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Clarice Lispector

(Ucrânia, 1925 - Brasil, 1977)

A roda branca

Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da


superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à
nona se unem - crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito,
espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa.
Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho
sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória
meu rude pensamento quer cantar.
Tento lembrar-me da memória, entender-te como se vê a aurora, uma
cadeira, outra flor. Não temas, não quero possuir-te. Alço-me em direção de tua
superfície que já é perfume.
Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região
assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina . . .
Na queda ridícula as asas de um anjo quebrei. Não abaixo a cabeça
rosnante: quero ao menos sofrer tua vitória com o sofrimento angélico de tua
harmonia, de tua alegria. Mas dói-me o coração grosseiro como de amor por um
homem.
E das mãos tão grandes sai a palavra envergonhada.

in “Onde estivestes de noite” - 7ª Ed.


Ed. Francisco Alves - Rio de Janeiro - 1994

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