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O DIA DE SANTA PRISCILIANA

Comédia teatral em 2 atos


Spírito Santo

A Thomas Ewbank
e Luiz Carlos Martins Pena
Nota:

Este texto foi construído a partir de uma proposta de pesquisa apresentada


pelo autor no concurso de bolsas de arte da Fundação RioArte em 1996. A
proposta - que acabou sendo preterida pela comissão julgadora da época – foi
desenvolvida por fim de forma independente, resultando neste texto teatral.

As modestas intenções deste trabalho estão ligadas ao ensejo de um diálogo


entre original estética dramatúrgica contida nas manifestações de artes
cênicas, de inspiração francamente popular, que fervilhavam nas ruas da Corte
do Rio de Janeiro durante a primeira metade do século 19 (encenações de
circo, mímica de quermesse, grandes festas e procissões católicas) com a não
menos popular dramaturgia, digamos assim, mais convencional, desenvolvida
como comédia de costumes por autores como Luís Carlos Martins Penna e
França Júnior, entre outros.

Construída a partir do jogo e da confusão intencional que se tenta estabelecer


entre a paradoxal inverossimilhança de personagens reais, protagonizando
fatos absolutamente verídicos, descritos por Thomas Ewbank, com a
verossimilhança flagrante de fatos e personagens que foram, ao contrário,
absolutamente inventados pelo autor (cabendo obviamente ao leitor ou
expectador, a quase impossível missão de descobrir quais incidentes são,
efetivamente, verídicos), pode-se ressaltar também, entre as intenções do
texto, a tentativa de introduzir - ou delinear mais claramente - personagens e
temas tradicionalmente omitidos - ou tratados de forma subalterna - no
trabalho dos principais dramaturgos da época.

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A ação do espetáculo ocorre no Rio de Janeiro de 1846, tempo em que a


cidade era a Corte do Império do Brasil. O espaço cênico (considerado no texto
como sendo toda a área onde o espetáculo venha a ser encenado, incluindo a
platéia), deve representar, de alguma forma e em diferentes momentos, uma
pracinha colonial, (com alguns planos elevados que possam simular, sacadas
de sobrados e púlpitos de uma igreja católica), além de um trecho de um cais,
partes de uma sala senhorial, uma sacristia, um quarto modesto e outros
elementos sugeridos nas rubricas do texto.

Em vários aspectos, a aparência da Corte do Rio de Janeiro no período


(principalmente aos olhos de um estrangeiro) era de enorme caos, com muita
sujeira, miséria e abandono. O autor sugere que estes aspectos (inclusive no
que diz respeito ao figurino e aos adereços) sejam considerados na concepção
estética do espetáculo.
O DIA DE SANTA PRISCILIANA

PERSONAGENS (com sugestões para dobra de papéis)

NEGROS
Maria Massangana (negra de ganho)/Amanda negra (aparição, vestida de freira)
Salustiano Canjica (escravo doméstico, albino)
Chico Angola (escravo doméstico egresso da roça)
Bernardo Mina (escravo, falso forro)
Isaías Muxiba (escravo sacristão, corcunda)
Antenor (soldado da guarda real de polícia)Negro manco / homem manco

BRANCOS
Pessanha (Padre capuchinho)
Feliciano Viegas (advogado)/Paolo Moricone (artista)/ Freguês
Dom Rodinni (núncio papal)
Auxiliar de comodoro(oficial da Marinha Imperial)
Whitaker(inglês)/SantoAntônio (padre capuchinho)/Amadeo Buconero (artista)
Ciríaco (Sargento da Guarda Real de Polícia)/Giancarlo Belladona (artista)
Amanda Viegas (sinházinha)/ Menina Santa Prisciliana.
Theodora (a filha louca) / Mulher da caixa / Priscila (cortesão Romana)

FIGURANTES OU CORO (do elenco)


Escravos / Populares / Capoeiras / Fregueses
Músicos / Devotos / Negros do sonho / Centuriões

BONECOS (para manipulação teatral )


Preguiça (tamanho natural)
Lagarto grande, tipo iguana (tamanho natural)
Esqueleto humano(tamanho natural, articulado )
Menino Jesus (tamanho natural)
ATO I / Prólogo
O LAGARTO E A PREGUIÇA

(Homem, vestido à moda inglesa, entra pela platéia afobado, seguido por
escravo que carrega um baú, uma pasta grande, destas de carregar desenhos
e duas gaiolas, contendo bonecos, que se assemelham à uma preguiça e um
lagarto, vivos. No meio do trajeto que leva ao palco, o escravo tropeça e cai.)

WHITAKER:(O inglês, enquanto escravo recolhe os volumes:)_Come on!


Please, Man! Please! A navio is coming! Oh, shit! Please!

(Os dois sobem na parte do palco que representa um cais. Burburinho de


pessoas elegantes portando bagagem. Oficial da Marinha, entra com
megafone.)

AUXILIAR de COMODORO: _Atenção senhores e senhoras! Por favor,


atenção! Aviso do Comodoro!..Passageiros para Baltimore! Filadélfia!
Nápoles! Nova York! Lamentamos informar aos ilustres passageiros de
barcos com o dito destino...partida prevista para hoje, 18 de Julho de
1846. Repetindo! Aviso do Comodoro!..Passageiros para Baltimore!
Filadélfia! Nápoli!..

(Burburinho aumenta. Oficial segue, olhando os passageiros, com ar de


censura:)

AUXILIAR DE COMODORO:_Por favor Srs! Rogo-lhes a atenção! Em nome


do Sr. Comodoro comunicamos que as partidas para o golfo do México
estarão suspensas por algumas horas. Medidas de segurança nos
obrigam. Há risco de guerra no México! Estamos garantindo em nome
de Nosso Senhor Jesus Cristo e de sua majestade Imperial do Brasil, a
chegada de todos aos seus destinos em total e absoluta segurança!

(Oficial se retira. Burburinho diminue. Passageiros se dispersam. Luz se


concentra no cais. Whitaker, sentado no baú, pita o cachimbo, enfumaçando a
luz da cena.)

WHITAKER: (Para o público)_Eu sentir muito falta do meu home in


América. Yes! No ver o hora de aportar no New York. Oh! O neve...os
flores do primtemps!...(lembra algo:)...Oh, God! Como eu ser
distraído!..(Faz uma mesura para o público.)...Permitam-me que me
apresente. Whitaker. Thomas James Whitaker. Nascida súdito de seu
majestade britânica but, today uma perfeita cidadão norte americano!

(Prossegue, desenvolto, cutucando o escravo com a ponta do guarda-chuva.


Escravo se levanta num salto e faz a mesma mesura para ao público .)

WHITAKER: (irônico:)_ Good by Brazil! Partirei hoje para o meu terra...se


vossas santos me permitir, é claro!..Seis meses in Rio de Janeiro, oh
god!..For uma moderna english man como eu, is too much!..Oh,
Brazil!Terra do promissão, da futuro, yes? Ah!..muito poderei me gabar
no América! Minhas amigos do Ethnological Institute do New York, no
poder saber destes meus estudos assim...do boca pra fora, oh, oh, oh!..
Von achar que eu ser uma crazy man. Uma contador de histórias do
carochinha, yes?! E...como Whitaker non ser boba, escreveu tudo que
viu numa livro, sabiam?...(Apontando as gaiolas) Ah...Levo também
muito boa prova! Querem ver?
(Aproxima-se do lagarto, cuidadoso. Enfia a ponta do guarda-chuva numa
fresta da gaiola. O lagarto parece atacá-lo com a cauda. Dá um salto para trás
:)

WHITAKER:_Oh, oh, oh! Escuse me...escuse me, but...Eu achar estas


bichos assim parecidos com o gente da Brazil?..De uma lado, gente
preta, muito gente preta, com o energia desta lagarto but...presa no
gaiola do servidon...(Escravo de pé, faz pose, mostrando os minguados
músculos:)...Da outra lado, uma pouquinho de gente branca, gorda,
forte mas, shit!..A non fazer nada, como esta bicho preguiça, com
vergonha de trabalhar...Tudo assim a catar piolho, bicho da
pé...entregue no lassidon, no indolence...(Escravo se senta e faz pose de
cansado, doente:)...Com o bunda sentada, no falta de ânimo, no falta do
que fazer!..Oh, my Lord!

(Escravos, entram na penumbra. Montam uma sala, com uma mesa de


jantar.Cenário do cais vai sendo retirado.)

WHITAKER:_Vocês ter paciência, but...Isto eu no suportar! É coisa que


faz minha estômago dar voltas! ..Oh... please! No querer ofender,
comparando estas bichos com a Brazil. No, no! Ser apenas...um modo
de passar a tempo, inofensivos lembranças de uma estrangeiro que
logo vai embora daqui, ok?

(Luz vai caindo. Cena do cais se desvanecendo. Atores entram para a cena
seguinte.)

WHITAKER:_Querem ouvir? Permitem que eu passe o minha tempo, lhes


contando meus impressões sobre o vosso terra?...(Rindo,
sarcástico)...Oh! Oh! Prometem que no von me expulsar nas pontapés?

(Reacende o cachimbo, volta a enfumaçar a cena com uma baforada. Antes


que o black out se complete, luz vai ressaltando a fumaça do cachimbo se
espalhando no palco.)
Cena I
THE VIEGAS FAMILY

(Voz de mulher cantarola modinha imperial em off. Feliciano Viegas sentado à


cabeceira da mesa com a filha Theodora. Os dois não se olham nem se falam.
Voz de homem com sotaque lusitano e em tom exageradamente dramático, lê
uma carta também em off, enquanto situações a seguir vão ocorrendo, sempre
com a canção ao fundo)

VOZ off: _Adorada e sempre inesquecível Amanda...(Salustiano Canjica,


escravo albino serve o jantar, cometendo gafes durante o serviço. Entra e sai,
trazendo louças e talheres)

...Querida filha. De há muito penso em escrever-te sobre os tristes


fatos que, nos têm ocorrido a cá na Corte. Aguardei, estoicamente, o
fim de seus estudos em Paris e sua volta para Valença. Deus tem sido
testemunha muda, do quanto tenho tentado mantê-la a salvo destes
infortúnios... (Feliciano reza e se benze antes de comer. Ruídos de talheres e
louça. Theodora imóvel, olhando o vazio. Salustiano atravessa a cena com uma
travessa de sopa. Sopa transborda pelo caminho.)

...Devo lembrar-te que, havendo vós completado a maioridade, o


cartório da Corte tem me exigido vossa presença, para autorizar-me a
tutela da herança. No entanto, os enormes esforços nos quais tenho
tido que me empenhar até agora, para administrar os bens de nossa
família, não têm sido nada, diante do que nos ocorreu agora, com a
doença de que está acometida vossa irmã Theodora... (Salustiano serve
sopa aos dois. Olha com compaixão para Theodora que, continua imóvel.
Salustiano comenta algo com Feliciano em voz baixa. Feliciano dá de ombros,
se lamentando. )

...Gostaria muitíssimo de não entristecê-la, minha mimosa flor do


campo. Tenho omitido fatos, no afã de proteger-te mas, estes
infortúnios, infelizmente, aconteceram e não tenho tido mais motivos,
nem forças, para continuar a ocultá-los de ti...(Salustiano vai até
Theodora e tenta dar-lhe uma colher de sopa. Theodora, num acesso de fúria,
derruba o próprio prato. Feliciano, irritado, se levanta e tenta contê-la mas
Theodora derruba a travessa de sopa na roupa do pai.)

...Tenho pago todos os meus pecados nestes últimos meses. As vezes,


me pergunto até, se aquela tendência de sua mãe a ficar por vezes,
alheia à tudo, não era já um sinal de que uma de vós, não poderia
talvez um dia, se ver acometida por esta ausência, por esta
enfermidade de que sua irmã está irremediavelmente
tomada...(Feliciano, molhado de sopa, com gestos inflamados pede ao
escravo que retire Theodora da mesa. Theodora resiste a Salustiano que tenta
acalmá-la. Theodora faz menção de puxar a toalha da mesa. Feliciano segura a
toalha. Salustiano tenta salvar a louça )
...Imaginas, que ela deu para vagar pelos cantos, à bradar em altas
vozes. A tratar-me como a um estranho, um inimigo. (Salustiano, desiste
da louça e corre, de novo, para conter Theodora que corre pela sala atrás de
Feliciano, lançando talheres sobre ele e simulando esbravejar, fora de si.
Salustiano consegue segurar Theodora)

...Todos estes fatos se sucederam, depois que começou a andar por cá


um mulato, um petulante e presunçoso amanuense da Câmara, à
tombar asas para a infeliz. Acredite que o gajo, estava a colocar
caraminholas na frágil cabecinha dela que, pasme, esteve à ponto de
doar tudo que temos para uma irmandade de pretos... (Theodora se
desvencilha de Salustiano e corre atrás do pai com uma garfo na mão, para
agredi-lo. Salustiano corre atrás dos dois para impedi-la)

...Permita-me pois dizer-te agora, adorada filha que sua irmã


pretendia mesmo casar-se com o gajo, imaginas o impropério, colocar
nossa família à ruína, entregar toda a nossa herança, da qual ela
estava legalmente responsável, para aquele... capadócio...(Feliciano sai
correndo e some por uma coxia. Com a saída dele, Theodora interrompe a
perseguição e vai se acalmando aos poucos. Aceita abraço de Salustiano e
chora em seu ombro.)

...Com a minha pronta recusa, deu a pobre a manifestar-se com


incontrolável revolta. Em tudo a parecer necessitar da paz que por fim,
achei por bem, ela só haveria de encontrar num convento, lugar onde
me vi obrigado à interná-la há dois anos...(Feliciano põe a cabeça para
fora da coxia. Theodora tenta pegá-lo. Feliciano corre pela sala sumindo por
outra coxia com Theodora correndo atrás.)

...O motivo principal desta carta, meu anjo, é que sua irmã acaba de
nos ser devolvida do convento, por não poder mais a bondosa
abadessa mantê-la ali, em tão deplorável estado de saúde...(Barulho de
coisas se quebrando na coxia. Salustiano sai e volta com Theodora.)

...Acho portanto que, apesar de serem tão tristes os motivos, é bom


que tenha chegado a hora de nós três nos reunirmos, definitivamente
aqui na Corte, sob o mesmo teto...(Theodora, volta chorando e, sempre
abraçada a Salustiano, atravessa a cena, rumo a coxia oposta. Luz caindo.)

...Rogo-te portanto, minha adorada que, embarques prontamente para


a Corte, acompanhada de um escravo de vossa confiança, afim de que
possas ajudar-me a cuidar de tua irmã e, do que resta de nossos bens,
nest´hora de grande tristeza para a nossa pequena família.

Aguardando-te para breve,


Beijos de teu saudoso pai,

FELICIANO DOS SANTOS VIEGAS


(Modinha imperial prossegue. Escravos, fazendo algazarra, substituem mesa
de jantar por elementos de uma pracinha da Corte. Música saindo.)

Cena II
CADEIRA DA SENHORA

(Chafariz com escravos recolhendo água em tumultuada fila e escravas com


cestos ou tabuleiros. Ao lado, padres conversam animados. Dois soldados, um
negro e um branco, observam a fila. Cadeirinha de arruar, carregada por dois
escravos, entra pela platéia. Escravos se encaminham para a pracinha,
conversando em voz alta, com uma mulher que está oculta pela cortina da
cadeirinha. Os escravos estão ofegantes mas, há um tom de galhofa em suas
vozes.)

SALUSTIANO Canjica: (Albino, mancando e falando com a mulher :)_A Sinhá


vai pará na praça...Vai na Igreja! Eu sei que vai!..Nóis já tá no bagaço,
Dona!..Olha só como o nêgo manca! (apontando:)_...A`lá a Igreja de
Sant´Anna Sinhá! Minha padroeira! Apeia, Nhá Amanda, pelo amor da
mãe de Cristo!

AMANDA:(Entreabrindo a cortina )_ Ih, Salu! Que ladainha sem fim!

CHICO ANGOLA: (Também mancando, exagerado)_Ai, Ai, sinházinha!


Imagina se esse nêgo cai aqui, no meio da rua...Na frente desse povo
futriquêro?..Isso aqui num é inguá a provínça não, Sinhá. Vão dizer
que...Vosmecê é bruxa, sem coração...que tá mal de vida e num pódi
nem dá de comê pros nêgo da casa.

AMANDA: (fechando a cortina)_ Pretendem amolecer-me, não é mesmo?


Não! Não me convencem.

SALUSTIANO Canjica:_ Ah...vá lá, Sinhá! Tem dó de nóis, num é mêmo?

(Amanda abre a cortina aparentando irritação.)

AMANDA: (Para o público)_Olhem só para isto! Fortes como duas mulas


novas...Chegam a brilhar de tanta saúde!

CHICO ANGOLA: _É Fraqueza, Sinhá! É o que o povo vai dizê. Fraqueza


dá suor...frio. Deixa os nêgo assim moiado, brilhano. Dispois, hum! O
nêgo desfalece e...(tombando a cabeça, virando os olhos.:)...prucutu!

(Balançam a cadeira, como se estivessem tremendo)

AMANDA:(Em frente ao palco)_Pára! Pára! Eu desço aqui mesmo! ô gente


sabida que são vocês! São capazes de me derrubar aqui, no
chão!..(Para Chico Angola:)...E vosmecê? Juro que não sei onde andava
com a cabeça, quando pedi ao senhor meu pai para trazê-lo comigo, lá
de Valença. Não passas mesmo de uma bisca, de um banana!..Ô par
de negros chorões!

(Pousam a cadeirinha no chão. Massageiam os ombros com exagero, suspiram


de alívio, ajudando Amanda a sair da cadeirinha com mesuras cínicas.)

SALUSTIANO (se ajoelhando:) _Santa sinházinha! Louvada Seja!..O nêgo


vai orá pra vosmecê lá na igreja...Vai pedir ao todo poderoso, pra não
perder Sinhá de vista...Protegê Sinhá!

CHICO Angola (exagerado)_Brigado, meu pai eterno! Santo Cristo


padroeiro...Brigado!

AMANDA:(Já subindo para o palco, apontando a cadeirinha)_Voltem já, par


de hienas! Arranjem um jeito de alguém roubar-me cadeirinha,
arranjem! Eu mando vocês de volta pro eito. Juro que mando!

SALUSTIANO e CHICO:(Juntos, voltando para pegar a cadeirinha)_Deus nos


livre e guarde, sinházinha! Cruz em credo! !

AMANDA: _Vou na Igreja...(Apontando)...Aqui mesmo na de Sant´Anna.


Olha...Se vosmecês não me aparecerem aqui, em vinte minutos. Não
sei não, viu!

(Amanda sobe ao palco e sai por uma coxia que simula a igreja. Escravos,
largam a cadeirinha num canto qualquer e sobem também.)

SALUSTIANO Canjica:(Retirando a cartola, já no palco.) _Vamo, vamo


capoerá, nêgo! Vamo que tu tem que perdê logo esse bodum de roça.
Vam´bora!

CHICO Angola: (Animado)_Vamo, vamo!..Ói, trabaiá pra Sinhá Amanda é


mió que sê forro. Eu num te disse?

SALUSTIANO: _É, nêgo! Difíce de acreditá! Essa tá di Sinhá Amanda nem


parece que é branca, sô! Ela é que nem uma santa, home! Benzó Deus!

(Saem cantando, sumindo na coxia oposta. Luz num dos púlpitos. Homem
negro entra sorrateiramente, trazendo um barrilzinho debaixo do braço. Padres
desaparecem assim que o homem entra em cena. Homem está calçado com
sapatos largos. Soldado branco olha para o homem com suspeição)

Sargento CIRÍACO:(o branco, se aprumando) _Estás a ver o que vejo,


Antenor?

Soldado ANTENOR:(cochilando apoiado no fuzil) _Anh?! Vê o quê, home?

CIRÍACO: _Mas...Ô raios! Dormindo em serviço, é?...(apontando:)...Ali,


seu pamonha! Observe aquele negro. Não conheces o tipo?

ANTENOR:(Olhando surpreso) _Ôche! Mas óie só...sapato largo, num é


mêmo? Mardito!..Oie aqui, Ciriáco! Se esse nêgo é forro, eu sou o que?
Dom Sebastião, O Venturoso? Ói...(indo abordar o homem)...Deixa que eu
vou lá e...

CIRÍACO:(segurando Antenor)_Calma, homem de Deus! Ô diabo de praça


ruim! Assim, vosmecê acaba por espantar a cutia, ora raios! Já não te
havia dito? Fiquemos aqui, a observar...Olha a calma, o desplante do
cachorro!..

(Homem chega ao chafariz. Escravos se aproximam dele. Homem senta no


barril. Escravos conversam com ele descontraídos.)

CIRÍACO:(se esgueirando:)_Hum, hum...soldado...Pronto! Agora!


Vamos!

(Um dos escravos, entre os que não estão acorrentados, coloca seu barril ao
lado daquele em que o homem sentou. Os barris, tem algum detalhe que os
diferencia.)
BERNARDO Mina:(Para escravo que sentou ao seu lado, batendo no barril) _É
pinga boa, home! Vem lá de Paraty. É só me levá o dinheiro na Igreja
mais tarde, tá bão?

ESCRAVO:(Olhando para o barril)_Tá bão, tá bão mas...quanto tá,


Benádo? Óia que, hoje eu vô pechinchá, viu? Ah, vô!

BERNARDO MINA:_Cê me leva o barril por...xô vê...Cinco miréis!..Não,


não...Seis mirréis, tá bão?

ESCRAVO:_Íche!..Mas é caro, home! De jeito ninhum! Cinco mirréis é o


que o canáia do vendêro vai querê me dá, ora...Sobra o que pra iêu? Tu
é besta!

BERNARDO Mina: (Coçando a cabeça)_Ué?! E ocê qué me arruiná, é? É que


essa tá pura, seu bocó!

ESCRAVO:(Surpreso, segurando o barril de Bernardo) _Ah é? Então xovê!


Dêxa prová!

BERNARDO Mina:(Dando um tapa na mão do escravo) _Sai, sai seu traste! Ó


só...tu inda pódi batizá, home!..Diacho!Tá, tá certo. Me dá quatro
mirréis que, tá bom mas...óia só... nem mais nem meno. Mas...tem que
pagá hoje, heim! Tu me leva o dinhêro, de noitinha.

(Bernardo faz menção de trocar de barril. Soldados se aproximando do


chafariz, pé ante pé. Homens brancos que observam a cena, se afastam.
Menino capoeira assobia e grita:)
MENINO capoeira:(Com assobio característico, como uma senha)_Fiuiu!
Fiuiu!..Ê vem meganha! Debandá! Debandá!

(Bernardo se levanta com o barril. Antenor sopra o apito e, com o fuzil


apontado corre para o chafariz. Ciríaco, com a espada levantada, sai atrás de
Antenor gritando:)

CIRíACO:_ Vai, Home!..Pega! Pega!

(Escravos correm para os cantos. Alguns pegam facas e paus dentro de cestos
de verdura e os escondem nas roupas. Barris são largados em torno do
chafariz. Soldados tropeçam nos barris. Homens brancos, fogem para as
coxias.)

ESCRAVOS:(Correndo pela cena)_Vam´rodá! Vam´rodá! Meganhá!


Meganhá!

(Bernardo corre com o barrilzinho em baixo do braço mas é seguro por


Antenor. Homens brancos voltam e insuflam soldados. )

HOMENS Brancos: (Histéricos, apontando Bernardo) _Segura! É arruaceiro!


É capoeira! Prenda! Prenda!

