um mês,
ficamos na casa dos pais dele. Depois voltei para o Espírito Santo, encontrei com a
minha mãe e consegui um passaporte. No dia em que estava preparando tudo para ir
embora para o Chile, fechando as malas, ouço no rádio a notícia do golpe de Estado.
É irônico porque não pude ir, tive que ficar!
Dois meses depois, em 1972, quando fiz vinte anos, voltei a Brasília e fui
preso e torturado!! Fui acusado de ser comunista e homossexual, mas só
perguntaram muito rápido se eu era homossexual, então disse que não e seguiram
adiante. Isso não foi o centro das investigações, nem o centro das acusações! Nunca
fui acusado por ser homossexual, mas fui acusado de ser comunista.
Tenho um amigo, chamado Antônio, que quando foi chamado para o
interrogatório da polícia, ele era tesoureiro do Partido Comunista, tirou tudo que
pudesse denunciá-lo como comunista e dentro de sua bolsa - naquela época se usava
muito bolsa de couro -, pôs tesourinha, agulha, linha, pedacinho de pano, para que a
polícia tivesse certeza que ele era viado e que não era comunista. É divertido, mas
isso era para limpar a barra dele!!

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Dou risadas porque o Brasil é um país tão pouco profissional que até a
ditadura brasileira não é profissional! O Brasil é um país tão pouco profissional que
até puta goza! É uma piada!! A sexualidade na vida brasileira é um capítulo à parte.
Não sou sexólogo, não sou sociólogo, mas sou uma pessoa que observa. A
homossexualidade na ditadura argentina era um capítulo importantíssimo dentro da
repressão do país. Havia polícia para detectar homossexuais na rua!! Eles eram
torturados, eram presos por homossexualidade. No Brasil nunca houve isso. Neste
caso é impossível deixar de fazer paralelo entre esses dois países que se odeiam e
estão de mãos dadas pro resto da vida.
Não havia uma maior perseguição dentro da ditadura brasileira pelo fato do
sujeito ser homossexual! Nessa época, justamente, estávamos no início dos anos
setenta e fim dos anos sessenta, havia muito culto à androginia. Não entre a polícia,
mas entre os moderninhos! Ser homossexual era algo revolucionário. Havia uma
postura de contestação social, como de resto tudo era contestação social naquela
época.
Hoje, 1995, tudo está esvaziado no seu potencial contestatório. Antigamente,
usar drogas era uma maneira de ter uma via marginal, alternativa para pensar o
mundo. Hoje em dia, usar drogas é destruir o nariz com cocaína e pôr nariz novo de
platina, aplicar drogas na veia até cair morto na rua. Enquanto naquela época era
uma maneira de pensar o mundo.
A homossexualidade era uma forma de questionar os relacionamentos sociais:
a família, a herança! Havia um slogan dos homossexuais que era: “O coito anal
derruba o capital” Parece uma grande piada, mas também foi um ponto sério porque
o coito anal não gera herdeiros, então não é possível transmitir os bens. O coito anal
abala a transmissão da herança que deve circular dentro de uma família. Acreditava-
se também que o coito anal era uma das grandes ameaças dos homossexuais ao
sistema capitalista... ao sistema de acumulação de bens! Desta forma, as pessoas
faziam propostas geniais através da homossexualidade. Por exemplo: usar a

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homossexualidade como arma de luta social. Hoje em dia, a homossexualidade se
resume a pôr um modelito e ir na boate dançar! Desculpem-me se pareço um velho
ascendendo às era modernas!!!
No auge da repressão fui levado para a cadeia, um lugar comum naquela
época... aconteceu tudo! Quando fui preso nunca me ligaram às pessoas do trabalho
clandestino! Nunca me perguntaram dessas pessoas com quem trabalhava! Algumas
delas viram que eu estava sendo preso, mas não avisaram ninguém pelo mesmo
motivo: o Alexandre, maconheiro e viado, podia ser preso, podia ser torturado... não
tinha importância!!
A esquerda nunca levantou a bandeira de liberdade em favor dos
homossexuais, em momento nenhum! Nunca!! Nunca!!! A esquerda não é tolerante,
já tinha dito isso, mas só vou repetir: a esquerda nunca foi tolerante, de maneira
nenhuma, não lhe interessa ser!!! Cuba nunca tolerou seus companheiros
homossexuais! Che Guevara nunca os suportou! A esquerda nunca levou a questão
assim!
Acredito que a esquerda quer aceitar um mito: o bom homossexual. O
homossexual que nunca vai chegar no trabalho e falar de sua tristeza porque brigou
com o namorado na noite anterior, pois isso deixaria o heterossexual muito
constrangido. Nesse sentido, o bom homossexual é aquele que não tem vida íntima,
não tem vida privada, não tem sentimento, não tem emoção, não tem preocupações
com a própria pessoal. Ele é todo dedicado aos outros!
Do ponto de vista político, isso não me interessa!! Creio que a esquerda
pressupõe que o homossexual vai esquecer sua vida pessoal para não criar
constrangimentos, nem afastar votos do eleitor, pois o eleitor não vai suportar
detalhes, assim como a esquerda também não vai suportar detalhes porque eles são
horrorosos!!
A questão homossexual nunca foi colocada como questão de luta dentro de
um partido. Nunca foi feito um trabalho sério, um trabalho consistente. Nunca se

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acreditou que a opressão de que os homossexuais foram vítimas é digna de revanche,
ou digna de uma contestação organizada por parte de um partido. Se um partido
tentar colocar no seu estatuto uma ala para discussão homossexual, jamais faria
sentido porque o voto reflete a moral do eleitor. Porém, a moral do eleitor está longe
de aceitar a questão homossexual.
Quando saí da prisão, a polícia passou a ir na minha casa. Os policiais diziam
que eu era um rapaz muito novo, mas que o Brasil era um país muito violento, um
dia poderia estar atravessando a rua e ser atropelado, poderia morrer com uma bala
perdida que podia me pegar. Quando saí da cadeia, resolvi ir embora para a França.
Larguei o trabalho no Jornal de Brasília, larguei a Universidade e fui estudar
História da Arte na França.
Passei em Portugal primeiro, a passagem dava esse direito! No dia que
cheguei em Portugal aconteceu A Revolução dos Cravos. No dia 25 de abril de 1974.
É engraçado porque iria ficar só um dia, pegar o avião e continuar no caminho para
França!! A partir de então, começou uma história de amor entre mim e Portugal que
dura até hoje. Sempre vou a Portugal, acabei de passar três anos lá! Adoro Portugal!
É meu país querido! O Rui que está aqui conosco é português.
Em 1974, cheguei à França e era pior ainda!!! O ensino era mais acadêmico,
mais convencional, mais caretão, mais conservador!!! Tinha caraterísticas de
ginásio!! Por dois anos fiquei entre a França e a Alemanha, estudando e trabalhando.
Na França fiz marionetes para vender, vivia disso! Depois abri um salão de chá com
uns alemães, eu era um dos donos!! Finalmente, trabalhei numa livraria com
franceses.
Na França, o que foi muito marcante é que sai de uma ditadura latino-
americana para uma democracia européia. Quando cheguei à França, percebi que as
pessoas que conhecia tanto da universidade, quanto as que se tornaram minhas
amigas, sabiam o mesmo tanto que eu sabia! Elas não eram mais do que eu!! Todas
as pessoas com quem convivi eram de grandes democracias européias! Ao mesmo

