Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A Thomas Ewbank
e Luiz Carlos Martins Pena
Nota:
-------------------
NEGROS
Maria Massangana (negra de ganho)/Amanda negra (aparição, vestida de freira)
Salustiano Canjica (escravo doméstico, albino)
Chico Angola (escravo doméstico egresso da roça)
Bernardo Mina (escravo, falso forro)
Isaías Muxiba (escravo sacristão, corcunda)
Antenor (soldado da guarda real de polícia)Negro manco / homem manco
BRANCOS
Pessanha (Padre capuchinho)
Feliciano Viegas (advogado)/Paolo Moricone (artista)/ Freguês
Dom Rodinni (núncio papal)
Auxiliar de comodoro(oficial da Marinha Imperial)
Whitaker(inglês)/SantoAntônio (padre capuchinho)/Amadeo Buconero (artista)
Ciríaco (Sargento da Guarda Real de Polícia)/Giancarlo Belladona (artista)
Amanda Viegas (sinházinha)/ Menina Santa Prisciliana.
Theodora (a filha louca) / Mulher da caixa / Priscila (cortesão Romana)
(Homem, vestido à moda inglesa, entra pela platéia afobado, seguido por
escravo que carrega um baú, uma pasta grande, destas de carregar desenhos
e duas gaiolas, contendo bonecos, que se assemelham à uma preguiça e um
lagarto, vivos. No meio do trajeto que leva ao palco, o escravo tropeça e cai.)
(Luz vai caindo. Cena do cais se desvanecendo. Atores entram para a cena
seguinte.)
...O motivo principal desta carta, meu anjo, é que sua irmã acaba de
nos ser devolvida do convento, por não poder mais a bondosa
abadessa mantê-la ali, em tão deplorável estado de saúde...(Barulho de
coisas se quebrando na coxia. Salustiano sai e volta com Theodora.)
Cena II
CADEIRA DA SENHORA
(Amanda sobe ao palco e sai por uma coxia que simula a igreja. Escravos,
largam a cadeirinha num canto qualquer e sobem também.)
(Saem cantando, sumindo na coxia oposta. Luz num dos púlpitos. Homem
negro entra sorrateiramente, trazendo um barrilzinho debaixo do braço. Padres
desaparecem assim que o homem entra em cena. Homem está calçado com
sapatos largos. Soldado branco olha para o homem com suspeição)
(Um dos escravos, entre os que não estão acorrentados, coloca seu barril ao
lado daquele em que o homem sentou. Os barris, tem algum detalhe que os
diferencia.)
BERNARDO Mina:(Para escravo que sentou ao seu lado, batendo no barril) _É
pinga boa, home! Vem lá de Paraty. É só me levá o dinheiro na Igreja
mais tarde, tá bão?
(Escravos correm para os cantos. Alguns pegam facas e paus dentro de cestos
de verdura e os escondem nas roupas. Barris são largados em torno do
chafariz. Soldados tropeçam nos barris. Homens brancos, fogem para as
coxias.)
(Bernardo é barrado quando tenta fugir por um lado. Tenta o outro, por onde
havia entrado Amanda. Querendo fugir da confusão Amanda volta a cena
correndo e se choca com Bernardo. Barril se rompe, molha a roupa da moça,
que cai no chão. Escravos cercam Bernardo e Amanda caídos, atrapalhando os
guardas. Escravos gritam:)
(Bernardo sai da roda formada pelos escravos. Ciríaco dispara um tiro e grupo
de escravos se dispersa. Mais soldados aparecem. Grupo de soldados é
interceptado pelos escravos. Soldados escorraçam escravos para fora de cena,
sumindo junto com eles. Bernardo some, por trás da platéia, perseguido por
Ciríaco e Antenor. Padre com chapéu de três bicos, entra em cena correndo.
Black out na platéia. Silêncio. No centro da praça padre ajuda Amanda a se
levantar queio de cortesias. )
(Chico se afasta rindo. Salustiano olha de cara feia para o Padre que vai se
retirando, sem despregar os olhos da moça. Escravos ajudam Amanda a andar
rumo a cadeirinha. Cambaleiam bêbados. Sons da perseguição a Bernardo
voltam por trás da platéia, que observa ainda os dois escravos com Amanda.)