BERNARDO Mina:(Apontando para os sapatos, tentando se soltar)_Afasta,


meganha! Desencarna! Tu num tá veno que eu sou forro?

ANTENOR (Olhando para os sapatos, sem largar Bernardo:) _Tô veno o


quê?Ah...isso é sapato de defunto, Sô! Tu é forro nada, cachorro! Tu é
fujão, cão sem dono! Cadê a carta? Mostra a carta, anda!

BERNARDO MINA: _ Larga! Desencarna! Cão sem dono é tu!

ANTENOR:_ Mostra, mostra a carta! Cadê? Vagabundo. Nêgo de má


conduta. Tu num tem papé ninhum, seu...

BERNARDO Mina:_E tu sábi lê, por um acauso? Nêgo sem governo! Tu


num tem mãe não, seu chouriço? Vai agarrar um branco que nem tu!

(Antenor tenta golpear Bernardo. Escravos do canto dão gargalhadas. Ciríaco


olha para eles com raiva. Levanta a espada também e ameaça ir na direção do
grupo. Antenor, aponta o fuzil para o barril, grita para Bernardo:)

ANTENOR:_ O que é que tu tem aí? Larga esse barril, jumento!

(Bernardo larga o barril, se desvencilha e puxa uma faca. Soldados se afastam


aterrorizados. Bernardo, com a faca na mão, pega de novo o barril e sai
correndo. Escravos agitam o ambiente gritando:)
ESCRAVOS:_ Taca a bicuda, mano!
_ Fura logo esses meganha, home!

(Bernardo é barrado quando tenta fugir por um lado. Tenta o outro, por onde
havia entrado Amanda. Querendo fugir da confusão Amanda volta a cena
correndo e se choca com Bernardo. Barril se rompe, molha a roupa da moça,
que cai no chão. Escravos cercam Bernardo e Amanda caídos, atrapalhando os
guardas. Escravos gritam:)

ESCRAVOS:(Cercando o barril quebrado)


_ Êh! Êh, pessoá!
_ Óia a Cachaça, gente !

(Bernardo sai da roda formada pelos escravos. Ciríaco dispara um tiro e grupo
de escravos se dispersa. Mais soldados aparecem. Grupo de soldados é
interceptado pelos escravos. Soldados escorraçam escravos para fora de cena,
sumindo junto com eles. Bernardo some, por trás da platéia, perseguido por
Ciríaco e Antenor. Padre com chapéu de três bicos, entra em cena correndo.
Black out na platéia. Silêncio. No centro da praça padre ajuda Amanda a se
levantar queio de cortesias. )

Padre PESSANHA:(Gritando com forte sotaque lusitano)_ Oh! Céus. Virgem


Maria Santíssima! Um médico! Por favor, um médico!..(Amanda,
atordoada, cobre o rosto com o véu que o padre recolhe no chão)...Ai! Ai! E a
senhorinha? Como está? Sente-se bem?...(Abraçando Amanda, falando
para a platéia)...Maldita corja de vândalos! Malta desgraçada!

(Padre se encaminha para coxia, abraçado insinuosamente a Amanda. Chico e


Salustiano, chegam para auxiliar a dona, bêbados. Afastam Amanda do padre,
sem cerimônia.)

CHICO ANGOLA:(Para o padre)_Pódi largar, seu Vigário...Pódi largar que


a sinhá é nossa...quer dizer, é nossa Sinhá!

Padre PESSANHA:(Olhando para os escravos, contrariado:)_Ora pois?! Acabo


de tê-la em meu confessionário! Em minha igreja!..(Para Amanda,
reparando em Salustiano, com pouco caso)...Com que então... são estes os
vossos escravos?

CHICO ANGOLA:(Segurando o padre, abusado)_Magina!? Que babado é


esse, seu vigário? E nóis devia de sê o que dela, sô?...(desconfiado) ...E
pra donde o sinhô ia levar nossa Sinhá, heim?

SALUSTIANO Canjica: (Apontando) _ O vigário por um acauso numa tá


veno, bem ali, a cadeirinha de nossa dama? Ôche!

Padre PESSANHA: (Para Amanda)_Ora pois pois!..(Olhando Salustiano) ...Eu


conheço bem este negro, este...albino. Pois então...(Para
Amanda:)...Claro, claro! És a filha de Feliciano Viegas...a que estava
prestes a chegar da província!..(Curvando-se num cumprimento meloso,
beijando a mão de Amanda)...Oh, mas...como sois linda...quero
dizer...Oh mas, que prazer!

SALUSTIANO Canjica:(Afastando o padre, cobrindo Amanda com uma


manta:)_ Ih!! A Sinhá me descurpe, mas...que bafo é êsse?..(Franzindo
o nariz, cheirando o ar)...É da Sinhá? Pois é catinga da boa, da
conhecida...

CHICO Angola:(cheirando a roupa de Amanda)_ Será que...Víge Maria! Será


que nossa Sinhá andou beben...(Para Salustiano, escandaloso, lambendo
os beiços:)...Mano de Deus! Mas isso é pinga, sô! É cachaça da boa,
home!

AMANDA:(Empurrando Chico Angola, envergonhada )_T´escunjuro! Sai! Sai!


Afasta, negro insolente! Não me tens respeito?

(Chico se afasta rindo. Salustiano olha de cara feia para o Padre que vai se
retirando, sem despregar os olhos da moça. Escravos ajudam Amanda a andar
rumo a cadeirinha. Cambaleiam bêbados. Sons da perseguição a Bernardo
voltam por trás da platéia, que observa ainda os dois escravos com Amanda.)

ANTENOR (Gritando em off :)_ Pega! Pega! Toma a faca dele !

CIRÍACO:(Também gritando)_ Aí... Pronto, tá encurralado! Amarra as


patas do bruto! Vai!

Soldado ANTENOR:_ Tá pêgo! Catei o home! Ai! Miseráve! Tu me furô,


seu cachorro!

BERNARDO MINA:(Sons de pancadaria)_Ai! Ai! Larga! Acuda! Acuda! Aí


não! Aí não! Nããão!Aiiiii!

(Gritos cessam. Luz segue trajeto dos dois escravos e Amanda até a
cadeirinha, já na platéia. Cadeira é levantada prontamente pelos escravos. Luz
descendo para black out. Chico Angola, já andando, canta uma ladainha
católica. Black out no palco. Cenário da pracinha, é retirado. Chico Angola
interrompe a cantoria )

CHICO ANGOLA:(Para Salustiano, voz empastada pela cachaça)_Quem diria,


né mano. Tão fina dama.

SALUSTIANO CANJICA: (Do mesmo jeito )_Pois é, mano. Por fora bela
viola. Por dentro, pão bolorento.

AMANDA: (Possessa, com a cabeça fora da cortina)_Irrraaa! Desgraça de


cachaça! Mandriões! Os boto no tronco! Na fornalha! Malditos!

(Salustiano dá um forte arroto. Chico Angola responde:)


CHICO ANGOLA: _ Dominus Tecum!

(Seguem pela platéia já meio ás escuras, um cantando o outro soluçando.


Cadeira é sacudida a cada soluço. black out. )

Cena III
A VISÃO DE ANTÔNIO

(Quarto do padre. Uma cama de solteiro, um criado mudo, uma mesa, uma
cadeira e um armário com duas portas. Na parte de trás, o armário deve
permitir a entrada de um ator. Sobre a mesa uma garrafa de vinho e duas
canecas. Sobre o criado mudo uma imagem de Santo Antônio de Pádua. Padre
entra excitado, desamarra a corda da batina, tira os tamancos, senta-se na
cama e fala com o santo:)

PESSANHA:(contrito, de mãos postas)_Oh, meu Santo Antônio!Ai...que me


dissolvo em êxtases! Espero que saibas o que me atormenta. Cristo há
de me perdoar, ora pois!..Me inquietou demais aquela visão! Não seria
isto mesmo o que Ele padeceu, diante da visão de sua belíssima
Madalena?..Ai, meu Santo Antônio! (Levantando-se, com os braços
abertos) Ai, Jesus! Também acabo de estar diante de minha própria
Madalena!

(Enche uma das canecas com o vinho. Percebe a outra vazia. Enche esta
também e a coloca em frente a imagem do santo. Batidas numa porta. Padre,
sem ouvir, olha por alguns segundos para a imagem, impaciente.)

PESSANHA:_E tu, amado Santo? Não dizes nada? Será este teu silêncio
algum tipo de...reprimenda? Porque não posso nunca contar com
vossos préstimos, ora pois? Como queres que eu faça com que os
descrentes creiam em ti? Diga-me! Afinal...és ou não és o protetor dos
aflitos? Pois, se não és, ora faça-me o favor!..(retirando a caneca)...Não
bebas mais do meu vinho!

(Coloca a imagem sobre a cama. Novas batidas na porta. Som de uma voz
com eco, em off. Padre se assusta. Pelas frestas do armário, vaza uma luz
fortíssima.)

VOZ EM OFF: _ Parla, mio fratello!

(Portas do armário se abrem. No vão iluminado, se vê o vulto de um homem.)

PESSANHA:(Se ajoelhando)_ És tu, Cristo?..(Em pânico:)...Não, não, por


favor! Compreendas que...

(Vulto do santo se revela em carne e osso, vestido como um monge mas, com
muitos paramentos sobre a batina: Chapéu de tipo napoleônico, dragonas
douradas e, cruzada no peito, uma faixa do Império do Brasil, de onde pende
uma espada de oficial. Na mão direita traz uma grande cruz e no braço
esquerdo, o Menino Jesus. Pessanha vai se levantando aos poucos, esfregando
os olhos, aturdido:)

Santo ANTÔNIO:(retirando o chapéu, andando com pose militar)_Erga-te


ímpio! Sono io, Santo Antonio de Padova!..(autoritário:)...Per que me
invocate? Parla!

PESSANHA:(se agarrando no Santo) _Ai, Antônio! Sabia que não me


faltarias nest´ hora!

(Santo se afasta de Pessanha soltando bruscamente a batina de suas mãos.)

Santo ANTÔNIO:(Retirando os paramentos. Colocando-os sobre a mesa.)


_Porca miseria! Per dio, parla! Io teno molto lavoro in questo mondo!
Te asculto si ma, parla ragazzo! E...se te asculto parlare, de tue ínfimo
problema, presto! Devolva me il vino. Vá!

(Padre devolve a caneca ao santo:)

PESSANHA:_Ai, Antônio. Tenho te implorado tanto! Bem sabes o quanto


preciso das relíquias sagradas. Ainda há poucos dias, irmãos
beneditinos trouxeram despojos de Roma. Retalhos do manto da
Virgem, algo assim e penso que...

Santo ANTONIO:_ Ma que?! Que parlare tu, uomo? Relíquia Sacrati?

PESSANHA:_Sim! Sim! Relíquias. Não te faças de tolo, ora ora! Símbolos


materiais da superioridade de nossa doutrina...(para o público:)...Vá lá
que não fosse um Santo Sudário mas, algo assim palpável,
impressionante aos olhos dos fiéis. Eu poderia deixar esta medíocre
posição de pároco pobre e...

Santo ANTÔNIO:_No! No! Imprudente! Me facce pensare que...tue


intento é...una transazione! Una negoziata com relíquia sacrati. Ah no!
Tue sogno é con la fama facile, la grande fortuna, ecco!

PESSANHA: _Ora, caro Antônio...tu me deixas pasmo, sabias? O que


poderia isto ter de mal para um homem comum como eu, anh? És tu o
santo aqui, ora ora! Aliás...Tão certo estou de vossa santa
aquiescência que...gostaria de ousar pedir-te até um outro pequenino
agrado...

Santo ANTÔNIO:(Atônito)_ Altro pedido? Ma que, cáspita?! Il paraíso


terrestre? La beatificazione en vita, ecco?..Ma que cínico!

PESSANHA:(Ficando impaciente)_Oh, Amantíssimo!..Devo implorar-te


então? Rogar-te para que compreendas?..Que mal haveria em que um
honestíssimo pároco como eu, há tantos anos devotando a Cristo
tantos sacrifícios, um belo dia viesse a gozar o sopro benfazejo, de
alguma fortuna, anh? Saciar enfim os meus mais profundos
desejos?...Boa mesa, bom vinho e até, quem
sabe?...(provocador:)...Uma mulher?

Santo ANTÔNIO:_Una donna?!..Aspeta aqui!..donde é tue respetto,


anh?..Que facce? Parla de nezzecitat carnale? Va bene que io e...Dio,
sapemo que, há sempre una escrava en tue aposenti, ecco!...facciamo
vista grossa. Perdonanmo questa luxúria ma...

PESSANHA:_Luxúria com escravas?! Eu?! Ora pois!..És cego, por um


acaso? Podes estar descansado. Te digo que falo agora de uma mulher
comum, como aquela com a qual acabo de topar na praça. Tu também
a viste, ora pois!...(lânguido:)...Oh!..Pelo Santo Sepulcro! Oh que
saborosa Cachopa!

Santo ANTONIO:_Ma come?..No comprendo. La signorina?! No, no, no!


En questo caso...Ah, Ma que bastardo! Per questa pretenzione, questo
augúri infame, me invocate?..Blasfemo! E tue voto de castitat, anh?
Pazzo! Tu é sacerdote de Dio! Dimenticare?

PESSANHA:_Ora...Poupe-me de balelas! Sabes muito bem que a mulher


a qual desejo...esta mesma que vistes...é igualzinha à estas que...são
mantidas por alguns de nossos...figurões do Clero. Só não imaginas o
quanto eles as cobrem de mimos, de jóias...às escondidas é claro.

Santo ANTONIO: _Sacripanta! Endemoniato!

PESSANHA:_ E porque te enraiveces? Pois sabias que muitas, até


maridos possuem? E estes gajos, os maridos, estes coitados. Ah, ah!
Não se diria pobres, é claro mas...ricos enganados! Religiosamente
corneados!

Santo ANTONIO: _ Maledetto! Cínico!

PESSANHA:_Devias ter olhado com atenção a tal dona. Oh, Antônio!..


Notastes o frescor da pele, heim?.. E sob a saia?.. Ai, Jesus! O que
fazer com a ânsia que me assalta? O que fazer com esta...paixão!

Santo ANTÔNIO:(balançando a cruz)_Passione! Passione! Questa é una


donna bianca, imbecile! Pretende il concubinato com una donna bianca
come te?

PESSANHA:_E o que entendes tu de mulheres, heim? Além do


mais...contradizes-te então, não é mesmo?..Quer dizer que, um santo
como tu, adorado...até por nossas desditosas escravas...aceitas como
letra comum, que um padre sacie os seus desejos carnais com as
negras? E para quem advogas as brancas, heim bendito carola? Para
ti?..Para Cristo?

Santo ANTONIO: (Voz empastada pelo vinho )_Tarado! Malato di mente!


Questa é una injuria a´ lla Santa Madre Igreja! No parlare piú! Te
ordeno!

PESSANHA:_Aleluia! Por fim estás a dar a tua santa opinião! Olha como
estás vermelho! Quase a ter uma síncope! Mas...vá lá. Digamos que o
que me toma, seja mesmo um impuro amor...Mas o amor, querido
Antônio, não é sempre sublime? Como o de...José por Maria! Pois
então? Me diga agora...Existirá, neste caso, pecado em nós, servos de
Deus, a quem o próprio criador ordenou que nos...multiplicássemos?

Santo ANTONIO:(Completamente bêbado)_Pecattore! Me tomas per


uno...alcovitero! No! No! Io no sono santo para questo tipo de
miracolo!

PESSANHA:(Servindo mais vinho para o Santo.)_Ora, Antônio, Antônio!


Fostes monge como eu, não fostes? Me diga então, ora pois pois...De
que vale o celibato senão para nos fazer mergulhar na mais triste das
demências, anh? Para que ficarmos como tolos, a fingir que não
sentimos uma vontade louca de...nos pormos logo de quatro, diante de
uma linda potranca, heim?..Ai, Antônio! Veja meus suores. São
honestos, amigo...São puros!

Santo ANTÔNIO: _Porca putana! Cala te, stronzo!

PESSANHA: _Ah é ?! Seu desbocado! Decepcionas-me, não é mesmo?


Pois eu já sei muito bem do que gostas. Bem sei que tipo de santo és!

Santo ANTONIO:_Cala-te! Ingrato, maledicente! Per tue maleparole!,


solamente Il Fuoco Sacrato!..(brandindo a espada)...Que Dio te condene
all Inferno per tutti giorni! Se no tene respetto per me come...uno
Santo, me deves respetto pelo menos come...Come uno Oficiale de il
Essercito Imperiale!

PESSANHA:(Para o público) _Oficial do Exército! Ah, ah, ah! Coitadinho!


Como é ingênuo, meu Deus! Fico boquiaberto. Logo se vê porque é
santo!

Santo ANTONIO:(deprimido pelo de vinho) _Si...Si! Sono Cavalero della


Ordem Militare de Portugale e Brasile! Sumo Generalle! Il comandante
supremo de lla forza militare de Brasile!..(tentando perfilar-se)...E, per
questo lavoro, recebo uno buono soldo...(zombando:)..Lire, fratello!
Molta lire! E tu , anh?.. Tue soldo é la esmola de il pobri della
paróquia? Tue soldo é...niente! Merda nessuna!

PESSANHA:_Soldo?!Como, se não sabes nem a cor que o dinheiro


tem?Todo o povo da Corte sabe muito bem a quem serve teu soldo!..És
tu, santo tolo, quem abastece de luxo, de fausto, o mosteiro que leva
teu nome! És tu o tonto que enche a mesa farta do Abade e
seus...apaniguados.Te exploram, seu tonto e, não vês...ou não
ligas...Eu lá sei?

Santo ANTONIO:(Apoplético) _Sacrílego!..Il fuoco sacrato per te!..Il


inferno!

PESSANHA:(se levantando bruscamente,também bêbado:)

_Chega! Basta!...Tu és Santo, não é mesmo? Deves saber então que o


vinho é um vício infame, pecaminoso! Santo de
fancaria!..(imitando:)...Dimenticare?

(Retira a caneca da mão do Santo, recolhe a garrafa de vinho e coloca tudo em


cima do armário. Santo fica amuado, triste. Novas batidas na porta. Sacristão
corcunda Isaías Muxiba afoito, aparece diante da porta.)

ISAÍAS Muxiba:(para o público, com o ouvido encostado na porta:) _Ai


minha virgem Maria Santíssima! Num é que o padre tá, di novo,
merguiado na uva podre, gente!..O home tá aos berro! E o pior é que,
desse jeito parece que acaba mêmo é viciando o Santo,
ó!..(batendo:)...Abre, Pádi! Abre logo, Sô!

(Padre ainda sem ouvir, conduz o Santo de volta para o armário, os dois
cambaleando)

PESSANHA:_Com que então, me negas a tua santa ajuda, pois não? Pois
então...Um martírio, não é mesmo? É isto o que queres. O povo
sempre diz isto sobre tu, Antônio...Ah, ah! Basta dar-te um castigo,
uns catiripapos bem dados que tudo se resolverá. Gostas!..Adoras um
martírio!..Penso mesmo que, aí reside a fonte do teu prazer, santo
masoquista!..(Para o público:)...E eu é que sou o demente.

Santo ANTÔNIO:(se deixando levar, cabisbaixo)_...Per favore! Que


succede? Per favore!..no capisco niente...

PESSANHA:_Pisco, capisco, rabisco, que me importa! Vá, Palmatória do


mundo! Vá! Delicia-te com o teu martírio!

(Padre empurra o Santo volta para o armário. Antes de fechar as portas, lança
também lá dentro, os paramentos e o boneco do Menino Jesus. Sacristão bate
de novo na porta, gritando)

ISAÍAS Muxiba: (para o público: ) _Ai, meu Cristo! Já deve di tá morto o


home! Tava demorano. Vai vê que...tanto se esbodegô de bebê que...tá
lá...estrebuchado na cama!.. Pelo amô de Deus! Abre Seu Vigário!

(Padre abre a porta, assustado, com a batina desamarrada e descalço. )


ISAÍAS Muxiba:(Protegendo-se do bafo de vinho do padre:)
_Tsk,Tsk,Tsk...(Para o público)...Eu num tava dizeno?..(para o
padre:)...Ih, meu Sinhôzinho...O sinhô tá bem? Qué um café amargo,
um chá de lôro, alguma coisa?

PESSANHA: _Ai, diabos! És tu, negro? O que queres a est´ hora?

ISAÍAS Muxiba: _Ó só...A situação não tá nada boa. Sábi aquêie seu
amigo adevogado, Sêo Feliciano Viéga? Pois é...Ele teve aqui. Entrô
soltano fumo pelas venta, sentô, isperô isperô e, daí saiu porta à fora,
escarano fogo feito dragão de chinês.

PESSANHA:(Se recompondo, mais irritado ainda)_O Viegas? Esse é outro.


Pensa que é um Cristo. Ora raios! Veio cobrar-me, o puto!

Isaías MUXIBA:_E tem mais. O senhor trate de se compô logo porque, tá


lá embaixo, em vossa porta, um escravo do tá de...(buscando a
palavra:)...mãosinhô, munsinhô....Monsinhô Nunço Rodini! É isso! E é
bom o sinhô ir depressa, porque o nêgo tá lá embaixo, esbaforido.

(Padre fica animado de repente. Corre para a cama, pega os tamancos,


afobado )

PESSANHA:(Circulando pelo quarto , eufórico)_Ai, Maria Santíssima! O


Núncio?! Me chamando a uma hora destas?...(Levantando os
braços:)...Milagre! Milagre de Santo Antônio!..(confidenciando para o
público:)...Sim, sim! Só pode ser um sucesso daquele Santo. E olha que
não fazem nem dois minutos que lhe dei o bendito castigo!..(avançando
para o sacristão:)...Ai que são notícias de Roma! De Roma, Muxiba! De
Roma !

(Beija o escravo no rosto e sai de cena, correndo. Na saída grita para Isaías:)

PESSANHA:(fora da cena)_Um bom banho, Muxiba!Prepara-me um banho


de rei!

ISAIAS Muxiba:(limpando a boquecha beijada:)_Iche! Que nojo! ´Cês


viram? O Sinhozinho me babou todo, Sô!

(Sacristão vai saindo de cena. Black out.)


Cena I V
A MONJA LOUCA

(Negro manco com uma calça esfarrapada, entra carregando um cartaz que
coloca num canto do palco. Música de filme de terror. Foco acentua o cartaz.
Negro manco aguarda impaciente enquanto público lê.)

No Theatro da Rua do Mata Porcos


A Companhia Theatral
Amantes de Dante
Em honra de Nsa. Senhora d´ Ajuda
apresenta:
A TRISTE HISTÓRIA DA
MONJA LOUCA
Tragédia em 1 acto de Manoel D´Oliveiros
Com os mui famosos actores e actrizes
chegados directamente da Europa:

Elise Marie Vermont


Giácomo Aymone
Manoel D´Oliveiros
Augusto Vilaboim
e Amelinha Pereira
ESTRÉIA HOJE ! Principiará às 9 horas

(Negro manco sai carregando o cartaz. Batidas de Molière. Iluminação sugere


luzes de ribalta, como teatro antigo. Música segue. Homem branco elegante,
entra sorrateiramente, carregando um lampião aceso, com a sombra da
tapadeira lhe escondendo o rosto e acompanhado por um escravo. Escravo
traz uma mulher manietada e encapuzada. Mulher se debate, cai no chão,
tenta correr mas é pega. Homem se afasta e dá suas ordens por meio de
gestos apressados. Homem instrui o escravo a colocar a mulher numa caixa
de madeira, semelhante a um esquife, que está num canto da cena. Mulher
grita e esperneia todo o tempo. Mulher é posta na caixa. Música cessa. )

HOMEM elegante:_Arre, diabos!Vamos!Nunca perseguistes uma galinha,


negro? Pronto...assim...(escravo arrasta a caixa que range no
assoalho)...Para o Convento D´Ajuda, depressa! A bondosa Abadessa
nos espera...Ah, se tu me abres a boca, negro!..(fazendo sinal para que o
público se cale:)...Não me olhem assim, como se estivesse à praticar
experimentos macabros, como um Frankenstein. Nem pensem
tampouco que estou a enclausurar minha própria filha num convento.
Não, não!..Quem está a enclausurá-la é este bom escravo,
ora!..Salvando-a das pútridas tentações mundanas. Será Monja do
convento d´Ajuda...Devia agradecer-me por lhe estimular
esta...bendita vocação. Quem sabe um dia não será ela uma Santa?..
Vamos, negro! Vamos! Chispa!
(Música volta. Homem sai, deixando a cena às escuras. O negro arrasta o
esquife pelo palco. Black out. Mulher grita, já fora de cena.)