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tempo, isso foi muito bom para meu ego, mas foi uma grande decepção!! Acreditava
que eles me ensinariam muita coisa, mas não aprendi nada, pois sabia o que eles
sabiam!!!
Com todas as dificuldades de garoto latino-americano, vivendo numa
ditadura, consegui me formar tão bem ou melhor do que muitos deles, em nível do
que a maioria sabia! Houve um certo desencanto com a universidade - estudei na
Université de Provence, onde fiz História da Arte -, foi uma grande decepção, uma
grande desilusão, uma bobagem aquilo.
No conviver na rua do dia a dia também! Certa vez, estava num barzinho de
uma esplanada, tomando café, e tinha um menino árabe de dez anos, doze anos - o
árabe na França é o pobre -, esse menino, por algum motivo, estava sendo levado
pela polícia. Num determinado momento o menino resistiu e o policial deu um soco
com força na cara dele! O menino voou, caiu em cima de uma mesa e a quebrou!!
Ele estava todo sangrando. Naquela hora, estava com um amigo que começou a bater
no policial! A única coisa que dizia era: “- Mas isso é a França ou é o Brasil!! Isso
parece coisa do Brasil, não da França!!!” Nesse sentido, este fato foi muito marcante
para mim.
Na época que estive na França, havia a milícia anti-árabe. Ela era composta
por cidadãos comuns franceses. Eles saiam armados de noite, matando árabes. Duas
vezes, fui confundido com árabes. Eles paravam meu carro de noite perguntando:
“- Você é árabe!?” E eu respondia: “- Não! Não sou!” Eles andavam com espingarda
para matar. Havia o Ministro da Justiça, o Monsieur Poniatovsky, um homem que
marcou muito o país! Até hoje se fala dele na França!
Ele criou esse regime de xenofobia criminosa! O lema do Monsieur
Poniatovsky era: “Mate primeiro e pergunte depois.” Nesse sentido, caso o cidadão
francês visse um árabe, um negro ou alguém afim, ele deveria matar e depois
perguntar. O início dessa onda de xenofobia provocava um clima de terror na

650
França, o qual se mantém até hoje no país, cada vez ganha mais adeptos e fica mais
forte!! Isso foi muito marcante no início!!
Havia um jornal chamado Charlie Hebdo, um periódico no qual o Pasquim
bebeu na fonte. No período que morei na França, o jornal lançou uma capa da edição
de Natal, na qual havia uma Nossa Senhora caída no chão, tinha acabado de ser
violentada e dizia assim: “- Fui violentada por três reis e um deles era preto!!” Essa
frase também foi marcante para mim!! Na santa ingenuidade, pensei ter ido para uma
sociedade muito boa - não perfeita, essa era a palavra que iria usar, depois pensei
mais um pouco! -, uma sociedade justa, uma sociedade correta, onde não houvesse
diferenças sociais, nem raciais, nem nada tão flagrante!! Essa descoberta foi um
grande choque, foi minha grande desilusão! Acho que foi uma desilusão maior do
que quando aprendi que minha mãe trepava com meu pai!!! Ao sair do Brasil, essa
foi a grande desilusão que tive na minha vida!
O Charlie Hebdo era um tablóide, bem irônico, bem debochado, bem
obsceno! Algumas piadas do jornal tinham muito a ver com o Pasquim. Criei essa
associação pela semelhança temática e visual. O Pasquim se referia ao Charlie
Hebdo com muita freqüência! E também porque gosto de falar mal de todo mundo!!!
Então, o Pasquim imitava o Charlie Hebdo! Na verdade, era exatamente o mesmo
jornal. Porém, o Charlie Hebdo era mais velho, uns dois ou três anos, que o
Pasquim! Entretanto, era exatamente a mesma filosofia, o mesmo tipo de
interferência política, o mesmo tipo de deboche, de sacanagem, enfim, o Charlie
Hebdo era um jornal ótimo!! Já era leitor do Pasquim no Brasil, passei a ser leitor do
Charlie Hebdo na França.
Mudei para a Alemanha porque um amigo, foragido político, estava morando
na Espanha: o Antônio, aquele que foi tesoureiro do Partido Comunista! Ele era
fotógrafo. Então, ele morava nas Ilhas Canárias - é até um endereço paradisíaco
para um exilado político -, mas enfim ele morava na praia e conheceu um alemão...
pastor da Igreja Luterana!! Os dois se apaixonaram! É engraçado porque ele passou

651
pelo sul da França acompanhado do seu “Pastor Alemão”. O irônico é que ele era
bem protegido pelo “Pastor Alemão.” Eles estavam indo para Hamburgo na
Alemanha.
Nesta época, já estava com dificuldades financeiras na França e não
agüentava mais viver naquele país! Não gostei de morar na França. Então, o meu
amigo com o pastor arranjaram um emprego no norte da Alemanha, em
Heiligenhaven. Nesta cidade se pega o barco para ir à Dinamarca. Morei lá, uns oito
meses, na casa de um padre que, ironicamente, promovia orgias de rapazinhos... era
fantástico!
Ele andava pela cidade com um casaco de pele, sem roupas nenhuma, nu por
baixo daquele casaco!! Nós, os rapazinhos, sabíamos que ele estava sem roupas,
debaixo daquele casaco, e ele era o padre do cidade! Ele também fazia casamentos
submarinos. Como ele era mergulhador, teve um casal que queria casar debaixo do
mar, com aparelho de mergulho, mas ela vestida de noiva e ele de smoking. Eles
fizeram o casamento no fundo do Mar Báltico!!
Nunca mais soube dele! Recentemente, quando estive em Portugal. Um dia
liguei para a Companhia Telefônica e pedi o telefone dele em Hamburgo. A
telefonista falou: “- Pois não!” E deu o telefone. Pensei: “- Ihhh!!! E agora!!!?”
Então liguei, quando a pessoa atendeu, desliguei... o que poderia dizer vinte e um
anos depois: “- Oi!!?”
Tenho outras lembranças muito queridas da Alemanha. Morei numa cidade
chamada Brémen, famosa pelos cantores de Brémen: do cavalinho, do porquinho, do
galo e do gato. Depois o Chico Buarque fez o musical Os Cantores de Brémen. Era
na época do Baaden Meinholfen, grupo alemão de guerrilha urbana, atuava entre o
final dos anos sessenta e início dos anos setenta... muito calcado!! O guru político
deles eram os Tupamaros, outro grupo guerrilha urbana uruguaia dos anos sessenta!
Os membros do Baaden Meinholfen eram europeus que utilizavam a mesma técnica
de guerrilha urbana!!

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Eu morava na casa de simpatizantes do Baaden Meinholfen, então nossa casa
era constantemente vigiada pela polícia. Isso antes de morar com o padre. Depois
que passei a morar com o padre, não tinha mais nada a ver com o Baaden
Meinholfen. Lembro que era uma casa muito bonita onde morávamos. Havia muita
neblina porque o inverno era muito pesado. Quando nós acordávamos, a janela
estava embaçada. Dentro da casa era quentinho, mas lá fora era muito frio.
O carro de polícia ficava vigiando a casa. Era uma casa muito confortável...
muito confortável!! Não saíamos de dentro da casa porque era muito agradável. No
sótão morava um exilado chileno que escapou da morte em 1973. Ele chamava-se
Jorge e concertava televisão. Nós vivíamos com esses alemães ligados ao Baaden
Meinholfen! Os chilenos vivendo juntos! Desta forma, sempre estive próximo das
confusões!!
Depois fui expulso da Alemanha porque estava trabalhando ilegalmente no
país. Fui embora para a Dinamarca, lá não me aceitaram, alegando que se tinha sido
expulso da Alemanha como queria entrar na Dinamarca!!? Disse que não tinha mais
para onde ir, se não podia entrar na Dinamarca, nem na Alemanha, iria ficar no barco
o resto da minha vida, andando pra lá e pra cá!! Então, esperei o último barco para a
Alemanha e entrei no país quando o guarda estava dormindo. Uma semana depois,
peguei um avião e voltei pro Brasil.
Gostei muito de ter morado na Alemanha, país onde nunca mais voltei! Nunca
mais!! Foi uma época muito emocionante. Tudo para mim tem que deixar uma marca
emotiva, não é só política racional! O que importa é a marca no afeto, na emoção, na
nostalgia, lá dentro da alma!!
Em 1976, quando retornei à Brasília, o clima político ainda era muito pesado!
Voltei outra vez para uma ditadura violenta! Ao passar pela alfândega no aeroporto,
tive medo de entregar meu passaporte ao policial do outro lado!! Continuava com
aquela preocupação de ser abordado ou de levar um tiro!! Quando voltei, meu pai

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estava morando em Brasília! Então, fui morar perto da 412-Norte. Nesta época,
arranjei um emprego no Jornal de Brasília.
Para mim não foi um choque voltar para a ditadura brasileira, por conta da
desilusão que tive na Europa. Quando morei na Alemanha, vivi com uma menina
chamada Chrystel. Além dela ser chefe dos garçons do restaurante onde fui lavador
de pratos, ela era contrabandista de haxixe, então fiquei impressionado com a
facilidade que eles faziam essas coisas. No Brasil, por causa do controle, não
podíamos sair tranqüilamente fumando maconha, ficar doido e cair no meio da rua,
como eu e ela ficávamos na Alemanha. Quando voltei ao Brasil, ficava
impressionado com isso, mas não me chocava, nem dificultava minha vida, nem me
deixava sofrendo!!
Em 1976, volto e começo a trabalhar nesse jornal. Pouco tempo depois, meu
pai morreu! Quando ele morreu, fiquei bem louco!! Tive uma depressão muito
grande, durou mais ou menos um ano! Não conseguia mais trabalhar, não conseguia
sair de dentro de casa, não conseguia ir ao cinema, não conseguia fazer nada!!! Só
ficava dentro de casa porque tinha medo de sair.
Com a morte do meu pai, ocorreu uma divisão, mudei completamente de
vida! Passei a dar aulas, fui ser professor de inglês. Virei professor, larguei de ser
jornalista, larguei tudo!!! Fui dar aula na Cultura Inglesa. Quando o prédio foi
inaugurado, o príncipe Charles estava em visita oficial pelo Brasil. Ele foi convidado
para a inauguração da escola. Numa hora, fui ao banheiro fazer xixi. De repente, fui
empurrado por um segurança que me encostou contra a parede!!
O príncipe foi fazer xixi naqueles mictoriozinhos. Fiquei olhando o príncipe
mijar, um pouco exprimido contra a parede, mas fiquei vendo o príncipe mijar
enquanto eu fazia xixi. É engraçado porque isso também é um momento da minha
vida: fiz xixi junto com o príncipe Charles! Ele estava no mesmo banheiro que eu, ao
mesmo tempo, fazendo xixi!

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Passei uns seis anos sendo professor de inglês. Até um dia que pus a mão na
minha cabeça e falei: “- Que coisa medíocre! Que coisa ridícula! O que eu estou
fazendo aqui!? Dando aulas de inglês nessa escola de gente riquinha!!! Que coisa
patética!!!” Larguei tudo e voltei para o jornal! Desde então voltei a trabalhar em
jornais!!
Em 1978, tomo contato com o Lampião. Nesse período, eles me escreveram,
perguntando se queria participar!? Comecei escrevendo um artigo, depois assinava
uma coluna no jornal. Tinha o pseudônimo de Nico Valcásser, em homenagem a um
poeta peruano. Durante um ano, em 1971, havia morado na casa deste poeta, no
Peru, para fumar maconha.
Parei de escrever no Lampião porque tinha preguiça de mandar os artigos.
Não foi por nenhum motivo grave ou especial! Na minha vida as coisas são assim
mesmo, muito simples!! Porém, eu era o distribuidor do jornal em Brasília. Recebia
o Lampião, distribuía nas bancas, depois recolhia as sobras do jornal, recolhia o
dinheiro e mandava para o Aguinaldo.
Não conhecia nenhuma das pessoas do jornal. Algum tempo depois, comecei
a escrever! Passei a ser um nome com certo destaque no Lampião. Durante uma fase,
retornei à França, por três meses fiquei trabalhando na mesma livraria. Foi quando
conheci um grupo homossexual chamado: Mouvance folle Lesbienne... que significa
Movimento Louco Lésbico. O grupo era composto por homens que se diziam
lésbicos. Eram bichas loucas que não queriam ir para cama com um homem viril,
mas com outra bicha louca. Eles tinham esse posicionamento bem maluco!!
Entrevistei esses homens durante horas. Foi uma conversa demorada. Eles
eram pelo ataque direto a falocracia e contra o culto da virilidade. Na concepção
deles, o homem tinha que ser suave. Eles lutavam contra as bichas que se sentem
atraídas pelo homem uniformizado, viril, do pau enorme, como a mosca, a mariposa
e a vespa pela luz. Nesse sentido, questionavam o protótipo do homem masculino,
policial de preferência, tendo o seu pau enorme como bastão, para fazer a bichinha

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feliz para o resto da vida. Eles tinham uma discussão excelente. Os nomes deles
eram engraçadíssimos! Passei a namorar um deles, o François. Ele era filho de
vietnamita com francês. Era chamado de François a Imperatriz do Vietnã. O
François era pintor. Nunca mais o vi também!
Quando voltei ao Brasil, escrevi uma cópia da fita, redigi uma entrevista e
mandei para o Lampião. A entrevista foi publicada em grande estilo! Fui ao Rio e à
São Paulo, conheci as pessoas, inclusive fiquei na casa do falecido Darcy Penteado,
conversando com ele. A partir desta entrevista, passei a contribuir mais.
Em todos os tempos, o número do Lampião que vendeu bastante foi aquele no
qual fiz a entrevista com a Darlene Glória. Desta maneira, também passei a ser uma
pessoa importante dentro do Lampião, mas sempre permaneci em Brasília. Era
importante permanecer na cidade, na medida em que o Brasil permita que Brasília
seja reconhecida. Esta é outra questão da minha vida, pela qual tenho uma certa luta,
mas também sinto uma certa preguiça.
Há um preconceito enorme no Brasil em relação a Brasília. O preconceito se
projeta de diversas formas, Brasília é uma cidade muito nova, tem trinta e cinco
anos. Brasília é uma cidade no meio do cerrado. Brasília é sinônimo de poder.
Brasília é sinônimo de corrupção e de políticos que criam leis absurdas. Brasília não
existe aos olhos do Brasil, a não que seja para isso. Nós que vivemos aqui não
existimos! Pensamos que gostamos de Brasília, pensamos que escrevemos,
pensamos que trepamos, pensamos que somos felizes e alegres, pois para o resto do
Brasil, Brasília não produz nada disso!!
Só as outras cidades do Brasil produzem alguma coisa! Nesse sentido, existe
um preconceito promovido pela história recente, pelo abuso de Brasília existir com
apenas trinta e cinco anos, pelo abuso de Brasília ter se tornado a capital da
República e tirado esse título de outra grande cidade brasileira, pela tristeza da
história porque Brasília começa e, quatro anos depois, se torna a capital de uma
ditadura!!!

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Há até pessoas que tentam provar que a ditadura só foi possível por causa da
localização de Brasília!! No entendimento delas, a ditadura não seria possível se a
capital fosse no Rio!! Como se a ditadura fosse uma questão geográfica, não uma
questão de caráter de um povo!!! O caráter do povo brasileiro criou uma ditadura,
não foi a geografia de Brasília que a fez! Quem mantém uma ditadura é o povo
oprimido por ela! Só o povo pode mantê-la, mais ninguém tem tal poder!
Permanentemente, somos todos vítimas e carrascos ao mesmo tempo! Contudo, foi
Brasília que ficou com a má fama em relação ao resto do país!!
Nós que trabalhamos em Brasília - com teatro, com jornalismo -, não importa
o que façamos em qualquer área humana, rigorosamente não somos aceitos pelo
resto do país!! Não somos mesmo!!! Há um clima de preconceito que ronda a
produção cultural de Brasília, a qual é considerada de qualidade inferior! Esse
preconceito existe e ao meu ver é muito forte!
Quando você me ligou para pedir: “- Como você foi do Lampião. Eu queria te
entrevistar!” E eu disse: “- Eu!? Mas cá tão longe!? Por que eu!?” Não sei se você
entendeu? Nós mesmos de Brasília, acabamos incorporando o que o resto do Brasil
pensa sobre os brasilienses! Escrevia no Lampião, ajudei a pensar, ajudei a formar os
grupos homossexuais organizados!! Participava de todas as porras das reuniões!!!
Apesar da distância, de todas as dificuldades, eu existia dentro do jornal,
participando, mandando matérias, ajudando a pensar e discutindo!!
Penso que as idéias importadas, trazidas por pessoas que moraram nos
Estados Unidos, ou por pessoas que viveram na Europa - no meu caso específico, na
França e na Alemanha - , elas faziam sentido no Brasil. Essas idéias podiam ser
discutidas no Brasil! Senão iríamos discutir o quê!? Na verdade, as discussões eram
as mesmas! Porém, buscávamos trazer as discussões da Europa, indagando como
viabilizar no Brasil!?
Caso não tivesse morado na Europa e visto loucuras, como atitude pessoal,
não conseguiria chegar para um grupo de adultos e falar: “- Você bate punheta!?

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Você quer discutir sobre isso!!?” Na França as pessoas já estavam querendo discutir
era isso mesmo: “- O que você faz pra ser feliz!? Bater punheta te deixa feliz!?
Como!? Por que? Quais são as sensações que você experimenta ao bater punheta!?”
Desta forma, essa perspectiva de discussão só foi possível porque morei na
Europa. Senão, isso nunca teria passado pela minha cabeça!!? Será que essa
discussão era inoportuna!?. Claro que não!!! Era muito oportuna, os brasileiros
também queriam discutir esses assuntos! Só que ainda tínhamos de viabilizá-los!
Não conseguimos, justamente porque não temos autonomia para produzir
pensamento próprio. O Brasil nunca produziu pensamento próprio. Houve tentativas
de se produzir, mas essas tentativas estavam imbuídas de um intelectualismo do
hemisfério norte. Isso é compreensível se considerarmos o frescor da idade do
Brasil! Afinal de contas, quinhentos anos não são nada!! É preciso viver para depois
chegar a conclusão que quinhentos passam-se num piscar de olhos!!!
O Brasil nunca teve dinheiro para impor seu pensamento, como é o caso dos
Estados Unidos, pois tudo é uma questão de troca: quando se tem o dinheiro se
impõe. Sempre costumo dizer: “- Rock não é uma linguagem universal, mas o dólar
sim!” A linguagem universal dos jovens poderia ser a do samba, por acaso é o
Rock!!
Sou brasileiro e sou sujeito às contingências nacionais. Não vou inventar o
que nunca vi!! É como imaginar uma cor que não existe!!! Enquanto brasileiro,
imbuído de uma cultura brasileira, posso apenas criar o que é produzido! Afinal, sou
produto do meu meio e das minhas contingências. Nesse sentido, tive de ir ao
exterior para ver que era possível reunir pessoas interessadas em discutir o prazer
solitário: masturbação. Não era desapropriado importar as idéias! Além do que, a
própria idéia de um jornal de resistência homossexual é importada!! Com certeza
absoluta, a idéia não é nossa!!!
Penso o seguinte, ou importamos a idéia em direto e fica algo visivelmente
alienígena no nosso ambiente, ou apreendemos a idéia, a digerimos

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antropofagicamente e transformamos em algo nosso, nesse caso acho muito mais
eficiente, muito mais sutil, desce mais redondinho porque colocamos nosso
tempero... nossa maneira de ver a coisa!
A matéria sobre masturbação tem a ver com meu período na Europa, com essa
época que conheci algumas pessoas. Como trabalhava numa livraria, vendíamos
algumas publicações alternativas. Inclusive, essas publicações eram proibidas na
França. Nós vendíamos por baixo do balcão. Elas ensinavam como plantar maconha
no seu apartamento, para um país que não é tropical - em Paris chove, cai neve o ano
inteiro - , então esse livrinho ensinava, mas não podia vender no balcão!!
Havia outros livros sobre homossexualidade, dossiês que eram chamados:
Dossie de la Homosexualité. Eles também eram proibidos, mas vendíamos! Eu lia
todo aquele material na livraria. Aquilo talvez tenha sido positivo!? Após esse
período na França passei a ver a sexualidade como política. A Sex Politic era uma
revista que tinha na França, mas nós a chamávamos de Sex Pol.
Desta forma, voltei com a idéia que tudo podia ser transformado num
questionamento social e político. Reuni um grupo de pessoas com um gravador para
falar de bater punheta! Um ano antes, havia lido que Mick Jagger preferia bater
punheta a trepar, ele tinha acabado de dizer isso para as pessoas naquela época!
Então, vendi a idéia ao Lampião! O Aguinaldo Silva adorou! Então, mandei essa
matéria da punheta. Ela foi publicada no Lampião.
Depois fiquei sabendo que São Paulo odiou! Achou de mal gosto, aquilo era
coisa fuleira. Ainda questionei: “- O que é isso!? Trata-se de uma discussão da
pessoa que tem prazer sozinho!! Com o próprio corpo!!!” Porém, o Rio tinha achado
maravilhoso!! Isso foi a gota d’água para o grande estopim que acabou com o
Lampião, para a grande cisão entre Rio e São Paulo!
Imagina!!! Um jornal, com a seriedade do Lampião, sucumbir ao que há de
mais provinciano, mais pequenininho, mais mesquinho nesse país: a briga entre Rio
e São Paulo!! Uma bobagem, uma coisa de matar a gente de vergonha!!! Como um

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jornal com a finalidade do Lampião sucumbe a uma briga entre Rio e São Paulo!!?
Havia mesmo!! Não se suportavam!! E para mim, em Brasília, mais uma vez não era
nada grave! Como tudo na minha vida! Depois o Aguinaldo criou uma revista,
chamada Pleiguei, e me convidou para trabalhar. A revista durou três números e
acabou.
Defendi a pedofilia na última matéria que mandei para o Lampião. Não sou
pedófilo, mas, cada vez mais, estava entrando numa linha de pensamento bem
radical, a qual mantenho até hoje!! Defendendo a descriminalização de tudo! Nesse
artigo, defendia o direito dos menores de idade irem para cama com quem bem
entendesse, assim como os adultos que também tinham o mesmo direito! Essa foi a
última matéria que escrevi, salvo engano, depois o Lampião fecha as portas.
Historicamente já não cabia mais o Lampião. Nós estávamos entrando num
tempo em que nada mais era pensado, mas era dito. Parece que coincide com um
grande bode das pessoas! Ninguém pensa, ninguém mais quer refletir, ninguém mais
quer comprar jornal alternativo. Os jornais alternativos foram acabando, enquanto
que nos anos setenta não tinha só um número, mas era uma enxurrada!! Nos anos
oitenta, o jornal Lampião infelizmente se tornou demodé, old fashion.
Penso que juntou a briga Rio-São Paulo, a matéria sobre a punheta e os
tempos que eram outros! Não fazia mais sentido um jornal como aquele, assim como
não fazia mais sentido ter aqueles grupos organizados: o Beijo Livre de Brasília, o
SOMOS de São Paulo.
O Lampião vai articular grupos diretamente. O jornal ajuda a aproximar
pessoas para organizarem o movimento. Caso o Lampião não existisse, não haveria o
primeiro Encontro de Grupos Homossexuais Organizados: I EGHO. Ele aconteceu
em São Paulo, naquele Hospital das Clínicas em frente ao Cemitério. O segundo
Encontro aconteceu no Rio de Janeiro. Foi um bafafá com porrada para todos os
lados!!! Mesmo não querendo, o Lampião criou grupos homossexuais por todo o
Brasil! Em Brasília tinha o Beijo Livre, em Alagoas tinha o UVA - União dos

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Viados de Alagoas... é engraçado porque o nome era tão bonitinho!! Aquele moço da
Bahia, o Luiz Mott também surgiu nessa época!
Com isso, não quero dizer que o Lampião fez a cabeça dos sujeitos!! Porém, o
Lampião foi a desculpa necessária para que os grupos se formassem! Ele foi o
motivo, a luzinha que se acende para o Brasil inteiro começar a formar os grupos. O
Lampião, contudo, não era o porta-voz, não se fazia representar, mas era o jornal que
estava presente nos acontecimentos, fazendo todas as matérias, dando cobertura
completa, refletindo! Enquanto os outros jornais esbarravam no preconceito, falavam
com chacota que as bichinhas estavam reunidas!! O Lampião mostrava as discussões
sérias... é imprescindível: o Lampião foi o pai de todos esses grupos que surgiram!
Claro que o SOMOS surgiu antes do Lampião!
O SOMOS se forma um pouquinho antes, ou quase na mesma época do
Lampião, mas é a mesma idéia brotando no mesmo momento, com a mesma
necessidade! O Lampião não pode ser isolado dos movimentos homossexuais
organizados e os movimentos homossexuais organizados não podem ser isolados do
Lampião! Tanto que uma maneira de um grupo se comunicar com o outro era
publicando as Caixas Postais ou os endereços no Lampião. Era inevitável, o
Lampião era o arauto e não podia ser de outra forma!
Havia de tudo nos artigos publicados no Lampião, artigos completamente
intelectualizados - mesmo da Contracultura -, e artigos do forrobodó. Isso foi outro
grande motivo de discussão dentro do jornal, com facção e tudo!! Eu gostava de ser
autor dos dois! Em certos momentos gostava de escrever matéria de reflexão, mas
em outros gostava de escrever para a bichinha da boate! Gostava de dar endereço da
melhor sauna, escrever sobre as moitas e as árvores... boas para trepar atrás delas!!
Nesse sentido, o Lampião também tentava se aproximar da bichinha-bichinha,
aquela sem nenhum compromisso que trabalhava a semana inteira e sábado ia à
boate dançar! Eu gostava dos dois, assim como Lampião também se preocupava!!

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Nós lançamos a expressão “Motel Roxo” no Lampião, eram umas árvores de
folhagem arroxeada, nas quais as pessoas trepavam! Em Brasília, criamos um
“Motel Roxo” e fizemos um jornalzinho do Beijo Livre. O jornalzinho era
basicamente de serviços, chamava-se Foda-se. Ele tinha seção dizendo onde trepar.
É engraçado porque tinha a mesma letra do Divirta-se da Folha da Tarde. Descrevia
todos os lugares em que o sujeito poderia dar sua trepadinha... sem brincadeiras!!
Penso que o Lampião também tinha essa preocupação, tentar equilibrar os pólos! Por
isso, a grande luta para não desequilibrar essa tendência!
Posso contar um pouco a história do primeiro grupo organizado homossexual
de Brasília: Beijo Livre! A primeira reunião do Beijo Livre foi em finais dos anos
setenta. Na casa de Marco Antônio Guimarães, um grande amigo nosso, falecido o
ano passado. Ele nunca teve nada a ver com grupo, mas cedeu sua casa. O Beijo
Livre surgiu com um grupo de pessoas que, depois de algum tempo, tornaram-se
grandes amigos. Na época, fomos atraídos pela questão homossexual. Eu estava a
frente deste grupo, é engraçado porque sou sagitariano, tem a ver com aquela
discussão da infância!!
No grupo tinha eu, Romário... eram mais ou menos umas dez pessoas! Fomos
nós que formamos o grupo! Depois o grupo cresceu bastante. Nós passamos a ter
reuniões no SESC, na sala ao lado de onde se reuniam os negros! Uma vez, nós
fomos nos apresentar e os negros ficaram rubros de vergonha! Não sabiam o que
dizer!!! A situação ficou tão constrangedora que saímos da sala!!! Nós fomos só
dizer que havia outro grupo de luta ao lado do deles!! Acho que eles devem ter
pensado: “- O que essas bichas vieram fazer aqui!!!” Realmente, foi uma situação
muito desagradável!!
Em Brasília, o Beijo Livre tinha acesso aos jornais. Nós podíamos publicar
muito material. Fazíamos alguns ataques de guerrilhas em bares para promover o
beijo livre. Por isso o nome, beijávamos na boca e tudo! Fizemos uma biblioteca de
assuntos homossexuais. Promovíamos grandes discussões. Defendíamos algumas

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pessoas, agredidas por policiais por serem homossexuais, as pintosas que ficavam na
rua e levavam porrada da polícia. Nesse sentido, procurávamos advogado. Quando
algum travesti levava porrada de freguês, o grupo Beijo Livre o visitava no hospital.
O hospital sabia que se tratava de um grupo de resistência homossexual.
Fazíamos shows politizados em boates homossexuais. Nós nos vestíamos de
mulher, mas os textos eram muito bem feitos, com muito humor, mas muito
políticos. Desta atividade surgiu um grupo de teatro. Nós tínhamos um espetáculo
chamado Manga preta Show! É divertido porque fiapo de manga preta é quando um
pentelho do saco agarra na boca, então se diz fiapo de manga preta. Desta forma, nós
tínhamos o Manga Preta Show, o Salão Grená Show, sempre apresentando teatros
com textos rápidos, bastante contundentes, em pró da conscientização.
Também fazíamos trabalho com os travestis que são um lúmpen proletariado
da homossexualidade. Passamos a conviver com os travestis porque levávamos as
coisas no peito!! Não era com distanciamento intelectual!! Efetivamente passamos a
ser amigos dos travestis. Os travestis freqüentavam nossas casas!
Greta, um famoso travesti de Brasília, tornou-se uma grande amiga minha. A
Greta era prostituta. Nós saíamos juntos para fazer compras, para se divertir. Ela
almoçava na minha casa, assistia televisão. Então, a coisa funcionava muito a peito
mesmo. Nós brigávamos no peito e na raça contra todo mundo.
No Beijo Livre não importava se era de direita, se era de esquerda, se era rico,
se era pobre, se era preto, se era branco!!! Nós tínhamos de tudo no grupo! Havia
pessoas do movimento organizado clandestino, havia resquícios disso! Militares que
não apareciam uniformizados na reunião, mas sabíamos que eram militares de
direita! Pessoas da Igreja Católica - a mais conservadora possível -, que nunca
poderiam imaginar estar com um comunista porque senão estrebuchava de pavor da
idéia, derretia feito o diabo dentro da Igreja!!!
Nós tínhamos também dondocas, ou melhor dondocos, pessoas fúteis que
apareciam no Beijo Livre porque estavam com graves problemas particulares e não

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tinham com quem conversar!! Pessoas que entravam dondocas e saiam desbundadas,
mudando radicalmente suas vidas. Nós tínhamos todas essas pessoas no grupo! Não
fazia sentido falar de partido político, nem era saudável! Senão, nós perderíamos
muita gente.
As lésbicas odiavam o Beijo Livre, elas achavam que as atividades do grupo
não tinha nada a ver com elas! Muitos homossexuais, “bem” adaptados, achavam
que a luta homossexual iria desmascará-los no seu cantinho discreto, no qual eles
montaram todas as pecinhas para dar suas transadinhas, onde podiam se locomover
discretamente dentro da sociedade.
Para essas pessoas bem estabelecidas na vida, fui dando um jeitinho de
explicar o que era o Beijo Livre, mas elas diziam: “- Não, pelo amor de Deus! Não
me comprometa! Não telefone para minha casa!! Não me cumprimente na rua!!!”
Eles não queriam que puséssemos seus nome na mala direta do grupo. O Beijo Livre,
por exemplo, era muito radical. Na rua era um grupo quase terrorista. Nesse sentido,
creio que o Beijo Livre não representava a maioria dos homossexuais brasilienses.
Penso que o Beijo Livre era muito radical. O grupo amedrontava esse
equilíbrio precário que existia entre a sociedade e os homossexuais. Ainda existe
uma tolerância muito precária, aquela do bom gay que as pessoas dizem: “- Não me
conte nada! Eu sei que você é, mas não me conte nada!!!” O Beijo Livre era contra
isso!
O grupo passava no meio desse equilíbrio e fazia... RAU... Ele saia rasgando
essa tolerância com gilete, como o travesti que rasga os braços para não ser preso!
Portanto, o grupo não podia representar os homossexuais em peso! Porém, isso não
importava! Era justamente por isso que ele tinha nome de vanguarda, mas não
representava nada!!
Quem gostava do Beijo Livre era o grupo feminista de Brasília. As discussões
eram muito parecidas. Fazíamos reuniões juntas, festas juntas, saíamos juntos para
grandes bailes, grandes noitadas!! Nós nos tornamos amigos! Tanto que quando o

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Beijo Livre acabou, passei a fazer parte do grupo de mulheres de Brasília. Eu era o
único membro viril do grupo! O engraçado é que o grupo era formado por um bando
de sapatas. As sapatas do movimento feminista gostavam do grupo homossexual,
enquanto as sapatas-sapatas independentes odiavam!!!
Não sobrou nada do Beijo Livre! Não faço a menor idéia onde foram os
endereços das pessoas, nem das produções, nem dos livros, nem das atas!!! Não sei
se foi tudo jogado fora!? Não sei onde podem estar as correspondências que eram
lindas!? Eram pilhas de cartas que o grupo recebia! Entre o público que procurava o
Beijo Livre, havia muitos solitários, buscando uma maneira de se comunicar!
Geralmente era gente subúrbio, aquelas pessoas mais pobres das cidades satélites
aqui em Brasília. Eles escreviam e acabavam entrando para o grupo.
No grupo tínhamos algumas pessoas de classe A, mas a grande maioria era
pessoas de classe média-média e classe média-baixa, chegando à classe pobre:
pessoas que nunca poderiam ir à universidade. É incrível como conseguíamos reunir
uma gama tão variada de pessoas! Isso criava problemas dentro do grupo. Nas
festinhas, as bichas da classe A odiavam quando chegava a pretinha, feinha, que
morava lá longe no Gama. O Gama é um bairro bem pobre de Brasília. Então, nós
que éramos a cabeça do grupo, ficávamos nos esforçando para ser simpáticos, mas
aquela situação cansava muito!!
Nunca passou pela cabeça dos membros do Beijo Livre entrar para um
partido, nem nada parecido com isso! Éramos absolutamente autônomos porque o
denominador comum era a homossexualidade! Não era essa a proposta do Beijo
Livre, porém, enquanto organização talvez precisássemos aprender com um partido!
Não tínhamos organização nenhuma... era uma bagunça!! Não tínhamos arrecadação
de verbas, por isso era muito complicado manter a Caixa postal! Tínhamos um
escritório, mas era muito complicado mantê-lo porque gastava muito dinheiro!
Enfim, não tínhamos organização nenhuma. Entretanto, o partido seria a nossa

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morte, seria o nosso fim!! Talvez tenhamos deixado de existir porque o grupo era
autônomo demais!!
Parece que surgiu uma tentativa de cooptação dentro do grupo SOMOS/ SP
pela Convergência Socialista, mas não tenho nenhuma informação! Confesso que
não acompanhei o caso, só sei que também foi um dos motivos de grande briga! Não
saberia falar sobre isso, mas via e ainda vejo a questão com maus olhos!! Talvez o
Emanoel, um dos membros do SOMOS/SP, soubesse muito bem o que dizer!? O
SOMOS/SP emanava a imagem de um grupo muito antipático! Gostava muito das
pessoas que estavam no grupo, mas chegou um momento que o SOMOS/SP se
tornou um partido político.
O grupo tinha necessidades próprias para se manter, as quais não eram as
necessidades de seus membros! O SOMOS/SP ficou muito parecido com um partido,
enquanto que os outros grupos eram mais humildes. O próprio Beijo Livre estava
mais preocupado com o bem-estar das pessoas que participavam do grupo, com a
alegria das pessoas irem se reunir, bater papo e dar boas gargalhadas lá dentro, do
que com a própria existência do Beijo Livre. O SOMOS/SP era muito preocupado
com a própria imagem dele: SOMOS. Ao meu ver, essa era a característica do
SOMOS/SP.
Quando o Lampião acabou, o Beijo Livre ainda conseguiu se reunir. O grupo
acabou naturalmente. As pessoas foram se dispersando, continuaram amigas. Hoje
em dia, uma delas forma o grupo Estruturação. Ele chegou no Beijo Livre, um
adolescentezinho cheio de medo, completamente virgem - segundo as palavras dele-,
inexperiente. No Beijo Livre, ele conheceu o rapaz com quem viveu dez anos.
Atualmente, ele é um dos responsáveis pelo Estruturação. Tenho certeza que ele faz
isto por causa do Beijo Livre. Portanto, o primeiro grupo homossexual organizado de
Brasília foi importantíssimo.
Quando o Lampião deixa de existir, ele deixa muita gente órfã. Todo mundo
ficou órfão porque acabou tudo! Todo mundo se recolheu, os grupos deixaram de

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existir. Não se passou mais a discutir homossexualidade. No Lampião há um artigo
sobre uma carta foi entregue ao Papa, eu e o Tom, um amigo que mora em Goiânia -
ele era padre na época -, fomos encontrar com o Papa e levar essa carta... aqui em
Brasília!! Caso não existisse o Lampião, para que nós iríamos fazer isso!? Quem iria
contar para o resto do Brasil que fizemos isso!?
Quando o Lampião deixa de existir, os grupos deixaram de existir e os que
existiam, nós não tínhamos como saber deles!! Desta forma, era como se eles não
existissem. Eles não tinham efeito, não tinham importância. Nesse sentido, o Brasil
ficou órfão quando o Lampião acabou!!! O Lampião foi um jornal muito importante
da minha vida, extremamente importante!!
No que se refere ao final do ciclo da imprensa alternativo, enquanto as
publicações de outros jornais alternativos serão absorvidas pela grande imprensa, o
mesmo não acontece com o Lampião. Não houve essa absorção. Nesse sentido
questiono: qual foi a sementinha que o Lampião deixou!? Em que ele alterou a
sociedade e a compreensão da questão homossexual!? No momento atual, podemos
perguntar e observar, mas tivemos uns quinze anos em que a questão homossexual
ficou adormecida. Não houve repercussão do que o Lampião representou!
A imprensa parou de tocar no tema, passou a tratá-lo assim: “Ah! Não vem
com essa história de bicha outra vez! Fazer matéria com travesti!! Pelo amor de
Deus, isso é coisa dos anos setenta!!! Deixa isso pra lá!!!!” Não se discutia nada de
novo! Além do que, a questão homossexual também começou a ser atropelada pela
AIDS!
A AIDS é uma doença tão necessária à moral que se ela não existisse, ela
seria inventada! A AIDS realmente derrubou qualquer discussão. Não havia mais
discussão possível sobre sexualidade, sobre comportamento, mas havia discussão
sobre a doença. Para discutir homossexualidade, colocava-se dois pontos e depois
AIDS. Nesse tempo todo, em que o vírus da AIDS esteve à flor da pele, a
homossexualidade esteve encubada. Qualquer discussão mais sofisticada sobre

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homossexualidade, qualquer penetração do modo de vida homossexual na sociedade
heterossexual, foi tudo rechaçado não só em nome de um perigo de morte, mas de
um tempo que o pensamento não era aceito.
Neste período de tempo não se pensou, não se discutiu e não se quis nada!
Nos anos oitenta as pessoas dançaram. Nos anos oitenta as pessoas fizeram aeróbica,
inclusive as bichas!! Ninguém teve tempo para pensar! Hoje em dia, com essa idéia
de que há sexo seguro no Brasil, não condiciona-se mais homossexual à AIDS! Porra
põe a camisinha!!! Vá fazer tudo que se fazia há quinze anos, só que com
camisinha!!! Atualmente, podemos voltar a discutir a homossexualidade sem discutir
saúde. Nesses últimos anos, a discussão sobre homossexualidade era sinônimo de
discussão sobre saúde. Na verdade, homossexualidade é uma coisa, saúde é outra.
Não houve uma absorção, mas houve um esquecimento oportunista! Aliás,
não era oportunista, mas oportuno. Por isso digo que houve quinze anos de silêncio.
Foi o período de gestação. Uma gestação muito longa que lutou contra uma série de
adversidades: os tempos que não queriam pensar e a AIDS que transformou a
homossexualidade numa questão de saúde. Durante esse tempo, houve um abandono
e um descaso horroroso!! Só nos dias de hoje podemos ver os efeitos imediatos,
conseguimos observar: “- Olha! Hoje, isso aqui existe assim por causa do que foi
feito quinze anos atrás!!!”
Em princípio, não acredito que o Lampião tenha propiciado o surgimento do
consumo!! Não acredito que a discussão homossexual tenha propiciado o surgimento
de mais saunas, mais boates homossexuais ou tenha aumentado a prostituição
masculina! Essas coisas andam com as próprias pernas!! A prostituição, por
exemplo, nunca precisou do Lampião para ser maior ou menor, ela é bastante antiga
e sabe se virar sozinha.
Atualmente, está ocorrendo o surgimento de um comércio muito específico
para o homossexual! É uma novidade do mundo que está chegando no Brasil. Outro
dia, li sobre a questão do Comércio Cor de Rosa na revista do JB: viagens turísticas

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para homossexuais, hotéis para homossexuais, piscinas para homossexuais, lojinhas
para homossexuais, roupinhas para homossexuais, grife para homossexuais!!! Desta
maneira, só posso perguntar de uma maneira bem goiana: “- Tem base um trem
desse!?”
No meu ponto de vista, trata-se de uma opinião totalmente pessoal, acho
ridículo, acho patético!!! Eu morreria de vergonha de entrar num avião com um
bando de viado, para ir a um hotel de viado, numa praia de viado, no sul dos Estados
Unidos! Jamais faria nenhuma viagem viada porque perde a aventura e o caráter
experimental!! Tudo na vida deve ter um caráter experimental. Esse tipo de coisa
existe porque há quem compre!! Neste caso, vai fundo e faça!!!
Como será que é!? Fico até curioso em imaginar um avião cheio de bichinhas
indo para Miami! Todo mundo aqui só vai para Miami!!! Penso que o homossexual
tem todo direito de fazê-lo, mas acho ridículo... morro de vergonha desse trem!!!
Trata-se de um momento que quinze anos depois podemos observar. O
homossexual de classe média ganha dinheiro, sabe que pode gastar com sua
homossexualidade, sem pedir licença a ninguém!! Desta forma, ele vai comprar sua
roupinha na grife de homossexuais, vai entrar num avião onde o piloto deve ser
homossexual. Porém, caso isso seja um grande avanço para ele!!? Ao meu ver, o
grande avanço é a interferência e a mescla, não a distinção!!!
Não entendo a homossexualidade como uma definição de vida, nem como
uma totalidade na vida, mas como um momento da vida, ela é um adjetivo. Nesse
sentido, podemos dizer: “- Ele pratica um ato homossexual” Porém, para as pessoas
a que convém viver num ambiente homossexual, podemos chamar de gueto, mas não
estou pondo isso em discussão!!
Acho que se trata de um subproduto de uma discussão iniciada há muitos
anos, da qual o Lampião faz parte! Desta forma, o homossexual saber que tem
direito a ser homossexual, inclusive a gastar seu dinheiro com a essencialidade dele.
Penso que, indiretamente, esses jornais criam uma maior consciência, uma maior

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“vontade homossexual”, uma maior abertura - homossexualmente falando -, que
permite a essas pessoas irem a um hotel!!
Acho que o Lampião e a “revoluçãozinha sexual” que fizemos no final dos
anos setenta, assim como a importância do Beijo Livre, foram muito bons!! Se não
foi para a sociedade brasileira, para mim foi maravilhoso. Hoje sou uma pessoa
muito tranqüila em relação a isso! Tranqüilíssima!! Nada me abala! Sou muito
seguro do meu taco, muito seguro do meu gosto, do que quero, de onde vou!!
Não acho que a “abertura política” tenha propiciado uma vida mais digna aos
diferentes. Não acredito que os democratas sejam mais tolerantes do que os militares
e os ditadores. Se existe um ponto de semelhança entre a esquerda, a social-
democracia e o fascismo, este ponto é a homofobia. Todos eles cometem o mesmo
erro de intolerância com as diferenças. Nesse sentido, o que é diferente é intolerável,
o que é diferente é uma ameaça, o que é diferente é desagradável!! Pessoalmente,
não tenho mais paciência para esse tipo de discurso!!
É claro que não estou falando só dos homossexuais, mas qualquer um dos
“diferentes.” Há alguns que são chavões, são diferentes, mas são mais coitadinhos:
como os negros. No Brasil, pega muito mal ser racista! Não é chique! Não é de bom
tom ser racista no Brasil! Então, é até irônico: “- Com pretos somos mais tolerantes!
Coitados, não é culpa deles! Foi Deus quem quis que eles nascessem assim!”;
quando é com as bichas: “ - BICHA!! É PERVERSÃO!!! NÃO VOU SER NADA
TOLERANTE!!!”
Para dar outra idéia do que sinto, basta observar a diferença do que as pessoas
dizem sobre o hemofílico que contrai AIDS: “- Coitado!”; sobre a Bicha: “- MAS
FEZ POR ONDE!!! É UMA PERVERTIDA!!! MERECE!! MERECE MORRER
ASSIM!!!” Então a intolerância continua, o risinho sórdido continua, mas não me
preocupo com isso, nem tenho pesadelos por causa disso. Imagina!! Nem penso
nisso! Aliás, durante o dia nem lembro da minha sexualidade. Não que deixe de
praticá-la, pratico muito, mas nem penso no problema da intolerância.

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Profissionalmente, o caso é muito parecido, um negro e um homossexual têm
que provar que são bons, pois é aquela história: “- Ele é preto, mas é muito
competente! Ele é bicha, mas é muito competente!” Nesse sentido, o sujeito tem que
provar que é hiper-eficiente! Assim, provo que sou bom profissionalmente. Então, as
pessoas dizem assim: “- Ele tem muito a dizer!” Elas me aceitam porque gosto muito
de escrever. Desta maneira, não têm como rebater, mas depois da “abertura”
colocaria a situação... duas situações bem distintas: o Brasil que acho que não
melhorou, em relação a isso, e eu que melhorei muito. Peguei meu caminho e vou
seguindo por ele.
Não tenho nenhuma vontade de convencer uma pessoa que homossexualismo
é legal e normal! Se a pessoa for intolerante, foda-se!!! O problema é dela! Ela que
vá resolvê-lo porque não vou mais fazer a cabeça dela! Porém, isso é uma opinião
pessoal, um momento da minha vida! Cansei!! Hoje em dia já digo: “- Olha! O
problema é todo seu meu senhor! Se o senhor quiser jogar alguma pedra, fique à
vontade com o seu preconceito que fico à vontade com a minha maneira de ser! Eu
estou pagando os meus impostos.”
Podem questionar se envelheci!? Envelheci!!! Porém, continuo olhando as
pessoas com o mesmo desprezo! Não tenho paciência com esse tipo de gente! Nessa
altura da minha vida, lidar com gente preconceituosa!!? Não lido! Não convivo com
elas!! Não quero provar nada para elas!!! Não me interessa ser aceito por elas!!! Eu
não as aceito, porque vou querer que elas me aceitem!!! Então, elas ficam para lá
que eu fico para cá!
Na minha vida aconteceu outra coisa muito engraçada, em 1969, fiz uma
prova do American Fields Service, para ir morar um ano nos Estados Unidos, com
uma família americana, mas não pude ir!! O exame era sobre conhecimento da
língua! Então fiz uma bateria de testes, passei, mas não fui! Nunca questionei o por
quê. Há quatro anos, estava entrando com uns amigos num bar chique em Brasília e
tinha um rapaz, uns dois anos mais velho do que eu, ele estava sozinho no balcão.

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Era um rapaz muito bem vestido, um jovem executivo, levemente de pileque,
com um copo de Whisky na mão. Ele me chamou para dizer: “- Eu apliquei aquele
exame em você! Queria te pedir desculpas! Eu impedi que você fosse porque
percebi que você era homossexual! Você me perdoa!!?” Ele me abraçou e começou
a chorar! Então falei assim: “- Eu te perdoar!!? Não tenho nada a dizer!! Isso não me
diz respeito!” Engraçado, até hoje isso nunca me magoou. Isso não tem importância!
Foda-se!!!
Na minha vida, marcada por momentos estratégicos da história, fui
atravessando todos! Na verdade, peguei estes momentos históricos, continuo
pegando e espero pegar muitos outros ainda!! Desta forma, depois de tanta coisa que
aconteceu comigo, não tinha espaço para ficar magoado com algo que fui impedido
de fazer em 1968, 1969. Não sei dizer, mas não fiquei nada magoado!
No final dos anos setenta, o jornal Lampião provocou um impacto muito
grande no Brasil. Hoje em dia, esses jornais que existem não provocam impacto
porque não são para alterar o ritmo da sociedade. Hoje em dia, uma revista como Sui
Generis é divertida, pois serve mais para ler no cabeleireiro do que para pensar sobre
a questão homossexual! Se é que a questão homossexual interessa!? Se é que a
questão homossexual existe!!? Tempos depois, aparecem essas revistas que dou uma
olhada e digo: “- É!! Interessante!!” Entretanto, elas estão longe do questionamento
que havia noutros tempos.
Tem quatro meses que voltei de Portugal, depois de três anos fora do Brasil,
para mim está impossível ficar no país! Naquela época era bom voltar, era bom
trabalhar. Na época da ditadura, apesar da violência, apesar da tortura, apesar das
mortes, apesar de tudo, o Brasil era um país melhor para se viver!! A qualidade de
pensamento era melhor do que é hoje. No entanto, não sou nostálgico, nem
derrotista, nem passadista, apenas acho que pensava-se mais, escrevia-se mais,
cantava-se mais!! O que a “abertura política” trouxe para o Brasil!? Ela serviu para
evidenciar uma grande mediocridade do país.

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As pessoas não querem mais ser chocadas! Elas não querem mais ser
escandalizadas! Não é porque elas estejam mais liberadas, mais modernas ou com
um passo adiante da questão! Elas não estão!! É simplesmente porque estão
enfastiadas! Parecem um pudim que deu errado!! Então, elas não reagem!! Ao meu
ver, isso torna o Brasil um país monótono, cansativo de viver!! O Brasil é um país
muito chato! Acho uma pena! Até gosto dele, mas é muito chato!!!
Acho que a vida das pessoas está vazia de significados! Levar uma vida vazia
de significado é perder as grandes referências, é como o sujeito entrar num templo e
não encontrar significado em mais nada. Isso é doloroso!! Creio que para quem
viveu outras épocas, onde tudo era pleno de significados, deve ser muito chato!!
Sobretudo quando não há vontade de sair de casa porque só vamos encontrar gente
bobinha, simplezinha, assim a vida fica chatinha! Acho que a vida é chata!
Desculpe, não a vida, mas o momento atual que vivemos! Não a minha vida porque
não sou suicida!!
Hoje, em 1995, acho que o Brasil é um país muito infeliz, muito medíocre e
muito cansado. Hoje em dia há jornais alternativos gays que não provocam nenhum
impacto na sociedade. Não porque a sociedade esteja mais liberada do que no final
dos anos setenta, mas porque a sociedade não percebe esse impacto que essa
imprensa poderia ter sobre as pessoas. Hoje em dia, as pessoas não se dão conta
porque não pensam, não lêem, não tem curiosidade de aprender e de saber. A
curiosidade, a vontade de aprender e de saber representam o princípio da
inteligência. Nesse sentido, elas não têm noção do formidável que é uma discussão
sobre qualquer questão! Não importa qual seja!! Por acaso pode ser a questão
homossexual!!
Tenho certeza, daqui a cinco anos tudo começará a ser genial porque é
impossível ser medíocre por muito tempo!!! A década de oitenta foi uma
mediocridade insuportável!!! A década de noventa está com um pé no medíocre, mas
geralmente as décadas começam a partir da metade. Nós estamos em 1995, a década

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começou durante o ano, tanto que fui convidado para debater sobre teatro, então
pensei: “- Bom! Ninguém vai mais a debate! Debate é coisa dos anos sessenta!” Foi
engraçado porque na mesa me surpreendi, estava cheio de gente interessada: “- Olha
que surpresa um debate!!” Será que estamos voltando às épocas dos bons debates!?
Aqueles debates que não salvavam o mundo, mas que tornavam a vida mais
agradável!!

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