(Gritos cessam. Luz segue trajeto dos dois escravos e Amanda até a
cadeirinha, já na platéia. Cadeira é levantada prontamente pelos escravos. Luz
descendo para black out. Chico Angola, já andando, canta uma ladainha
católica. Black out no palco. Cenário da pracinha, é retirado. Chico Angola
interrompe a cantoria )
SALUSTIANO CANJICA: (Do mesmo jeito )_Pois é, mano. Por fora bela
viola. Por dentro, pão bolorento.
Cena III
A VISÃO DE ANTÔNIO
(Quarto do padre. Uma cama de solteiro, um criado mudo, uma mesa, uma
cadeira e um armário com duas portas. Na parte de trás, o armário deve
permitir a entrada de um ator. Sobre a mesa uma garrafa de vinho e duas
canecas. Sobre o criado mudo uma imagem de Santo Antônio de Pádua. Padre
entra excitado, desamarra a corda da batina, tira os tamancos, senta-se na
cama e fala com o santo:)
(Enche uma das canecas com o vinho. Percebe a outra vazia. Enche esta
também e a coloca em frente a imagem do santo. Batidas numa porta. Padre,
sem ouvir, olha por alguns segundos para a imagem, impaciente.)
PESSANHA:_E tu, amado Santo? Não dizes nada? Será este teu silêncio
algum tipo de...reprimenda? Porque não posso nunca contar com
vossos préstimos, ora pois? Como queres que eu faça com que os
descrentes creiam em ti? Diga-me! Afinal...és ou não és o protetor dos
aflitos? Pois, se não és, ora faça-me o favor!..(retirando a caneca)...Não
bebas mais do meu vinho!
(Coloca a imagem sobre a cama. Novas batidas na porta. Som de uma voz
com eco, em off. Padre se assusta. Pelas frestas do armário, vaza uma luz
fortíssima.)
(Vulto do santo se revela em carne e osso, vestido como um monge mas, com
muitos paramentos sobre a batina: Chapéu de tipo napoleônico, dragonas
douradas e, cruzada no peito, uma faixa do Império do Brasil, de onde pende
uma espada de oficial. Na mão direita traz uma grande cruz e no braço
esquerdo, o Menino Jesus. Pessanha vai se levantando aos poucos, esfregando
os olhos, aturdido:)
PESSANHA:_Aleluia! Por fim estás a dar a tua santa opinião! Olha como
estás vermelho! Quase a ter uma síncope! Mas...vá lá. Digamos que o
que me toma, seja mesmo um impuro amor...Mas o amor, querido
Antônio, não é sempre sublime? Como o de...José por Maria! Pois
então? Me diga agora...Existirá, neste caso, pecado em nós, servos de
Deus, a quem o próprio criador ordenou que nos...multiplicássemos?
(Padre ainda sem ouvir, conduz o Santo de volta para o armário, os dois
cambaleando)
PESSANHA:_Com que então, me negas a tua santa ajuda, pois não? Pois
então...Um martírio, não é mesmo? É isto o que queres. O povo
sempre diz isto sobre tu, Antônio...Ah, ah! Basta dar-te um castigo,
uns catiripapos bem dados que tudo se resolverá. Gostas!..Adoras um
martírio!..Penso mesmo que, aí reside a fonte do teu prazer, santo
masoquista!..(Para o público:)...E eu é que sou o demente.
(Padre empurra o Santo volta para o armário. Antes de fechar as portas, lança
também lá dentro, os paramentos e o boneco do Menino Jesus. Sacristão bate
de novo na porta, gritando)
ISAÍAS Muxiba: _Ó só...A situação não tá nada boa. Sábi aquêie seu
amigo adevogado, Sêo Feliciano Viéga? Pois é...Ele teve aqui. Entrô
soltano fumo pelas venta, sentô, isperô isperô e, daí saiu porta à fora,
escarano fogo feito dragão de chinês.
(Beija o escravo no rosto e sai de cena, correndo. Na saída grita para Isaías:)
(Negro manco com uma calça esfarrapada, entra carregando um cartaz que
coloca num canto do palco. Música de filme de terror. Foco acentua o cartaz.
Negro manco aguarda impaciente enquanto público lê.)
(Escravo do Núncio entra em cena, com copos de água numa bandeja. Demora
a servir, atento à conversa. Rodinni, incomodado com presença do escravo,
faz um gesto para que ele se apresse e saia. )
Dom RODINNI: _Calma, calma! Io no credo que tenemo uno Santo ma,
tive notízia de molti mártiri caduti per la brutalitat de centurioni
romagni...Buoni esqueleti in questi catacumbi (com ar travesso:)...Io
tenere uno plano belíssimo...Buono gosto! Cosa fina, leggera!
(revezando o olhar entre o público e o padre:)...O que pensare te, de una
virgen, anh?...Imagina...(desenha o corpo de uma mulher no ar, saboreando
as palavras:)...Il fragile e picollo squeleto de una casta ragazza ?
(Núncio olha também para o painel, desconfiado mas nada vê. Ossos
chacoalham de novo. Luz do esqueleto volta. Esqueleto reaparece, vestido com
um saiote e uma túnica de uma jovem da nobreza romana. No alto do crânio,
usa uma coroa de rainha.)
(Freguês, some da sacada, irado. Maria vai para perto do chafariz, montar sua
tralha. Freguês aparece na praça, no encalço de Maria que, não o vê. Pessoas
que pediram coisas chegam à praça e cercam Maria. Metade do grupo de
capoeiras se afasta para um canto da cena. Os demais, inclusive Chico,
Salustiano e alguns populares brancos, cercam Maria numa roda que se agita.
Algazarra , gritos .)
FREGUÊSES:
_Ô preta! me dá essa agúia!
_Esse pente, é de osso de boi? Então me dá, me dá!
_ Num me empurra não! Não me empurra não, sô!
(Freguês segura Maria. Salustiano empurra Chico Angola para dentro da roda.)
(Som de apito. Policial entra, com o fuzil. Maria e escravos se dispersam nas
coxias, perseguidos pelos fregueses brancos e o policial. Tiros e gritaria em off,
ficando distantes. Silêncio. Pausa. Maria recolhe a mercadoria caída. Rearruma
o tabuleiro, apressada. Isaías Muxiba entra em cena correndo.)
ISAÍAS Muxiba:_Sussega, muié. Êies vão ficá por lá, intretido. Vai sê
guerra, inté de noite, sô! Mas...até que veio a caiá...Só assim eu
achava ocê, cumádi. Sumida, heim!
MARIA Massangana:(|Parando de arrumar o tabuleiro)_Ô Muxiba...Inté
parece! ´Cê num me viu antisdonti na Rua dos Latoeiro, homi? E onti
mêmo, aqui no Campo?
MARIA Massangana:_Lá vem ocê cum futrica. Então num sei? Nem me
fale! Tá lá na Detenção, num é mêmo?
MARIA Massangana: _Pois ocê pode dizer pr´êsse pádi tratar de ir logo
lá na Detenção, pegar o Benádo di volta...O Benádo é posse dêie, ora! É
escravo dêie qui nem ocê. E sábi do que mais?..(pegando o tabuleiro,
decidida:)...Sou eu é que vô lá, já já nesse pádi di meia pataca. Ocê já
pódi indo lá na frente, agora mêmo, pra dá o recado pr´êie!
ISAÍAS Muxiba:_É, tá certo. Pódi inté ir mas me diga pra quê muié?
MARIA Massangana:_Ué?! Pro pádi ir lá e pronto, sô! Tirá êie das grade,
ora ora!
ISAÍAS Muxiba:_Vem nada. Esse circo todo é pru causa do Benádo. Ocês
são pé de chinelo! A puliça acha que êie é que é o chefe de ocêis, sô!
Querem acabar com a malta da ´Cadêra da Sinhora´, home! Tudo pru
causa da cachaça..
ISAÍAS Muxiba:_Ué?!É isso num é bom? O páruco vai tê que fazê uma
carta de alforria de verdade, ora! Carta benzida e sacramentada, com
data de muito tempo passado. O Benádo pódi inté pená um tiquinho no
calabouço, no dique da ilha das Cobra, na estrada da Tijuca, quebrano
pedra mas...depois, pronto! Sai forro, de papé passado, por aí ó! Só di
flozô.
(Gritos de multidão. Chico e Salú correm para olhar o que é. Somem numa
coxia)
ISAÍAS Muxiba:(Abraçando Maria .)_ Viu só? Fazendo mau juízo di eu?
ISAÍAS Muxiba: _Pois num tô te dizeno? Pru causa da Santa, ora! Pois
eu já num disse que o pádi táva quereno? Um negóço aí pra inaugurá
essa Santa nova. É só êie acabá de ajeitá as coisa que vão chegar de
Roma, sábi? Um chumaço de cabelo da Virge, uns ossinho, uns papé aí,
sei lá. Mas, bom...daí êie me disse que, se eu colaborá, ele vai me dá a
carta...pra mim e pra quem mais tivé comigo. Entendeu né, sua boba?
CHICO Angola:_Ai meu Cristo! A´lá Salu! E vem êis de novo! Tamo
condenado! Tamo condenado! Vam´bora chispá, home!
Cena V I l
LA BELLA SONATTA
PESSANHA: _Oh, meu bom e querido amigo! Que prazer! Folgo em vê-
lo. Pareceu-me uma eternidade o decorrer destes dias. Venha, venha!
Dá cá um abraço em seu fiel irmão e discípulo, ora pois!
(Abraçam-se de novo. Artistas se dão as mãos em torno dos dois padres. Luz
vai caindo. Os dois sacerdotes, segurando a bainha das batinas, dançam em
círculo, em meio aos três artistas, alegres como crianças, cantando.)
Cena V I l I
PAIXÃO E MORTE DA VIRGEM PRISCILIANA
(Voz dos bastidores chama. Escravo finge que não ouve.)...Ocês num conta
pra ninguém não, viu? O sinhô pru quá eu trabáio de ganho, num pódi
nem sonhá qui eu tô aqui, toda noite, ganhano muito mais do que as
migáia qui vô dá pr´êie. Ah, ah, ah! Ocês segura a língua, heim? Vai
qui eu consigo enchê o papo? Vai que eu dô um jeito di comprá alforria
daquêie meu sinhô mufino, ora! E depois? E se eu viro artista famoso?
Já pensô?
(Luz caindo. Escravo sai mancando. Música de filme bíblico. Luz segue padre
que atravessa o palco, vestindo paramentos. Padre cumprimenta platéia,
formal, subindo para um dos púlpitos, encenando sermão. Os fiéis são o
próprio público do espetáculo. Padre fala, após interromper a música com um
gesto solene.)
PESSANHA:_Iesu Christi nomine invocato! Queridos irmãos e irmãs.
Prezados fiéis desta minha querida paróquia...(Pigarreia:)...Nosso
grande e iluminado São Chrisóstomo, do alto de sua elevada fé, nos
disse a nós, seus seguidores certa vez...(Tentando representar um
Santo)..."Eu exulto de prazer e o meu prazer chega até a loucura; uma
loucura que vale mais que a sabedoria do mundo. Estou transbordando
de alegria e, o meu espírito em uma espécie de...arrebatamento!...O
que direi eu? Como exprimir os sentimentos de minh´alma?..Direi o
poder dos mártires! A derrota dos demônios! Os milagres de Jesus
crucificado...Oh!..O coro das onze mil virgens...O ardor dos homens,
dos pobres e dos ricos! Direi sim! Direi o poder dos mártires!" (falando
por si mesmo) ...Adorados fiéis, um dia de suprema glória foi reservado
para esta paróquia...Emociono-me até às lágrimas, como vêem e, se a
emoção me permite, mesmo assim contar-lhes, lhes digo que, a
paróquia de Sant´Anna e toda a Corte e fiéis desta cidade, poderão
enfim exultar como São Chrisóstomo. Falo do mistério que, das
catacumbas romanas, se revelará aqui, onde todos nos encontramos,
possuídos pela fé e pelo fervor divinos!
(Mulheres ficam imóveis. Luz do palco caindo. Sobe a luz do púlpito. As cenas
dos dois espaços vão se alternando sempre. Padre prossegue o sermão)
(Três Centuriões arrastam Priscila pelo palco. Prisciliana, dominada por outro
centurião, se debate desesperada. Prisciliana consegue se desvencilhar e corre
em direção à mãe. Cena se congela. Luz do palco cai. Volta luz do púlpito.
Padre prossegue o sermão:)
(Foco sobre sacristão se apaga. Música volta, imponente. Luz geral na cena
onde permaneceram os soldados romanos e as duas mulheres. Centurião 1
arrasta Priscila para fora da cena pelos cabelos. Prisciliana, com medo, se
ajoelha.)
CENTURIÃO 2:(Para Prisciliana, junto com centurião 3 que, está com a espada
levantada)_Renegai teu credo, oh, pequena dama! Dizei a quem amas,
gritai: Juliano, meu imperador! Juliano, meu imperador! Gritai!
ATO II / Cena I X
AI, JESUS!
(Padre olha em torno. Isaías corre para fora de cena onde está um baú.)
Cena X
BERNARDO E MARIA
(Dois escravos entram. Com archotes acendem dois lampiões que estão nos
cantos do palco e vão saindo, pela platéia, acendendo outros lampiões. Maria
Massangana entra apressada, também pela platéia, rumo ao palco. Cruza com
acendedores de lampiões. No meio do caminho, ouve uma voz chamando, bem
baixa, num cochicho:)
(Maria olha assustada. Bernardo Mina aparece de repente, embuçado com uma
manta escura sobre a cabeça. Bernardo toca no ombro de Maria. )
BERNARDO Mina:_Ué?! Mas como? Se foi êie qui mi incalacrô nesse rôlo.
Bom, eu num te falei do negóço da cachaça, num é? Pois foi pra num te
amofiná.
BERNARDO Mina:_ Pois era. Daquela que curió num bébe...Mas óia...Inté
que parecia bom o negóço. O vigário fez um trato comigo. Êie pegava
os barril de pinga, num alambique secreto, sábi?
MARIA Massangana:_ E agora? Cumé que tu vai ficar nessa vida, home
de Deus?
BERNARDO Mina:_ Inté parece! Tudo freguês de ocê, num é mêmo? Mió
lugá num há, Maria. Na malta ocê sábi que eu tô seguro. Agente lá, se
adefende bem mió. Tem sempre um padrinho branco pra protegê nóis
da poliça...Nóis protege êis das outras malta e êis protege nóis da
detenção, ora...(Lembrando:)...Pádi arrenegado! Eu já tinha passado
uns 200 mirréis pra quêie cura sem mãe, vagabundo! Magina! Quasi a
metadi do valô da minha alforria!
Cena XI
O FORRO
CIRÍACO: (Batendo na porta, falando com Antenor )_Ô, Pá! Vamos a ver se
agora vosmecê controla esta matraca, viu? Sinto cheiro de confusão
graúda neste caso da cachaça. O roubo da igreja, deve estar a fazer
parte de um plano, sei lá...(Batendo de novo :)...Raios! Não vão abrir
nunca?..(cochichando:)...Imaginas que estamos a lidar com o próprio
Pároco da Freguesia!..(Batendo forte:)...Precisamos ter muito cuidado,
compreendes? Pois deixe que eu, que sou o inteligente aqui, me dirija
ao Pároco, sim?
ISAÍAS Muxiba: _E o Sinhô num sábi? Num foi o sinhô que chamô êis?
Iche!..Ou é o causo do rôbo da igreja ou o causo do nêgo Benádo, ora!
Que mais podia de sê? Coisa daquêie seu apadrinhado, num é mêmo?
Aquêie que o Sinhô prometeu alforriá antes di eu, tá lembrado? Pois
bem, os dois soldado da Guarda Reá tão aí, bem em vossa porta e, tão
quereno qui o Sinhô dê conta do arruacêro, sô!
(Ciríaco olha com cara de recriminação para Antenor que se cala. Muxiba
ironiza: )
ISAÍAS Muxiba: _ Nêgo Forro em igreja?!.. O dia qui tivé nêgo alforriado
por aqui, eu viro branco, sô...inguázinho ao minino do divino...(Para o
público:)....Magina!.. (para os soldados:)...O Benádo é cria daqui mêmo.
Êie diz qui é Forro mas, dévi di sê pra podê andá por aí, sábi?
Rosetano.
Cena X I I
ALGODÃO DOCE
(Voz de Maria Massangana canta modinha imperial em off. Sala dos Viegas
iluminada. Theodora anda pela sala resmungando uma reza. Batidas na porta.
Salustiano abre. Pessanha entra, acompanhado de Isaías. Salustiano tenta
impedi-los de entrar sem serem anunciados. Isaías faz cara feia para
Salustiano.)
FELICIANO: _Ai minha, Santa Edwiges! Sabia! Ora vejam só! Roubaram-
te! E ainda pretendes montar um Vaticano por aqui? Raios! Que tenho
eu cá com isto?
FELICIANO: _Ai mas que canalha! Sabes muito bem do tanto que me
deves já. Se mandasse alguém roubar-te, ainda assim ficarias a dever-
me, homem! Tens contigo, de mim, bem mais que alguns putos
vinténs! São contos de réis!..E eu a pensar que estivesses a cá
para...saldar a maldita dívida!..(Incomodado com a voz de
Maria:)...Salú...Pelo amor de Deus! Manda essa gralha se calar, raios!
(Feliciano pega uma cadeira para lançar sobre Pessanha, Isaías puxa a batina
do padre, assustado, rumo à porta.)
Cena XI I I
A CONCUBINA
(Amanda entra, atraída pelo burburinho na sala. Chico Angola entra logo em
seguida, apressado, cochicha com Salustiano, pega um espanador e finge
limpar a sala, atento à conversa.)
Cena X l V
DO PESADELO E DO SONHO
(Outro foco ilumina púlpito esquerdo. Nele há outro homem, vestido da mesma
forma que o primeiro, exceto pela gravata que é amarela. Segundo homem
repete atitudes do primeiro, inclusive a baforada de charuto .)
Cena X V
ADORADA ALFORRIA
(Dois escravos entram pela platéia com grandes chapéus. Um deles é franzino
e usa um libré largo demais para seu tamanho. Exaustos, sentam na borda do
palco. Atrás deles vem uma mulher com o rosto coberto por um véu. Policiais
cruzam com o grupo, olhando desconfiados. Escravos escondem as cabeças
com os chapéus. Policiais atravessam a cena, olhando para trás curiosos,
sumindo por outra coxia.)
(Sobem ao palco onde está a pracinha. Salustiano corre atrás de Chico. Dão
voltas. Salustiano se atrapalha com o vestido apertado e cai. Chico ri.)
SALUSTIANO:_Ô, Sinhá!..Ele num pudia dizê nada não, ora. Que jeito?
Se abrisse o bico, antes da hora...Cruzes! Vosso pai ferrava êie...quiçá
inté, botava no pelôrinho ou na fornáia, pra morrê estrupiado!
CHICO Angola:_E eu num vi? O que qui um muleque de fazenda num vê,
sô?
SALUSTIANO Canjica:_É isso mêmo, Sinhá. O Chico aqui diz que vossa
farsa mãe, vossa madrasta, a tal de Dona Marianinha, essa sim é era
uma santa...(Se benze)...Enguiu o sapo, cum chifre e tudo mas, nunca
rejeitô vosmecê não.
CHICO Angola:_É isso, Sinhá!..Fé em Deus! Tem que pensá num jeito de
arresgatá os papé!..(Cutucando Salustiano:)...Fala, home! Anda!
Cena XV I
O CÉU E O PURGATÓRIO
(Feliciano sai. Foco de luz sobre a urna vai ficando menos intenso. Luz que
vaza pelos vitrais do painel, enque a cena de raios coloridos:)
(Breve black out. Música de tambores. Acendedores entram pela platéia com
lampiões, sentam-se num canto do palco, próximos á urna da santa e mantém
conversa sigilosa. Sargento Ciríaco, Soldado Antenor e mais dois soldados
entram em seguida, pelo mesmo caminho.)
ANTENOR: _Nóis num tem otoridade pra nada nessa Corte! Guarda Reá
de Puliça e merda, hoje em dia, é a mêma coisa. Tu vê só essa istória
da cachaça. Morreu, né?...(Para o sargento, com sarcasmo:).. Mas,
Ôche!..Foi impressão minha ou, o sargento chamô esse Pádi
trambiquêro de ‘bondoso pároco’?
FELICIANO: _E posso saber que diabos tem a polícia haver com a minha
vida?..(Notando o riso de Antenor. Para Pessanha:)...Ah!..Eu sabia! Não
desistes, anh? Queres meu dinheiro!
(Malta de Santa Luzia, se agita. Grita, faz gestos obcenos para a malta de Sant
´Ánna, levanta porretes, facas e navalhas no ar. )
(Black out no palco. Luz geral nas ‘ruas’. Gritos, assobios, som de tiros.
Soldados atacam capoeiras que correm para o fundo da platéia. Feliciano,
Pessanha e Rodinni ficam sós no palco, ressabiados. Soldados perseguem
capoeiras. Demais atores e figurantes debandam da cena no meio do tumulto.)
(Mulher e faz sinal para que homem manco explique a Feliciano o que ocorre:)
HOMEM manco:_Pois óie. A vossa fía pediu pra vos dizê que vai mandá
notíça sim mas...é pra isperá sentado, sábi? (Olhando Pessanha que está
desolado:)...Ocês sabi. A moça é católica. Num qué istragá a festa
bonita do sinhô páruco. Além do mais, nóis que num somo besta,
vamo isperá, inté a pulíça largá do nosso calcanhá!..(Fazendo
reverências, se preparando para sair:)...Entonce, nóis qué desejá a ocês
tudo, uma boa festa de inauguração de Santa Prisciliana...ah! ah! E que
Deus perdoe ocês, viu ?Inté mais vê!
(Som de apito da polícia. Soldados voltam correndo pela platéia. Bandidos
fogem, carregando as cartas de alforria. Soldados sobem ao palco. Isaías
volta, ressabiado. Os tres brancos estão abraçados, ainda trêmulos, olhando
para a urna. Padre aperta os papéis da santa contra si. Soldados,
atrapalhados, dão voltas pelo palco, indo e vindo dos bastidores. Soldados
saem por fim, em desabalada carreira, atrás dos bandidos. )
(Isaías se solta e sai de cena correndo. Pessanha vai atrás dêle, batendo.
Ruídos de coisas caindo na coxia. Mais gritos de Isaías. Sons vão se reduzindo.
Luz caindo rápidamente até o black out.)
Cena X lX
OS HERDEIROS
(Luz na sala dos Viegas. Batidas na porta. Feliciano acorda num salto e corre
para abrir a porta. Quando abre, dá de cara com Chico Angola e Salustiano,
vestidos com os librés novos. Feliciano se assusta mas, se recupera :)
Cena X X
PER UNA DONNA
(Música de filme bíblico volta intensa. Forte luz vaza do armário que se abre
bruscamente. Santo Antônio aparece paramentado como no início, fortemente
iluminado. Abraça a Santa pela cintura e caminha com ela em direção a
Pessanha que, sorri esperançoso)
(Música de filme bíblico continua, trágica. Dom Rodinni solta também uma
gargalhada. Devotos saem com uma trouxa feita com o lençol da cama, cheia
de ex-votos. Santo Antônio e Santa Prisciliana, de mãos dadas, seguidos por
Dom Rodinni, saem atrás dos devotos, todos rindo. Som de trovões. Pessanha
só, cai de joelhos no centro do palco. Olha para o público com ar desolado,
chora e soluça enquanto foco sobre êle vai se fechando.)
(Mais som de trovões. Música saindo, luz piscando, simulando raios, vai
descendo até o black out.)
Epílogo
FINAL SEM JUIZO
Fim
© Rio de JaneiroOutubro 1997 / 2001 Spírito Santo (Antônio José do Espírito Santo)