MULHER: _Oh, não, papai!..Não! Maldito sejas! Maldito sejas!


Cena V
O NÚNCIO E AS CATACUMBAS

(Luz retorna lentamente. Padre velho, autoridade religiosa, sentado numa


escrivaninha, lendo o jornal. Em certo ponto da cena, ainda não iluminado, um
painel transparente, como vitrais de uma igreja. Ao lado do painel, caída no
piso, uma marionete em forma de esqueleto, do tamanho de uma mulher.
Música católica marcará os momentos de ascensão do esqueleto. Batidas de
aldrava numa porta. Escravo entra e anuncia, humilde:)

ESCRAVO: _Licença, Sinhôzinho! Licença! A sua bênção!..Pois é o Sinhô


Pároco Pessanha que tá aí, bem na porta de voss´elença !

Dom RODINNI:(Sem tirar os olhos do jornal ) _Andiamo, negro! Presto, vá!


Que entre logo il pároco, cáspita!

(Pessanha entra. Núncio se levanta para recebê-lo.)

Dom RODINNI:_Per que la demora? Per que me facce sempre aspetare


tanto, Pesagna? Sapeve que detesto questa deseleganzia! Senta , vá!

PESSANHA:_Chamaste-me, excelência? O Monsenhor haverá de


desculpar-me. Bem sabes dos imprevistos que ocorrem na paróquia.
Imagine que hoje...

Dom RODINNI:(Duvidando, severo)_ Ma come?! Cinquenti minuti com uno


imporevisto en paróquia? Cáspita!! Giusto oggi, sábato? Ma que?

PESSANHA:_...Sim, mas...Deixemos de lado as miudezas. Afinal, que


notícias o monsenhor nos traz da Terra Santa?

Dom RODINNI: (Irônico) _ Querere sapere di Roma? Ecco. Io parlo ma...il


fato é que il vaticano, fratello, é stato en una grande confuzione!

Padre PESSANHA:_ Mas excelência...Afinal...falastes ou não falastes com


o Santo Papa?

Dom RODINNI:(Em tom enigmático)_Trago de viaggio niente de buona


nova...(medindo as reações de Pessanha)...Tá, va bene...Apenas una
picolla buona nova!..Ma primo, devo parlare que Roma anda molto, ma
molto agitatta com tue fama. Capisce?

PESSANHA (envaidecido):_Minha fama?! Como assim?..Não vos


compreendo! Ah....Queres matar-me de ansiedade?
Dom RODINNI:_Si! Oh...No, no! Asculta. In veritat, la tue mala fama!
La tue e, de tutti tue amicci de questo clero brasiliano. Il Clero
Romano, molto parlare sobre deprimenti incidenti in Brasile...

PESSANHA:_Mas...O que dizes?! São...são injúrias, caro Núncio. Nada


mais que maledicências, futricas! Vossa excelência bem o sabes.
Temos sido vítimas da antipatia do Bispo. Não somos piores nem
melhores que...

Dom RODINNI:_Molto scandalo! Uno dopo altro. Una insuportabile


situazione.

PESSANHA:_Ah...mas são intrigas de vivandeiras, excelência.


Vendilhões de templos! Somos como o clero de qualquer outro império
nos trópicos. Temos tido que vencer aqui os maus hábitos do
gentio...índios, africanos. São muitas as tentações. Vossa excelência
tem sido testemunha. Tem nos compreendido, ora pois!

(Escravo do Núncio entra em cena, com copos de água numa bandeja. Demora
a servir, atento à conversa. Rodinni, incomodado com presença do escravo,
faz um gesto para que ele se apresse e saia. )

Dom RODINNI:(Para Pessanha, logo que o escravo some de cena)_Ecco!


Ma...Sem drama, vá! Il caso e que... per conta de questa fama, questo
comportamento me deste molto lavoro en questa empreitata. La
Nostra Eminência Reverendíssima, il Papa Gregório, tenne molto mala
imprezione sobre il lavoro católice aqui in Brasile. Molta
preocupazione, Capisce?

(Vulto do escravo do Núncio bisbilhota a cena, através do painel.)

PESSANHA:_ Pois deves saber que...isto, é culpa também de vosso


prestígio junto ao Imperador...oh sim! Tudo causa inveja. Vossa
condescendência para conosco, seus seguidores, vossa modernidade
no trato com as coisas de Roma. Bem sabeis que mulheres...

Dom RODINNI:_Va bene! Va bene! Il questione é que, a partir de oggi,


ha de controlare tue...adorazione per il pecato dal´la carne. No
pretendo ma ascultare paroli de prevaricazione, muglieri, donna de
dolce vita i padre, Capisce? Se io, Dom Rodinni, non fosse il Nunzio,
tue amicco, que facciere, anh?

PESSANHA:_Mas...Caro Núncio! O que se passa? Com que então...

Dom RODINNI:_ Ma, va bene...cambiando il assunto...(sorrindo, fazendo


suspense:) ...Tutto per tutto, mio caro fratello, tu essere nato sotto una
buona stella! Tene molta, ma molta fortuna! Imagina que, per la tue
fortuna e...per mio esforzo, é claro, tutto é chegato a buono termo.
Nostra Santitat Eminentíssima, há sido simpática a il nostro intento.

PESSANHA:_Ora...Estavas a me assustar, senhor! Deus seja louvado!


Verdade? Com que então, teremos as relíquias?

Dom RODINNI:_Si! Si! Teremos il Despoji sacrati! Ritorno altra volta e,


presto a Roma, afim de recolhere il ossi en la propri catacumbi.

PESSANHA: _Catacumbas? Mas....

Dom RODINNI:_Si, Si!..Teno la satisfazione de informare cosí


que...Roma ha concordato também com una promozione per te, a la
grande condizione de Monsegnor! Conforme io ha prometido, ecco!

PESSANHA:_Eu?! Monsenhor Manoel Peixoto de Alvarenga Pessanha!


Com que então terei enfim, o título e os ossos de um Santo?Terei os
despojos de um milagroso santo Cristão? É isto?...(dando um pulinho de
alegria)...Ai, Jesus!

Dom RODINNI: _Calma, calma! Io no credo que tenemo uno Santo ma,
tive notízia de molti mártiri caduti per la brutalitat de centurioni
romagni...Buoni esqueleti in questi catacumbi (com ar travesso:)...Io
tenere uno plano belíssimo...Buono gosto! Cosa fina, leggera!
(revezando o olhar entre o público e o padre:)...O que pensare te, de una
virgen, anh?...Imagina...(desenha o corpo de uma mulher no ar, saboreando
as palavras:)...Il fragile e picollo squeleto de una casta ragazza ?

(Escravo, com a cabeça aparecendo atrás do painel, julgando ter sido


descoberto, foge para uma das coxias. Pessanha, ouvindo o barulho, olha para
o painel mas não vê nada. Se volta para o Núncio, assumindo um ar cúmplice.
Os dois se abraçam, sorrindo. Rodinni de costas para o painel, nada vê. Ao
lado do painel, esqueleto iluminado, vai sendo levantado, lentamente. Som de
chacoalhar de ossos. Música católica ao fundo. Pessanha se assusta. Olha para
o painel e vê o esqueleto balançando desengonçadamente. Luz sobre o
esqueleto, se apaga. Pessanha continua a olhar para o painel, aterrado. )

PESSANHA:(Para o Núncio)_Oh meu Deus! Cruz credo!..(Se benze:)...É por


demais mórbido, Excelência! Aterrorizante!

(Núncio olha também para o painel, desconfiado mas nada vê. Ossos
chacoalham de novo. Luz do esqueleto volta. Esqueleto reaparece, vestido com
um saiote e uma túnica de uma jovem da nobreza romana. No alto do crânio,
usa uma coroa de rainha.)

PESSANHA:_Perdoe-me o caro Núncio mas...a mim, me parece que por


aqui, ninguém adoraria a uma...a uma caveira. Provocaríamos o terror
em meio aos nossos fiéis. Não! Não! Que horror!

Dom RODINNI:(Olhando em torno )_Ma cosa stá dicendo, Pesagna?


Horror, horror! Come horror?..Que succede? Tene ancora il vízio de´lla
blasfemia? Come uno hereje! Io parlare sobre ossi sacrati, cáspita!
Relíquia de il cristianismo.

(Braços do esqueleto se abrem para Pessanha, com gestos graciosos. Núncio


se aproxima do painel, atento mas, ainda assim, nada vê. Coloca a mão no
queixo, olha para Pessanha, concentrado numa idéia:)

Dom RODINNI:(Paternal)_Aspeta! Aspeta uno instante!..(Pessanha tenta


falar algo)...Pessagna, mio caro bambino. Escusa ma...tue opinione é
dispensata, tá? Parli ancora, solo quando io te darò permesso! Io teno
la soluzione aqui...(apontando a própria cabeça:)...en la testa,
capisce?

(Ossos chacoalham de novo. Pessanha se aproxima do esqueleto, cuidadoso.


Iluminado por traz, o esqueleto parece ter um esplendor nas costas. Esqueleto
começa a dançar, sempre desengonçadamente. Pessanha dá um grito de pavor
e recua para longe do painel. Esqueleto se agita, como se também se
assustasse com Pessanha e cai no chão, desaparecendo de repente.)

Dom RODINNI: (Surpreso com a performance de Pessanha )_Pesagna!?


Ferma, stúpido! Ma que succede? Ferma com questa crise de
demenzzia. Io tenere giá una idea maravigliosa! Una inspirazione...Una
idea magistrale...(Para o público, apontando de novo:)...Io teno una mente
veramente privilegiata.

PESSANHA:(Olhando para o painel, ainda assustado.)_Oh!..Desculpe-me,


excelência mas...foi uma visão...dantesca, esta que tive...Eu penso
que...

Dom RODINNI:(Para Pessanha e para o painel)_Visione?Ma que visione,


uomo? É stato locco?(Pessanha se levanta, como se saísse de um
transe.)...Asculta o no asculta o que propogno faccere con il ossi, anh?..
Porca miseria!

PESSANHA:(Recusando com receio)_ Não, não, Excelência! Francamente,


não vejo siquer necessidade de saber os benditos detalhes.

Dom RODINNI: _Ma que?Cáspita! É adivinho


ancora?..(desconfiado)...Capisco! Deve esere il vino! Ecco! Il malledeto
vino...(convicto:)...Indecente! Indecorozo!

Padre PESSANHA:_ Excelência?! Calma. Tranquilize-se. Compreendas


que...

Dom RODINNI:_Ma come? Tu no capisce niente! É stato aereo, envolto


em...miraggi con Santi. Se é stato locco, aspeto que esere manso. Per
favore. Questo tipo de...negozzio, no é para malati di mente, stúpidi.
Molto cuidado, capisce?..(Confidente:)...Asculta aqui, mio fratello...una
altra parole. Tu no dimenticare que, tanti favori tene uno
custo...giustifica una regia retribuizone, anh?

PESSANHA:(Mais calmo)_Oh, sim...mas claro, excelência! Esteja certo


que recompensarei a Nunciatura muito bem. O vosso esforço...(Escravo
do Núncio volta para recolher a bandeja e os copos e sai de cena)

Dom RODINNI: (Segredando)_Piano, piano, stronzo!..

PESSANHA:(Desviando os olhos)_Ora...de certo que sim, Excelência! Isto


é...Se conseguires uma santa...mais graciosa, terei os meios para
recompensar-vos à altura.

Dom RODINNI: _E...tu, tene il modo, una manera de saldare


tue...compromizo, anh?

PESSANHA:_Mas isto está mais do que claro, excelência! Posso adiantar


que a paróquia de Sant´Anna tem meios para arcar com esta justa
despesa. Bem...temos amigos...

Dom RODINNI (desconfiado)_ Amici? Ma que amici. La tranzacione é


secura o non é secura, cáspita!?

PESSANHA:_Vossa excelência sabe como é...fiéis de primeira hora,


clientes de favores divinos e, penso que, não seria nada demais a eles
recorrer nest´hora. Tranquilize-se, caro Núncio. Teremos sucesso!
Muito sucesso, creia-me!

Dom RODINNI:_ Ancora vá! Per oggi, va bene. Conversamo


domanni...(De novo intrigado com o painel:)...Visione! Visione! Teno
sempre paúra de questo comportamento, de vostra indiscrizione.
É...molto, molto periculozo! Bocca chiusa, per favore! Non vá a andare
per la via, a parlare come uno parvo. Sono capazi de sospender il tue
voto, capisce?

(Pessanha se ajoelha para tomar à benção ao núncio)

Dom RODINNI:(Afastando a mão, ríspidamente )_Cáspita! Larga! Dispenso


questo beja-mano! Andate via! Vá!..(Pessanha insiste)...É veramente
incredibile! Ma que crápula! Levanta vá! Prego! Per oggi, stamo
acertato! Vá! Vá logo, stronzo! Ciao!

(Pessanha sai de cena, Rodinni olha intrigado na direção do painel do


esqueleto mas não vê nada. Volta-se,sai e bate a porta. Black out. No escuro
se escuta o chacoalhar dos ossos.)
Cena VI
A CACHAÇA BENTA

JORNALEIRO:(Vindo pela platéia)_Sentinela da Monarquia! Extra! Extra!


Paróquia de Sant´Anna encomenda relíquias do Vaticano! Despojos
sagrados serão trazidos para o Brasil! Olha o Sentinela da Monarquia!
Extra! Extra!

(Jornaleiro sai gritando. Bandinha de música entra tocando, também pela


platéia. Escravos aguadeiros e capoeiras, lideram o cortejo. Capoeiras entram,
desafiando o público. Entre eles, Salustiano e Chico Angola. Atrás, junto aos
músicos, uma pessoa carrega uma surrada bandeira do Divino Espírito Santo
e, com uma sacola, recolhe esmolas pela platéia. Todos sobem ao palco. Luz
crescendo. Maria Massangana, com um tabuleiro no ombro, entra gritando
pregões. Músicos, escravos e populares, já no palco, beijam a bandeira. Alguns
dão esmolas. Folia do Divino se acomoda, conferindo o conteúdo da sacola.
Fregueses aparecem nas sacadas, pedindo coisas. Sacadas estão enfeitadas
com toalhas, panos e estandartes. Burburinho vai aumentando até que, os
gritos de pregão de Maria, se misturem aos ruídos da praça. Música segue
ao fundo.)

MARIA Massangana:(Gritando)_Óia os artigo do ramo! Artigo do ramo!


Pra iaiá mocinha, pro ioiô dotô! Pra véio ficá moço, santo remédio é a
Pomada das Sete Chaga de Cristo! Vai querê? Óia o Pente, sabão,
agúia, porcelana ingrêsa. Óia os artigo do ramo, vai?

FREGUÊS:(Da sacada, com voz obscena)_Psiu! Ô negrinha...nádegas de


tentação! E um cadinho de prazer, heim? A negrinha dá ?

MARIA Massangana:(Com as mãos nas "cadeiras", parando para olhar o


freguês)_Ora, pois sim!.. Dô não sinhô!..(Batendo na tampa do tabuleiro,
falando bem alto)...mas...tenho aqui bem fresquinha, a bunda da vossa
santa mãezinha!..O sinhô vai querê?

(Freguês, some da sacada, irado. Maria vai para perto do chafariz, montar sua
tralha. Freguês aparece na praça, no encalço de Maria que, não o vê. Pessoas
que pediram coisas chegam à praça e cercam Maria. Metade do grupo de
capoeiras se afasta para um canto da cena. Os demais, inclusive Chico,
Salustiano e alguns populares brancos, cercam Maria numa roda que se agita.
Algazarra , gritos .)

FREGUÊSES:
_Ô preta! me dá essa agúia!
_Esse pente, é de osso de boi? Então me dá, me dá!
_ Num me empurra não! Não me empurra não, sô!

FREGUÊS:(Abrindo espaço na roda de repente, para Maria, ameaçador )


_Quero ver agora... se és mesmo boa de língua! Falaste o que de
minha mãezinha?

(Freguês segura Maria. Salustiano empurra Chico Angola para dentro da roda.)

SALUSTIANO:(Empurrando Chico)_ Vai, pamonha! Atiça êie, anda!

(Chico Angola entra na roda e barra o Freguês. Roda se abre. Brancos se


juntam ao Freguês. Chico salta para trás. Freguês puxa faca e chuta o
tabuleiro de Maria. Maria foge. Malta de capoeiras, do canto da cena, se
aproxima e invade a roda, de repente:)

MALTA:(Assobiando, gritando em coro, empurrando os amigos do freguês


para fora da roda)_Qué vê a cutia assoviá, né? Mata! Mata! Isbudega
êies !

(Amigos do Freguês são derrubados. Freguês dá uma rasteira em Chico


Angola, que cai puxando uma navalha. Chico devolve a rasteira e Freguês
deixa a faca cair.)

FREGUÊS:(Fugindo, gritando, perseguido pelos capoeiras.)_Polícia! Acudam!


Polícia!

(Som de apito. Policial entra, com o fuzil. Maria e escravos se dispersam nas
coxias, perseguidos pelos fregueses brancos e o policial. Tiros e gritaria em off,
ficando distantes. Silêncio. Pausa. Maria recolhe a mercadoria caída. Rearruma
o tabuleiro, apressada. Isaías Muxiba entra em cena correndo.)

ISAÍAS Muxiba:(Chegando, fingindo surpresa)_Ai meu Santo Expedito!


Quem diria, sô! Cumádi Maria Massangana! Era cuntigo o rolo, era?

MARIA Massangana:(Ressabiada:)_Cerra essa matraca, home! Já foi


embora o guarda?Já?

ISAÍAS Muxiba:_Calma, Maria! Já passô. Sumiro lá pras banda do Morro


de Santo Antônho, sô!

MARIA Massangana:_E se êis volta? E se o mardito me pega...Cruz em


credo!

ISAÍAS Muxiba:_Hum!..Cum os capoêra tudo te adefendeno?..Tu é


sonsa, heim!

MARIA Massangana:_ Louvado seja Deus!

ISAÍAS Muxiba:_Sussega, muié. Êies vão ficá por lá, intretido. Vai sê
guerra, inté de noite, sô! Mas...até que veio a caiá...Só assim eu
achava ocê, cumádi. Sumida, heim!
MARIA Massangana:(|Parando de arrumar o tabuleiro)_Ô Muxiba...Inté
parece! ´Cê num me viu antisdonti na Rua dos Latoeiro, homi? E onti
mêmo, aqui no Campo?

ISAÍAS Muxiba:_Isquece! Eu tava mêmo agoniado pra encontrar ocê,


muié!..(Fofocando no ouvido de Maria)...Bom... A cumádi já sôbe di
Benádo?

MARIA Massangana:_Lá vem ocê cum futrica. Então num sei? Nem me
fale! Tá lá na Detenção, num é mêmo?

(Luz caindo, como se fosse chegando a noite. Maria pendura o tabuleiro no


ombro.)

ISAÍAS Muxiba: _Deus que me perdoe mas...ô pádi du cão, num é? É di


vera que êie botô o Benádo pra vender cachaça, foi?

MARIA Massangana: _Como se tu num soubesse...Num é tu que é o


sacristão, pau mandado desse cura, homi?

ISAÍAS Muxiba:_...Dissero que os meganha, tomô cada mirréis que


cumpádi Benádo tinha nos bolso. Diz que tava ajuntando pra comprar
alforria. Num foi mêmo?

MARIA Massangana:_Futriquêro mardito! Tu fica lá na igreja, grudado


qui nem goma na batina daquêie pádi, só oiando?! Cachorrada tua!
Tu num foi capaz de dá um consêio siqué pra Benádo, que nem eu dei!

ISAÍAS Muxiba:(seguindo Maria)_... Se consêio fosse bão...Ah...Vai cum


carma, né?

MARIA Massangana: _Pois ocê pode dizer pr´êsse pádi tratar de ir logo
lá na Detenção, pegar o Benádo di volta...O Benádo é posse dêie, ora! É
escravo dêie qui nem ocê. E sábi do que mais?..(pegando o tabuleiro,
decidida:)...Sou eu é que vô lá, já já nesse pádi di meia pataca. Ocê já
pódi indo lá na frente, agora mêmo, pra dá o recado pr´êie!

ISAÍAS Muxiba:_É, tá certo. Pódi inté ir mas me diga pra quê muié?

MARIA Massangana:_Ué?! Pro pádi ir lá e pronto, sô! Tirá êie das grade,
ora ora!

ISAÍAS Muxiba: _Pois sim! Que nada. O Benádo jurô na pulíça, di pé


junto, que é forro, gente!Os meganha agora vão querê enquadrá êie
como dono du negóço da pinga...

MARIA Massangana: _ Isso é intriga tua, cachorro!...(nervosa, se


preparando de novo para sair)...Óia aqui, ocê num me diz mais nada que
já tá quasi de noite. Eu tenho que ir embora....
ISAÍAS Muxiba:_Ih!..Tá me enxotando pruquê, heim?

MARIA Massangana:_É que isso já tá é me cheirano mal...E se o Pádi fizé


queixo duro, num fô lá, na Detenção? E se êie arresolvê deixar o
Benádo pra lá, pra morrê de chibatada no Calabôço, heim?

(Chico e Salú voltam da fuga, distraindo Maria. )

SALUSTIANO: _...Lá perto do quarté da Mata Porco, aparecero mais uns


montão de puliça...Víge!..Eu mais esse Chico aqui, pum, sumimo!..Os
outro comêro os meganha no pau, na faca...Tsc, tsc, tsc, maió
sanguêra! Logo logo os meganha vem aí, assanhado que só veno,
atrás di eu mais Chico...

ISAÍAS Muxiba:_Vem nada. Esse circo todo é pru causa do Benádo. Ocês
são pé de chinelo! A puliça acha que êie é que é o chefe de ocêis, sô!
Querem acabar com a malta da ´Cadêra da Sinhora´, home! Tudo pru
causa da cachaça..

CHICO e SALU:(Curiosos)_Pru causa da cachaça?! Num me diga, Muxiba!

ISAÍAS Muxiba:_Intão num é?(Apontando Maria)...Pois é o que eu tô


tentano dizê, agora mêmo, pra essa outra tonta?

(Maria segura Isaías pela roupa, com raiva)

CHICO Angola:(Pra Isaías, curioso, apartando os dois)_Que babado é esse?


Fala logo Muxiba! Sinão...inté eu te bato?

ISAÍAS Muxiba:_ No atropelo da prisão, pra num estragar o negócio,


mesmo sem o papé da alforria, o Benádo mintiu que é forro.

MARIA Massangana:_ Pois é. É o burro do Benádo agora quem paga o


pato. Passa por bandido capoêra, né mêmo?

ISAÍAS Muxiba:_Ué?!É isso num é bom? O páruco vai tê que fazê uma
carta de alforria de verdade, ora! Carta benzida e sacramentada, com
data de muito tempo passado. O Benádo pódi inté pená um tiquinho no
calabouço, no dique da ilha das Cobra, na estrada da Tijuca, quebrano
pedra mas...depois, pronto! Sai forro, de papé passado, por aí ó! Só di
flozô.

SALUSTIANO:(Revoltado. Maria avança sobre Isaías)_ Mas que flozô


Muxiba? Ocê pensa que cumprí pena de capoerage é essas regaía qui
ocê tem na igreja, é? Hum!..Cum trezentas chibatada no lombo?

ISAÍAS Muxiba:(para Chico, se protegendo de Maria)_Ai, ui!..E então num é?


Contrabando di pinga, gente!..É caso grave! O Vigário Pessanha vai tê
que abafá, num é mêmo!? Se um escravo dêie, tá carregando cachaça,
de quem é a mercadoria? Que é que ocêis acha? Êie vai dizer que é o
que? Pinga benta? Óia...O Sinhô Bispo num ia gostar nadica dessa
história.

MARIA Massangana:(Para Chico e Salustiano)_Mas num é que é isso mêmo,


gente? O pádi vai tê que livrá a cara de Benádo, Sô! Inda mais...(Para
Isaías)...Ocê tá quereno dizê que...O Pádi tá mais encalacrado qui siri
na cumbuca!..(Sorrindo, animada:)...Gente! Benádo devi di tá de sabido
nesta história, di caso pensado, num é mêmo?

(Gritos de multidão. Chico e Salú correm para olhar o que é. Somem numa
coxia)

ISAÍAS Muxiba:(Abraçando Maria .)_ Viu só? Fazendo mau juízo di eu?

MARIA Massangana: (Se afastando de Isaías, divagando feliz:)_Ô, Benádo!


Nego sabido, né?

ISAÍAS Muxiba:(Vigiando se Chico e Salú já voltam) _ Sabido e sortudo...(se


chegando para mais perto:)...Falano nisso... Óia aqui, enquanto o Benádo
tá preso ocê num precisa ficar aí largada, né? Num tá vendo esse nêgo
aqui? Pedinte, quase ajoeiado? Aproveita que êie tá lá...descansando
da lida, e dá uma chance p´reu, vai?!

MARIA Massangana:(Se afastando de novo, com nojo, cortando a conversa )


_Cê sai daqui, nêgo inchirido!

ISAÍAS Muxiba:(segredando)_Ó só...Se nóis tá junto, te arrumo aquela


coisa qui tu nem pensa mais di sonhá de ter(valorizando:)...Posso te dar
inté...alforria!

MARIA Massangana:_´Cê tá di besta, é?! Que alforria? Pru causa de quê?


ocê num passa de um morto á fome?

ISAÍAS Muxiba: _Pois num tô te dizeno? Pru causa da Santa, ora! Pois
eu já num disse que o pádi táva quereno? Um negóço aí pra inaugurá
essa Santa nova. É só êie acabá de ajeitá as coisa que vão chegar de
Roma, sábi? Um chumaço de cabelo da Virge, uns ossinho, uns papé aí,
sei lá. Mas, bom...daí êie me disse que, se eu colaborá, ele vai me dá a
carta...pra mim e pra quem mais tivé comigo. Entendeu né, sua boba?

(Chico e Salustiano voltam. Escutam as últimas palavras de Isaías.)

SALUSTIANO:(Rindo)_Entendemo é que tu é um bocó, um paspáio que


sai por aí, contano prosa. E agora? E se nóis ispaiá isso aí pela Corte,
heim? E se nóis contá pra puliça que o Pádi qui é, di vera, o dono da
pinga, heim?
ISAÍAS Muxiba: _Faz essa mardade cum o pádi, não Salu. Inda mais
agora, que o caso da Santa saiu inté no jorná...

CHICO Angola:(Pra Salustiano, curioso)_No jorná?! Ah corcunda faladô dos


quinto! ´Cê ouviu só, mano! Isso parece trunfo bão, num é
mêmo?..(Para Isaías)...Fala mais linguarudo, fala!

ISAÍAS Muxiba:(Para Chico e Salu, andando atrás de Maria,


assustado)_Não!..Pelo amor de Deus! Eu num disse nada disso!..Cês vão
estragá tudo! Óia aqui...foi só pra assuntá cum a muié. (para Maria,
meloso, envergonhado:)... Ai, Maria! Diz p´rêis, diz! Nós tava ou num
tava...

(Chico e Salustiano zombam, riem)

MARIA Massangana:(Indo embora:)_Tava o que?! Magina?! Eu, me


assuntá com um corcunda que nem tu? Cê num se enxerga né? Fica só
de futrica o dia inteiro, comendo vinho cum farinha. Tu acha que é isso
que quero pra mim, é? Grudá nessa sua baba di quiabo? Ih!..Sai!..Sai!
Me dêxa em paz, seu...camelo preto!

(Gritos de multidão, ficando próximos. Chico Angola se apavora)

CHICO Angola:_Ai meu Cristo! A´lá Salu! E vem êis de novo! Tamo
condenado! Tamo condenado! Vam´bora chispá, home!

(Grupo de policiais armados, á frente de populares raivosos invade a cena.


Gritos, chingamentos, tiros. Maria, Isaías, Chico e Salú correm, somem
rapidamente, com a turba atrás deles. Barulhos prosseguem um pouco mais
em off. Black out.)

Cena V I l
LA BELLA SONATTA

(Cais iluminado. Ruído de sereia de navio. Gritos ritmados de escravos


estivadores desembarcando carga. Dom Rodinni chega de Roma. Escravos com
a bagagem, em fila, como num safari. Os da frente, trazem duas caixas de
madeira, do tamanho de caixotes comuns. Núncio, caminha para o centro do
palco. Pessanha aparece na outra extremidade, sorrindo. Não resistindo a
espera, Pessanha corre para Rodinni, como se fosse cair nos braços de um
grande amor ausente. )

PESSANHA: _Oh, meu bom e querido amigo! Que prazer! Folgo em vê-
lo. Pareceu-me uma eternidade o decorrer destes dias. Venha, venha!
Dá cá um abraço em seu fiel irmão e discípulo, ora pois!

Dom RODINNI:(Cansado)_Ah! Si! Ciao, mio fratello!.( se fazendo de


confuso:)...Oh! il malestare de mare. Ma...si, si!..Come é felice questo
encontro!..Oh fortuna! Siamo vincitori, fratello!
Vincitori!..(Mostrando)...Il ossi da´lla Virgem! É belíssimo! Veramente
storico, questo momento.

PESSANHA:(Eufórico, olhando as caixas)_ Ai Jesus! Enfim! Uma autêntica


santinha para a paróquia de Sant´Anna? Os fiéis ficarão exultantes!
Haverão de acorrer às centenas, aos milhares! Mas...antes que me
esqueça!..(segredando:)...Que o bom Deus não nos ouça...diga-me, caro
Núncio...tem nome já a cachopa?

Núncio RODINNI:(Falando alto, para os escravos ouvirem )_Ma que? É certo


que que tenne nome, cáspita!..É una autentica cristianna,
uomo!..(Apontando para as caixas)...Questa ragazza, quasi una
bambina...é la gloriosa mártir romana Prisciliana!..(Em tom mais baixo,
olhando desalentado para as caixas:)...Bene...per ora no passare de
uno...esqueleto...Una cavera, ma...

PESSANHA:_Ai, ai, ai!...Dissestes que disto cuidarias vós, ora pois !

Dom RODINNI: _Aspeta, fratello. Sapevo molto


bene...Ancora...(Anunciando com alarde)...É chegata lla hora dalla grande
sorpreza! Il toque de il maestro!

(Música cessa. Rodinni estala os dedos, em direção ao cais. Três homens


entram, em direção ao centro da cena, como se desfilassem. As vestimentas
os fazem parecer um misto de pintores e mágicos. Os três homens se
aproximam dos dois sacerdotes e se curvam, respeitosamente.)

PESSANHA:(Com admiração)_...Mas sim! Sim! Como não me apercebi!


Estes alegres rapazes vieram convosco?..(Batendo palmas, feliz:) Oh,
claro! São os artistas...Mas que idéia!

(Homens, agora um a um, desfilam pelo palco, com passos elegantes e


afetados. Após uma volta, curvam-se para a platéia, se apresentando. )

AMADEO Buconero:(Reverente)_Ciao,padre! Amadeo Buconero...Segundo


tutti il giornnali de Italia, sono io il primo maestro nell´arte da´lla
sculture en cera...Io faccere uno piú bello corpo de donna per la
giovane Santa...(Oferecendo a mão flácida para Pessanha:)...Molto piagere!

PAOLO Moricone:(Com modos femininos)_...Signorino! Signorino, per


favore! Io sono Paolo Moricone. Il miglior figuriniste de Bologna. No ha
vestimenti sacerdotali em tutta Itália, sen la marca de lla mia famiglia,
ecco! Com seda, muselinne e mia modesta arte, havemo de tenere
aqui, una santa plena de eleganza, una veramente bella princeza
romana!

GIANCARLO Belladona:(Com profusão de gestos)_Ciao, padre! Don


Giancarlo Belladona, di Nápoli, per tutto dispore. Scuse ma...uno
artista dalla morte, il miglior construtori di vitrine mortuari di tutta
Italia! Per la nostra picolla santa, io facere uno rico letto nupziale.
Comme il de...la Bella Sonatta, capisce? Piagere tanto, padre mio!

Dom RODINNI:(Aplaudindo, apontando os artistas:)_Ma vê? Que grata


sorpreza, anh?! Sono tutti bravi artisti! No é idea belíssima, Pessagna?
Quanta astúzia! Quanta inteligenzzia teno io?

PESSANHA:(Exultante)_Estou deveras pasmo, caro amigo! Não


poupastes mesmo! Não ecomizastes nenhum esforço, benza-o Deus!
Vamos ter a cá, a mais autêntica santa de todo o Império do Brasil!

Dom RODINNI:(Animado, entregando um rolo de papéis a Pessanha )_Presto!


Il documenti de il papa Gregório! Come vê, é uno squeleto, veramente
autenticato!..(Apontando as caixas)...Per mio lavoro, Pessagna, ancora
há soluzione bravíssima per la questione de ossi, ecco!.(condoído,
penalizado:)...No dimenticare que, il drama, la storia de questa picolla
persona, é veramente triste! Piú triste! Sofrimenti tanti! Aura
benedita!..(Interesseiro:)...E il miglior é que...(Eufórico,
segredando:)..questa santitat, evoca la possibitat de molto miracolo en
tue parócchie, mio Fratello! Per te e, per me...buona fortuna, capisce?

(Abraçam-se de novo. Artistas se dão as mãos em torno dos dois padres. Luz
vai caindo. Os dois sacerdotes, segurando a bainha das batinas, dançam em
círculo, em meio aos três artistas, alegres como crianças, cantando.)

PESSANHA e RODINNI:(Como tenores líricos)


_Augúri!..Buona fortuna!
Viva la virgem de lla buona fortuna!

(Luz caindo. Música cessa. Black out. )

Cena V I l I
PAIXÃO E MORTE DA VIRGEM PRISCILIANA

(Música de circo. Sobre uma mesa um esqueleto desengonçado. Moça entra,


dançando como assistente de mágico. Dá a volta no palco, chama os três
artistas e pede aplausos. Moça cumpre todas as suas ações dançando. Artistas
fazem, com esforço, com que o esqueleto fique esticado na mesa. Viram-se
para o público e agradecem. Esqueleto volta a se desengonçar imediatamente.
Repetem diversas tentativas de engonçar o esqueleto. Na última, com a ajuda
da moça, conseguem manter o esqueleto deitado. Sem largá-lo agradecem
aplausos do público com gestos de cabeça. Moça sai mas logo volta com um
biombo que cobre o esqueleto. Artistas ficam atrás do biombo. Luz geral cai à
penumbra. Luz forte vaza por trás do biombo. Música cessa. Rufos de tarol.
Sombras dos artistas se movendo freneticamente são vistas pelo público, como
se trabalhassem como cirurgiões. Objetos e ferramentas, de tamanho
exagerado, são atirados de dentro do biombo para o palco. Artistas gritam em
meio ao barulho dos objetos lançados.)

ARTISTA 1_Andiamo ragazzi!Cera!Cera!


ARTISTA 2_Vidro, aqui...porca putana! Si! Si!
ARTISTA 3_Organza! Oh! Ma que bella! Que precioza!
ARTISTA 1 _Musseline, presto! Mama mia!_Maquiage! Tinta! Sangue!

TODOS juntos:_Maravigliosa! Maravigliosa!

(Enquanto gritam, fora da visão do público, esqueleto é retirado da mesa. Urna


transparente onde está deitada uma atriz, é posta em seu lugar. Biombo é
retirado pela moça. Música volta. Foco se fecha sobre a mesa. Atriz está
vestida como Prisciliana na hora da morte. Em seu pescoço, há um grande
ferimento cenográfico. Luz forte sobre a urna. Música volta. Artistas se
perfilam para o público. Moça os aponta e pede aplausos. Artistas agradecem e
saem, empurrando a urna para fora, seguidos pela moça que recolhe os
objetos caídos no palco. Foco sobre a urna faz a Santa brilhar, enquanto é
retirada. Escravo manco entra com novo cartaz que o público ainda não lê.
Foco de luz o acompanha. Escravo manco fala para o público:)

NEGRO MANCO:(Posicionando o cartaz num canto escuro do palco)_Ó eu


aqui di novo, gente! Aplaude, vai!..(induz o público a aplaudi-lo:)...Isso!
Isso!..(Fazendo pose:)...Ocês sábi qui tem novidade aqui no tiatro? Não?
Pois tem sim, seus futriquêro!..Bom, a notíça, é qui os moço daqui me
contratô. Agora eu sô camareiro! Sábi cumo é?As moça troca isso,
troca aquilo...(confidenciando:)..´Cês precisa vê...cada pedaço de côxa,
de anca de muié!..

(Voz dos bastidores chama. Escravo finge que não ouve.)...Ocês num conta
pra ninguém não, viu? O sinhô pru quá eu trabáio de ganho, num pódi
nem sonhá qui eu tô aqui, toda noite, ganhano muito mais do que as
migáia qui vô dá pr´êie. Ah, ah, ah! Ocês segura a língua, heim? Vai
qui eu consigo enchê o papo? Vai que eu dô um jeito di comprá alforria
daquêie meu sinhô mufino, ora! E depois? E se eu viro artista famoso?
Já pensô?

(Luz caindo. Escravo sai mancando. Música de filme bíblico. Luz segue padre
que atravessa o palco, vestindo paramentos. Padre cumprimenta platéia,
formal, subindo para um dos púlpitos, encenando sermão. Os fiéis são o
próprio público do espetáculo. Padre fala, após interromper a música com um
gesto solene.)
PESSANHA:_Iesu Christi nomine invocato! Queridos irmãos e irmãs.
Prezados fiéis desta minha querida paróquia...(Pigarreia:)...Nosso
grande e iluminado São Chrisóstomo, do alto de sua elevada fé, nos
disse a nós, seus seguidores certa vez...(Tentando representar um
Santo)..."Eu exulto de prazer e o meu prazer chega até a loucura; uma
loucura que vale mais que a sabedoria do mundo. Estou transbordando
de alegria e, o meu espírito em uma espécie de...arrebatamento!...O
que direi eu? Como exprimir os sentimentos de minh´alma?..Direi o
poder dos mártires! A derrota dos demônios! Os milagres de Jesus
crucificado...Oh!..O coro das onze mil virgens...O ardor dos homens,
dos pobres e dos ricos! Direi sim! Direi o poder dos mártires!" (falando
por si mesmo) ...Adorados fiéis, um dia de suprema glória foi reservado
para esta paróquia...Emociono-me até às lágrimas, como vêem e, se a
emoção me permite, mesmo assim contar-lhes, lhes digo que, a
paróquia de Sant´Anna e toda a Corte e fiéis desta cidade, poderão
enfim exultar como São Chrisóstomo. Falo do mistério que, das
catacumbas romanas, se revelará aqui, onde todos nos encontramos,
possuídos pela fé e pelo fervor divinos!

(Luz do púlpito cai. Música volta, imponente.Padre soluça. Som de seus


soluços vão ficando inaudíveis. Foco ilumina o cartaz que continuou num canto
escuro do palco.)

No Theatro de São Pedro de Alcântara


A Companhia Theatral
AMANTES DE DANTE
apresenta:
Em honra do Divino Espírito Santo de Sant´Anna
A MÁRTIR DE ROMA
Paixão e Morte de Santa Prisciliana
Tragédia em 3 actos de Manoel D´Oliveiros
Com os famosos actores e actrizes
Amelinha Pereira
Giácomo Aymone
Manoel D´Oliveiros
Augusto Vilaboim
e grande elenco
ESTRÉIA HOJE ! Principiará às 8 horas

(Black out breve. Cartaz é retirado. Pancadas de Moliére, insistentes. Luzes de


ribalta, de teatro antigo. Luz adicional ilumina um painel de pano pintado com
o retrato tosco de uma praça de Roma do tempo dos césares. Duas cortesãs
romanas, entram de mãos dadas, assustadas. São elas, Priscila, e sua filha
Prisciliana, ainda uma menina. Priscila, a mãe, se comporta como uma devota
fanática. Prisciliana, a filha, está apavorada. As duas estão sendo perseguidas.
A cena, acontece ao mesmo tempo em o padre prossegue o sermão. O clima é
de dramalhão. Música bíblica tipo hollywoodiana segue ao fundo.)

PRISCILA:(Sob forte emoção, olhando para o alto)_Deo...Ora pro nobis! Eu


sinto, eu vejo, filha adorada...eu enxergo a luz do martírio!

PRISCILIANA(se esquivando):_Não! Não diga isto, mãezinha! Não vês que


assim, martirizas também à mim...tua filhinha adorada?

PRISCILA:(Puxando a filha pela túnica )_Sim! Sim! Eu digo sim! O prazer


de dizê-lo, escorre em minha boca como um divino bálsamo! Sim!
Nada deveis temer ó, bem amada filha. Exultai! Glorificai o sacrifício
que está prestes a nos ungir. Oh, Deus! Sim! Sim! Eu quero o martírio.
Eu tremo de desejo. Sim! Sim!

PRISCILIANA:(Com ar desamparado) _Não, mamãezinha! Estás louca?


Contenha-te!.(desvencilhando-se)...Soltai-me! Imploro-te!

(Mulheres ficam imóveis. Luz do palco caindo. Sobe a luz do púlpito. As cenas
dos dois espaços vão se alternando sempre. Padre prossegue o sermão)

PESSANHA:(Contrito)_Sim, é ela mesma!..Alma bendita, a rica dama


Priscila abandonou o fausto de sua vida de cortesã romana, e
entregou-se a religião da cruz. A socorrer cristãos perseguidos, a
visitá-los no cárcere, reunindo os ossos, as relíquias dos mártires, para
serem guardadas nas catacumbas. Assim, sua alma boníssima, atraiu a
ira de seus patrícios romanos. Sim, é ela! A traidora de Roma, pelo
amor de Cristo!

(Música crescendo. Ruído forte de passos vindos da platéia. Som do


entrechoque de espadas e escudos, ranger de sandálias no chão. Luz do palco
subindo.)

PRISCILIANA:(Em pânico) _Ai Ai, mãe! Me acuda! Olha o que fizestes!


Ouço passos...são eles! Os centuriões! Vamos fugir, mãezinha! Não!
Não quero morrer assim!

(Priscila se ajoelha no palco. Prisciliana tenta puxá-la para a fuga. Grupo de


centuriões romanos invade a cena, vindo pela platéia iluminada. Música
assume tom mais imponente ainda)

CENTURIÃO 1:(No palco, apontando as mulheres) _Ei-la, a maldita!


Prendam-na! Prendam a traidora de Roma!

(Priscila permanece ajoelhada. Centuriões correm para cercá-las. Prisciliana


grita, puxando a mãe)

PRISCILIANA: _Ai, não! Correi! Correi! Oh, minha insana mãezinha!


Levantai! Por Deus! Levantai!

PRISCILA:(Sorrindo, em êxtase, sem se mover)_Adorado Deus! É a hora!


Ai! Eu exulto! Ai! O sagrado momento do martírio!

(Centurião 1 segura Priscila pelos cabelos. Prisciliana corre mas, é dominada


por dois outros centuriões poucos passos à frente.)

CENTURIÃO 1:(Para Priscila)_Levantai e renegai tua fé oh, cortesã


infame! És romana. Sê fiel a tua raça, vá!

PRISCILA: (Contrita, olhando para o alto)_Deo onipotentis! Deo


onipotentis!

(Três Centuriões arrastam Priscila pelo palco. Prisciliana, dominada por outro
centurião, se debate desesperada. Prisciliana consegue se desvencilhar e corre
em direção à mãe. Cena se congela. Luz do palco cai. Volta luz do púlpito.
Padre prossegue o sermão:)

PESSANHA: (Fingindo forte emoção)_Era o tempo de ódio à pureza. Tempo


do imperador Juliano, o maldito, chamado O Apóstata!

(Pausa na música.Voz vinda da parte do palco às escuras, interrompe o


sermão. Foco de luz rápido ilumina o sacristão. )

ISAÍAS Muxiba:(Para o púlpito) _Padre Pessanha! Acuda, Padre! Acuda!"

(Padre não atende. Sacristão chama mais alto:)

ISAÍAS Muxiba:_Pelo amor de Cristo! Padre Pessaanháa! Ô, padre!..(Para


o público:)...Diacho! Tá surdo o home? Alguém aí me chama esse
santo...(Segredando:)...Ai meu Deus! É confusão da grossa, meu povo.
Acho que, agora sim, êie vai chorá é de verdade!

(Foco sobre sacristão se apaga. Música volta, imponente. Luz geral na cena
onde permaneceram os soldados romanos e as duas mulheres. Centurião 1
arrasta Priscila para fora da cena pelos cabelos. Prisciliana, com medo, se
ajoelha.)

CENTURIÃO 2:(Para Prisciliana, junto com centurião 3 que, está com a espada
levantada)_Renegai teu credo, oh, pequena dama! Dizei a quem amas,
gritai: Juliano, meu imperador! Juliano, meu imperador! Gritai!

(Prisciliana, em estado de choque não o escuta. Levanta-se, trêmula, de mãos


postas, sempre balbuciando. Centurião 3 a agarra. Prisciliana se atraca com
ele e o derruba. Centurião 3 se assusta, levanta-se rápido e prende Prisciliana
ao chão, com a ponta da espada.)

CENTURIÃO 3:(Para outro )_Atacou-me! A infiel tentou matar-me!


Víbora!

CENTURIÃO 1:(Para Centurião 3, olhando Prisci liana gemer aterrorizada )


_Espetai a louca, soldado! Acabai de vez com a infiel!

(Centurião 3 crava a espada no pescoço de Prisciliana que, expira


dramáticamente. Musica trágica. Luz da cena pisca. Trovões. Prisciliana lívida,
se levanta lentamente e ficaimóvel ao centro do palco. Soldados se afastam
aterrorizados. Breve black out)

Voz de CENTURIÃO 1:_Oh! Maldição! Correi, soldados! Por Júpiter!


Correi! Ahhh!
(Luz volta em penumbra. Centro do palco é iluminado por luz branca. Priscila
volta da coxia correndo e faz pose de santa no ponto onde está a luz branca.
Luz branca muda de lugar. Priscila persegue a luz que por fim, se apaga.
Lufadas de fumaça cenográfica. Luz branca volta sobre um balanço infantil que
desce do urdimento, todo ornado de flores, com Prisciliana sentada. Centuriões
observam de longe, aterrados. Prisciliana é alçada para o alto no balanço
iluminado. Priscila desolada, corre para o balanço para tentar segurá-lo.
Prisciliana subindo, se balança,como se brincasse. Música apoteótica. Luz
caindo em meio ao som de trovões, até o black out. )

ATO II / Cena I X
AI, JESUS!

(Badalar de sinos.Gritos de Isaías entrando no black out, chamando o padre.)

ISAÍAS Muxiba:(Gritando histericamente)_Padre Pessanháá! Padre


Pessanhá!..

(Luz subindo. Quarto do padre todo revirado, com armário escancarado.)

PESSANHA:(Entrando afobado)_Deus do céu!O que se deu para chamares


assim? Interrompestes a missa! Tens a mãe na forca, por acaso?

(Isaías não responde. Está trêmulo, olhando para o chão:)

PESSANHA:_Raios! Mas o que estás a esconder?Desembucha, homem!

ISAÍAS Muxiba:(Escondendo o armário escancarado)_É mió o sinhô si pega


logo cum essa sua nova santa pruquê, o vosso santo protetô,
ói...Babáu!

PESSANHA:(Olhando o armário)_Céus!! Virgem Santíssima! Que é do


Santo?! Mau presságio! Santo Antônio me fugiu?!..Ai
jesus!..(histérico:)...Vá, negro! Procure-o pela casa, pela rua, anda!
Ai,Cristo!..(Chorando, virando a jarra de vinho vazia:)...Desgraça! O santo
maldito ainda secou-me o vinho!

ISAÍAS Muxiba:(Correndo, se protegendo do olhar inquisidor do padre:)_O


sinhô...num óie pra mim assim não! Foram os bandido,
padim!..(massageando a corcunda:)...Ai!..Ui! Me atacaro, seu pádi! Era
bem uns vinte. Tô lhe chamando num é di hoje, qui é pro sinhô vê, cum
seus próprio óio.

(Padre olha em torno. Isaías corre para fora de cena onde está um baú.)

ISAÍAS Muxiba: (Oculto, fazendo barulho e gritando para o palco)_Ih! Não!


Num vem aqui não seu páruco! Num vem aqui não! Ai meu Deus do
céu!(Padre corre também para onde está Isaías.)

ISAÍAS Muxiba:(Tentando impedir o padre de ver algo.)_Ai Cristo! O baú


dos vosso guardado! Tá aqui...cum os trinco tudo esbudegado...(Padre
petrificado, Isaías finge chorar:)...Ai, padim...Que tristeza. Parece
qui...num sobrô nada. Nem prata, nem ouro, papé, pataca...(Fingindo
desespero)...Sumiu tudo! Vaporô tudinho!

PESSANHA: (Arrastando o baú aberto para o palco, gritando:)_Não! Ai, Cristo


Salvador!..(Agarrando Isaías:)...Diga, Muxiba! Quem foram os malditos?
olhaste-lhes a cara? Diga!..(Para o público, com falta de ar:) ...Larápios!
Aiii! Roubaram-me os papéis da virgenzinha!..Ai que eu morro! Os
documentos dos ossinhos da Santa! Acudam! Polícia!..Polícia!

ISAÍAS Muxiba:(Fugindo da cena por uma coxia)_Ai, minha Virge Maria


Santíssima! Socorro! Pulíça! Pulíça!

(Padre desaba no chão, desmaiado. Black out.)

Cena X
BERNARDO E MARIA

(Dois escravos entram. Com archotes acendem dois lampiões que estão nos
cantos do palco e vão saindo, pela platéia, acendendo outros lampiões. Maria
Massangana entra apressada, também pela platéia, rumo ao palco. Cruza com
acendedores de lampiões. No meio do caminho, ouve uma voz chamando, bem
baixa, num cochicho:)

VOZ:_Xiu! Ô Maria! Aqui, muié!

(Maria olha assustada. Bernardo Mina aparece de repente, embuçado com uma
manta escura sobre a cabeça. Bernardo toca no ombro de Maria. )

MARIA Massangana:(Saltando, assustada)_Ai! Virge Maria Santíssima!


Valei-me!

BERNARDO Mina:(Retirando a manta da cabeça )_Ô muié! Num é


assombração não! Sô eu, Benádo, ora!

MARIA Massangana:(Abraçando Bernardo)_Home de Deus! Mas é ocê


mêmo? Mas que é isso?! Cumé qui tu tá aqui? Tu num tava...

BERNARDO Mina:_Xiu! Fala baixo. Ó! Vamo andando. Vamo inté lá no


cais. Eu conto tudo no caminho, tá?

MARIA Massangana:(No caminho para o palco, agitada )_Tu fugiu da


Detenção, home! Ai meu Deus do céu! E agora? Tu vai ser caçado inguá
a cachorro doido...Ô Benádo. Pru que tu num esperô o pádi? Meu Pai
Eterno. Pru quê?
(Foco de luz simulando luar, ilumina os dois sentados no cais.)

BERNARDO Mina:_Ué?! Mas como? Se foi êie qui mi incalacrô nesse rôlo.
Bom, eu num te falei do negóço da cachaça, num é? Pois foi pra num te
amofiná.

MARIA Massangana:_Hum...Tu vivia é inguá a capacho atrás desse pádi,


num é?...Ah, deixa pra lá..Pensa qui eu num vi tu andando, pra baixo e
pra cima, cum aquêie barril? Água é qui num podia di sê, né?

BERNARDO Mina:_ Pois era. Daquela que curió num bébe...Mas óia...Inté
que parecia bom o negóço. O vigário fez um trato comigo. Êie pegava
os barril de pinga, num alambique secreto, sábi?

MARIA Massangana:_Secreto?! Ocê é mêmo um tonto, né? Se metê nesse


embrúio, home?

BERNARDO Mina:_Pois é...Um alambique clandestino que uns outro Pádi,


amigo dêie, montaro lá em Paraty.

MARIA Massangana:_Ai, meu Pai Eterno! Num me diga!

BERNARDO Mina:(Olhando para os lados)_Pois te digo! O pádi pega a


pinga quasi di graça. Ele disse pra eu sair ofereceno, escondido, pruns
vendêro daí, de qualqué lugá da Corte. Nóis batiza ela cum água e
pronto, dobra o valô! No trato, quando eu interasse uns 800 mirréis,
do dinheiro da pinga, passado pras mão dêie, eu ganhava sabe o quê?
Carta de alforria, muié!

MARIA Massangana:_Vê se pódi. Tu num vale nem 500 mirréis,


home!...Cês são tudo é...umas besta, viu? Eu ia dar um jeito, home!
Tava cum dinhêro pra...

BERNARDO Mina:(desconfiado)_Dinhêro?! Mas que dinhêro?

MARIA Massangana:_...Ora...Eu quero dizê que...Ô Benádo! Como tu foi


burro, home! Cair numa arapuca dessa? Eu pegava as economia que
guardei, nesses ano todo qui tô no ganho. É pôquinho mas, dava pra
pagá a fiança, ora.

BERNARDO Mina:_Quê isso?! Que qui ia adiantá? Nós dois continuava


escravo, ora! E o que é pió...sem uma migáia di vintém.

MARIA Massangana: (Incomodada)_Arre! Mas, que coisa! E tu? Cadê os


mirréis que tu ganhô? Os políça comeu tudo, né? Home di Deus! Tu é
um iludido mêmo! Esse pádi nunca qui ia te liberá. Tu num viu? Inda
mais com aquêie "Já-morreu", aquêie "traíra" do Isaías Muxiba, no
teu pé. Nunca?
BERNARDO Mina:_...Bom...Deixa pra lá...Sôrto como êie me deixô, pra
tocá o negóço da pinga pr´êie, logo logo tava cum um dinhêro bão, né
mêmo? E...(segredando:)...caluda!.. Eu tô mêmo cum uns ´tico-tico
iscundido. Uns mirréis que fui separano, por fora, sem êie sabê, que é
pra tocá um negóço nosso, sa´cumé? Abrí uma bodeguinha, comprá
um côche, uns bagúio pra nóis mercadejá.

MARIA Massangana:_Ai, meu Deus!...Além de burro, sonhadô.

BERNARDO Mina:_´Cê duvida, é? Além do mais, sonhá num ranca


pedaço. Foi o velhaco do Pádi que me pediu pra minti que era
Forro...Fio d´uma...(Cobre a boca com a mão)...Era pra livrá a cara dêie.
Eu ia ficá lá, mofano, penano castigo de nêgo capuêra, tomano açoite
no lombo. Iscapuli, né?..Mió ficá de fujão na rua, qui sê inguá a rato,
trancado nas grade do calabouço, num é mêmo?

MARIA Massangana:_ E agora? Cumé que tu vai ficar nessa vida, home
de Deus?

BERNARDO Mina:_ Bom...por aí, né? Pensei em me ajuntá cum aquêis


capuêra, os amigo lá da malta do Campo di Sant´Anna, da " Cadêra da
Sinhora", sacumé?

MARIA Masangana:_Tá maluco, home?! Capuêra?! Hum!..Cum aquêis


nêgo sem rumo? Mané Preto, Trinca ispinha, Juca Vagabundo? E logo
onde! Ali, na boca do lobo?

BERNARDO Mina:_ Inté parece! Tudo freguês de ocê, num é mêmo? Mió
lugá num há, Maria. Na malta ocê sábi que eu tô seguro. Agente lá, se
adefende bem mió. Tem sempre um padrinho branco pra protegê nóis
da poliça...Nóis protege êis das outras malta e êis protege nóis da
detenção, ora...(Lembrando:)...Pádi arrenegado! Eu já tinha passado
uns 200 mirréis pra quêie cura sem mãe, vagabundo! Magina! Quasi a
metadi do valô da minha alforria!

MARIA Massangana:_Ai, Cristo! E agora? E nóis? Cum ocê assim, mitido


em capoerage, pisando em caco de vidro, a se escondê dos puliça. E se
tu fere alguém, home?Se morre um desse qualqué pela tua mão? Vai
sair disso quando?

BERNARDO Mina:(Abraçando de novo Maria )_Há di tê um jeito. Ocê vai


vê!..(Beija Maria.)..Depois, agente se amiga, muié. Tem fio, tem casa,
cachorro...

MARIA Massangana:(Se afastando, lembrando)_Ih!..Falano em cachorro.Tô


lembrano agora! Isaía falô num negóço aí, de inaugurá Santa e...Bom,
deixa pra lá. Depois ocê sai por aí falano e vão dizê que foi tu que
assaltô a...
BERNARDO Mina:_Assaltô quem? Eu?! Pera aí! Pera aí! Cumé que é esse
negóço?

MARIA Massangana:(cobrindo os seios)_ Esquece! Tô cum um dinheiro


aqui pra...

BERNARDO Mina:(Agitado)_Esquece o quê? Xaveco cum santa? Ô, Maria!


Tá veno? E tu num ia me dizê nada, Muié? Uai? Tu num confia mais em
Benádo Mina não, é?..(olhando os seios dela:)...Xô vê o dinhêro que tu
tem!

MARIA Massangana:(Retirando o dinheiro do seio, olhando para os lados )


_Ih!..Ê vem ocê. O rei dos sabido! Óia aqui mas...ocê num disse que
também tinha um dinhêro?

BERNARDO Mina (Retirando dinheiro da própria capa:)_Tá bom. Tá


aqui..Junta tudo que despois nóis pódi precisá...(Barulho de passos
vindos de uma das ruas da platéia )

MARIA Massangana: (Se levantando, ouvindo os passos)_Ó! Vem vindo


gente aí! Vai! Some da minha vista. Não...vem cá primeiro e...dá outro
beijo, vai!

( Luz do luar vai caindo. Bernardo dá o beijo desaparece.)

Cena XI
O FORRO

(Som da bandinha do Divino. Ciríaco e Antenor, entram pela platéia, quase


marchando. Cruzam com Maria Massangana que está saindo, cabisbaixa. Palco
ainda iluminado pelos lampiões.)

CIRÍACO: (Batendo na porta, falando com Antenor )_Ô, Pá! Vamos a ver se
agora vosmecê controla esta matraca, viu? Sinto cheiro de confusão
graúda neste caso da cachaça. O roubo da igreja, deve estar a fazer
parte de um plano, sei lá...(Batendo de novo :)...Raios! Não vão abrir
nunca?..(cochichando:)...Imaginas que estamos a lidar com o próprio
Pároco da Freguesia!..(Batendo forte:)...Precisamos ter muito cuidado,
compreendes? Pois deixe que eu, que sou o inteligente aqui, me dirija
ao Pároco, sim?

ANTENOR:(Sarcástico)_Hum...Ocê qui sábi, meu cabo. Deixa só eu dizê


uma coisa. E se o nêgo que fugiu num fô Forro? Que é qui ocê vai fazê
cum o pádi, heim? Me diga, e se êie, o pádi é qui fô o...

CIRÍACO:_Arre!Feche esta bendita boca, estrume!Que sabes tu de


investigação criminal, anh? Pois estou a cá sómente para averiguar o
caso. Tu, apenas para obedecer-me. O resto, ora...que resolvam lá o
Coronel, o Bispo. Ora caralhos!

(Policiais circulam pela cena. Param na extremidade do palco e de costas,


cochicham, como se combinassem o que irão perguntar ao Padre. Isaías sobe
correndo, para ajudar a controlar a situação.)

ISAÍAS Muxiba:(Ofegante, falando para o padre que não aparece


ainda)_Dipressa! Tem uns praça da Guarda Reá aí, ora! O Sinhô qué qui
eu dispache êies, qué?

PESSANHA:(Meio escondido, olhando para os soldados)_Não...Não! Quer


dizer, sim! Vá lá. Fique por lá, entretendo-os. Vai! Não, não...Antes me
diga...(Desconfiado)...O que hão de querer de mim estes praças, heim?

ISAÍAS Muxiba: _E o Sinhô num sábi? Num foi o sinhô que chamô êis?
Iche!..Ou é o causo do rôbo da igreja ou o causo do nêgo Benádo, ora!
Que mais podia de sê? Coisa daquêie seu apadrinhado, num é mêmo?
Aquêie que o Sinhô prometeu alforriá antes di eu, tá lembrado? Pois
bem, os dois soldado da Guarda Reá tão aí, bem em vossa porta e, tão
quereno qui o Sinhô dê conta do arruacêro, sô!

PESSANHA:(Abaixando a voz)_Eu?! Mas como?! Sabes que eu


não...(Recompondo-se:)...ora, não posso dar conta de nada, ô pá! Sou o
pároco da Freguesia. Pois vá logo dizer a eles que o homem já está a
ferros, na Detenção, ora. Não é isso?

ISAÍAS Muxiba:(Olhando para os soldados, exagerando:)_Pois acho que não


é bem isso não, Seu Pádi!..(Cochichando:)...Diz que Benádo fugiu, se
escafedeu!..(Apontando os soldados, exagerando:)...A´lá eles! Virgem
Maria Santíssima! Óia só! Tão azucrinado. Foi um custo fazê os dois
esperá. Queriam vir cá, subí as escada da casa paroquiá. Queriam
entrá inté lá nos seus aposento...Magina! Claro qui eu num deixei.

PESSANHA (apavorado):_Mas por que, meu Santo Cristo? Perguntaram


algo? Desembucha, homem! Mas o gajo fugiu mesmo? Ai, Jesus! Mas
eu já estava a ir lá, a mandar soltá-lo.

ISAÍAS Muxiba:_Pois é. Já ia soltá, né? Pois fique sabeno que o seu


afiado, o seu protegido, agrediu dois praça na rua, onti di manhã e
bem na porta dessa vossa santa igreja! O Sinhô num viu? Diz qui armô
um sururu daquêis. Aprontô! Daí, ficô pegado, lá na Detenção. Tão até
espaiando por aí que, ele é chefe dos capoêra daqui da Sant´Anna. O
pió do caso todo é que, num se sábi como..(Sopra a palma da mão:)...O
home ´vaporô! E se êie fô o tá do chefe dos bandido que atacô vossa
igreja, heim? Eu, se fosse o sinhôzim, fazia qui nem Pilato...Pegava um
sabão daquêis bem espumoso, lavava e esfregava as mão, balançava
os ombro, olhava pro outro lado e, pronto!
PESSANHA:_Vá lá. Diga que não estou. Ah...invente algo. Diga que...eu
não os poderei receber hoje...Anda! Vai!

ISAÍAS Muxiba:(Pondo as mãos na cabeça )_Mas Seu Pádi. Eu já disse que


o Sinhô tava em casa!

PESSANHA:(Puxando o sacristão pela roupa)_Maldição! Vá logo, ô


raios!..(Isaías desce. Padre fica reclamando, se dirigindo ao
público:)...Desgosto! Desgosto! É o que sempre tenho deles como
paga...(Apontando o sacristão:)...E este? A falar mal do outro. Não passa
muito é de uma boa bisca. Alforria-los? Sabe quando? Deus que me
livre e guarde! Até me pagarem todo o prejuízo que me deram. Ah!
Acho que só quando forem desta para outra pior!

(Isaías se afasta resmungando. Faz sinal para que os soldados se aproximem.)

ISAÍAS Muxiba: _Com o seu perdão mas...não podemo incomodá o Seu


Páruco à essa hora. É que, êie já tá recolhido, durmino. Será que...quer
dizê...os sinhô praça pódi voltá amanhã?

CIRÍACO:(Misterioso)_Pois, com que então, ele está mas, não nos


atende? É mui estranho. Oh..Julgo que seria bem melhor acertarmos
logo o caso. Pretendia vistoriar a casa, ora pois...(tentando ver onde o
padre está:)...Mas, enfim...Pois diga-lhe que tivemos lá, no xelindró da
Detenção, um preto insolente que, se dizia Forro e, digamos assim,
apadrinhado do Senhor Pároco que, era como ele, o negro, se
dizia...(espera alguma reação de Isaías e, como ela não vem,
prossegue:)...Acontece que o gajo escapou-nos ontem à noite. Pode
muito bem ter sido ele, o tal que vos atacou a igreja, ora
pois!..(Olhando de novo para o púlpito:)...Por acaso, existe a cá algum
forro, sob o abrigo da igreja, de nome...(Para Antenor)...Como se chama
mesmo o negro que tivemos por lá, detido?

ANTENOR: (Para Isaías ) _Pois me parece que é Benádo, coisa assim.


Bem vestido, boa estampa, ih, ih, ih! Forro afiado de pádi...Vê si pódi?!

(Ciríaco olha com cara de recriminação para Antenor que se cala. Muxiba
ironiza: )

ISAÍAS Muxiba: _ Nêgo Forro em igreja?!.. O dia qui tivé nêgo alforriado
por aqui, eu viro branco, sô...inguázinho ao minino do divino...(Para o
público:)....Magina!.. (para os soldados:)...O Benádo é cria daqui mêmo.
Êie diz qui é Forro mas, dévi di sê pra podê andá por aí, sábi?
Rosetano.

CIRÍACO:_Pois muito que bem. Estou já a vos compreender. Tu me


pareces saber mais do que devias para um escravo! Pois estou certo
que vosmecê, saberá passar muito bem o recado ao Senhor Pároco.
Transmita-lhes nossas excusas. Vamos, soldado! Direto para
chefatura!..(já saindo:)...Ô, negro! Voltamos amanhã, de tardinha, viu?

(Música volta. Soldados vão saindo. Música cessa. Acendedores cansados,


apagam os lampiões e saem também de cena. Black out.)

Cena X I I
ALGODÃO DOCE

(Voz de Maria Massangana canta modinha imperial em off. Sala dos Viegas
iluminada. Theodora anda pela sala resmungando uma reza. Batidas na porta.
Salustiano abre. Pessanha entra, acompanhado de Isaías. Salustiano tenta
impedi-los de entrar sem serem anunciados. Isaías faz cara feia para
Salustiano.)

FELICIANO: (Mandando Salustiano retirar Theodora da sala)_Ora ora! Mas


quem está aqui!..(Apontando um sofá :)...Nosso novo Monsenhor! Não
sabes o quanto me honras! Vejo que decidistes atender-me o
chamado. Aleluia!

PESSANHA:(Sentando-se, fugindo do assunto.)_De certo modo


mas...deixemos de cantilenas. Venho por um outro assunto, muito
delicado que tenho para falar-te...Acho mesmo que, ao final, terás
ainda muito que me agradecer.

FELICIANO:(surpreso)_Homessa! Brincas, não é mesmo? Agradeceria é


se me pagasses logo o que deves, ora!

PESSANHA: (Misterioso)_Estás a me ajudar. Graças à Deus! Ora pois,


meu assunto é próximo a este!

(Batidas na porta.Salustiano abre depressa, Maria Massangana aparece na


porta, olhando curiosa para o interior da sala, cochicha para Salu.)

FELICIANO: _Ora!..E por que me olhas assim, como um pedinte? Quando


notei teu nome, a sair pelos jornais, juro que senti uma dor forte a cá,
nos rins...(Aperta)...perto dos bolsos...Ora, tens é que pagar-me,
homem!..(cochichando:)...Enquanto não desatarmos este maldito nó da
herança...

PESSANHA: _Oh, sim...a herança! Então? Quem sabe se não é hora de


ajudarmo-nos um ao outro, anh? Decerto soubestes já que, roubaram-
me tudo, ontem à noite...que, assaltaram-me a casa paroquial! Oh,
céus! Justo agora! De que modo saldarei as grandes despesas que
contraí com os projetos da paróquia?

(Theodora volta e atravessa a sala resmungando a reza. Feliciano olha


contrariado para Salustiano que preocupado, faz com que Maria saia, fecha a
porta rápidamente e sai da sala levando Theodora.)

FELICIANO: _Ai minha, Santa Edwiges! Sabia! Ora vejam só! Roubaram-
te! E ainda pretendes montar um Vaticano por aqui? Raios! Que tenho
eu cá com isto?

PESSANHA: (Sarcástico)_Bem, amigo...O caso é que...a polícia em breve


estará a chafurdar este incidente de que fui vítima...Suspeitarão dos
meus credores...Podem suspeitar até de ti, sabias? Afinal...andastes
espalhando por aí, o quanto de vinténs te devo...Mesquinharias que,
para nada mais serviram, senão para emporcalhar-me o nome.

(Voz de Maria soa alto em off, cantando)

FELICIANO: _Ai mas que canalha! Sabes muito bem do tanto que me
deves já. Se mandasse alguém roubar-te, ainda assim ficarias a dever-
me, homem! Tens contigo, de mim, bem mais que alguns putos
vinténs! São contos de réis!..E eu a pensar que estivesses a cá
para...saldar a maldita dívida!..(Incomodado com a voz de
Maria:)...Salú...Pelo amor de Deus! Manda essa gralha se calar, raios!

(Canto de Maria vai sumindo, ficando distante.)

PESSANHA: (Em tom fraternal:)_Acalma-te! Acabaremos por nos


entender, ora. O que te aflige? É a maioridade da moça? É com isto
que vos preocupa, não é mesmo? Aliás, falando nisto, imagine quem
esteve lá, na paróquia, antes d´ontem? Sabes quem?Pois ela...a vossa
filha..Esta da qual falava-te, Amanda, não é isto?

FELICIANO:_Homessa! Por que não dizes logo onde estás a querer


chegar...santo de pau ôco?

PESANHA:(Irônico, fingindo-se penalizado)_Coitadinha. Cortou-me o


coração, ver tão linda e infeliz moça assim, consternada, falando no
confessionário cousas tão íntimas de vossa família. A não compreender
a vossa quase ruína. A querer saber afinal, que diabos aconteceu com
a pobre da Theodora...Olha, amigo...aquilo foi como uma faca a
penetrar em minh´alma.

FELICIANO:(Se levantando, aos berros)_Mas...ó pá? Afinal, o que tens


com isto? Olha que minha paciência...

PESSANHA:(Confidente)_Olha cá, Feliciano. Não me sentiria bem


se...Afinal, sabemos que Theodora foi...posta à força no convento e
que, a clausura é que a pôs louca. Esquecestes? O que a Senhorinha
Amanda haveria de pensar de vós, anh? Bem sabes que...segredos e
algodão doce, são como espuma, se desvanecem ao sabor de
ventos...Até mesmo uma leve brisa pode...
(Feliciano parte para cima do Padre. Pessanha se esconde atrás de Isaías .)

FELICIANO:(Tentando pegar Pessanha)_Ah, maldito! Mas...sim! Entendo-te


agora! Estás a me chantagear! Me levas o dinheiro e...agora queres
levar-me as calças, os sapatos, as ceroulas? Colocas uma faca em
meus peitos...Vem cá! Ah se eu te pego, crápula dos quintos!

(Salustiano entra correndo para acudir Feliciano. Bate em Isaías)

PESANHA:(Pego pela batina)_Largue-me! Largue-me! Estás


maluco?..(Feliciano larga)...Entendas como quizeres mas, na verdade,
até que me sentiria confortado, se me livrasse logo do terrível fardo
que, tem sido estar guardando vossos segredos.

FELICIANO:(Se afastando )_Ah, Canalha! Afinal, o tinha como amigo!

PESSANHA: (Incisivo)_Ah, ah, ah!...Amigo das horas mortas, não é


mesmo? De que me vale continuar a proteger-te? Me diga! O que tenho
a ganhar? Podes até mesmo ter sido o mandante do assalto que sofri.

FELICIANO:(Agarrando Pessanha de novo, sacudindo-o)_Arre! Pois prove


seu...seu Coroa Sagrada dos infernos! Onde queres chegar? O que
queres mais, santo crápula! O que queres mais, diga!

SALUSTIANO Canjica:(Puxando Feliciano para si. Feliciano solta o padre no


chão)_Ôche! Ôche! Segura o andor, gente! Ó´ o respeito!

PESSANHA: (Se levantando, ajeitando a batina)_Estás fora de si, ó


pá!..(Feliciano tenta se controlar)...Vou dizer-te...Pois muito que bem.
Vamos logo com isso...Quero que passes a considerar o quanto prezo e
admiro a vossa filha...esta que é sã...quero dizer, esta da qual
falávamos, a mais nova. Eu, de minha parte, impressionado como
estou com ela, posso ajudá-lo e, quem sabe até...esquecer os meus
remorsos, as minhas...suspeitas.

FELICIANO: (De novo possesso) _O que queres, Pessanha? Dar-me um


golpe? Usar minha filha para extorquir-me, é isso? Mas, oh...que puto!
Pois olha que eu...Sórdido! Canalha! Olhastes para minha filha como
uma...

PESSANHA( com ironia)_ Filha?! Ora, não me venhas com essa...Meia


filha, queres dizer.

(Feliciano agarra Pessanha de novo, tenta estrangulá-lo. Isaías puxa o padre


para trás. Salustiano puxa Feliciano para o outro lado. Todos caem ao chão )

FELICIANO:(Já de pé, agarrado por Salustiano, passando mal, com falta de


ar)_O que...O que falas? Prometestes-me regularizar os
papéis...Mandaste-me até contratar um meirinho de confiança.
Processo-te! Sou capaz de...assumir um nicho no inferno, e estrangular
um servo de Deus! Faço linguiça de vossas tripas! Retire-se!..Saia de
minha casa antes que...

(Feliciano pega uma cadeira para lançar sobre Pessanha, Isaías puxa a batina
do padre, assustado, rumo à porta.)

PESSANHA:(Antes de fugir, com sorriso irônico)_Retiro-me sim mas...Saiba


que só vou relevar as ofensas, em nome de nossa idosa amizade.
Aguardo-te na Igreja amanhã. Reflita, homem! Nada melhor do que
pousar a cabeça, no lado certo do travesseiro e despertar com a
solução para um problema. Te aguardo.

Feliciano levanta a cadeira e ameaça lançá-la. Padre foge com Isaías.


Salustiano bate a porta com violência. Feliciano fica andando em círculos pela
sala, nervoso. Voz de Theodora resmunga bem alto a sua reza. )

FELICIANO:(Aos berros)_Calhorda! Canalha! Filho de uma boa puta!

Cena XI I I
A CONCUBINA

(Amanda entra, atraída pelo burburinho na sala. Chico Angola entra logo em
seguida, apressado, cochicha com Salustiano, pega um espanador e finge
limpar a sala, atento à conversa.)

FELICIANO:(Para a filha, apontando os escravos)_Uns imprestáveis, é o que


são! Esses biltres! Acabam de invadir-nos a casa e não movem sequer
os dedos. Vendo-os, pronto! Mando-os para os quintos! Para o eito! Ao
caralho!

(Escravos olham assustados.)

FELICIANO:(Fazendo gestos para que os escravos saiam. Escravos se afastam


mas não saem)_Imagines que agora, os futriqueiros deram até para
capoeiragens e estrepolias na rua. A polícia esteve a cá, inda hoje, por
conta deles e olha...na situação em estamos...

AMANDA:_Que destempero é esse agora, meu pai? Afinal...Que mal te


fizeram os pobres? Devias é cobrar o que te devem estes escroques da
Corte, com os quais te associastes como um tolo, estes, não é mesmo?

FELICIANO:(Desanimado)_Não, antes fosse!..Ou melhor, um escroque


sim mas, saído de onde nunca haverias de crer. Mas, tens mesmo
razão. Estou sendo extorquido há tempos por este crápula
que...Ah...Não o vistes a cá, há pouco?

FELICIANO:_A cá? Quem?Ora...não me apercebi bem mas, parecia ser...


FELICIANO:_Pois é isso! É mesmo, o cretino! Olha filha, digo-te
logo...antes que me arrependa. É o pároco Pessanha, viu?

AMANDA:_O padre?Este, o de nossa paróquia? Ah, não. Não creio! Me


pareceu homem tão virtuoso, simpático, tão boa pessoa.

FELICIANO:_Bom? Pois sim...Só se for para dar de comer aos porcos,


ora pois! Que Deus me perdoe mas...é um verdadeiro discípulo de
Belzebu, isto sim!

(Chico e Salú cortam a cena, a todo momento, nervosos, fingindo trabalhar)

AMANDA:_(Conformada:)_Que trunfos teria o pároco contra vós? Me


diga! Se eu mesma não acredito em calúnias É a herança, não é?
Ora...Já tenho a maioridade. Se o problema é teres sido deserdado por
vovô...

FELICIANO:(Nervoso)_Não toques em velhas chagas! Por deus!


Deserdado não. Vítima de uma injúria, uma injustiça...Deves
compreender que...

AMANDA:_Porque vacilas?Que cesse a sangria, ora. Afinal, queres ou


não a solução?

FELICIANO:_É que...São coisas muito delicadas. Por conta


da...(Salustiano deixa a vassoura cair:)...Chispem daqui! Urubus dos
quintos!..(Escravos saem de cena)...É que o embusteiro, este irmão do
alheio, acusa-me de...ter posto Theodora...(Com as mãos no
peito)...Imagine se eu seria capaz disto! O fato é que, bem...com a
pobrezinha na clausura e tu, impedida pela menoridade, quem haveria
de zelar por nossos bens senão eu?

AMANDA:_Ah!..Achas que daria eu a alguém desta laia, um vintém que


fôsse...Ora papai, nossa fortuna não será tocada por este...mandrião
de saias! Já disse! Assumo eu a tutela dos bens, pronto!

FELICIANO:(apavorado) _Oh, não! Isto nunca!..Isto é. Digo-lhe que...O


canalha sabe muito bem onde nos dói o calo! Não adianta...(cobre de
novo o rosto)...um dia haveria de dizer-te que...na verdade,
filha...(hesita:)...Ai que sina!..(Sem encarar Amanda:)...Na verdade, não
temos direito legal à fortuna alguma!

AMANDA:_O quê!? Destes agora para sandices?

FELICIANO:_Sim! Sim! Creia-me.Terás de ouvir-me com atenção agora,


filha...O pároco na verdade, por conta deste miserável segredo que
detêm consigo, quer me forçar a...entregar-te. Isto é...entregar-te
como sua...
AMANDA: (Aturdida)_ Eu?! Ah! Como?!

FELICIANO:(Para o público)_Oh, como dói!..(De chôfre:) Como sua


concubina, pronto! Digo-lhe que ele a quer como amante. É isto!

AMANDA:(aturdida.)_Que loucura!..Eu?! Mas...não há sentido algum em


tamanha asneira...esta intenção estúpida...Ora, senhor meu pai...De
certo o senhor o pôs no olho da rua, não é mesmo. Isto é coisa
para...Sou branca, de boa família, educada na Europa...Que desfaçatez!

FELICIANO:(Voltando a assumir um tom cínico)_Bem...não podes mais


afirmar estas coisas assim, com tanta...convicção.

(Salustiano traz um copo d´àgua. Chico observa. Feliciano encara os


escravos, com raiva)

AMANDA:(Recusando a água.)_Ai...Assim estás a confundir-me, pai.


Afirmar que coisas?

FELICIANO:(Acariciando Amanda)_Estas, de que sois branca. Deixemos de


loas...O pároco bandido ameaçou contar-te...Bem, conto-te logo,
então...eu mesmo...É que...apesar de seres assim, tão clarinha, na
verdade...Não posso mais ocultar-te!...Não tens mais do que a metade
de sangue branco nas veias.

(Voz de Maria Massangana volta ao fundo, cantando a mesma modinha)

FELICIANO:(Fingindo prender o choro)_O desgraçado, o canalha deste


vigário, veio a saber de tudo...Penso eu que induziu Theodora,
interrogou-a no confessionário, eu lá sei? Ela, coitadinha! Neste estado
em que se encontra, que discernimento, que juízo poderia fazer de
suas confissões para um padre? O fato é que...não és filha de vossa
mãe, digo...de Marianinha, não, não!

(Amanda chora.Repele o abraço do Feliciano.)

FELICIANO:(Incomodado com a música)...Maldita cantoria! Corvo


agourento dos infernos, cala-te!

(Amanda se levanta, disposta a sair da sala.)

FELICIANO: (Olhando a platéia, buscando apoio:) _...É a ruína. A não ser


que...(se animando) Podemos ter os papéis sim!..Com o prestígio que
este maldito Padre goza junto ao Imperador e aos cartórios da Corte,
poderíamos arranjar o documento que quisermos. Isto é claro se,
concordares em serví-lo, ser, discretamente, a sua companhia mais
próxima...Mais...íntima...mais...
(Amanda sai de cena chorando. Feliciano grita:)

FELICIANO:(Hesitando em sair atrás de Amanda)_Volte aqui, minha


florzinha do campo! Deixe-me confortar-te!

(Voz de Maria Massangana segue cantando. Chico e Salustiano saem atrás de


Amanda. Feliciano também sai, correndo. Modinha imperial saindo. Black out.)

Cena X l V
DO PESADELO E DO SONHO

(Luz voltando. Quarto de Feliciano na penumbra. Homem, de quem não se vê


o rosto, dorme um mal sono, revira-se, geme. Foco de luz crescendo, ilumina
púlpito direito, onde há um homem negro, vestido com roupas brancas,
semelhantes as de um senhor de escravos, com uma gravata vermelha, de
laço característico. O homem usa um chapéu de abas largas, que lhe encobre o
rosto e traz numa mão um charuto aceso e na outra, um açoite. O homem do
sonho solta uma longa baforada do charuto em direção do foco de luz e fala
para o homem que dorme:)

CHICO ANGOLA do sonho: (Tirando o chapéu, voz soando com


eco)_Sinhozinhô!..Ô!.. Xiu!..Óia eu aqui, ó! Aquêie que tanto lhe serviu.
O Chico Angola, lembra?..(Ri diabólicamente:)...Ih! Ih! Ih!..Tá durumino,
é? Acorda, Sô! Óia só quem tá aqui, comigo!

(Outro foco ilumina púlpito esquerdo. Nele há outro homem, vestido da mesma
forma que o primeiro, exceto pela gravata que é amarela. Segundo homem
repete atitudes do primeiro, inclusive a baforada de charuto .)

SALUSTIANO do sonho:(Tirando o chapéu e chamando o homem que


dorme)_Uú! Nhô Felicianô! Nóis trouxe visita pr´ocê, home!..(Para o
parceiro do outro púlpito, com sarcasmo:)...Cumé que um mau cristão
cumo êsse, pódi durmi assim, meu irmão?!.. (Para o homem que dorme:)
...Escuta aqui ó! Acorda! Nós trouxe umas notíça pr´ocê, de tirar o
sono...Ah, ah, ah!

(Riem os dois, diabólicamente. Homem que dorme se agita, como se fosse


acordar. Luz sobre êle vai caindo. Foco de luz no centro do palco. Enquanto um
Feliciano dorme, outro Feliciano, imagem da personagem no sonho, aparece
em cena, súbitamente.)

FELICIANO do sonho: (Tentando espantar com as mãos, os negros do


sonho.)_Ai, meu Deus do céu! Cruzes!..O que querem de mim? Sumam
daqui, tribufús! Urubus dos quintos dos infernos...Saiam! Saiam! T
´escunjuro! Se sois um pesadelo, sumam! Sumam daqui!..(Gritando e
correndo pela cena:) Polícia! Polícia!

CHICO ANGOLA do sonho:(Batendo com na amurada do púlpito, fazendo


barulho)_Xiu! Ô branco mais insolente, Sô! Num dianta chamar pulíça,
seu paiáço. Nóis é sonho! Êles num vão vê nóis!

SALUSTIANO do sonho:(Com raiva ) _Arre! Tá di pose ainda, é? É coça o


que tu qué. Num é mêmo?

(Descem as escadas correndo. Música de tambores. Coro de clones dos dois


escravos do sonho, surge e desce atrás deles, repetindo ou ressaltando suas
ações. Os dois soltam baforadas de charuto pelo caminho. Feliciano corre de
um lado para outro, apavorado. Luz segue os negros até o palco. Correria.
Feliciano escapa para os bastidores. Negros do sonho somem também, mas
logo voltam, com Feliciano preso pela gravata. Coro de clones açoita o chão,
com violência.)

CHICO ANGOLA do sonho:(Com Feliciano do sonho dominado, aterrado )_Boi


fujão, né? Nóis vai te dá a lição! Nóis vai te castrá, seu branquelo!

SALUSTIANO do sonho:(Rindo)_É isso! É isso! Vamo sacrificá êie, vamo.


Pega a naváia, vai!

FELICIANO do sonho: ( Em pânico, de joelhos)_Ai meu Cristo! Piedade!


Piedade!

(Chico Angola do sonho levanta uma grande navalha aberta:)

FELICIANO do sonho: (Protegendo o púbis com a mão )_ Não!!..Não!

CHICO ANGOLA do sonho:(Recolhendo a navalha, apontando para a calça de


Feliciano)_Ah, ah, ah!..A´lá!..O home se mijô todo, Salu!..Pois
então...(olhando para o alto de um dos púlpitos)...É mió êle nem vê quem
acabô de chegá!

(Música sacra de filme bíblico holywoodiano ecoa na cena, misturada aos


tambores. Os dois negros e seus clones batem palmas, como numa gira de
umbanda. Luz volta. Foco num dos púlpitos, mostra uma mulher negra,
vestida de freira, com pose e auréola de uma santa.)

FELICIANO do sonho:(Para a aparição)_Mas...o que é isto isto? Uma farsa?


Uma burleta? Quem és tu, negra maldita?

AMANDA do sonho:_Cala-te blasfêmo! Sou eu, tua filha, não vês? Tu me


fizestes ser assim, negra, esquecestes? Vim para dizer-te que acabou.
Conforma-te. Não existe mais fortuna! Não existe mais nada para
ambicionares! Pai infame!

FELICIANO do sonho:(Tentando se afastar)_Oh, essa não! Me enganas! Se


és mesmo Amanda me diga...o que queres? O que fazes em meu
sonho? Já sei! Ficaste doida também, como tua irmã! Ai, maldição!
AMANDA do sonho:_Ajoelha-te! Vim anunciar teu castigo!..(Feliciano do
sonho se ajoelha desesperado, chora)...Sim! Pagarás! Vintém por vintém.
Viverás agora de teu próprio trabalho, senão...não haverás de ter mais
nada nesta vida...Quero, por isto mesmo que saias, agora mesmo,
desta casa...(para os negros:)...Pronto!..Levem-no daqui!

(Música assume acento trágico. Tambores tocam frenéticos. Pausa na música.)

CHICO Angola do sonho (Abrindo a navalha.)_Agora nóis pódi castrá êie,


Dona Amanda?

(Todos os negros do sonho abrem as navalhas e levam Feliciano à força, para


o centro da cena. Dando gargalhadas. Música volta e vai caindo junto com a
luz. Black out. Gritos de Feliciano são ainda ouvidos.)

FELICIANO: _Ai!..Ui!..Piedade! Piedade! Aí não! Aí não! Aiii!!

Cena X V
ADORADA ALFORRIA

(Dois escravos entram pela platéia com grandes chapéus. Um deles é franzino
e usa um libré largo demais para seu tamanho. Exaustos, sentam na borda do
palco. Atrás deles vem uma mulher com o rosto coberto por um véu. Policiais
cruzam com o grupo, olhando desconfiados. Escravos escondem as cabeças
com os chapéus. Policiais atravessam a cena, olhando para trás curiosos,
sumindo por outra coxia.)

SALUSTIANO: (Com roupas de Amanda:)_Eu mato! eu mato ocê, seu


pamonha! Pruquê tinha que sê eu a fazê o papé da muié, heim?

CHICO:(Ás gargalhadas)_Ué!? Nóis num tá fugido? Então?Alguém aqui na


Corte já viu sinházinha preta, home?...ih, ih, ih! A branca aqui, de nóis
dois, tirano a Sinházinha, que também tá fugida...só pudia sê quem?
Ocê, ora ora!..(Pegando no queixo de de Salustiano,
provocando:)..Bunitinha!

(Sobem ao palco onde está a pracinha. Salustiano corre atrás de Chico. Dão
voltas. Salustiano se atrapalha com o vestido apertado e cai. Chico ri.)

AMANDA (Com o libré de Salustiano, desconsolada:)_Ai! Parem com isso!


Deviam é ter- me dito logo, tudo que sabiam. Não estaríamos agora
aqui, a nos esgueirar pelos cantos, como bandidos!

SALUSTIANO:_Ói só, Chico!Tadinha da Sinházinha...(Para Amanda)...Eu


num vô ficá aqui ingasgado cum qui nóis tá veno...Inda mais agora qui
nóis vai sê vindido!

AMANDA:_Mas, como assim? Malditos, futriqueiros! E olhem aqui. Se


ainda não soubessem, ficariam a saber agora. Não deveriam nem me
chamar mais assim, de Sinhá. Por muito pouco não sou também uma
escrava como vós.

SALUSTIANO:(Se impacientando)_ Fala logo o que tu sábi, home? Tu qui


foi muleque lá na roça, sô!..(Para Amanda:)...Óia Sinhá, pódi ispremê
esse nêgo qui sai coisa...(Para Chico:)...Desentoca logo isso, home! Num
tá veno o desconforto da Sinhá?

CHICO Angola:_Tá bom, tá bom!..Óia, Sinhá...(Vacilante)...É...quer dizê,


escundi isso esses ano todo...iscondi não. Guardei segredo, né?..O
causo é que...eu sei muito bem quem é a vossa mãezinha. Pronto.

AMANDA:_O quê?! Ah mas...que maldito! Também me escondeste isto?

SALUSTIANO:_Ô, Sinhá!..Ele num pudia dizê nada não, ora. Que jeito?
Se abrisse o bico, antes da hora...Cruzes! Vosso pai ferrava êie...quiçá
inté, botava no pelôrinho ou na fornáia, pra morrê estrupiado!

CHICO Angola:_Vosso pai andava por lá, naquêies tempo. Fum


fum...futucano as pretas da fazenda, né?..Um belo dia...Fum! Futucou a
Judite.

AMANDA:_ Quem?! Aquela que me cuidava com mimos?A Judite


Cabinda, isso?

CHICO Angola:_E eu num vi? O que qui um muleque de fazenda num vê,
sô?

SALUSTIANO Canjica:_É isso mêmo, Sinhá. O Chico aqui diz que vossa
farsa mãe, vossa madrasta, a tal de Dona Marianinha, essa sim é era
uma santa...(Se benze)...Enguiu o sapo, cum chifre e tudo mas, nunca
rejeitô vosmecê não.

CHICO Angola:_Combinô que ia lhe dá o nome de Chaga Viega...e


deu!..(Pondo as mãos na cabeça, arrependido:)...Ai meu Deus do céu,
agora tô condenado!

AMANDA:_Ah mas, que xaropada é esta?

SALUSTIANO Canjica:_Ai, meu São Juda! É verdade, Sinhá!.(Se


benze:)...Ela num podia largá di seu pai e tinha medo que o véio
diserdasse a famía. Foi por isso que registrou vosmicê como fía, de
vera. Sim, sim!

CHICO Angola:_Diz que vosso avô, queria dá fim, queimá a certidão


mas, coitado...num foi êie não, por causa de quê o papé sumiu antes.
Ninguém sábi como!..(Se benze também:)...Daí, naquela sanha, o véio
arresolveu deixá em testamento, tudo pra Sinhá Tiodora. Quis diserdá
todo o resto, o mardito.

AMANDA:_Ah, pois sim! Não existe certidão alguma, seus poltrões. E se


existisse, meu pai a teria, é claro.

CHICO Angola:(Convicto)_Cruz em credo! Sinhá é cabeça dura! Vosso pai


é canáia...cum vosso perdão mas...nisso êie tá inocente. Só sei que o
vosso direito tá lá na certidão, sacramentado, ora.

SALUSTIANO Canjica:_..As despois de Dona Tiodora, o direito é seu! É


vossa alforria, Sinhá! Por causa de que, se esse papé aparecê, ninguém
vai podê duvidá que a sinhá é herdêra legítima e...muito meno vai
podê prová a vossa reá condição de...fía de...mãe preta...cum o perdão
da palavra.

AMANDA:_Isto não me ofende. Eu sinto é nojo de tudo isso.

CHICO Angola:(Para Salustiano) _Nojo?!..A´lá, Salú!..Cospino pro


árto!..(Para Amanda:)...Pois vosmicê fique sabeno que a vossa certidão
de batismo tá lá na provínça, bem guardadinha. Seu nome tá lá,
bordadinho, bunitinho que só veno. Vosmicê é a herdeira da fortuna do
véio sim, Sinházinha! Um marzão de roça de café, de jóia, de
dinhêro...

AMANDA: (Duvidando ainda)_Pára, Chico! Te imploro!

CHICO Angola:_Iche!..Eu é que tô dizeno, ora. Eu que vi! Ah, ah,


ah!...(Batendo com a mão no peito )...Por causa de que...Judite me
pediu...então eu mêmo roubei o papé de vosso pai, ora?

(Gargalhadas de Chico. Escravos aguadeiros aparecem, prestando atenção à


conversa. Chico e Salustiano olham para Amanda, impacientes.)

AMANDA:(Ficando alegre)_.Mas então...Ai minha Virgem Santíssima! Ora,


ora...Talvez se possa ainda reaver estes papéis? Será? Há quem me
dera!

CHICO Angola:_É isso, Sinhá!..Fé em Deus! Tem que pensá num jeito de
arresgatá os papé!..(Cutucando Salustiano:)...Fala, home! Anda!

SALUSTIANO Canjica:(Insinuante) _Bom...Nóis pódi dar um jeito, né? Tem


um dinhêro aí que nóis... Eh, eh!..Bem. Nóis póde ir lá, em Valença, tá
bom?

AMANDA:_ Deus do céu! Dinheiro?! Não me digam! Então...sois vós os


ladrões da igreja?

SALUSTIANO:_Cruz em credo! Não, não! Deus que nos perdoe! Nóis


lembramo do Pádi sim mas...não pra robá, ora...Nóis lembrô mêmo foi
do quanto que êie já robô de vosso pai..Nóis tava com medo...na bucha
de sê vindido, né? Aí...(Sempre sem olhar para Amanda:)...Fumo lá pra
pidí, pelo amô de Deus pra que êie pagasse alguma coisa pro Sinhô
Feliciano que, é pra nóis num sê vindido, ora! cheguemo na igreja e o
corcunda sacristão tava lá, derrubado no vinho...e aí...Bom...aí nóis
fugiu, né? Por causa de que o quarto do seu vigário já tava todo
revirado...

CHICO Angola:(Ajudando a contar a história)_Fugimo dali. Pela luz que nos


alumia! Aí, naquêie desespêro, a gente procurô uma solução! Rezemo,
rezemo, com muita fé. Pedimo pra todos os Santos e...(Rindo) ...Foi daí
que apareceu o dinhêro, ora!

AMANDA:(Duvidando)_Um milagre! Ah, mas...que pilantras! Hão de ser


apanhados!

SALUSTIANO:_Não! Deus nos livre e guarde de jurá em falso..qué


dizê...Nóis num robô do pádi não. Ah...Qué sabê? Nóis tem amigo,
Sinhá. Quando tudo isso se acabá, nóis jura di novo e conta tudo
direitinho, tá bom?

AMANDA:(Cedendo aos argumentos)_Mas...iriam mesmo até Valença?

CHICO Angola:_Bom..Se a Sinhá fizé um trato cum nóis. Aceitá nosso


plano, aí, sim. Nóis jura que vai !

AMANDA: _Trato?! Ora mas...como podes? Que desplante!

CHICO Angola:(Cínico)_Ah, sinhá! Nóis tem só um sonho nessa vida né,


Salu? Óia, pra saí por aí, na aventura de caçá os papé di vossa
fortuna, a sinhá num acha que...nóis num merece uma paga assim, de
vulto? Umas carta de alforria, uns caraminguá?

AMANDA:(Refletindo)_Alforrias e dinheiro? Malditos!

SALUSTIANO Canjica:_Ôche!?..Cumé que nóis vai tê ânimo, disposição,


me diga!

AMANDA:_Agora vos compreendo! E eu a julgá-los uns santinhos,


vítimas! Vá lá...Aceito. Não pensem que assustei-me com as vossas
patuscadas. É que, me sentiria mal se, depois de tudo que me fazem,
os mantivesse assim sem rumos para darem a vida. Penso no entanto
que sendo vós, na verdade, escravos de meu pai, ora...não sei como
haveria de...convencê-lo com as alforrias.

CHICO Angola:(Interrompendo)_Ora, a Sinhá há de encontrá um jeito! O


rabo de vosso pai já tá preso, né? Êie tá no mato sem cachorro num
tá? Então...É só pegá no gancho e...pronto!...Ferrá o bicho, ora!
(Os três se abraçam. Meio ocultos atrás do chafariz, cochichando como se
conspirassem. Luz e música crescem e saem logo em seguida:)

Agitado.)_Então, tá bom...Tá certo, Sinhá mas, agora vam´bora!


Amanhã, nóís sumiu no mundo, viu? E a sinhá também pois, vai tê que
se escondê até nóis voltá.

AMANDA:(Relutante)_Cristo do céu! Onde esconder-me? Não conheço


ninguém na Corte que...

SALUSTIANO Canjica:_Nóis já sabe o que fazê. A Sinhá vai prum lugá


bão. O Tiatro de São Pedro, no Valongo.

AMANDA:_Teatro? Não, não!..Esperem aí. É lugar de obcenidades,


mulheres públicas? Não ficaria bem.

SALUSTIANO:(Se irritando) _ Ai, ai, ai!..Óia aqui, dona. Lá num é ninhuma


igreja de Sant´Anna não mas, é pra lá que a sinhá tem que ir, ora..Lá
tem um nêgo manco qui é cupincha di eu mais Chico. Êie é que vai...

(Fazendo menção de fugir, assustada)

AMANDA:_ Negro manco?!

CHICO Angola:(Segurando Amanda, se irritando também)_E a Sinhá queria o


quê? Um conde? Um marquês?

(Começam a sair de cena rápidamente)

SALUSTIANO:_ Nóis vai deixá a Sinhá é cum o nêgo manco mêmo, tá


bom? Ele vai dá o seu jeito. Quando nóis voltá, a gente manda vos
avisá.

CHICO Angola:(Com pressa, olhando para os lados)_Vamo! Vamo rodá!


Ah...Péra aí...(Lembrando:)...Nóis tem um negóço pra Sinhá.

(Salustiano entrega um pequeno embrulho de pano amarrado, que trazia à


tiracolo )

SALUSTIANO Canjica:(Amanda reluta antes de segurar o embrulho)_Aqui,


Sinhá. É um Santo Antônho que nóis encontrô no quarto do sêo pádi.
Tava lá, largado, né? Tinha um papé, amarrado com um laço de fita
encarnada, com o vosso nome escrito. Se era pra amarrar vosmecê,
hum! Agora vai é vos protegê, num é mêmo? Pega, Sinhá...é de
coração!

(Música de tambores segue. Amanda pega o embrulho. Os tres saem


apressados de cena, com os rostos escondidos pelos chapéus. Luz na platéia,
por onde vão saindo, cai em resistência até o black out. Música de tambores
cessa.)

Cena XV I
O CÉU E O PURGATÓRIO

(Voz de jornaleiro grita manchetes. Menino Jornaleiro entra, andando pela


platéia.)

JORNALEIRO:(Gritando)_Sentinela da Monarquia! Olha o Sentinela aí, oi!


Procissão de Santa Prisciliana! Espetacular Procissão de translado da
virgem mártir Santa Prisciliana! Amanhã! Não percam! Da igreja da
Prainha até o Campo de Sant´Anna! Sensacional espetáculo! Procissão
de cinco mil virgens! Sensacional queima de fogos de artifício! Olha o
Sentinela da Monarquia!..(Para a platéia:)...Vai querê aí,
ó?..(Apontando:)...Um aqui pro moço...Outro ali pro cavalheiro...Óia o
Sentinela aí, ó!

(Jornaleiro segue pela platéia que vai se apagando na medida em que no


palco, painel com vitrais vai se iluminando, insinuando a sacristia da igreja.
Urna da Santa com a tampa aberta no centro da cena, também está iluminada
discretamente. Silêncio total. PESSANHA, com movimentos lentos e
reverentes, está atento aos preparativos para a inauguração. Feliciano irrompe
na cena, com estardalhaço )

FELICIANO:(Gritando em pânico, acenando uma folha de papel)_Pessanha!


Pessanha!..Malditos! Querem nos fuder!..(Para o público:)...nos furnicar!
É o que querem os canalhas!

PESSANHA:(Se assustando, com a mão no coração)_Ai, Jesus!..Queres que


eu caia duro a cá agora? Queres que eu morra?

FELICIANO:(Se agarrando na batina do padre, mostrando o papel.)_Putos!


Odiosos putos, canalhas! És tu o culpado! Olhe isto! Uma mensagem
dos bandidos!

PESSANHA: _Oh, raios! ficastes demente de vez!

FELICIANO:(Fora de controle)_Não te faças de estúpido! É daqueles que


dissestes que vos assaltaram a igreja...Querem cartas de alforria e
dinheiro, Pessanha! Querem extorquir-nos. Não me renderei! Não
arrearei as calças para estes...(Olhando para os lados, cochichando para
Pessanha)...haverás de trumbicar-te também, homem!

PESSANHA:(Olhando o papel, sem dar importancia)_Ah...E querem só isto?


São uns chantagistas de merda, ora! Faroleiros!

FELICIANO:_Achas pouco?..E pasme! Não lestes aí que...vão querer-nos


os papéis ainda amanhã! Na tua festa de inauguração...ou procissão,
sei lá! Senão....denunciar-nos-ão!

PESSANHA:(Para Feliciano )_Ô pá! Sossega, homem. Pareces uma mulher


à parir! Ora, o que faremos? Nada! Não vês que se trata de um arranjo,
uma conspiração de escravos? Está claro que é. A própria polícia
acabará por concluir que, entre os cabeças se encontram justamente
aqueles seus escravos, meu amigo! Aquele maldito albino, filho de
sereia e o outro que, fizestes o grande favor de trazer da roça. Pois
veja agora! Estão a vos chantagear, estúpido!

FELICIANO:_E tu? O que sois afinal?..(Falando alto:)...Tens pelo menos


um escravo envolvido... segundo dizem, o próprio chefe do bando. E
ainda te vanglorias, idiota? Ora faça-me o favor! És algum milionário,
agora?

PESSANHA:(Tranqüilo)_Perdoe-me mas, na verdade, me sinto


até...aliviado, ora. Serás tu o salvador da pátria...quero dizer, desta
situação vexaminosa. Graças à Deus, tens com que cobrir todas as
despesas, não é mesmo? Quanto às alforrias...

FELICIANO:(Rindo nervoso)_Falas da herança?..Ah, ah, ah! Pois então


peguei-te, desgraçado! Os gajos tem documentos em seu poder. Dirão
que estávamos à fraudar o testamento. E depois, que a tua Santa é
falsa, seu estúpido! Tens o rabo mais preso que o laço de um marujo!
Agora, ou me pagas, ou terás de arranjar-te sózinho!

PESSANHA:(Se assustando)_Raios! Não me venhas agora com


gracinhas!..Nada podem provar, seu tolo! Afinal, não temos a certidão
mas...temos a moça, ora. Isto é... logo que a convenceres.

FELICIANO:(satisfeito)_Convencê-la?! Pois fiques sabendo que ela anda


desaparecida, raptada pelos bandidos. Talvez até...a cumprir a sina do
sangue, de sua raça bastarda.

PESSANHA:(Se apavorando)_Como assim raptada?..Como ficará o caso da


herança, heim? Não! Não! Não deves brincar com coisa séria.

FELICIANO: _Diacho! Estou manietado, homem! Nada posso fazer. A


procurei por toda a Corte. Creio que, se estiver viva...Deus que me
perdoe! Pode estar já a par de tudo. Ficou tão revoltada com tuas
abusadas intenções de concubinato que, jurou por Deus que, jamais
terás, uma pataca siquer, de qualquer um de nós, os Viegas.

PESSANHA:_Espertalhão! Fostes tu que a alertastes?Usastes o que te


disse, contra mim e...contra tua própria, filha?..(Aos berros)... Maldito
velhaco! Queres trair-me! Justo agora que...

FELICIANO:(Seguro de si, fazendo gestos para que Pessanha se contenha )


_Ora vejam!..Calma! Estás a assustar a vizinhança!..Se não me pagas,
o que haverei eu de fazer, anh?..Arregar-me a ti, seu salafrário? Se
não me ajudas a safar-me desta, ora...Deves entender que para ter o
meu quinhão nesta bendita herança, terei que...só me resta concordar
em punir-te, seu tolo! Ajudar minha querida filhinha a castigar-te e...
pelo menos, é este o acordo que pretendo assumir, quando ela
aparecer, é claro.

PESSANHA:(Descontrolado)_Ah! Mas...Deves estar a fazer parte desta


conspiração abjeta! Sim! Não é hora para isto, homem! Não enxergas?
Não vês que posso ser execrado, excomungado?

FELICIANO:(Zombeteiro)_Ora, fazes teatro por pouco, homem! Mortifico-


me em saber da armadilha em que te metestes mas, como tu mesmo
sugeristes, devo fechar os olhos a tudo e, alforriar meus dois escravos.
É claro que, para isto, devo contar com alguma ajuda, aceitar de bom
grado o perdão de minha adorada filha...Acredito que não tenhas
esquecido de que, também sou um Viegas, ora pois!

PESSANHA:(Circulando pela sala)_Cassar-me-ão os votos. Terei de


carregar, pelo resto de minha vida, a fama de farsante, de charlatão!
Ora, Feliciano! Tenha a santa paciência!

FELICIANO:(Frio)_Mas, meu caro...O que fostes sempre?Um mártir do


cristianismo? Não me faças rir, ora! Faças como eu fazia...quando
sugavas-me todo o sangue, como um barbeiro à aplicar bichas,
ora...Apavore-se, enfarte-se, descabele-se e ceda à força desta
santíssima chantagem!..(Dando tapinhas no ombro de Pessanha)...Ainda
tens sorte. Terás de volta os benditos alfarrábios papais. Inaugurarás
tua santinha. Calma! Relaxe, homem e...goze!

PESSANHA:(Desesperado, suplicante)_Calma?! Como calma? Tenho mais


de 150 contos de réis de dívidas na Corte, caralho! Tens de me ajudar,
senão...(Apontando para a urna da santa:)...É um caso de vida ou de
morte, não vês?

FELICIANO:(Aliviado) Ufa!..Enfim estás em pânico!Acho que, o melhor


que faço é ir embora. Nos vemos amanhã, na troca dos
papéis...(Mostrando a urna, com um sorriso:)...Escuta aqui, não seria o
caso de suplicares uma luz, um adjutório qualquer a esta tua nova
santinha?..Ora pois! Quem sabe se ela...

(Feliciano sai. Foco de luz sobre a urna vai ficando menos intenso. Luz que
vaza pelos vitrais do painel, enque a cena de raios coloridos:)

PESSANHA:(Indo atrás de Feliciano, gritando:)_Maldito maricas! Canalha!


Farsante! Volte aqui!
Cena XVI I
A BARGANHA

(Breve black out. Música de tambores. Acendedores entram pela platéia com
lampiões, sentam-se num canto do palco, próximos á urna da santa e mantém
conversa sigilosa. Sargento Ciríaco, Soldado Antenor e mais dois soldados
entram em seguida, pelo mesmo caminho.)

CIRÍACO:(No caminho, para Antenor )_...O que dizem é que, o bondoso


pároco foi vítima de alguma vingança. Invadiram-lhe a igreja com
intenções bem medidas. Estão à chantageá-lo, ora pois. A chefatura
mandou-nos montar guarda a cá, noite e dia, ouvistes?

ANTENOR:(Falando alto, inconveniente)_Hum...Isso é coisa daquêie


capoêra, Sô! Quem que num sábi. O home tá solto por aí, ruminano
ódio desse pádi, protegido pelos outros vagabundo da malta. Inda onti
mêmo eu passei os óio nêie, lá no Campo. Sábi que êie nem se abalô?

(Sobem ao palco, assumindo acintosas posições em torno da urna iluminada


pelos vitrais. Acendedores interrompem a conversa, simulam comentários,
sempre discretamente, olhando disfarçadamente para os soldados. Antenor
prossegue)

ANTENOR: _Nóis num tem otoridade pra nada nessa Corte! Guarda Reá
de Puliça e merda, hoje em dia, é a mêma coisa. Tu vê só essa istória
da cachaça. Morreu, né?...(Para o sargento, com sarcasmo:).. Mas,
Ôche!..Foi impressão minha ou, o sargento chamô esse Pádi
trambiquêro de ‘bondoso pároco’?

CIRÍACO:(Apontando para os acendedores)_Arre! Anda, soldado. Arranje o


que fazer. Anda! Vá lá e pergunte aqueles negros se viram por acaso
o jeito dos tais ladrões, vá!

ANTENOR:(Para o público, indo até aos acendedores,olhando de lado para o


sargento.)_...Óia, gente...esse pádi tem podê heim! Benzó Deus! Pra
mim, ele dévi di tê ido lá, moiado o bico do chefe di poliça
e...(Apontando para o Sargento.)...sábi-se lá de quem mais, né? E pronto.
Caso encerrado.

(Antenor volta e os dois chegam diante da urna, iluminada pelos vitrais,


assumindo acintosas posições de guarda. Junto com Pessanha, Dom Rodinni e
Isaías aparecem e se aproximam da urna. Feliciano aparece em seguida)

FELICIANO:(Para Pessanha. Assustado, vendo os soldados.)_Mas o que é


isto? Ficastes louco? Não sabes que...ora raios! Assim os bandidos não
virão! Toma-os por acaso por tolos?
PESSANHA:(Sarcástico, fingindo-se de distraido)_Os guardas? Ora! Devo
dizer-te que, bem...a polícia está a cá por conta de uma ordem
expressa de sua excelência, o Núncio Papal...(Núncio faz uma displicente
reverência:)...Acha Sua Reverendíssima que, não é certo cedermos aos
bandidos. Tu, como eu, por conta disto, não estamos pois autorizados
a negociar com os vândalos. A polícia cuidará de tudo.

FELICIANO:_Raios! Estás de miolo mole! Por favor. Não faça semelhante


asneira! Estás a vos suicidar, homem? E ainda queres me levar.

PESSANHA:(Sorrindo)_Calma, já disse! O fato é que...precisamos nos


entender, meu caro, antes que se possa fazer qualquer acordo com os
malditos bandidos. Sabes como é. estamos juntos nesta história e não
ficaria bem se, depois de tudo em que nos envolvemos, o tanto de
sacrifício que dispendemos neste caso que, depois de tudo isto, fossem
apenas tu e os bandidos os donos do benefício. Ora, além do mais,
como sabes, deixaste-me com as calças, quero dizer, com a batina nas
mãos, práticamente sem saídas. Meteteste-me numa camisa de onze
varas, homem? Eu então...

(Ciríaco disfarça, finge conversar com um soldado. Antenor prende o riso.)

FELICIANO:(Apontando os soldados, olhando para o padre e o núncio.) _Mas


isto é...é uma coação absurda! Indigna. Afinal, tenho aqui, diante de
mim, autoridades eclesiásticas! Nunca pensei que...Malditos cretinos!
Pois muito bem!Já estou a vos compreender. Pegaram-me numa
arapuca, anh? Deixemos então de loas. Cravem-me logo o maldito
punhal!

(Sargento Ciríaco, olha de novo para outro lado, fingindo-se distraído.Antenor


não consegue mais prender o riso .)

PESSANHA:(Apontando os soldados.)_Bem...A polícia acha que...Não tens


garantia alguma de que, ao final de tudo...

FELICIANO: _E posso saber que diabos tem a polícia haver com a minha
vida?..(Notando o riso de Antenor. Para Pessanha:)...Ah!..Eu sabia! Não
desistes, anh? Queres meu dinheiro!

PESSANHA:_Perseverança, meu amigo! Uma virtude sublime. Pense


comigo. Terás ou não terás...se não fores tu o mandante de tudo...de
exijir aos bandidos, algo que lhe garanta a paga? Ora, homem, feito
isto...(Buscando a aprovação do Núncio:)...Estaremos prontos a lhe
sugerir, em nome da Santa Madre igreja, que concordes enfim
em...ungir a nossa paróquia com um...digamos assim, um modesto
empréstimo...apenas o suficiente para pagarmos os custos da Santa.

FELICIANO:_Ai Cristo! E o que é a paróquia senão tu...um notório


caloteiro? Daqueles que não pagam nem ao Deus Pai... nem morto!
PESSANHA:(Trocando outro olhar com o Núncio)_Tranquilize-se e ouça. Sua
Excelência o Núncio, está aqui como testemunha. Temos para ti uma
proposta...irrecusável

FELICIANO:(Apertando a cintura )_Ai meus rins!

PESSANHA:(Andando pela sacristia, com um sorriso maroto)_Veja se


concordas. Inaugurada a Santa, os sucessos da enorme devoção que a
ela será dedicada por tantos fiéis, propiciarão o surgimento de uma
grande irmandade, certo?..Podemos supor que, sendo a única santa
real em, carne e ossos...digo, pelo menos em ossos...em todo o
Império, a Irmandade de Santa Prisciliana será a mais...importante. A
mais...por que não dizer...a mais rica de toda a Corte, não é mesmo?
Então, amigo? És entre nós, o único capaz de se transformar no mais
venerável benfeitor desta Irmandade. Terás de mim...(Olha de novo para
o Núncio:)...quero dizer...de nós, a garantia de que, cada um dos mil
réis com que ungires a Santa, lhe será ressarcido em dobro, uma boa
parte em dinheiro, é claro e, a outra, em indulgências divinas, tantas
que, sairás daqui com um assento reservado no paraíso.

FELICIANO:_Mas diacho! Como seria? E os bandidos? Não estamos a


nos esquecer dos miseráveis?

PESSANHA:_Aqueles malditos fuleiros? Ora, meu caro, hão de se haver


com a Guarda Real, ora pois pois. A cá não virão! Neutralizamo-lhes as
intenções. Pronto! A quem haverão de nos acusar de charlatães, anh?..
(Aponta para os guardas:)...À própria polícia? Ora, ora! Hão de querer
livrar-se da perseguição da lei como do fogo do inferno! Devolverão os
papéis e a moça que...com o trauma do rapto, não tardará à ser
convencida por ti, ora. Garanto-lhe assim sucesso no inventário e
aí...quando estiveres de posse da herança...

FELICIANO:(Arrefecendo)_Oh, céus! Surpreende-me a vossa astúcia,


homem! Olha! É uma artimanha muito curiosa e...oh, raios!..Estou
mesmo a achar interessante esta vossa proposta...(Abrindo os braços e
o sorriso, se aproximando do padre)...Mas..Oh!..Que maldito velhaco és tu,
caro amigo!

PESSANHA:(Se abraçando à Feliciano, afetuosamente. Dom Rodinni sorri


comovido) _Velhaco sim!..todos aqui o somos mas,
convenhamos...Velhacos à serviço de Deus!

(Antenor solta um riso escandaloso. Black out)


Cena X VllI
O DIA DE PRISCILIANA

(Músicos entram pelas coxias. Som da bandinha enche a cena. Pessanha


comanda procissão no palco, olhando para os lados, inquieto. Dom Rodinni o
acompanha. Estão vestidos com roupas de gala. Outros padres com turíbulos,
lançam incenso pelo palco e carregam um pálio sobre a urna da Santa,
transportada por quatro escravos. Vindo de diversos pontos da platéia, entra
um coro de devotos carregando grandes círios acesos. Som de muitas vozes,
murmúrios. Alguns fiéis carregam estandartes de irmandades católicas.
Mulheres vestidas de virgens, trazem ramalhetes de flores. Ao final da
procissão, Luz do palco vai caindo. Luz das velas ocupa o ambiente. Na boca
de cena, ainda iluminada, grupo de soldados aponta os fuzis para o alto,
simulando atirar. Sonoplastia de salva de tiros. Soldados cercam a urna da
Santa. Luzes acentuam a ornamentação das sacadas. Música cai. Flores são
lançadas das sacadas. Escravos gritam:)

ESCRAVOS:_Viva Santa Priscilianáaa!

(Todos respondem.Som de fogos de artifício. Devotos cantam ladainha junto


com a bandinha. Procissão volta ao palco. Urna, é posta de novo ao centro da
cena. Virgens lançam flores sobre a santa. Estandartes são deixados na cena.
Bandinha sai por uma das coxias e som de toda a música vai sumindo,
enquanto devotos saem pela platéia. Urna da santa, iluminada, permanece no
palco, guardada pelos soldados. Pessanha, Feliciano e Rodinni, permanecem ao
lado da urna. Silêncio breve. Black out no palco. Luzes da platéia se acendem
de repente. Figurantes voltam à cena em dois grupos, falando alto, um em
cada lado da platéia. À frente de cada um dos grupos, há uma malta de dois
elegantes capoeiras mais um chefe, fazendo provocações entre si. Bernardo
Mina, quefiando a Malta da Sant´Anna grita para grupo rival, a Malta da Santa
Luzia, do lado oposto.)

BERNARDO Mina:(Gingando arrogantemente)_Vem, seus panelêro! ´Cês


são sardinha! Vem cumê puêra, vem!

(Malta de Santa Luzia, se agita. Grita, faz gestos obcenos para a malta de Sant
´Ánna, levanta porretes, facas e navalhas no ar. )

MALTA DE SANTA LUZIA: (Em coro, em gritos de guerra:)_É


Espada!..Espada!

MALTA DE SANT´ANNA:(Também em coro)_É Cadêra!..É Cadêra!

CHEFE da MALTA DE SANTA LUZIA:(Puxando uma faca)_Pois então...é


guerra, Sô!..(Para o seu grupo:)...É guerra!..É guerra!

(Luzes da platéia descem um pouco, acentuando apenas as duas maltas em


confronto. Maltas avançam, uma contra a outra e se engalfinham em briga
acirrada. Gritos, tumulto. Black out na platéia. Gritos continuam. Luz do palco
cresce. Barulho de pedra quebrando vidraça. Dom Rodinni e Pessanha correm
para perto da urna e se abraçam, assustados. Isaías sai de cena correndo.
Feliciano grita para soldados:)

FELICIANO:(histérico)_Vândalos!..Vão atacar a igreja! Depressa!.Vão lá,


soldados! Hão de matar-nos a todos!

(Soldados se agitam, olham para o sargento Ciríaco, aguardando a ordem.


Sargento reluta mas, logo levanta a espada e grita para soldados:)

CIRÍACO: _À carga, homens! Avante! É guerra! É guerra!

(Black out no palco. Luz geral nas ‘ruas’. Gritos, assobios, som de tiros.
Soldados atacam capoeiras que correm para o fundo da platéia. Feliciano,
Pessanha e Rodinni ficam sós no palco, ressabiados. Soldados perseguem
capoeiras. Demais atores e figurantes debandam da cena no meio do tumulto.)

SOLDADOS:(Com espadas e sabres levantados)_...Afasta negrada! Mata!


Esfola!
_..Malta desgraçada! Calar baionetas! Calar baionetas! Pega!

CAPOEIRAS:(Dando golpes)_...Mata!..Ui!..Fura!...Meganha sem


mãe!..Xibungada do cão!..Sai!..Sai!.. Debandá!..Debandá, gente!..

(Fumaça cenográfica envolve espaço da platéia. Público é envolvido pelo


tumulto. Som de tiros e gritos da perseguição se perdem atrás da platéia,
luzes da platéia vão caindo junto com os gritos, até o silêncio total. Luz no
palco. Pessanha e Rodinni se aproximam da boca de cena, vagarosamente,
olhando para os lados, se tranquilizando aos poucos. Feliciano, aproxima-se
deles. Voltam para perto da urna)

FELICIANO:(Olhando para os lados, nervoso ainda:)_Desaforo! Desplante!


Corja de bestas! Há que se tomar providências enérgicas. Como se
haverá de viver a cá na Corte? Acossados? À mercê de assassinos? Um
dia destes, atacam o palácio! Hão de impor o terror aos brancos!
Acabam por alisar as nádegas do próprio Imperador!

(Silêncio. Batidas secas numa porta. Homens se assustam, entreolham-se,


hesitam em abrir. Isaías vai abrir a porta, temeroso. Foco de luz ilumina
homem negro com chapéu largo lhe cobrindo o rosto, em pé, diante da porta.
Homem negro entra, sem falar. Traz um grosso maço de papéis na mão.
Caminha mancando para o centro do palco. Homem fala:)

HOMEM manco:(Sem se aproximar muito, de cabeça baixa, rosto semi


encoberto por um lenço)_Vosmecês tem aí as carta de alforria, num é
mêmo?

(Ninguém responde. Se abraçam, trêmulos. Homem manco insiste;)


HOMEM manco:(Olhando para os lados, apressado)_Óia aqui, gente!
Adespôis ocês se caga, sô! C´ês acha que nóis tem o dia inteiro, é? As
carta, vamo! Num é esse o combinado, ora? Vamo! Vamo!

(Pessanha, Feliciano e Rodinni se entreolham. Não se movem. Uma mulher


aparece totalmente encapuzada e assume posição de mando. Atrás dela, dois
outros homens, da mesma forma embuçados, trazem as mãos escondidas,
como se estivessem armados. Rodinni empurra Feliciano e Pessanha em
direção ao homem manco. Os dois se entreolham trêmulos, indecisos.
Pessanha faz um gesto para Isaías que sai de cena e retorna com as cartas de
alforria, as entregando ao homem manco. Homem manco verifica os papéis,
faz sinal de sim com a cabeça, para os outros três e, coloca o maço de papéis
que trazia em cima da urna da santa. Faz menção de sair. Feliciano se
apavora e fala:)

FELICIANO:(Para o Manco, trêmulo)_Po...por favor! O prezado senhor


bandido me desculpe mas, se estão aí as cartas de alforria, não estás
a esquecer de nada?..(Homem manco faz que não entendeu. Feliciano
aponta a mulher:)...Sim! Sim! Esquecestes de me devolver a filha...(Para
embuçada:)...Venha, minha querida. Estás livre agora...(Para os bandidos,
intrigado com a mulher que não se move:)...Ora, ora!..Está feita a troca,
não?

(Mulher e faz sinal para que homem manco explique a Feliciano o que ocorre:)

HOMEM manco:(Compreendendo, explicando com ironia e sarcasmo, olhando


para a mulher:) _Ih, seu moço! Vosmecê tá confundino tudo, né? Essa aí
num é vossa fía não, sô !

FELICIANO:(Tentando se aproximar da mulher para olhar seu rosto)_Oh


raios! Mas quem há de ser então?

HOMEM manco:(Barrando o caminho, com firmeza)_Ôche! Afasta, home!


Essa é nossa chefe. Tenha mais respeito, Sô!

(Música de tambores. Mulher faz sinal de que devem ir embora. Pessanha,


Rodinni e Feliciano se entreolham, aparvalhados. Música cessa. Homem manco
prossegue, antes de sair:)

HOMEM manco:_Pois óie. A vossa fía pediu pra vos dizê que vai mandá
notíça sim mas...é pra isperá sentado, sábi? (Olhando Pessanha que está
desolado:)...Ocês sabi. A moça é católica. Num qué istragá a festa
bonita do sinhô páruco. Além do mais, nóis que num somo besta,
vamo isperá, inté a pulíça largá do nosso calcanhá!..(Fazendo
reverências, se preparando para sair:)...Entonce, nóis qué desejá a ocês
tudo, uma boa festa de inauguração de Santa Prisciliana...ah! ah! E que
Deus perdoe ocês, viu ?Inté mais vê!
(Som de apito da polícia. Soldados voltam correndo pela platéia. Bandidos
fogem, carregando as cartas de alforria. Soldados sobem ao palco. Isaías
volta, ressabiado. Os tres brancos estão abraçados, ainda trêmulos, olhando
para a urna. Padre aperta os papéis da santa contra si. Soldados,
atrapalhados, dão voltas pelo palco, indo e vindo dos bastidores. Soldados
saem por fim, em desabalada carreira, atrás dos bandidos. )

PESSANHA:(Dando voltas pela cena)_Ludibriados! Ai que eu


morro!..(Isaíais corre para ampará-lo)...Amaldiçoados africanos! Raça
maldita! Ingratos! Serpentes peçonhentas! Que morram pagãos, no
inferno, todos!

PESSANHA:(Notando Isaías, agarrando-o pela roupa)_ Cachorro preto! Ah


mas...eu te mato! Corcunda dos infernos!..Me enganastes! Me
enganastes!

ISAÍAS Muxiba:(Preso, se protegendo com as mãos)_Eu já disse, Pádi!


Vosmecê quiria o quê? Que eu me esfalfasse feito um môro. Que eu me
martirizasse, que eu morresse inguá à Cristo só pra impidi êis? Ai, Meu
Pai Eterno! Pádi!Num machuca eu não. Ai! Quem é que pódi cum
bandido nessa terra? Me diga! Quem é que pódi ?

PESSANHA:(ameaçando agredir)_Bandidos?!Estavas troncho de beber,


caralho!..Quantos eram? Dez? Vinte? Mil?..Foi uma mulher não foi?
Uma mulher, monjolo desgraçado!Quem era ela, a embuçada? Diga
logo, sacripanta dos diabos!..(arquejante, falando para o público, sacudindo
Isaías:)...Olha que, não me saía da cabeça que esta mula, este
estrupício, pudesse ter sido cúmplice do roubo!..(Para Isaías, fazendo
menção de esbofeteá-lo. Olha para o público e desiste:)...Ah mas, tu me
pagas! Seu...seu traste! Tu siquer a viste! E quem secou meu vinho,
anh? Foste tu, canalha! Esfregão de trapos...Chegastes até a dizer que
levastes uns tabefes dos bandidos, não é? Pois agora, toma,
desgraçado! Toma!

(Isaías se solta e sai de cena correndo. Pessanha vai atrás dêle, batendo.
Ruídos de coisas caindo na coxia. Mais gritos de Isaías. Sons vão se reduzindo.
Luz caindo rápidamente até o black out.)

Cena X lX
OS HERDEIROS

(Luz na sala dos Viegas. Batidas na porta. Feliciano acorda num salto e corre
para abrir a porta. Quando abre, dá de cara com Chico Angola e Salustiano,
vestidos com os librés novos. Feliciano se assusta mas, se recupera :)

FELICIANO:(esfregando os olhos )_Ai meu Cristo! Graças à Deus...São


vocês mesmo, seus malditos!..Não é outro maldito pesadêlo?..(Para o
público, enxugando o suor da testa:)...Ufa!.. Louvado seja nosso senhor
Jesus Cristo!

(Salustiano fica bem perto de Feliciano, como a protegê-lo.:)

SALUSTIANO Canjica:_Pega lá Chico...Dá chá de camumila pro home,


Sô!..(Para Feliciano:)...Então senta, né Nhozim! Óia...Nóis num queria sê
os estafeta dessa notícia não mas...

FELICIANO:(Desconfiado)_Que caras são estas? Onde está Amanda?


Ai!..não me venham com chorumelas que eu...

CHICO Angola: (Vacilante)_...Nóis tem um recado de sua fía sim, inhozim,


só que...

FELICIANO:(Sufocado)_Foi libertada? Ah minha florzinha do campo!


Louvado seja nosso senhor jesus Cristo! Onde ela está? Por Deus, diga
logo, negro!

(Música de tambores, forte. Chico e Salustiano dão o recado, com gestos


exgerados. Vozes não são ouvidas. Feliciano revira os olhos. Salustiano cobre o
rosto, arrependido. Feliciano está prestes a ter uma vertigem:)

SALUSTIANO Canjica:(Amparando Feliciano, gritando:)_Chico de Deus!


Ajuda o home aqui, sô! Segura!..Segura!..

(Feliciano tonto, desaba no chão com os olhos revirados e a mão no peito.


Chico e Salustiano correm pela sala, assustados, procurando algo com que
abaná-lo. Encontram uma bandeja e uma moringa. Lançam água sobre
Feliciano, abanam, fazem estardalhaço. Feliciano, volta a si e senta no sofá,
zonzo)

SALUSTIANO Canjica:(Circulando o olhar pelo público.)_É isso que vosmecê


ouviu! Ela quer que nóis fica tudo junto aqui, na mêma casa, pru bem
de nossa famía.

FELICIANO: (Sem compreender)_Nossa família?! Como


assim?...Bem...Não os vendo mais, pronto. Não se toca mais no
assunto!..(Chico e Salú se entreolham, prendendo o riso)...Não é
isso?..Afinal, vosmecês sabem que sempre foram meus escravos
queridos, ora pois.

CHICO Angola:_Primeiro dobre a língua, seu moço! Escravo não, forro!


(Enfático, sentando também ao lado de Feliciano, com pose)...Pra seu
governo, nóis agora é quási inguá à dono. Somo os verdadêro tutô de
tudo aqui, seu moço! Adiministradô dos bem de Dona Amanda das
Chaga Viega...

FELICIANO:(Sorrindo sem graça, se apavorando)_Ah...mas que maldita


patuscada é essa?!...(Se afastando)...Pensam que vejo graça nisso, é?
SALUSTIANO Canjica:_Ué!? E nóis por um acauso tá rindo? Baixa a crista
que agora nóis é forro di vera! O que nóis acertô com Dona Amanda é
muito claro: Seu trabáio vai sê remediar o malfeito. Cuidá de Sinhá
Tiodora. Num pódi fartá nadica pr´ela. Nem banho, nem comida na
boca, nem mimo, nadica nadica, sinão... nóis péga ocê e...(Faz gesto de
quem degola o pescoço)...créu!

CHICO Angola:_..Afiná, eu mais Salú tem que ganhá a vida na rua, né


mêmo?..Diz pra nóis...Vosmecê prefere ficá aqui, cumo servo da casa,
ou por aí, ao desabrigo?..Intão! É só siguí as regra, tudo, tudo. Sinão já
sábi, nóis pódi lhe dá...cum perdão da má palavra, um pé na bunda
e...(Faz gesto de quem degola o pênis:)...Créu!

(Feliciano abaixa os olhos, vencido. Batidas espaçadas na porta)

CHICO Angola:(Para Salustiano:)_Ih, Salu!..Será que é nossa encomenda


que chegô, home?

(Chico Angola abre a porta. Foco ilumina Isaías, cabisbaixo.)

SALUSTIANO Canjica:(Para Feliciano:)_Bem, Sinhôzim...Tinha um anúnço


no jorná, vendeno esse nego mufino. Daí nóis achô que...(Apontando
Isaías)...O pobre coitado que, acabô di sê largado no mundo, podia cair
nas mão de um Sinhô bem pió que nóis, num é mêmo? Intão, aceitamo
o pidido dêie pra sê empregado da casa, pra dividi o serviço com
vosmecê...O pádi tava mêmo lhe deveno, né mêmo? O coitado do cura
inguliu vinte sapo, a sêco mas, aceitô!..(Para o público:)...Afiná, é justo.
Num fosse as futrica desse corcunda, nóis num tava aqui agora,
livre!..Ocês num acha?

(Música de tambores, vibrante. Foco se fecha sobre os três na poltrona.


Isaías na penumbra, fica em pé na porta, desolado. Feliciano, emprensado
entre os dois escravos, constrangido. Chico e Salu, acendem charutos e soltam
juntos, longas baforadas, em meio à gargalhadas. Luz, marcada pela fumaça
dos charutos, cai junto com a música, gradualmente, até o black out.)

Cena X X
PER UNA DONNA

(Música de filme bíblico holywoodiano. Quarto de Pessanha. Padre sentado na


cama taciturno, com a caneca de vinho na mão. Forte ruído do chacoalhar dos
ossos. Pessanha dá um salto, assustado, olha para urna que está no quarto e,
em seguida, para todos as lados mas não vê nada. Santa aparece no centro do
quarto, sob luz intensa. Pessanha foge para a porta, assustado. Santa fica
imóvel, como uma estátua. Batidas na porta. Voz de menina é ouvida em off.)

Santa PRISCILIANA (voz de menina):_Ma que, Padre?Per que il temore?


Andiamo. Vene qua! Sono io! La tue picola criatura!
PESSANHA:(Na porta, sem abrir, olhando para a Santa.)_Ai, minha
virgenzinha! Ai minha Santinha! Perdoai-me!

(Pessanha se ajoelha, arrependido. Música cessa. Batidas na porta, Pessanha


abre. Dom Rodinni invade o quarto, abruptamente, com um jornal na mão,
muito irritado.)

Dom RODINNI:_Pazzo! Stronzo! Mile volta Stronzo!

(Devotos, vestidos com opas católicas, entram em seguida, recolhendo das


coxias sacos contendo ossos e ex-votos, pés, mãos, braços, corações, seios, e
etc. Despejam os ex-votos sobre a cama. Entram e saem até que a cama
esteja cheia.)

PESSANHA:(zonzo, olhando o movimento dos devotos)_Excelência...mas...Ai


que tenho maus pressentimentos.

Dom RODINNI:(Brandindo o jornal, possesso)_Presentimenti?..Aqui tue


pressentimenti! Uno scândalo in giornali! Fracasso totale, pazzo!
Niente de conti de réis, de lire, de milelire! Niente! Niente!

PESSANHA:(Para o público, com as mãos na cabeça)_ Ai, Cristo! Devo ter


cuspido em vossa cruz!

Dom RODINNI:(Bradando, apontando para a Santa que continua


imóvel.)_Belíssimo lavoro...Artistico!..Una obra digna de Miquelangelo,
de Rafael, de Da Vinci! Per que? Per niente!..(Para o público, dando
voltas na cena, batendo no peito:)...Io sono il stúpido, il capo de questa
loccura...(Para Pessanha:)...Roma, ha solicitato il ritorno de ossi, anh?
Ecco! Io cuidare oggi mesmo, personalmente, de questa questione,
capisce? E dove tu, indecente, ritorna per la infame posizione de padre
de provínzia e...em Portugale, capisce?

PESSANHA:(Apavorado:)_O quê?!..Ai, amigo! Portugal não! Isto não!


Não! Eu te suplico!

Dom RODINNI:(Desdenhoso, com um gesto de mão)_ Ma que? É pocco?..Si,


si! Aspeta.

(Música de filme bíblico volta intensa. Forte luz vaza do armário que se abre
bruscamente. Santo Antônio aparece paramentado como no início, fortemente
iluminado. Abraça a Santa pela cintura e caminha com ela em direção a
Pessanha que, sorri esperançoso)

PESSANHA:(Se ajoelhando de novo, clamando, aliviado)_Antônio! Antônio!


Voltastes! Oh, meu querido, meu amado amigo, valei-me!

SANTO ANTÔNIO:(Voz também em off, com eco)_Valere a te? Io?Nunca,


malatesta!..Giusto oggi, quando Dio te há dado il merecido castigo!
Uno belíssimo martirio per te, pazzo!..Augúri per tue bravíssima
experienza de santitat! San Pesagna! Ah, ah, ah! Il mártire de
Brasile!..(fazendo ruído de flatulência com a boca)...Prruu!..Andate via!
Maledetto! Infame!

PESSANHA:(Soluçando)_Diga-me só uma coisa. Diga-me...te imploro! A


maldita, a que me roubou, que desgraçou-me a vida...Quem era ela?

SANTO Antônio:(Rindo para Santa que também ri.)_Ah, Ma que ignorante!


No recognozò il corpo della dona, ragazzo?

PESSANHA:(Tentando descobrir )_Corpo?! Mas...como assim?

SANTO Antônio:(Irônico,desenhando no ar)_Las ancas....La bella forma? No


ne essere cognezida, pazzo!

PESSANHA:(Para o público, refletindo, descobrindo atônito)_Como assim?


Queres dizer que...Oh, raios!Como não me apercebi?Aquelas nádegas
são da...Com os diabos!..Claro! Ela esteve a cá, naquela noite. Ah,
Miserável!..Os soldados a viram. Sim! Foi com o dinheiro que roubou-
me que financiou a trama.

SANTO Antônio:(Dando gargalhadas. Santa também continua a rir)_Si, si! É


vero! Tu, infame, é derrotato per una donna! Per una donna nera,
escrava! Non´ há uno miglior e piú giusto castigo per te! Stúpido!

PESSANHA:(Aos berros,dando voltas no quarto, fora de si.)_Maria


Massangana, a bugigangueira! Rameira desgraçada! Amaldiçoada seja!
Africana dos quintos! Belzebu! Cadela dos infernos!

(Música de filme bíblico continua, trágica. Dom Rodinni solta também uma
gargalhada. Devotos saem com uma trouxa feita com o lençol da cama, cheia
de ex-votos. Santo Antônio e Santa Prisciliana, de mãos dadas, seguidos por
Dom Rodinni, saem atrás dos devotos, todos rindo. Som de trovões. Pessanha
só, cai de joelhos no centro do palco. Olha para o público com ar desolado,
chora e soluça enquanto foco sobre êle vai se fechando.)

SANTO e SANTA:(Juntos, em altos brados, com eco, em meio aos trovões.)_É


questo tue inferno, Bambino. Ciao, stronzo! Arivederci...Incompetente!

(Mais som de trovões. Música saindo, luz piscando, simulando raios, vai
descendo até o black out.)

Epílogo
FINAL SEM JUIZO

(Luz, voltando lentamente, no cais. Fina bruma no ar. Ruído intermitente de


sereia de navio.Whitaker cochilando recostado no baú.)

AUXILIAR DE COMODORO:(Ao megafone, enquanto a luz sobe)_Atenção


senhores! Atenção de todos, por favor! Passageiros para Baltimore!
Filadélfia e Nova York...Passageiros para portos da
Europa...Amsterdam, Londres, Nápoli, por gentileza! As partidas neste
porto estão restabelecidas!..Queiram embarcar, por
favor!..(repetindo:)...Atenção! Passageiros para Baltimore! Filadélfia!..

(Whitaker se levanta e se espreguiça.)

WHITAKER:_Well, my caros amigos. Gostar do my fantastic history,


ham? Comprender agora, porque eu levar aqueles provas que tenho
aqui no meu...no meu...What?!

(Olha em torno, intrigado com a ausência do escravo e só vê a gaiola da


preguiça. Cutuca a preguiça, inerte na gaiola. Preguiça não se move. Whitaker
fica desolado.)

WHITAKER:_...But, oh God! O Preguiça parece que...(Pondo as mãos na


cabeça)...Oh, no!..is death! O preguiça está morto! Shit!..

(Percebendo também o sumiço do lagarto e da bagagem, deduzindo:)

WHITAKER:_...Desgraçadas!..País de ladrões desgraçadas!..(Para o


Auxiliar de Comodoro, agitado:)...Help me, please!..(Correndo pelo palco,
histérico:)..Help me! Ladrões!...Ladrões! Help me!(Some de cena
revoltado.)

(Black out breve. Silêncio. Negro Manco, elegantemente vestido, entra


carregando outro cartaz. Chico Angola e Salustiano Canjica, também
elegantes, se juntam a ele, rápidamente. Os tres, com os corpos, impedem
que o cartaz seja lido.

NEGRO Manco:(Para o público, abraçado à Chico e Salu, fazendo pose)_Bom


pessoá, nós vai com o nosso tiatro pras oropa! O Imperadô...aquêie
unha di fome...se negô di pagá as dispesa do nosso navio mas, nóis
vai! Êie disse qui nóis é futriquêro, arruacêro, qui nóis ia istragá a
fama do Império lá nos estrangêro e tal e tal. Pódi?! A sorte é qui
agora nóis tem amigo, né?..Ocês tão veno? Me firmei mêmo na
profissão. Hoje em dia, posso inté dizê qui sô...como êis diz por aqui,
um homi di Tiatro...(Se lembrando:)...Ih, meu Deus! Falano em
homi...Cadê a muié, gente?A nossa benfeitora, heim? Será que disistiu
da viage?

(Saem da frente do cartaz. