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Dilemas Teóricos do Feminismo e do Marxismo em Moçambique: Discussão teórico-

bibliográfica, mapeamento das organizações, o lugar da mulher na luta armada.

A MULHER MOÇAMBICANA E SUAS FASES DE TRANSFORMAÇÃO 1975-2005

Por: Linette Olofsson

Dedicação as mulheres moçambicanas nascidas na década 70

“Tudo no homem depende da civilização. É portanto, sobre o Estado social que se


apoia o edifício da sua grandeza”

-D’ Olivet Antonie-França- 1767-1825

Ainda na esteira do 7 de Abril, urge olhar para a mulher como uma das importantes
forças motrizes para um desenvolvimento humano a partir da base da sua primária
socialização. Numa sociedade de exclusão como a nossa, seria de certa forma muito
vago se se pretendesse penetrar na questão “mulher” descurando-se as fases pelas quais
ela passou. Tal como na pretérita reflexão, continuo afirmando que não pretendo fazer
um estudo profundo sobre a matéria, pois o assunto “mulher” é multifacetado. É matéria
de estudos em diversos ângulos. Aqui importa apenas reflectir sobre a “dor” da mulher;
sobre aquilo que a minha visão, de cidadã, me mostra ao longo destes anos todos de
“independência”. Para tal, vou dividir este texto em duas etapas, tal como se segue:

1ª etapa – Sobre a emancipação da mulher no regime de partido único em


Moçambique

Internamente, pouco se escreveu e pouco se lê sobre as consequências do totalitarismo


político na vida da mulher no então sistema mono partidário em Moçambique, mas
muito se lê pelo mundo fora sobre a dor da mulher no mundo durante os regimes
totalitários . Nota-se claramente um défice de comprometimento com a causa da
mulher nos nossos historiadores, que julgo temerem narrar os verdadeiros factos
históricos que a mulher atravessou durante essa época.

Na verdade, durante a era mono partidária, o conceito de “emancipação da mulher”


definia-se, obrigatoriamente, pela filiação da mulher na OMM, uma organização de
massas sob tutela da Frelimo. Por outras palavras, toda a mulher que não estivesse
filiada, ou não participasse nas “banjas” e trabalhos voluntários idealizados pelo partido
Frelimo através da sua OMM não era emancipada. E a emancipação muitas vezes
chegou a confundir-se com a destruição de lares. Confundia-se com o aproximar
amoroso (adultério) da mulher emancipada ao chefe do escalão mais alto do partido,
tendo como consequência o cimentar das desconfianças em diversos lares a ponto de
alguns se terem destruído. Como o ideal da emancipação estava, à partida, destorcido a
partir de cima, assistiu-se ao destruir de lares daqueles que tinham suas mulheres a
ocupar os escalões mais altos da própria OMM. Alguns maridos, acusados de
retrógrados e contra os princípios que norteavam a linha política do partido, viram-se
atirados para os campos de reeducação ou simplesmente desprovidos dos seus direitos
de educarem os seus próprios filhos. Foram forçados a abandonarem os seus lares em
benefício da mulher então “emancipada”.

Isto e outros problemas que surgiram podem encontrar explicação no seguinte: na


tentativa de construção do estado-nação então idealizado, o partido Frelimo não tomou
em consideração as “relações culturais” dos povos de Moçambique mas apenas
ideológicas esquemáticas e rígidas que não correspondiam nem ao princípio da
liberdade feminina e muito menos ao princípio que norteava a construção do “homem
novo” que se pretendia, isto é, um homem que crescesse seguro numa sociedade segura,
pois, como que em catadupa, o homem novo nascido com a independência ver-se-ia na
obrigação de ser filho de pais separados, ou porque a mãe emancipou-se tanto a ponto
de esquecer suas obrigações de mãe e esposa, ou porque o pai não aceitou que a vida do
seu lar fosse ditada pelo programa da OMM que, na verdade, nem era programa dessa
OMM, mas sim dos componentes dos escalões mais altos do partido que, em
contrapartida, nem sequer permitiam que suas esposas estivessem constantemente nas
reuniões dessa OMM até altas horas da noite, muitas vezes, em detrimento de suas
obrigações de mães e esposas.

Porém, embora todas as mulheres fossem “obrigadas a emancipar-se” segundo os


ditames da Frelimo, exactamente porque os exemplos de desvios partiam do seio do
próprio partido-estado e da sua OMM, a maioria das mulheres não embarcaram no
projecto da emancipação ao estilo Frelimo/OMM. Nas cidades, vilas e um pouco nas
zonas rurais, a escola passou a ser o trampolim não só da libertação da mulher, como
também da erradicação de ideias retrógradas que pairavam ainda em alguns homens.
Não se pode dizer que este trampolim, que tende a libertar a mulher em Moçambique,
veio graças ao trabalho da OMM. Embora eu admita que a OMM desempenhou um
papel crucial na alfabetização, tal como a ideia do progresso sempre existiu no seio dos
moçambicanos (mesmo no tempo colonial), a ideia de pôr filhas a estudarem sempre
também existiu. Apenas se galvanizou com a independência nacional e com a libertação
(através da escola) do próprio homem moçambicano então imbuído em ideais
retrógrados. É preciso ter em conta que jamais a mulher se libertará fora de um quadro
social em que está inserido, pois se o companheiro da mulher, o homem, não se liberta
ele próprio, jamais a mulher se libertará também.

Embarcamos na reflexão acima para ilustrar que a libertação e emancipação da mulher é


um processo. E que se existiram falhas e retardamentos nesse processo são da inteira
responsabilidade do próprio partido-estado, pois imbuído na ideia de emancipar fez do
discurso um contra senso sócio-cultural.

A mulher moçambicana, devido ao sistema político então vigente, era proibida por lei
de contrair matrimónio com um cidadão estrangeiro (como se o Amor tivesse qualquer
tipo de fronteiras). Perdia o direito à sua nacionalidade, assim estipulava a primeira
constituição da Republica Popular de Moçambique. Segundo fontes próximas do poder,
este artigo foi inspirado e defendido por um destacado jurista então ligado a
nomenclatura do poder popular. O Dr. Orlando da Graça, hoje membro do Conselho
Constitucional e, na época, professor universitário, terá sido o único jurista
moçambicano que insurgiu-se corajosamente contra essa norma, apontando a
contradição então existente que definia a igualidade entre homem e mulher, mas que em
contrapartida prejudicava a mulher na matéria de matrimónio. Este preceituado viria a
ser alterado apenas com a subida ao poder de Joaquim Chissano, abrindo-se as
“fronteiras românticas” para as mulheres moçambicanas. Na época, os homens podiam
casar com quem quisessem no estrangeiro e nenhuma OMM se insurgiu contra tal
preceituado.

Muitas mulheres moçambicanas para se verem livres do regime emigraram para outros
países, a maioria para Portugal com filhos ainda pequenos e com uma mala apenas na
mão sem saber o que seria do seu futuro e dos seus filhos fora da terra que tanto
amavam.

A OMM, sendo então a única organização feminina partidária, recebia apoios de quase
todo o Mundo, especialmente do bloco de leste e de alguns países nórdicos, com o
objectivo de reforçar o papel da mulher na sociedade e na defesa de um então regime
que foi, sem dúvida, uma das vergonhas humanas do séc. XX. Só para exemplificar, o
partido social democrata Sueco através da organização feminina Kvinnoforbunet
(SSKF) e da organização da juventude doaram juntos (entre 1988 e 1991) 1,7 milj kroas
a OMM para o desenvolvimento desta organização. Segundo consta no relatório da
inspecção aberta feita pelo ministério dos negócios estrangeiros suecos em 1992: 124,
do valor doado pouco se destinou ao programado pela OMM, tal como a construção de
escritórios nas províncias; cursos de capacitação para os círculos de interesse da OMM,
entre outros. Com o valor recebido repararam-se apenas 3 casas de algumas pessoas,
tendo o restante dinheiro ido para outros programas fora do âmbito da organização. Na
altura, os suecos tinham em mente a construção de uma nação igual para todos, mas, na
verdade, mal sabiam que estavam a apoiar uma ditadura jamais aplicada no seu próprio
país. Isto para dizer que o mundo jamais virou as costas à mulher moçambicana. Muito
pelo contrário, a Frelimo e a OMM é que viraram as costas a própria mulher do seu
país.

Embora se reconheça o mérito da OMM em algumas campanhas de alfabetização,


temos que reconhecer que caiu na letargia por muitos e longos anos porque a maioria
das iniciativas não eram ditados pela própria mulher.

2ª etapa – A mulher na guerra civil no pais e na paz.


,
Durante o conflito armado a maioria das mulheres nas zonas rurais refugiaram-se nos
países vizinhos. Muitas delas reforçaram as fileiras da Resistência Nacional
Moçambicana (RENAMO) desempenhando um papel importante na socialização das
populações nas zonas libertadas pela Renamo, cuidando dos seus filhos, órfãos, doentes
e feridos. Muitas das guerrilheiras nas fileiras da RENAMO chegaram a ocupar
posições de relevo na área de combate e em áreas de comunicação militar em
determinados pontos estratégicos no País. Infelizmente como acontece em muitas
organizações em África, estas mulheres encontram-se marginalizadas após um grande
contributo para que Moçambique alcançasse a democracia.
A luta contra o regime da Frelimo não parou por aqui. A mulher participou ao lado do
homem na criação das primeiras células clandestinas urbanas a nível nacional e no
estrangeiro. As causas que levaram a mulher moçambicana novamente a pegar em
armas, tinham sido atingidas com o AGP. A constituição de 1990 exigida pela
RENAMO e antecipada pela Frelimo, foi para a grande maioria do povo e em especial
para a mulher em Moçambique uma oportunidade ímpar de pela primeira vez na história
do país participar activamente e livremente na vida politica. Contudo, embora seja
visível a participação da mulher em várias esferas sócio-políticas da vida do país, acho
que muito tem ainda que se fazer. A questão da mulher em Moçambique é um assunto
que exige debate e profunda reflexão pois os problemas da mulher não têm fronteiras
partidárias, étnicas, raciais ou culturais. A reflexão deve ser conduzida de uma forma
abrangente, transparente e participativa. Na abordagem dos problemas da mulher tem se
cometido o grande erro de olhar a mulher moçambicana na base de filiação partidária.
Esta atitude e maneira de pensar dos governantes, alimenta políticas de exclusão e
periga a irmandade que se pretende para futuras gerações.

A experiência angolana depois de tantos anos de um conflito sobejamente conhecido, é


deveras interessante. As mulheres da MPLA e da UNITA, acordaram trabalhar
conjuntamente na constituição de uma organização chamada REDE MULHER
ANGOLA. Nesta organização estão também envolvidas outras mulheres incluindo
grupos cívicos, organizações partidárias assim como a Primeira Dama de Angola. Esta
Rede tem uma direcção que espelha o mosaico sócio-político e cultural do país. É um
erro pensar que o sucesso da gestão dos assuntos da mulher passam única e
exclusivamente por mulheres urbanizadas, académicas ou elites. A gestão dos assuntos
da mulher deve ser abrangente se queremos mudar Moçambique e as moçambicanas.
Urge repensar as estratégias a adoptar.

Linette Olofsson

http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&client=firefox-a&rls=org.mozilla%3Apt-
BR%3Aofficial&channel=s&q=mulher+mo
%C3%A7ambicana&aq=f&aqi=&aql=&oq=&gs_rfai=

http://grossocurto.blogspot.com/2007/04/heris-apagados.html

Heróis apagados

16 Abril 2007 by Tsintsiva_Tsapau_Mafurra

O facto de ser admirador de Samora Moisés Machel e seus ideais não me


faz esquecer que grandes erros foram cometidos no passado, e que por
exemplo, este blog não existiria naqueles tempo. Quem pensasse diferente
estava condenado e assim foi com muita gente... A verdadeira história
deste país demorará ainda a sair mas aos poucos vamos sabendo algum
coisa...Este é um dos casos e vejo como obrigação partilhá-lo com quem
puder porque alguém que sacrifica a sua vida pelos seus ideais sendo eles
virados para um mundo melhor para muitos, é alguém que vale a pena
recordar!

Retirámos do Canal de Moçambique este texto...é uma carta de uma


leitora....

----------
Quero lançar um convite às mulheres e homens de boa-vontade, amantes
da verdade que não cedem às intempéries. O convite é para que
embarquemos rumo ao Niassa, província onde nasci. Província de
montanhas, de cursos de água límpida, de vales férteis - a Província do
Lago Niassa.
Num quadro tão bucólico como este, viveram-se os dramas humanos
porventura mais pungentes da história Moçambicana. Marco importante da
luta pela Independência Nacional, marco importante da guerra civil pela
Democracia no País, já independente.

Entre uma luta e outra, aconteceu o percurso de luta de Celina Mulhanga


Simango. Ao falar de Celina Simango quero, antes de mais, citar as fontes:
Barbané Lucas Ncomo, Linette Olofsson, Luis Nhachote , Manuel Fernandes
Pereira.

E para falar de Celina Simango, preciso de um ancoradouro – permitam-me


que cite Pablo Neruda, num poema cujo título se perdeu na minha memória
e no meu muito longo tempo:

“Noite
Noite minha
Noite de todo o mundo,
Redonda
Como um menino que vai nascer,
Como uma semente que estala.
E é o milagre, é o dia.
És mais bela, porque trabalhas de olhos fechados
Para que os olhos se abram,
Para que cante a água,
Para que se ressuscitem as nossas vidas.”

Muitos foram os Moçambicanos que trabalharam na noite, para que


usufruíssemos do dia, que trabalharam fechando seus olhos ao sofrimento,
para que os nossos olhos se abrissem às dádivas.

Celina Mulhanga Simango, nasceu a 4 de Maio de 1938, em Matire-Buzi,


Província de Sofala. Foi da primeira geração de meninas a estudar na antiga
Rodésia, actual Zimbabwe, na Missão de Monte Silinda, depois de ter
concluído a 4ª classe, na cidade da Beira. Esta missão protestante gerou
ideias nacionalistas para a libertação do Zimbabwe, tendo sido lá que
conheceu Uria Simango, também estudante na altura. Formou-se como
professora. Passou a sua mocidade nas cidades de Beira, Umtali (hoje
Mutari) e Salisbury, actual Harare. Na Beira, antes de contrair matrimónio,
pertenceu aos núcleos de contestação ao regime colonial, tendo promovido
a educação das raparigas. Casou-se com o Reverendo Uria Timóteo
Simango, vice-presidente da Frelimo, de quem teve três filhos: Lutero,
Deviz e Maúka.

A LIFEMO, primeiro movimento feminino Moçambicano, foi fundado, com o


início da Luta Armada, por Celina Simango, que o presidiu até à sua
extinção. Com a extinção da LIFEMO, em 4 de Março de 1968, é criado o
Destacamento Feminino da FRELIMO, onde Josina Abiatar Muthemba, mais
tarde Machel, viria a participar como dirigente. Em 1973 é criada a OMM.
LIFEMO, DEF, OMM – é esta a sequência.

Tendo o Rev. Uria Simango sido expulso da Frente de Libertação de


Moçambique, Celina, seguiu seus passos. Após a Independência do País,
Celina Simango foi detida na cidade da Beira e encaminhada para os
campos de reeducação do Niassa, tendo deixado seus filhos menores
entregues a parentes. Foi fuzilada, após ter sido fuzilado seu esposo, em
data não conhecida, no campo de reeducação de M’telela. Em M’telela, no
Niassa. Algures em M’telela. Só os seus algozes nos poderiam fornecer
informação mais precisa destes acontecimentos e, quiçá, com esse gesto de
imensa misericórdia, permitir que seus filhos, seus netos e bisnetos
pudessem prestar-lhes a devida homenagem.

No meu longínquo Niassa apagou-se esta vida, como o sopro de uma vela.
Ficou a noite. Ficaram seus filhos Maúka (falecido em Portugal), Lutero –
que cedo assumiu os destinos do PCN e é deputado da Assembleia da
República pela Bancada da RENAMO-UE e Deviz, actual Presidente do
Conselho Municipal da Beira. Ecoarão para sempre nas mentes destes filhos
e seus descendentes e no fruto da Moçambicanidade, as últimas palavras de
Celina a Manuel Pereira: “Diga a meus filhos que a mamã pede para
estudarem muito.”. “Diga a meus filhos que a mamã pede para estudarem
muito.”

Às mulheres anónimas da nossa luta, vai, através de Celina Simango, uma


mulher à escala nacional e regional, a nossa homenagem. Um dia, quem
sabe, será erguido um monumento em homenagem à mãe Celina. Que não
se converta em lugar de peregrinação pagã, mas de pausa para reflexão.
Para que nunca mais surjam M’telela’s no nosso solo pátrio e que as mães
possam dizer a seus filhos de viva voz: “Estude muito, meu filho” em vez de
“Diga a meus filhos que a mamã pede para estudarem muito.”

(Osi Khatekissa Africa)


PWIA RELIHANE AFRIKA (Senhor abençoe Africa)
NITOTOPELIWA NSINA NANHU (nós louvamos o Teu Nome)
MWIWE MA VEKELO AHU (ouve o nosso clamor)
PWIA RELIHANE (Senhor abençoa)
INO NANAMWANINHO (nós também somos teus filhos)

(Maria Moremo)

http://www.mmas.gov.mz/content/view/108/67/lang,pt_PT/

Cerimonias Centrais do Dia da Organização Pan-Africana das Mulheres


realizadas em Quelimane
A Ministra da Mulher e da Acção Social, Virgília Matabele, orientou, ontem, 31 de
Julho, as cerimónias Centrais do Dia da Organização Pani-Africana das Mulheres, na
Cidade de Quelimane, as quais decorreram sob o lema "A Pauperização do Continente:
que Desenvolvimento Económico para a África? Desafios e Estratégias ”.

A Ministra iniciou a sua intervenção, saudando as mulheres Moçambicanas e, por seu


intermédio, as de todo o Mundo pelo exemplo e pela determinação com que participam
nos processos político, económico, cultural e social e recordou aos presentes que a
Organização Pan-Africana das Mulheres tem lutado incansavelmente pela participação
da Mulher no processo de tomada de decisões a todos os níveis.

Falando especificamente de Moçambique, a Ministra disse que a representatividade das


mulheres nos órgãos do poder executivo e legislativo é uma das mais altas não só do
continente africano mas também de todo o mundo e está em conformidade com os
compromissos assumidos pelo Governo na Declaração de Género da SADC de 1997 e de
outras iniciativas.

Por outro lado, a ministra mostrou que esta representatividade não ocorre por acaso,
pois, segundo explicou, “É a mulher que hoje, tal como no passado, merece toda a nossa
atenção dado o seu papel como mãe, como educadora, como gestora do bem familiar e
formadora da criança”.

De acordo com a Ministra, a mulher africana decidiu constituir uma Organização


Continental, um instrumento de luta pela sua emancipação por um lado, e por outro, de
unir todos os esforços e inserir as suas acções dentro de uma acção global do povo
africano no combate a todos os males e obstáculos que impedem a sua integração no
desenvolvimento económico, político, social e cultural.

A Ministra da Mulher e da Acção Social disse que Moçambique é signatário de várias


iniciativas internacionais e regionais, tendentes à promoção da igualdade de direitos
entre mulheres e homens, traduzidas na revisão de leis discriminatórias e na elaboração
de políticas e programas a favor da mulher, pois o bem-estar social de homens e
mulheres em Moçambique constitui o objecto principal de toda a acção governativa.

Por isso, “Sentimos com maior impacto a presença impetuosa da mulher nas grandes
empresas, repartições, nas instituições de ensino, incluindo o ensino superior, na
academia e círculos de intelectualidade, nas instituições de saúde, públicas e privadas, na
cultura, desporto e investigação. Esta é uma realidade nova que não existia no período
que antecedeu a libertação dos países do continente africano”, explicou a Ministra.

Contudo, disse que apesar dos sucessos alcançados o caminho a ser percorrido ainda é
longo e exige de todos os moçambicanos esforços redobrados, uma vez que ainda há
muitos obstáculos a serem ultrapassados.

A Ministra citou como sendo alguns dos obstáculos que preocupam a Mulher Africana a
instabilidade política, os conflitos étnicos, a pobreza absoluta e as doenças endémicas,
que têm estado a contribuir negativamente no quadro do desenvolvimento humano, onde
a mulher e criança são as principais vítimas por serem as mais vulneráveis.

Referindo-se especificamente ao caso de Moçambique, a Ministra disse que cerca de


52% da população Moçambicana é constituída por mulheres, as quais representam o
segmento da população mais pobre e mais afectado pela pandemia do HIV/SIDA. Por
isso, apelou para a necessidade de se dar maior importância ao fenómeno da feminização
da pobreza e do HIV/SIDA.

“A pobreza da Mulher, cujos determinantes são, entre outros, o baixo nível de


escolarização, as altas taxas de dependência dos agregados familiares pobres, amiúde
chefiados por mulheres, os baixos rendimentos agrícolas que são a base de subsistência
da maioria das mulheres, a fraca rede de infra-estruturas básicas, a frágil base industrial
e a falta de segurança social que minimize a vulnerabilidade aos riscos dos desastres
naturais, trás consigo muitos males e prejuízos imensuráveis para toda a humanidade”,
disse a Ministra para depois concluir a sua intervenção lembrando que “todos temos a
responsabilidade na luta contra a Pobreza absoluta, nomeadamente, sectores do Estado,
organizações nacionais e internacionais, sector privado e sociedade civil em geral”.

Entretanto, durante o encontro intervieram, igualmente, a Secretária Permanente


Provincial e a Secretária Geral da Organização da Mulher Moçambicana, as quais
falaram da importância da data e exortaram as mulheres moçambicanas a empenharem-
se em todos os processos do Desenvolvimento Económico e Social, como forma de
combater a pobreza que tem sido um grande obstáculo para o bem estar social,
principalmente das mulheres.NM.

http://opais.sapo.mz/index.php?option=com_content&view=article&id=5338:omm-
celebra-hoje-37-anos-de-existencia&catid=63:politica&Itemid=273

OMM celebra hoje 37 anos de existência


Terça, 16 Março 2010 09:51 Redacção

Recorde-se que esta organização foi fundada a 16 de Março de 1973

A organização da mulher Moçambicana (OMM) celebra, hoje, mais um aniversário da


sua fundação. A organização foi fundada em 1973, durante a guerra de libertação
nacional, com o objectivo de emancipar a mulher e dá-la oportunidade de mostrar as
suas capacidades na construção do país.

No comunicado do partido Frelimo, recebido pela nossa redacção, alusivo a este dia, lê-
se que a “a mulher moçambicana, inspirada na sua auto-estima e pelas suas capacidades,
contribui para os vários desafios que ao nosso país se colocam, incluindo o combate à
pobreza...”

No mesmo documento, a Frelimo diz que rende homenagem especial à mulher


moçambicana pelo seu envolvimento massivo nas IV eleições gerais e primeiras
provinciais, no contexto multipartidário.

“Ela (a Mulher) demonstrou ser uma grande força galvanizadora do progresso, sabendo
escolher o verdadeiro partido comprometido com a prosperidade do país”.

No mesmo texto, o partido Frelimo apela à Organização da Mulher moçambicana à


preservação, reprodução e transmissão dos valores sociais, culturais que definem a
nação moçambicana. Para o partido Frelimo, a OMM tem o papel crucial de
desencadear acções que sejam exemplo de consolidação da unidade nacional e
aprofundamento da cultura de paz.

Recorde-se que esta organização foi fundada a 16 de Março de 1973, em plena luta
contra o colonialismo português, como substracto para mostrar que a mulher era
importante na sociedade moçambicana e que devia ser emancipada.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
69092009000200002

Revista Brasileira de Ciências Sociais

Print version ISSN 0102-6909


Rev. bras. Ci. Soc. vol.24 no.70 São Paulo June 2009

doi: 10.1590/S0102-69092009000200002
ARTIGOS

Fragmentos de uma imaginação nacional*

Lorenzo Macagno

RESUMO

Desde o início da luta armada contra a presença de Portugal (1964) até a


independência de Moçambique (25 de junho de 1975), os debates no seio da Frente
de Libertação de Moçambique – Fremilo transitaram pelo dilema "nacionalismo
anticolonial" versus "socialismo". Tais debates trazem para o centro da discussão os
dilemas que oscilavam entre o postulado de ser a Frelimo uma simples frente de
libertação nacional e, no outro extremo, um Estado/Partido, que mais tarde se
autodenominaria "marxista-leninista", o que possibilitaria, na visão de seus porta-
vozes, a modernização e o desenvolvimento do país. Este artigo reconstrói esses
debates sob o horizonte das contribuições de Benedict Anderson e analisa as
representações em torno da figura "mítica" do líder nacionalista Samora Machel.

Palavras-chave: Imaginação nacional; Moçambique; Socialismo; Frelimo; Samora


Machel.
Em 1970, depois do assassinato de Eduardo Mondlane1 em 1969, o Comitê Central
da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) decide nomear Samora Machel
como seu sucessor. Na qualidade de presidente da Frelimo e do Moçambique
independente, Samora, como informalmente era chamado pelos moçambicanos,
teve um papel central no processo de construção da nação. Desde o início da luta
armada em 1964, contra a presença de Portugal, até a independência do país, em
25 de junho de 1975, os debates no seio da Frelimo transitaram pelo dilema
"nacionalismo anticolonial" versus "socialismo". Neste artigo, reconstruo, sob o
horizonte das contribuições de Benedict Anderson, alguns dos marcos fundamentais
desse debate, bem como suas implicações na construção de uma imaginação
nacional para o Moçambique pós-colonial. No centro da discussão os dilemas
oscilavam entre o postulado de ser a Frelimo uma simples frente de libertação
nacional e, no outro extremo, um Partido-Estado que mais tarde se
autodenominaria "marxista-leninista"2 capaz de trazer, na visão de seus porta-
vozes, a modernização e o desenvolvimento ao país.

Morto em 1986, na queda do avião oficial, em Mbuzini, no qual viajava – as


crônicas apontam que se tratou de um atentado planejado pelo regime do
apartheid na África do Sul3 –, Samora Machel é, até hoje, objeto de admiração e
motivo de disputas e desencontros. A partir do seu trágico desaparecimento, as
narrativas a seu respeito entrelaçam, indefinidamente, o mito com a história. Esse
entrelaçamento acabou produzindo um emaranhado de versões e contraversões, do
qual confluem múltiplas vozes à procura de uma comunidade imaginada – a nação
–, cuja genealogia é, ainda, alvo das mais variadas disputas.

A primeira vez que "vi" e "ouvi" Samora Machel foi em 1996, quando cheguei ao sul
de Moçambique para realizar um trabalho de campo, cujo objetivo era, a princípio,
indagar acerca da influência da "cultura" portuguesa nos dilemas identitários
contemporâneos daquele país. Durante seis meses travei contato com uma geração
de pessoas que vivenciou a passagem da condição de indígena à de assimilado:
duas categorias que o sistema jurídico colonial contribuíra para criar. Um dos meus
objetivos era, portanto, entender as conseqüências contemporâneas do chamado
Sistema do Indigenato.4 Naquele momento comemorava-se, precisamente, o
décimo aniversário da morte de Machel e inúmeros eventos se realizavam para
lembrar essa data. Nelson Mandela foi convidado por Joaquim Chissano, sucessor
de Samora Machel, para homenagear quem, junto com ele, fora um lutador contra
o regime do apartheid e um amigo incondicional do povo sul-africano. Na
Universidade Eduardo Mondlane, intelectuais e líderes históricos da Frelimo – tais
como Sérgio Vieira e Marcelino dos Santos – reuniam-se para evocar o pai da
nação. A televisão moçambicana apresentou, naqueles dias, um documentário sob
o eloqüente título Samora e o povo, que começava com um efusivo discurso de
Samora Machel, pronunciado por volta de 1980, durante o período da chamada
Ofensiva Política e Organizacional. Tamanho foi meu impacto com as imagens
veiculadas pela emissão que, poucos dias depois, recorri à Televisão de
Moçambique (TVM) para obter uma cópia do documentário. Assim começava o
discurso inicial de Samora Machel:

A nossa luta é contra os saboteadores; a nossa luta é contra os preguiçosos; a


nossa luta é contra os ladrões; a nossa luta é contra os drogados; a nossa luta é
contra os marginais; a nossa luta é contra os especuladores. A nossa luta é contra
aqueles que querem oprimir e explorar o povo, roubam os produtos, escondem e
depois especulam. É, ou não é?
Essas palavras eram pronunciadas com histrionismo e teatralidade. Tratava-se,
sem dúvidas, do que mais tarde alguns analistas qualificaram como o "estilo", a
"essência" e o "brilho carismático de Samora".5 A partir das evocações provocadas
pelo documentário – e da minha própria pesquisa no terreno – este artigo indaga
sobre a relação, aparentemente indissolúvel e irredutível, entre "Samora e o Povo"
e, portanto, sobre as relações entre o Partido-Estado (Frelimo) e os fragmentos –
vinculados à evocação mítica da figura de Samora – de uma certa imaginação
nacional.

Uma versão historiográfica mais ou menos consagrada6 explica a formação da


Frelimo a partir da união no exílio de três grupos nacionalistas moçambicanos
(Udenamo, Manu e Unami). Em 25 de junho de 1962, os três grupos, reunidos em
Dar es-Salam, concordam em formar a Frente, realizando os preparativos para
definir um programa de ação para o mês seguinte (Mondlane, 1976, p. 128). O
processo por meio do qual a Frelimo passou de uma frente nacionalista a um
partido "marxista-leninista" foi explicado, com certo detalhe, no estudo de Sonia
Kruks (1987). Seu argumento procura evidenciar, entre outras questões, que a
adoção dos postulados "marxistas-leninistas" obedecia a um processo intrínseco
vinculado à singularidade e às especificidades da "luta de libertação nacional". Ou
seja, por mais que esses postulados fossem explicitados e sistematicamente
formulados no III Congresso da Frelimo ocorrido em 1977, já existia um "marxismo
tácito" que podia ser detectado, sobretudo, desde 1968. As conclusões de Kruks
contestam os argumentos "anticomunistas" veiculados pela administração colonial
portuguesa durante a ditadura do Estado Novo, que explicavam a "opção marxista"
da Frelimo em termos de uma simples condição de dependência em relação à União
Soviética ou China.7

Um sintoma indicativo de que a orientação da Frelimo cairia, cedo ou tarde, nos


postulados teóricos do "marxismo-leninismo" pode ser rastreado em uma famosa
entrevista que Aquino de Bragança8 realizou com Eduardo Mondlane em 1969,
pouco antes do seu assassinato. Nela o fundador da Frelimo admite não existir
alternativa que não a adoção do "marxismo-leninismo", declarando que uma
coalescência de pensamento que atuara durante os últimos seis anos

[...] autoriza a concluir que a Frelimo realmente agora é muito mais socialista,
revolucionária e progressista do que nunca. E é a linha, agora, a tendência, mais e
mais em direção ao socialismo do tipo marxista-leninista. Porque as condições de
vida de Moçambique, o tipo de inimigo que nós temos, não admite qualquer outra
alternativa (Mondlane, apud Christie, 1996, p. 190).9

Após o assassinato de Mondlane, a direção da Frelimo sofreu um processo de


mudanças radicais. Passou-se a discutir, no interior da organização, um conjunto
de problemas derivados da "questão racial" como critério de pertencimento e
lealdade ao grupo. Aqueles que seguiam o legado de Mondlane rejeitavam esse
critério, argumentando sobre o seu caráter politicamente reacionário e primário.
Entretanto, o grupo próximo a Uria Simango desconfiava da minoria branca que
participava ao lado da Frelimo na luta anticolonial. Finalmente, em maio de 1970,
durante uma reunião do Comitê Central, Simango foi expulso – e mais tarde
fuzilado – sob a acusação de estar ligado à conspiração secessionista de Lázaro
Ncavandame.10 O sucessor de Mondlane seria, pois, um jovem e ativo militante
que, até então, desempenhara um importante papel no comando militar: Samora
Machel.

Como depositário desse desafio, Machel é erigido o novo porta-voz da nação,


mostrando-se um entusiástico formulador de uma espécie de "marxismo caseiro",
adaptado às singularidades da experiência moçambicana. Nessa formulação, uma
das preocupações dos novos porta-vozes da nação seria a de educar, produzir e
criar o novo homem moçambicano. Foi, de fato, no campo da educação onde se
desenvolveram as grandes batalhas ideológicas de Moçambique independente.

Nos anos posteriores à independência, era comum encontrar entre as novas elites
nacionalistas o argumento de que as dificuldades que emperravam o
desenvolvimento da educação tinham como causa a herança colonial. Por outro
lado, qualquer relato das realizações da Frelimo nesse âmbito teve como ponto de
partida obrigatório a experiência realizada nas chamadas zonas libertadas,11
consideradas um antecedente ineludível da ação educativa anticolonial da Frelimo.
Isto fica evidente nos discursos Samora Machel, para quem a luta armada foi a
"escola", a "grande universidade" na qual se formaram os militantes da Frelimo.

Nas zonas libertadas nascia "o primeiro sistema de educação nacional, que já em
1972-1973 compreendia mais de duzentas escolas primárias (para uma população
de cerca de um milhão de habitantes e com dez mil alunos só na província de Cabo
Delgado), um ensino secundário até a 8ª classe, um curso de enfermagem, curso
de formação de professores primários, além de infantários" (Nascimento, 1980, p.
33), bem como as chamadas escolas de treino político-militar em Nachingwea e
Tunduru, na Tanzânia.

Na II Conferência do Departamento de Educação e Cultura em 1973, Samora volta


a sublinhar o fato de que os quadros surgem no próprio processo de luta, não
sendo preciso esperar a formação de generais para se travar batalha. Daí sua
famosa palavra de ordem: "aprender a fazer fazendo". Nas zonas libertadas, essa
palavra de ordem pretendia ser uma realidade.

Cabe lembrar que, imediatamente após a independência, foram criados os


Grupos Dinamizadores (GD), cujo objetivo era mobilizar as populações ao
redor das políticas do novo governo. Além de funções políticas e
administrativas, os GD tinham como tarefa estimular as atividades
educativas nos lugares de trabalho e no âmbito das comunidades. Eles
abriam espaços de discussão e de formação, procurando romper tanto com
as "sobrevivências" do passado colonial, como com o "tradicionalismo" e o
"obscurantismo", duas preocupações recorrentes no jargão frelimista.
Onde os GD atuavam, muitas das formas de relação entre os chefes
tradicionais – régulos – e a população começaram a desaparecer. Porém,
aparentemente, eles não conseguiram penetrar em alguns sistemas de
práticas e crenças africanas mais arraigadas, como determinadas
cerimônias consideradas "retrógradas": rituais fúnebres, ritos de iniciação,
invocação dos antepassados, lobolo12 (Fry,2005). Contudo, o português foi
mantido como língua de unidade nacional, pois, segundo os porta-vozes da
Frelimo, esta era uma maneira de neutralizar as ameaças divisionistas do
"tribalismo" e, assim, poder construir a moçambicanidade.

Não é meu objetivo traçar aqui uma história social ou política da Frelimo,13
mas simplesmente ressaltar que esse ato inaugural foi sucedido por um
tortuoso processo de traições, purgas e violentas disputas. Nesse sentido,
não é possível aludir à história da Frelimo sem nos referirmos à sua
contrapartida política: a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo).
Esse grupo surgiu em 1976 de uma iniciativa contra-revolucionária no país
vizinho, Rodésia (atual Zimbábue), governado, naquela ocasião, por uma
minoria branca. Segundo William Minter (1994, p. 7), está plenamente
comprovado que a MNR (Mozambique National Resistence, tal como foi
inicialmente conhecida a Renamo) foi fundada pela Organização de
Inteligência Central Rodesiana e, a partir dos anos de 1980, de um
pequeno grupo transformou-se em uma potente máquina militar. Assim,
quando Zimbábue obtém a independência em 1980, a Renamo passa a ser
apoiada pela África do Sul. O que começou como uma guerra de
desestabilização se transformou em uma das guerras civis mais sangrentas
da África.14 Mais uma vez, a Frelimo teve que reforçar seu discurso de
"unidade nacional", sobretudo quando a Renamo pretendeu "limpar" sua
imagem internacional, a de "bandidos armados", tal como eram
conhecidos, assumindo uma linguagem politicamente "etnicista" em suas
reivindicações. De fato, a principal base de apoio da Renamo estava
constituída por grupos lingüísticos Shona, e o subgrupo Ndau, presentes
no centro do país.15 As negociações para um acordo de paz entre a Frelimo
e a Renamo iniciaram-se em 1990 com as "conversações de Roma" e se
estenderam até 1992, quando Joaquim Chissano (presidente da Frelimo e,
naquela altura, presidente também do país) e Afonso Dhlakama
(presidente da Renamo) firmaram, finalmente, o Acordo Geral de Paz. Na
primeira etapa dessa negociação teve importância a mediação do Vaticano,
por intermédio da Comunidade de Santo Egídio e do governo italiano; na
sua segunda etapa, esse processo foi mediado pelas Nações Unidas.16

A "morte da tribo" e a construção do homem novo

Segundo o Dictionary of political thought, elaborado por Roger Scruton, a


expressão "homem novo", "novo homem comunista" ou "novo homem socialista"
foi usado desde a década de 1920 tanto por seguidores como por críticos do
comunismo soviético, com o intuito de descrever certa transformação não só na
ordem econômica, mas também no nível da personalidade individual. Essa
transformação ocorreria, ou deveria ocorrer, tanto sob o socialismo como sob a
"plenitude do comunismo" para aonde o socialismo supostamente caminharia.
Conforme essa lógica, ao possuir uma essência histórica, o homem passa a ser, em
algum sentido, uma criatura diferente sob uma nova ordem econômica, de modo
que os valores e as aspirações que o motivavam previamente já não podem ser
nem compreendidas, nem reconhecidas.17

Em Moçambique, a genealogia da noção de homem novo remonta ao


período da luta armada e reconhece, ademais, seus próprios textos
canônicos por meio dos quais procurou se impor. Em algum sentido, a luta
entre a "nova" e a "velha" ordem é a chave para compreender a idéia de
homem novo. Em trabalho recente, José Luis Cabaço defende que a
proposta do homem novo teve seu "laboratório experimental",
precisamente, nos campos de treino que a Frelimo tinha em Nachingwea,
visitados por ele em 1974. Foi ali, nos primórdios da luta armada, que a
preparação militar era complementada por uma ideologia que, por sua vez,
veiculava novos valores para a construção de uma sociedade "justa,
solidária, altruísta, coesa, socialmente disciplinada, com uma visão
econômica fundada no princípio da auto-suficiência e dependente
essencialmente das 'próprias forças' e da 'imaginação criativa do homem'"
(Cabaço, 2007, p. 412).

Em dezembro de 1977, Sérgio Vieira,18 membro do Comitê Central da Frelimo,


pronunciou um discurso na II Conferência do Ministério de Educação e Cultura,
publicado no ano seguinte na revista Tempo, com o título "O homem novo é um
processo". "A revolução triunfa ou fracassa na medida em que emerge ou não
emerge o homem novo", diz Vieira no início do discurso (1978, p. 27). A construção
do homem novo passa a ser, decisivamente, um dispositivo mobilizador, uma idéia
força, um objetivo fundamental a ser alcançado.

Segundo Sérgio Vieira, a primeira vez que Samora Machel abordou de forma central
e sistemática a idéia de homem novo foi em 1970, em um discurso pronunciado na
II Conferência do DEC (Departamento de Educação e Cultura) em Tunduru. Nessa
ocasião, afirmava a necessidade de "Educar o homem para vencer a guerra, criar
uma sociedade nova e desenvolver a pátria",19 sendo imperioso, "depois de
demonstrar-nos a nocividade, quer da educação tradicional, quer da educação
colonial, explicar os objetivos educacionais que nos propomos atingir, em função da
nova sociedade pela qual lutamos" (Machel, 1978a, p. 8).

Samora Machel distinguia, naquele discurso fundacional, três tipos de


sistemas de educação antagônicos, dois dos quais refletiam as sociedades
que, supostamente, deveriam desaparecer e um terceiro orientado para o
futuro, para a nova sociedade. O primeiro sistema que identifica é o da
educação tradicional, no qual a superstição ocuparia o lugar da ciência.
Nesse contexto, a educação visaria transmitir a tradição, erigida em dogma
que se perpetuaria através dos sistemas de classe, dos grupos de idade
(opondo jovens e velhos), dos ritos de iniciação, da poligamia (que
condenaria a mulher a um papel subordinado).

O segundo sistema (que já estaria desaparecendo com o tradicional) é o da


educação colonial, que condenaria o moçambicano a ser um "pequeno
português de pele preta", um instrumento dócil do colonialismo, cuja
ambição máxima seria viver como o colono, a cuja imagem fora criado
(Idem, p. 10). Aqui, Samora seguramente tem em mente a figura do
assimilado, ou seja, um africano que, conforme o vocabulário jurídico-
colonial, tinha conseguido se emancipar de seus "usos e costumes"
adquirindo, assim, valores culturais portugueses. A categoria de
assimilado deixou de ser utilizada sobretudo após a abolição do Sistema do
Indigenato, em 1961. Neste caso, Samora está apenas fazendo uma
evocação irônica – "pequeno português de pele preta" – dessa categoria.20
Finalmente, o terceiro tipo é a "educação revolucionária para a criação do
homem novo". Aquela que visa implantar a solidariedade entre os homens
e é capaz de desenvolver um trabalho coletivo. Seria necessário, além
disso, implantar as bases de uma economia próspera e avançada, fazendo
com que a "ciência vença a superstição". O tribalismo, a superstição, a
tradição atentariam contra a tentativa de construir a nação moçambicana.
Esses elementos operariam no sentido de uma fragmentação, de modo
que: "Unir todos os moçambicanos, para além das tradições e línguas
diversas, requer que na nossa consciência morra a tribo para que nasça a
Nação" (Idem, p. 11). Seria impossível imaginar semelhante operação de
engenharia social e moral sem uma parcela de tortuosidade e violência.
Esse processo de união foi levado a cabo, mais tarde, pelo Estado/Partido
Frelimo que assumiu o papel dirigente e de vanguarda denunciando os
"desvios" doutrinais promovidos pelos "inimigos" da nação.

Uma nova imaginação nacional

A construção da nação moçambicana como uma entidade homogênea só é


compreensível sob a lógica do enfrentamento a uma outra entidade que se
apresentava igualmente homogênea: a nação portuguesa e suas pretendidas
províncias de ultramar. A tão desejada morte da tribo não passava, então, de um
desejo de união, de uma forma de conjurar a herança colonial. Sob essa lógica, a
nação seria, na imaginação de seus porta-vozes, compacta, singular, unificada.
Porém, esse unitarismo reproduzirá, mesmo que com conteúdos inversos, a mesma
gramática assimilacionista e intolerante em face dos particularismos culturais,
veiculada pelo discurso colonial português. Com efeito, tal como afirma Michel
Cahen "a tradição, não só de unidade do Estado, mas de sua unicidade (isto é, de
homogeneidade obrigatória), não provém do 25 de Junho de 1975, mas das
próprias estruturas coloniais" (1999, p. 86). Portanto, os problemas do período do
pós-guerra estariam diretamente vinculados àquelas estruturas. Seguindo esse
percurso e na busca de homologias assimilacionistas entre um período e outro,
Peter Fry arrisca:

Do ponto de vista estrutural, havia pouca diferença entre um estado


capitalista autoritário, governado por um pequeno grupo de portugueses
"esclarecidos" e de "assimilados", e um estado socialista autoritário,
governado por um partido de vanguarda igualmente diminuto e igualmente
esclarecido (2005, p. 67).

Se, no período colonial, os chamados indígenas deveriam abandonar –


conforme as categorizações da administração colonial – os "usos e
costumes" para passar à categoria de assimilados, no período
independente, as "populações" deveriam abandonar o "obscurantismo"
para se integrarem ao Povo moçambicano.

A luta pela unidade constitui um aspecto central na construção da nova


sociedade e da educação do homem novo. O depositário e beneficiário
desse processo seria uma entidade homogênea, o Povo,21 cuja experiência
comum de "exploração" nasceu durante o colonialismo. Nesse processo, a
unidade deve eclipsar e neutralizar toda tentativa particularista, localista e
tribalista. Essa preocupação aparece formulada, também, em Sérgio Vieira,
para quem a unidade surge como um valor:

Eu deixei de desprezar aquele porque é Changana, porque é Maconde,


porque é Ajawa, porque é Nhungué ou porque é Sena... Começa-se a entrar
nesta noção de que do Rovuma ao Maputo somos um só povo. E não há
tribo grande nem pequena. Não há tribo, somos o povo moçambicano
(1978, p. 34).

Samora Machel fala em nome do povo e, ao mesmo tempo, cria-o, compondo, em


seu discurso enérgico e histriônico, uma espécie de alquimia na qual heterogêneo
se transforma em homogêneo. Um só povo, uma só nação, uma só cultura de
Rovuma a Maputo, tal como rezava a recorrente metáfora geográfica da unidade
nacional,22 mil e uma vezes repetida. "Somos nós que temos esse privilégio, de
decidir sobre milhões e milhões de moçambicanos", discursava, em 1977, para uma
imensa platéia de alunos e professores; "o que nós queremos é o que todos
querem. O que nós diremos aqui irá significar a aceitação do povo inteiro do
Rovuma ao Maputo. Neste encontro diremos: não é o que eu quero, não é o que tu
queres, mas sim o que todos nós queremos" (Samora, 1977, p. 3).

Mas o vanguardismo será amortecido por algumas instituições locais de


participação política: os já referidos Grupos Dinamizadores, estabelecidos
basicamente em todos os lugares de emprego formal (fábricas, escolas, hospitais,
ministérios governamentais) e nas áreas residenciais das regiões rurais. Os
membros dos GD não eram, necessariamente, membros da Frelimo, mas eleitos em
reuniões de massa de trabalhadores ou residentes, Contudo os GD acabavam
funcionando como uma corrente de transmissão das determinações do
Estado/Partido à população.

Esses grupos procuravam, supostamente, construir o chamado "Poder Popular".


Para tanto, foi criada uma rede capaz de prover a base organizacional de células do
partido, quando a Frelimo se tornou um "partido de vanguarda", iniciando-se um
processo de educação e formação política que, mais tarde, poderia prover os
recrutas (Kruks, 1987, p. 250). Segundo Egerö (1992),23 o "Poder Popular" teria a
vantagem de ser um termo pouco eurocêntrico. Ao que parece, essa noção surgiu
na mesma época em Cuba e na África. Na luta da Frelimo, diz Egerö, o termo tem
uma conotação bastante difusa:

[...] por um lado, foi usado para denotar democracia, como um objetivo ou
princípio da luta. Por outro, referia-se às formas emergentes de organização
político-administrativa nas zonas libertadas, incluindo métodos (democráticos) de
tomada de decisões e eleição de cargos [...] o Poder Popular permanece como um
conceito orientador geral, designando ao mesmo tempo uma série de instituições
para a participação popular (1992, p. 44).

Contudo, apesar dos anúncios grandiloqüentes e esperançosos sobre a


implementação do "Poder Popular", a experiência não foi bem-sucedida, não
passando, de acordo com Cahen (1987, p. 141), de uma completa ficção
ideológica: o poder "operário" e "camponês" continuou sendo definido somente por
sua representação no Partido único.24

Era preciso, contudo, criar o Povo, atribuindo-lhe uma cultura mais ou menos
compacta. A "cultura" moçambicana teve, pois, que se reinventar por meio de um
processo de reagregação de retalhos regionais, hibridismos e misturas que não
reconhecem, necessariamente, uma herança comum. Em todo caso, supõe-se que
o resultado final desse processo deva ser um novo agregado singular, irredutível
aos componentes da herança portuguesa.

A nação, para poder existir, deveria operar sob uma configuração cultural
sui generis, uma síntese híbrida que representasse todos os
moçambicanos. Em determinadas instâncias, esse processo foi
caracterizado pela tentativa de compor um autêntico collage ou bricolage
cultural. Em uma entrevista, o escritor Raul Honwana25 descreve a forma
singular pela qual essa espécie de operação de engenharia cultural atuava:

Após a independência, tenta-se recriar um novo quadro folclórico, no qual


se incorpora, por exemplo, uma dança tipicamente daqui do sul, mistura-se
com elementos do centro, do norte e, assim, fazem-se várias misturas. Mas
este é um trabalho feito de propósito por pessoas conhecedoras, por
pessoas que foram preparadas como coreógrafos na União Soviética e na
República Democrática Alemã. Então eles faziam todo este arranjo.
Misturavam aquilo que constituía o folclore típico de uma região,
misturavam com o folclore de outra região de modo a constituir aquilo que
queriam que fosse cultura moçambicana.26

A chamada "moçambicanidade cultural" deveria, portanto, ser criada e


recriada em contraposição à herança cultural portuguesa. "Muitos não
sabiam que nós tínhamos cultura", afirma o enérgico Samora Machel, "mas
que a cultura só a tinha o povo português. O que nós tínhamos eram "usos
e costumes gentílicos dos indígenas" (Machel, 1977, p. 9). Os usos e
costumes, às vezes tolerados, quase sempre estigmatizados, constituíram
o dispositivo que mobilizou e justificou a empresa assimilacionista
portuguesa, diante da qual a "cultura" moçambicana, como substantivo
singular, constrói-se e inventa-se numa relação de enfrentamento a esse
elemento luso-centrista. Seja sob a forma de uma cultura portuguesa, seja
sob a forma de uma cultura burguesa, essa entidade homogênea contra a
qual se deveria lutar reproduz, sempre, os valores "decadentes" e
"reacionários".

Não há homem novo sem uma nova cultura: é o que Sérgio Vieira
argumenta, sem ambigüidades, ao operar a noção de cultura como visão
de mundo (cultura num sentido holístico), mais próxima do conceito
antropológico do que da concepção iluminista de cultura. Portanto, Vieira
afasta-se, ainda que timidamente, da idéia de cultura veiculada pela
narrativa de Honwana.

Eu falo de cultura e não de folclore. [...] Por vezes reduz-se a cultura a um


folclore... Mas a cultura ultrapassa tudo isso. A cultura é a dança, mas não
só a dança. A cultura é uma concepção do Mundo, é uma maneira de agir
sobre o Mundo. É também a arte. Mas não só a arte. A cultura é um
conceito total e é um conceito de inovação. É uma tensão para o progresso
(Vieira, 1978, p. 38).

Não é possível conceber uma cultura "nova" sem a existência de uma


cultura anterior à qual se opor; não é possível conceber o homem novo
sem antes saber em que consiste o homem velho, cujos vestígios devem
ser erradicados. O processo é sempre relacional. A "fabricação" da nova
identidade, homogênea, compacta, ocorre mediante o confronto com a
velha identidade. Porém, se no âmbito da teoria o homem novo deve
representar uma ruptura qualitativa com os valores da cultura burguesa,
da cultura colonial e da cultura tradicional, factualmente esse processo
atua sobre os indivíduos de maneira complexa. O homem novo é, em
última instância, um produto, cuja pureza nunca se termina totalmente de
alcançar.

Descarta-se nessa lógica binária e excludente qualquer metáfora religiosa,


segundo a qual o homem novo é o resultado de uma espécie de conversão
individual de consciência. Não há homem novo sem a modificação das
bases "objetivas", "materiais"'; não é possível que ele emirja da simples
modificação das superestruturas mentais ou ideológicas. Há, no entanto,
entre o homem novo pensado e o homem novo "real" um viés que só pode
ser salvo quando este ser genérico, universal se torna concreto.

A apropriação sui generis do marxismo

Por trás da noção de homem novo existe uma concepção da natureza


humana e da sociedade que se funda, indubitavelmente, em alguns
princípios elementares27 que Marx e Engels estabeleceram a partir da
segunda metade do século XIX, os quais, na apropriação dos porta-vozes
de Frelimo, assumem a forma de uma autêntica vulgata revolucionária. No
entanto, importa ressaltar que quando Samora Machel era interpelado
acerca da apropriação desses princípios, bem como sobre sua adequada
aplicação à sociedade moçambicana, sua resposta era dirigida no sentido
de sublinhar que a teoria, no caso da Frelimo, surgira da experiência
colonial e da própria "prática revolucionária".
Nascimento (1980) reproduz uma entrevista a Samora Machel realizada
por Iain Christie28 e Allen Isaacman29 em 1979, na qual lhe foi perguntado
sobre como divulgar o marxismo e construir o socialismo numa sociedade
formada por uma imensa maioria de analfabetos. A resposta de Samora
Machel:

Esta questão reflete uma concepção errada do marxismo. Ela sugere que o
marxismo é como uma bíblia. "Como eles podem aprender o catecismo se
eles não sabem ler" [...]. Quem faz o marxismo? O cientista fechado com
os seus livros? Uma ciência pertence ao seu criador. Quem é o criador do
marxismo-leninismo? [...]. Seu criador é o povo na sua luta secular contra
os diferentes sistemas de exploração... A guerra popular de libertação,
nossa ciência militar [...] foi elaborada e desenvolvida pelo nosso povo
analfabeto. O marxismo-leninismo não fez sua aparição em nossa pátria
como produto importado ou resultado da simples leitura dos clássicos.
Nosso partido não é um grupo de estudo composto de cientistas
especializados na leitura e interpretação de Marx, Engels e Lênin (apud
Nascimento, 1980, p. 25).

Para muitos intelectuais estrangeiros fascinados com a possibilidade da


construção do socialismo em um remoto país da África, essa resposta não
fazia mais que alimentar um imaginário, cujo contexto era, sem dúvida,
mais global. A possibilidade de um "marxismo caseiro", para utilizar um
adjetivo cunhado pelo próprio Iain Christie, questionava, até certo ponto,
certezas e idéias preconcebidas dos que haviam aprendido um marxismo
de gabinete na Europa ou nos Estados Unidos.

Uma resposta semelhante à anterior foi a que recebeu o sociólogo suíço


Jean Ziegler, no início da década de 1980. Ziegler visitou Moçambique
como simpatizante da Frelimo e seu objetivo, entre outros, era identificar a
origem das raízes "marxistas" do Partido. Christie, em sua biografia sobre
Samora Machel, reproduz o diálogo entre Ziegler e o presidente da Frelimo.
"Quando foi a primeira vez que leu Marx?" foi a pergunta do sociólogo:

"Bem", disse o Presidente, "quando era jovem costumava ajudar o meu


pai, que era camponês". E continuou descrevendo como os camponeses
africanos recebiam preços muito mais baixos pelos seus produtos que os
colonos portugueses, e falou das várias facetas da exploração que
testemunhou em criança. Ziegler, começando a ficar impaciente, disse:
"Sim, senhor Presidente, mas quando leu Marx pela primeira vez?" "Bem",
disse Samora, "mas tarde na vida juntei-me à Frelimo e tomei parte na luta
armada". E continuou falando dos conflitos políticos dentro do movimento,
como a história de Ncavandame e dos novos exploradores. Não querendo
ser metido no bolso com esta evasiva bem clara, o sociólogo insistiu: "Sim,
sim, mas ainda não me disse quando foi a primeira vez que leu Marx" "Ah,
isso", disse Samora. "Durante a luta de libertação alguém me deu um livro
de Marx. À medida que o lia, apercebi-me que estava a ler Marx pela
segunda vez (Christie, 1996, p. 188).

Na base desta concepção, encontra-se a idéia de práxis. A teoria, neste


caso, nasce da prática, da "prática revolucionária" fundada na "luta de
classes" e na própria experiência de luta. Essa problemática foi evocada à
exaustão: o homem não é somente um produto, ele também produz sua
própria história em condições determinadas. Assim, o determinismo
convive, de forma complexa, com o voluntarismo político, cujo fundamento
é a própria experiência revolucionária: aquela experiência, segundo a qual,
Samora Machel, ao ler Marx, estava-o fazendo "pela segunda vez".

O processo de construção do homem novo seria, sem dúvida, tortuoso e


complexo. A escola cumpriria, portanto, o papel de ser, nas palavras de
Samora Machel, um "centro de combate e de produção da nova
mentalidade, do homem novo" (1981, p. 38), o que também implicaria a
necessidade de instaurar uma "luta ideológica" contra os desvios e as
corrupções, provenientes do "homem velho". O corolário desta luta foi a
teoria do inimigo interno.

A teoria do "inimigo interno"

As versões sobre uma conspiração que ameaçaria as "realizações revolucionárias"


tornaram-se mais evidentes por volta de 1977. Segundo Samora Machel, é nesse
ano que ocorre uma "ofensiva reacionária nas escolas". Na ocasião, a Frelimo já se
autoproclamava um Partido marxista-leninista, denominação cunhada, sobretudo, a
partir do III Congresso. Entretanto, encontrava-se nas escolas, segundo Samora
Machel, uma grande dificuldade para implantar as diretrizes do Partido.

Em fevereiro de 1978, Machel pronunciou um candente e enérgico discurso contra


aqueles que dificultavam o processo de construção do homem novo nas escolas.
Contra quem ele dirigia este discurso? Os adjetivos para se referir a esses
"inimigos" eram recorrentes: "reacionários", "infiltrados", "agentes
desestabilizadores", "lacaios do inimigo" e assim sucessivamente. "O inimigo",
dizia, "lançou-se abertamente nas escolas para ocupar posições favoráveis, para
injetar o seu veneno" (1978a, p. 6).

Havia, portanto, um conjunto de atitudes que era preciso desterrar: a indisciplina, o


racismo, o elitismo, o regionalismo, o chauvinismo. Aqueles denominados
"veteranos" encarnavam nas escolas essas atitudes. "É preciso terminar com o
veteranismo. É preciso terminar com a atitude dos alunos mais velhos, que se
recusam a enquadrar nas escolas", afirmava, e em tom de ameaça, continuava:
"Eles constituem o foco de indisciplina, o modelo de indisciplina. Se nós quisermos
descrever o que é a indisciplina, o liberalismo e libertinagem, apresentaríamos
esses alunos. Encontramos neles o foco" (Idem, p. 19). "E por que é que ficaram
velhos sem freqüentar a escola?", indagava e interpelava. "Por que é que ficaram
velhos e não tiraram o sétimo ano no tempo colonial?". Nesse discurso, proferido
no Pavilhão do Clube Sporting em Maputo, a platéia se manteve em silêncio. Era o
habitual "estilo samoriano" de interpelar seus ouvintes e, a seguir, arremeter com a
resposta: "Sabem responder esses velhos que estão aí? Viviam onde? Nem
conheciam a porta do Liceu Salazar, nem o machimbombo30 que transportava os
alunos para a Escola Comercial. Nós trouxemos-os aqui, para o estudo, e agora
trazem o barulho". Essa moral revolucionária não admite meias palavras. Quando
Samora Machel falava, falava também o Estado/Partido. É uma moral excludente, a
lógica binária do eles ou nós. "Vamos tomar medidas breves em relação a esses
velhos", e afirmava contundentemente e sem ambigüidades:

Serão expulsos e enviados para o campo de reeducação.31 São esses alunos velhos
que tentam isolar os alunos mais novos que revelam consciência e responsabilidade
na sua tarefa de estudar. Esses alunos velhos reprovam sistematicamente,
fomentam os vícios e a corrupção na escola, mantêm como tipo de relação aluno-
aluna a falta de respeito para com a mulher, falta de respeito pela colega da escola.
Espírito de veterano, veterano de reprovações... Expulsaremos esses. São maus.
Devem ir para a atividade produtiva de outro tipo. Mas não é só expulsar. Primeiro
é preciso punir. Temos o poder, o nosso poder é para criar o homem novo, a nova
mentalidade, novo tipo de relações, de respeito e admiração pelos nossos
professores, porque eles são os nossos responsáveis (Idem, p. 20).

Esse era, pois, o grupo que supostamente veiculava a mentalidade do "inimigo",32


sendo preciso então "reeducá-lo", extirpar os vestígios coloniais de sua cabeça.
Samora Machel não economizava metáforas cirúrgicas. "Vestígios!", gritava em um
famoso discurso de 1977, dirigido aos trabalhadores da educação. "Vestígios!",
voltava a repetir. "A cabeça tornou-se base do inimigo", e arrematando: "É preciso
o cirurgião abri-la e fazer uma raspagem para tirar os quistos que estão lá
incrustados. Vestígios!" (Machel, 1977, p. 14).

Com o objetivo de impor uma autêntica campanha pedagógica e


moralizadora, a propaganda da Frelimo chegou a idealizar e a popularizar
um desenho, cuja personagem, Xiconhoca, era o portador de todos os
predicados que definiam o "inimigo". Xiconhoca representava o paradigma
do indivíduo preguiçoso, individualista, bêbado, corrupto e explorador,
situando-se, portanto, nas antípodas do homem novo.

Com o tempo, aquele entusiasmo revolucionário foi amortecendo. Mais


recentemente, ao consultarmos, por exemplo, um documento, publicado
pelo Ministério da Educação em 1991, constatamos que o Sistema Nacional
da Educação tem por finalidade não formar o homem novo, mas,
simplesmente, "Contribuir para a formação do Homem moçambicano, com
consciência patriótica, cientificamente qualificado, profissional,
tecnicamente capacitado e culturalmente liberto" (MINED, 1991, p. 3).

O desencanto pós-colonial

A idéia de "pós-colonialidade", pensada apenas em termos diacrônicos,


como se o sufixo "pós" estivesse autorizando somente uma sucessão
temporal entre o "colonial" e o "pós-colonial", constitui-se numa
armadilha freqüente. Contudo, numa perspectiva sincrônica e analítica, as
discussões sobre a questão pós-colonial remetem mais ao contexto de um
pessimismo teórico ou político (associado, também, a alguns debates "pós-
modernos") do que ao período imediatamente posterior às independência.
Segundo David Scott, uma das raízes do problema do pós-colonialismo
reside no desencanto produzido pela queda do "socialismo" e pelo triunfo
das "relações de mercado" (Scott, apud Robotham, 1997, p. 393). Em
Moçambique, o desencanto pós-colonial tem seu próprio itinerário.

Passados mais de trinta anos do momento em que a idéia de "homem


novo" começou a ser construída nos discursos de Samora Machel e de
outros notáveis membros da Frelimo, é possível agora enxergar os fatos a
partir de uma perspectiva distinta e de forma menos apaixonada. O
analista contemporâneo encontra-se, sem dúvida, em vantagem após
aqueles anos de efervescência revolucionária. Naquele tempo, as palavras
de ordem pareciam criar imediatamente uma realidade sobre a qual não
era possível duvidar.33 O entusiasmo para criar a nova sociedade
neutralizava qualquer dúvida quanto à viabilidade daquele otimismo
revolucionário. Hoje, o termo homem novo soa um tanto antiquado, não
tanto pelas visões de messianismo salvacionista ou pelos ex-abruptos
moralistas que evoca, mas sim porque a sociedade moçambicana foi se
complexificando à medida que aquela fraseologia se tranformava,
progressivamente, em uma cópia desgastada de si mesma.

Muitos intelectuais e militantes não-moçambicanos entusiasmaram-se com


as mudanças que estariam sendo geradas em Moçambique. Militantes das
mais diversas origens – Suécia, Canadá, Estados Unidos, Itália –
igualmente se emocionavam ao ver um líder africano como Samora Machel
falando com uma ênfase inusitada sobre a construção do homem novo.
Alguns cooperantes italianos, no campo da educação, procuraram,
inclusive, analisar aquele processo introduzindo categorias derivadas do
pensamento de Antonio Gramsci.34 Todos eles cumpriram, em seus
respectivos países, um significativo papel de divulgação da "experiência"
moçambicana.

Diante dessa espécie de Babel cultural e lingüística, compartilhada por exilados


latino-americanos, cooperantes e intelectuais europeus, era possível, no entanto,
uma linguagem comum, uma mesma gramática constituída pela esperança de
construir o socialismo naquele recanto da África.

No início dos anos de 1980, Moçambique encontrava-se numa guerra civil que
parecia interminável. Foi quando Samora Machel lançou sua primeira ofensiva
política e organizacional para derrotar, definitivamente, o "inimigo interno" e acabar
com a corrupção nos locais de trabalho. Em 15 de março de 1983 a Lei 2/79 foi
ampliada, passando a prever a pena capital contra quem atentasse contra a
segurança do povo e do Estado; em 9 de abril realizou-se, no bairro da Liberdade,
em Maputo, um comício de apoio à lei da chicotada, enquanto, em outro bairro,
foram fuzilados publicamente seis indivíduos condenados pelo Tribunal Popular
Revolucionário (Serra, 1997, p. 113). Nesse mesmo ano, começou a vigorar a
chamada operação produção,35 formalmente destinada a evacuar os "improdutivos"
das cidades, enviados, aos milhares, para o norte do país.36 No plano internacional,
tal iniciativa de neutralização do inimigo interno e externo se consumou com a
assinatura do Acordo de Incomati, em março de 1984. Formalmente, Moçambique e
África do Sul passariam a assumir, a partir desse acordo, uma política de não-
agressão e de boa vizinhança, o que significou para muitos moçambicanos
simpatizantes da Frelimo um gesto de "traição", no qual o país se curvava aos
desígnios de uma África do Sul ainda dominada pelo apartheid.37 De fato, a África
do Sul acabou não cumprindo os termos "pacificadores" do acordo e continuou,
portanto, prestando ajuda militar à Renamo.

Poucos meses antes da morte de Samora Machel, Moçambique inicia as


negociações com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial do
qual recebe, no início de 1985, um empréstimo de 45 milhões de dólares
(Cahen, 1987, p. 132). No V Congresso de julho de 1989 (ou seja, alguns
meses antes da queda do Muro de Berlim) a Frelimo abandona o
"marxismo". Já a partir da década de 1990, o país experimenta algumas
transformações fundamentais: fim da guerra civil, implantação da
democracia multipartidária e reformas no campo socioeconômico.
Entretanto, e diante das incertezas do presente, a imagem de Machel era
evocada como uma garantia de segurança. Mas isso assumia muitas vezes
a forma de uma narração mítica, que sublinhava sua sagacidade, sua
capacidade de eloqüência, sua coragem para superar as dificuldades e
enfrentar o inimigo externo ou interno e, claro, sua força retórica.

Considerações finais: narrativas da unidade

Não posso elidir da memória os comícios na Praça da


Independência. Então, a multidão formava o cinto à volta do Velho –
como chamavam, por respeito e afecto, ao Presidente Samora Machel.
De todas as lições, o seu daltonismo marcou-me para sempre. Talvez
a realidade nos tenha enganado. E devolvido, na sua crueldade, a
lembrança de que os homens, afinal, têm raças. Quero acreditar que
ele tinha razão: não havia brancos nem pretos, não havia mulatos nem
amarelos, e sim moçambicanos.

Nélson Saúte, "Bandeiras de papel em mastros de


caniço", Público Magazine, 277, p. 34, 25/6/95, Lisboa.

Ao longo dos diferentes momentos da minha estadia em Moçambique – entre 1996


e 2003 – ouvi inúmeros e diversos relatos sobre Samora Machel. Buscando, talvez,
uma inspiração levistraussiana, seria útil tomar alguns deles como um conjunto
narrativo único que envolve diferentes versões – ou seja, o mito como o conjunto
das suas transformações, o qual, por sua vez, atua, para além dos conteúdos
substanciais das suas "histórias", como o operador lógico de um tema recorrente: a
unidade da nação. Não se trata aqui de averiguar o caráter supostamente autêntico
ou falso dessa ou daquela narrativa sobre Samora, senão de indagar sobre como
uma determinada imaginação nacional é atualizada e reatualizada, sem solução de
continuidade, à medida que essas narrativas – "lembranças/esquecimentos" – são
contadas e recontadas uma e outra vez. Talvez, um dos conjuntos mais reveladores
– que ilustra, ao mesmo tempo, a natureza complexa da relação Samora e o "povo"
– seja o que coletei no Norte do país, num trabalho de campo cujo objetivo era
analisar a relação entre o Estado (e seus porta-vozes) e as comunidades
muçulmanas da província de Nampula e da Ilha de Moçambique.

Foi por volta de 1975 que Samora Machel, recém-presidente, viajou ao Norte do
país em sua primeira visita oficial. Na Ilha de Moçambique, Samora fez questão de
se dirigir aos muçulmanos e ingressar na mesquita central. Esse ato ficou marcado
na "memória" de muitos muçulmanos, produzindo uma espécie de incidente-
metáfora que, no futuro, alimentaria um conjunto de narrativas sobre a relação de
Samora com os muçulmanos do Norte.

Samora teria, supostamente, desrespeitado uma regra sagrada para os


muçulmanos ao adentrar na mesquita central da Ilha de Moçambique: ele não teria
tirado os sapatos antes de ingressar no recinto principal. Contudo, nas várias
entrevistas que realizei com diversos muçulmanos, as versões sobre o incidente
foram diversas e contraditórias. Algumas pessoas inclusive pareciam não se sentir
completamente à vontade para comentar do assunto. A ausência de uma versão
clara e convincente sobre o episódio mostra as tensões entre Samora Machel –
porta-voz da jovem nação moçambicana – e as comunidades muçulmanas. Nesse
sentido, a suposta atitude de Samora constitui um pretexto para pensar tanto os
processos de construção de equívocos como de compatibilidades, e também para
pensar as dinâmicas de atribuição de significados – polissêmicos – em relação à sua
figura.
Todos os relatos sobre o episódio na mesquita podem ser classificados dentro de
três ordens. A primeira é a do escândalo e indignação. Os muçulmanos de maioria
macua, seguidores de alguns dos braços das Confrarias do Norte do país, não
tiveram dúvida em se mostrar inconformados com semelhante atitude de desapreço
por parte do primeiro presidente do país. A segunda, à qual poderíamos chamar de
diplomática, reconhece a gravidade da falta, mas busca amenizar o incidente ao
postular que nenhum dos assessores de Samora Machel lhe avisou acerca dos
procedimentos de etiqueta para o ingresso na mesquita. Esta reação busca absolver
Samora de qualquer culpa, depositando todo o peso da responsabilidade na falta
cometida por seus assessores e acompanhantes imediatos. A terceira foi
simplesmente a da negação: o imediato não reconhecimento do incidente,
classificando-o como calúnia.

Também há outro conjunto de narrativas que ilustra a relação de Samora Machel


com os muçulmanos, mas num momento histórico posterior. Trata-se da famosa
reunião realizada em dezembro de 1982 entre a direção do partido Frelimo e do
Estado moçambicano e os representantes das principais confissões religiosas
existentes no país. Desta vez, não se trata de uma suspeita, rumor ou
desconfiança. Ao contrário, é um momento no qual o Estado-nacional, após anos de
implantação de uma política anti-religiosa, resultado do ideário "marxista-leninista",
procura construir uma relação de cumplicidade com as diversas comunidades
religiosas em nome do "amor à pátria" e da unidade nacional.

Era o momento da já mencionada Ofensiva Política Organizacional, iniciada em


1980, que provocou debates profundos no partido Frelimo acerca dos rumos futuros
do país. Contra o que Samora chamava de "inimigo interno" haveria que se impor
uma profunda moralização no seio do governo e, sobretudo, um forte controle no
âmbito das administrações provinciais. Uma das palavras de ordem recorrentes era
"organização" e foi precisamente isto que Samora Machel reclamou aos principais
representantes das comunidades religiosas do país. Com igual veemência, clamava
pela necessidade de fortalecer a unidade nacional entre todos os moçambicanos:
"Moçambicanos de todas as crenças [...] esta Nação é patrimônio comum [...]. A
Nação identifica-se pelos seus símbolos. Perante a história, perante a cultura,
perante a Nação não há católicos, não há muçulmanos, não há protestantes, não há
ateus – há moçambicanos patriotas ou antipatriotas" (1983, p. 20).

Daquele encontro participaram, entre outros líderes muçulmanos, o fundador do


Conselho Islâmico de Moçambique, Abubacar Ismail Manshirá,38 conhecido como
Maulana Abubacar. No seu discurso diante o presidente de Moçambique, Maulana
Abubacar esboçou, de início, uma descrição dos motivos que, até aquele momento,
dificultaram uma organização representativa dos muçulmanos "perante o governo,
ou perante as organizações religiosas internacionais" (1983, p. 25). Logo em
seguida, atribuiu tais dificuldades ao período colonial, que tolerou as confrarias
muçulmanas – símbolos, na visão de Maulana Abubacar, de um Islã atrasado –,
mas dificultou a criação de uma organização que comportasse todos os
muçulmanos de Moçambique. Na segunda parte do seu discurso, Maulana utiliza-se
de uma inconfundível linguagem samoriana num esforço nítido de ganhar a
simpatia de Samora ou, pelo menos, sua aprovação. A religião muçulmana, diz
Maulana "sempre recita uma citação do profeta Mohamed, que diz: 'Amar a Pátria
faz parte da crença'" (Idem, p. 26).

A partir daquele momento abriram-se as portas para a existência de uma


compatibilidade moral sob a qual seria possível detectar os componentes
inequívocos do homem novo, mil e uma vezes esboçado pelo discurso de Samora
Nós, muçulmanos, pregamos sempre estas palavras nos nossos sermões nas
mesquitas. Mas como amar a Pátria? Só fazer propaganda? Não. É preciso
trabalhar, desenvolver a Pátria e para isso é necessário construir escolas, hospitais,
estradas, poços, seminários, orfanatos, etc., e defender a Pátria contra os inimigos,
os bandidos, os ladrões, e lutar contra a prostituição (Idem, p. 26).

Maulana Abubacar, sem dúvida, sabia como agradar Samora. A última parte do
discurso, porém, compõe-se de reclamações e reivindicações dirigidas ao governo
que, em traços gerais, apontam para o favorecimento do ensino do Islã e a
capacitação educacional de jovens muçulmanos nascidos em Moçambique em
países como Líbia, Iraque, Arábia Saudita e Egito.

No Norte de Moçambique – na província de Nampula – tive a oportunidade de


coletar um relato instigante acerca desse discurso de Maulana Abubacar. Não
contradizia o conteúdo substancial do discurso publicado pelos próprios órgãos de
Frelimo, mas acrescentava uma suposta reação de admiração que Samora Machel
tivera após ouvir o dirigente muçulmano. O relato me foi contado pelo então
subdelegado provincial do Conselho Islâmico em Nampula:

Ele [Samora] gostou bastante da apresentação de Maulana Abubacar. Naquele


encontro Maulana fez uma intervenção acerca da ideologia do Islã incorporando os
temas que a Frelimo, nessa altura, tinha por lema: Unidade, Trabalho e Vigilância.
Frelimo insistia com essas três consignas para que o povo estivesse organizado.
Então, Maulana Abubacar retomou esses temas e apresentou-os, usando o Alcorão
e os Hadiths. Samora gostou bastante e achou que havia uma certa afinidade entre
a política oficial e a filosofia islâmica. Então, a partir dessa data ele [Samora]
simpatizou muito com o Conselho Islâmico de Moçambique e houve maior abertura
do governo para que o Conselho pudesse expandir em nível de todo o país.39

No contexto de um país multilingüe, plurireligioso e pluriétnico, essas lembranças –


e narrativas de "unidade" – possuem uma força particular. Benedict Anderson
(2005) ressaltou que para a nação existir como comunidade imaginada, é preciso
que a recordação real seja substituída por uma recordação mítica. Em outras
palavras, o surgimento de uma nova consciência nacional exige também uma nova
forma de amnésia. A guerra entre Frelimo e Renamo, as violentas medidas
"revolucionárias", como a implantação da Operação Produção e a construção de
prisões, eufemisticamente denominadas Centros de Reeducação, entram nessa
lógica de recordação/esquecimento. Sob tal premissa da imaginação nacional, a
guerra ocorrera, no final das contas, entre "irmãos" que se consideravam inimigos
– e não entre "proto-nações". Essa perpétua invocação – e evocação – da figura de
Samora Machel contribui para criar e recriar a ilusão da confraternidade e a
renovação indefinida do mito tranqüilizador do fratricídio.

Nos anos de 1990, Moçambique consolida sua política econômica sob os auspícios
do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (Bowen, 1992; Simpson,
1993). As "novas gerações" do Sul do país – funcionários, intelectuais,
empresários, comerciantes – não parecem se incomodar com este novo rumo.
Entretanto – e seguindo as palavras de Iraê Lundin (1995, p. 440) – o partido
Frelimo resta polarizado entre os "velhos" políticos da Assembléia da República e os
"novos" tecnocratas do governo. Apesar das idas e vindas da política local, a figura
de Samora Machel continua a ser reinventada pelos porta-vozes da nação, por meio
dos grandes rituais nacionais, das celebrações de culto aos mártires da pátria e,
sobretudo, dos murmúrios que ecoam na cidade baixa (o centro de Maputo): "na
época de Samora não havia corruptos, como hoje"; "se Samora vivesse não haveria
tanta delinqüência em Moçambique"; "Samora sempre dizia 'cabrito come onde
está amarrado', pois bem, temos que terminar com o cabritismo na política" (ou
seja, com a corrupção). Eis algumas das frases que ouvi em 1996. O espectro do
"camarada Samora" parecia, assim, estar mais vivo do que nunca. Sem dúvida,
essas narrativas contribuem para nos fazer recordar que, apesar de tudo e uma vez
mais, "de Rovuma a Maputo" há um só povo, uma nação, "todos moçambicanos".
Entretanto, a comunidade imaginada continuará a exigir a sobreposição dessas
lembranças – e ilusões de unidade – com outros esquecimentos, pois essa é a
condição de existência que toda nação – de forma inconsciente, diria Benedict
Anderson – reclama para si. Por fim, e voltando à epígrafe inicial, essa condição
imaginativa está singularmente condensada nas próprias palavras, talvez um tanto
melancólicas, do escritor moçambicano Nélson Saúte: "Quero acreditar que ele
[Samora] tinha razão". Tal evocação veicula, mais uma vez, a constatação de que
"vontade" e "crença" são, também, elementos constitutivos e intrínsecos da
imaginação nacional.

Notas

1 Eduardo Mondlane nasceu em 1920. Estudou com missionários suíços no sul de


Moçambique. Em 1949, conseguiu, com ajuda do Conselho Cristão de Moçambique,
matricular-se na Universidade de Witswatersrand, na África do Sul, sendo expulso
pelo regime do apartheid alguns meses depois. Em 1950, permaneceu por um
breve período na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa. Em 1951, partiu para
os Estados Unidos, onde concluiu o doutorado em 1957. Após trabalhar como
professor universitário e como consultor das Nações Unidas sobre assuntos
africanos, decidiu, com o apoio de Julius Nyerere, formar em 1962 a Frelimo. Para
mais detalhes sobre a biografia de Eduardo Mondlane, ver os trabalhos de Teresa
Cruz e Silva (1992, 1999, 2001).

2 As aspas são utilizadas no sentido de relativizar esta autocategorização


processada no interior da própria Frelimo pelos seus porta-vozes. Do ponto de vista
de uma análise externa, o assunto requereria uma longa reflexão acerca do tipo de
apropriação prática e teórica que, de fato, fez a Frelimo desses princípios. Sobre o
assunto, ver, entre outros, Darch e Hedges (1998); o estudo pioneiro de Thomas H.
Henriksen (1978). Entre os trabalhos mais recentes, ver Simpson (1993); Kruks
(1987); também a reveladora entrevista de Joe Slovo com Marcelino dos Santos:
"Frelimo faces the future" (1973). Por último – e principalmente – ver o capítulo
"Marxisme et mozambique" em Cahen (1987) e a tese de doutorado – ainda inédita
– de Brito (1991).

3 Na ocasião, uma Comissão da Procuradoria Geral de República foi criada para


apurar os fatos. Em 1996, o jornal Renascer de Maputo publicou uma polêmica
entrevista com Humberto Casadei, um grande admirador de Samora Machel, cujo
principal argumento, a partir de um inquérito "pessoal", veicula a idéia de que o
"acidente" não poderia ter sido provocado sem o envolvimento interno, ou seja,
sem a participação de "mãos moçambicanas" ("Quem matou Samora Machel?",
Renascer, Maputo, out. 1996).

4 Mesmo que a divisão jurídica "indígenas" e "não indígenas" tenha começado a se


cristalizar já no Código de Trabalho de 1899, foi em 1928 que o código do
Indigenato adquiriu uma sistematização definitiva, sendo abolido apenas em 1961.

5 Ver, sobretudo, Serra (1997, pp. 39-44).


6 Um exemplo desta historiografia "consagrada" são os manuais História de
Moçambique, elaborados e editados pelo Departamento de História da Universidade
Eduardo Mondlane.

7 A esse respeito, ver também Depelchin (1983), Schneidman (1978) e Azzina


(1985).

8 Aquino de Bragança foi jornalista, militante histórico da Frelimo e conselheiro


particular de Samora Machel. Faleceu, junto com o presidente de Moçambique, no
referido "acidente".

9 Não é meu objetivo neste artigo analisar pormenorizadamente as diversas fases


pelas quais atravessou o pensamento político de Eduardo Mondlane. Em relação ao
dilema entre a obtenção de uma independência negociada e uma independência
obtida através da luta armada, podemos evocar as palavras de Sansão Mutemba:
"Eduardo Mondlane... era uma pessoa contra a guerra e, portanto, contra todas as
violências. Mesmo quando ele se conscientizou que o futuro de Moçambique teria
de ser a independência, a idéia de alcançá-la apenas através de conversações com
o Governo Português dominou-o durante anos seguidos. Só quando a luta armada
surgiu como a única alternativa possível, só quando todas as outras possibilidades
se frustraram é que ele aderiu e se engajou decididamente nessa via com o seu
povo" (entrevista com Sansão Mutemba: "Mondlane, o homem e a revolução", com
textos de Mota Lopes, Tempo, Maputo, 227, p. 7, 1975).

10 Lázaro Ncavandame era um comerciante maconde que tivera relativo sucesso


com a organização da sua cooperativa – a Sociedade Africana Algodoeira Voluntária
de Moçambique. Apesar das desconfianças de algumas lideranças da Frelimo em
Dar-es-Salam, foi convidado, no final de 1962, para ocupar o lugar de regional
"chairman" na província de Cabo Delgado. O ápice de seus conflitos com a Frelimo
data de 1968, momento no qual Ncavandame cogita a possibilidade de uma
independência somente para Cabo Delgado, província do norte do país. Acusado de
oportunismo e traição, Ncavandame é expulso da organização.

11 Assim eram denominadas, durante a luta armada, as áreas que a Frelimo


conseguia controlar e tornar "livres" da presença colonial portuguesa. Entre 1967 e
1969, já se encontrava "liberada" a faixa norte do país, na zona limite com a
Tanzânia. Esse processo foi se estendendo a partir do norte até chegar à província
de Tete, entre 1970 e 1972.

12 O lobolo é uma instituição amplamente difundida nas sociedades – patrilineares


– bantus e consiste numa compensação nupcial que a família do noivo oferece à
família da noiva no momento do casamento.

13 A bibliografia, sobre esse tema aumentou consideravelmente nos últimos anos.


Entre as reflexões realizadas pelos próprios moçambicanos, ressaltamos o artigo de
Brito (1988). Sobre o processo de gestação das idéias "protonacionalistas" e o
surgimento de uma consciência política no sul de Moçambique, ver o livro de Teresa
Cruz e Silva (2001). Entre os trabalhos recentes, ver o artigo de Cahen (2005).

14 Um dos trabalhos mais instigantes sobre essa guerra foi realizado pelo
antropólogo Geffray (1990). Nesse livro, Geffray pretende demonstrar que, para
além dos apoios externos à Renamo, havia, no norte de Moçambique, um
descontentamento real das populações rurais em relação à Frelimo, que teria sido
capitalizado pela estratégia desestabilizadora da Renamo. Para uma crítica ao livro
de Geffray, ver o artigo de O'Laughlin (1992). Um artigo mais recente sobre esse
marcante livro foi escrito por Florêncio (2002).
15 Para aprofundar esta questão, ver o artigo de Hall (1990). Michel Cahen (2004)
retrata os bastidores da campanha eleitoral da Renamo nas primeiras eleições
democráticas multipartidárias de Moçambique, em 1994.

16 Sobre o desenvolvimento do processo de pacificação e posterior implantação de


um sistema democrático multipartidário, consultar o livro Moçambique. eleições,
democracia e desenvolvimento, editado por Brazão Mazula, 1995, Maputo.

17 Ver a entrada correspondente a "new man" em Roger Scruton, A dictionary of


political thought, Macmillan Press, Londres, 1982, p. 322.

18 Sérgio Vieira ingressou na Frelimo quando ainda era estudante universitário na


Europa. Mais tarde, foi ministro de Segurança e diretor do Banco Central do
governo Samora Machel. Nos anos de 1990, foi diretor do Centro de Estudos
Africanos da Universidade Eduardo Mondlane e deputado pela Frelimo.

19 Esse discurso foi publicado em 1973 pelo Departamento de Informação e


Propaganda da Frelimo no segundo Caderno da coleção "Estudos e Orientações".
Foi republicado em 1978 pelo Departamento do Trabalho Ideológico da Frelimo. De
acordo com o prefácio da segunda edição: "O estudo 'Educar o homem para vencer
a guerra, criar uma sociedade nova e desenvolver a pátria' ocupa um lugar de
particular importância [...]. Ele foi efetuado pelo Presidente Samora Machel com o
objetivo de definir a natureza da Educação e da Cultura revolucionárias e suas
características de ruptura com os sistemas de Educação das sociedades tradicional-
feudal e colonialista" (1978, p. 3).

20 Alhures, analisei a complexa construção jurídica de "assimilado" em


contraposição à noção de "indígena" (Macagno, 2001).

21 Tal como anuncia Verena Stolcke (2000), dos três elementos constitutivos do
Estado moderno (um território, um governo, um povo), circunscrever o "povo"
demonstrou ser a questão mais problemática. O mesmo processo foi
detalhadamente abordado por Etienne Balibar (1991) nos termos, por ele
denominados, "produção do povo".

22 Luis C. de Brito (1991), em sua tese de doutorado, aplica uma distinção entre o
termo "nacionalismo", concernente ao que politicamente já é nacional, e a
expressão – por ele cunhada – "nacionismo", que, no caso de Moçambique, traduz
social e culturalmente um "nacionalismo do Estado", ou seja, o desejo de uma elite
minoritária de proceder à rápida "fabricação da nação". Nesse sentido, segundo
Cahen (1995, pp. 87-88), um dos motivos pelos quais essa elite minoritária foi
capturada por um certo marxismo corresponde à sua "necessidade de criar um
Estado forte, lugar da sua reprodução social, meio da criação rápida de uma nação
moderna de tipo européia e jacobina, negadora da etnicidade", de modo que esse
certo marxismo, "na sua versão staliniana, era operante para exprimir esse
nacionalismo".

23 Bertil Egerö é uma cientista social de origem sueca, cujos primeiros contatos
com a Frelimo datam da década de 1960. Colaborou como "cooperante" com o
governo moçambicano entre 1978 e 1980, na Comissão Nacional de Plano. Sua
tarefa inicial consistia em participar dos preparativos para o primeiro
recenseamento da população em Moçambique independente, marcado para 1980,
fato que lhe permitiu percorrer várias regiões do país.

24 Segundo Cahen, "O 'poder popular' é tão somente uma ficção ideológica e nunca
foi definido de outro modo que por sua representação pelo partido. Com a exceção
significativa de associações patronais e de pequenos produtores, nenhuma
organização era independente do partido. Elas possuíam todos os seus dirigentes
nomeados por ele e tinham como única tarefa transmitir sua linha neste ou naquele
setor da população" (1987, pp. 73-74). Para um aprofundamento desta crítica, ver
também Cahen (1985).

25 Raul Honwana Jr. é escritor e professor. Filho de Raul Bernardo Honwana e


membro de uma família de várias personalidades que se destacaram na vida
pública moçambicana. Aos 5 anos de idade, perdeu a visão em conseqüência de
uma meningite. Aprendeu os primeiros rudimentos de Braile aos 13 anos e acabou
por se formar em Filosofia na Universidade Clássica de Lisboa.

26 Entrevista pessoal a Raul Honwana, Maputo, out. 1996.

27 No caso dos discursos de Frelimo, esses princípios podem ser rastreados em


alguns textos básicos, tais como A ideologia Alemã, A origem da família, a
propriedade privada e o Estado e, sobretudo, o prefácio de Contribuição à crítica da
economia política.

28 Iain Christie nasceu em 1943, em Edimburgo, Escócia. Trabalhou para jornais


britânicos de 1958 a 1970, quando foi viver na Tanzânia, onde trabalhou como
jornalista até 1975. Passou a viver em Moçambique a partir de 1975; trabalhou na
agência de informação nacional, atuando, depois, na Rádio de Moçambique como
chefe do serviço externo. Tornou-se cidadão moçambicano em 1996.

29 Historiador norte-americano e conhecido "moçambicólogo". Allen Isaacman


escreveu, junto com Barbara Isaacman, The tradition of resistente in Mozambi que:
anti-colonial activity in the Zambesi Valley, 1850-1921 e Mozambique: from
colonialism to revolution, 1900-1982. Também realizou valiosa entrevista com Raúl
Bernardo Honwana – pai de Raul Honwana – publicada em português sob o título:
Raúl Bernardo Honwana: memórias.

30 Termo cotidiano usado em Moçambique para se referir aos ônibus.

31 A história e a sociologia daquilo que a Frelimo eufemisticamente denominava


"campos de reeducação" era, ainda, uma tarefa a ser realizada.

32 Omar Ribeiro Thomaz (2004) analisou, com novas contribuições etnográficas, a


construção da categoria de "inimigo" em Moçambique, mas, dessa vez, aplicada às
comunidades de origem indiana, compostas na sua maioria por comerciantes bem-
sucedidos, vulgarmente chamados de "monhés".

33 O livro pioneiro de Michel Cahen, publicado em 1987 talvez seja uma exceção a
esse respeito. Nas vésperas de Moçambique reconhecer abertamente sua entrada
numa "economia de mercado", o autor consegue demonstrar que, na verdade, a
natureza "socialista" do regime da Frelimo era mais ideológica do que real. Apesar
dos grandes discursos "rupturistas" de Samora Machel, a continuidade estrutural
com o período colonial foi marcante, sobretudo no que concerne à relação com a
África do Sul: "dependência em relação à África do Sul estava a tal ponto impressa
nas estruturas mesmas do Moçambique colonial que a natureza das ligações a se
estabelecer entre a República Popular independente e o país do apartheid estavam
estreitamente ligadas à natureza de classe da independência de Moçambique
(Cahen, 1987, p. 105).

34 É o caso paradigmático de Gasperini (1980, 1984) e Gasperini e Nascimento


(1980).
35 Tal como explica José Luis Cabaço, a Operação Produção "consistiu no envio
forçado de cidadãos considerados improdutivos da cidade para as áreas rurais, em
particular, para a província do Niassa" (1995, p. 92). A Operação ocorreu entre
julho e setembro de 1983. No entanto, Luis de Brito ressalta que a idéia dessa
Operação vinha sendo discutida bem antes do ano da sua implementação, pois o
desemprego e as migrações em direção a Maputo começavam a preocupar os
dirigentes da Frelimo. Segundo Brito, essa degradante situação derivava, em
grande medida, da "partida massiva dos colonos e a tensão das relações do
Moçambique independente com a África do Sul e a Rodézia haviam provocado uma
onda de desemprego em certos setores da economia [...] com a chegada de novos
desempregados, a situação piora. O afluxo à Maputo de um grande número de
trabalhadores rurais [Fr.: ruraux] originários das províncias do sul de Moçambique
foi o resultado da súbita interrupção, no momento da independência, do
recrutamento pelas minas sul-africanas. A partir de 1980, esse movimento foi ainda
acelerado pelos efeitos da guerra conduzida pela Renamo nessas regiões" (1991,
pp. 235-136), de modo que essa "questão foi abordada pela primeira vez quando
da reunião nacional dos comitês dos distritos (Mocuba, 16-21 de fevereiro de
1975). As recomendações dessa reunião preconizavam a adoção de 'medidas
políticas e administrativas' para enfrentar o problema" (Idem, pp. 234-235).

36 Segundo Brito, "no imaginário dos dirigentes da Frelimo, aqueles que eles
consideravam 'improdutivos' (desempregados e outros) eram os preguiçosos, os
bandidos, os criminosos. Assim [...] o objetivo foi também o de eliminar a 'ameaça'
que representava, nas grandes cidades, uma camada social potencialmente
perigosa e suscetível de apoiar a Renamo" (1991, pp. 242-243, n. 30).

37 Conforme a minuciosa análise que Michel Cahen realiza sobre as causas e as


conseqüências do Acordo de Incomati, não foi ele, como muitos interpretaram
apressadamente na época, um resultado extremo do "pragmatismo marxista" da
Frelimo, mas, sim, uma conseqüência previsível da própria natureza da
dependência de cunho capitalista de Moçambique em relação à África do Sul. "A
Frelimo não mudou de linha após Incomati; apenas enfrentou uma situação
resultante do colonialismo, que ele próprio [o partido Frelimo] não tinha conseguido
destruir: o jogo clássico das leis do mercado" (Cahen, 1987, p. 94), que se traduziu
num "processo crescente de liberalização da economia em bases neo-coloniais"
(Idem, p. 35).

38 Nascido em Inhambane, Maulana Abubacar estudou durante onze anos na


Arábia Saudita formando-se em direito islâmico (Sharia) pela Universidade Islâmica
de Medina.

39 Entrevista com Habibo, subdelegado do Conselho Islâmico de Moçambique,


Nampula, 24/7/2003.

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Artigo recebido em julho/2008


Aprovado em abril/2009
* Este artigo é uma versão ampliada e modificada de um trabalho intitulado "Lendo
Marx 'pela segunda vez': experiência colonial e a construção da nação em
Moçambique", apresentado numa mesa redonda coordenada por Armando Boito Jr.
no IV Colóquio Marx e Engels, em novembro de 2005, na Unicamp. Agradeço a
Angela Lazagna pela leitura, comentários e revisão, bem como pela sua
disponibilidade para me colocar em contato com a tese de doutorado de Luis
Cerqueira de Brito sobre o papel do "marxismo" na construção do Estado-nacional
em Moçambique.

Na origem de Mamã CELINA MUHLANGA (n.1937? / m.1981?), esposa do reverendo


Uria SIMANGO (antigo vice - Presidente da FRELIMO), correm genes (ADN) de
lendários guerreiros Muhlangas (Muchangas) e na descendência de seu casamento
(filhos), se misturam ainda genes de avós Tivanes dos iMpfumos (rongas de Maputso) e
Shonas de Zimbabué da parte do pai Uria Simango (n.1926/m.1981?); outro grande
mártir do Nacionalismo Africano e de Moçambique. (ADN = ácido
desoxirribonucleico).

Mas que crime terá cometido Mamã Celina? O “Crime” de ser MULHER, ESPOSA e
MÃE MOÇAMBICANA?! Ou na realidade, Celina Muhlanga Simango, terá sido uma
Mártir da Independência e da Liberdade simbolizando todas as outras MULHERES
MÁRTIRES ignoradas que a Luta pela Independência gerou?

“Mama” Celina foi Presidenta da LIFEMO – LIga FEminina MOçambicana que daria
origem ao D.E.F (1968) e à OMM a 16 Março 1973. Ao citarem a OMM sem dúvida
um dia na História, o nome de Celina Muhlanga Simango, terá de ser lembrado como
uma das pioneiras na organização política feminina na Luta anti-colonial em
Moçambique e em África.

A 4 Março 1968, é extinta a LIFEMO e criado o D.E.F – Destacamento Feminino da


FRELIMO do qual Josina Muthemba viria a participar como dirigente. Josina Abiatar
Muthemba (mais tarde Machel), nasce em 1945. É mãe a 23 de Novembro 1969. Morre
em 7 de Abril 1971, em Dar-es-Salaam (Hospital Chinês de Kurassine). Sucumbe ao
esforço físico de acompanhar a situação das crianças afectadas pela guerra, no interior
de Moçambique – Cabo Delgado e Niassa. Daí o 7 de Abril, Dia da Mulher
Moçambicana. No entanto, Celina Muhlanga Simango, sofreria no corpo e na alma
rasgada de dor o destino cruel de todas as mártires de uma Luta de Libertação. Fiel ao
lado de seu marido cumprindo a jura celebrada no casamento cristão: “até que a morte
nos separe” – na realidade nem na morte separados. Estariam unidos para sempre na
entrega total pela causa de uma Independência de Moçambique para outros a
desfrutarem sem a merecerem. “Os primeiros serão os últimos” –, reza a Bíblia que seu
marido, Uria Simango, tão bem conhecia assim como os Cânticos dos Salmos de que se
serviu para atenuar a dor física das bastonadas a oito mãos que recebia na tortura em
1975 no campo de Nachingueia em Tanzania.

No dia das Mulheres Moçambicanas, resgato a memória de Mamã Celina Muhlanga


Simango, humilhada, torturada, somente por não renegar seu marido Reverendo Uria
Simango – Presidente interino da Frelimo após a morte de Eduardo Mondlane, em 3
Fevereiro 1969. Em Novembro de 1969, Uria Simango é oficialmente expulso da Frente
de Libertação de Moçambique – FRELIMO. Na figura dessa Mulher – Esposa – Mãe,
Celina, se resgatam todas as MULHERES Moçambicanas ou Moçambicanizadas que
foram caluniadas, presas e enviadas a fatídicos campos da morte por Moçambique fora e
em Niassa, nas diversas operações produção desde 1975. MULHERES violentadas na
condição humana, e, outras, na fuga, devoradas por leões ou mortas por metralhadoras
kalashenikove.

(In Memoriam a essas MULHERES MÁRTIRES, este Dialogando de hoje, sem


diálogo, chora lágrimas de silêncio!) (João Craveirinha)

Fonte: Canal de Mocambique 2006-04-12 14:10:00


Publicada por Reflectindo em 8:28 AM
http://comunidademocambicana.blogspot.com/2008/04/propsito-do-7-de-abril-dia-da-
mulher.html

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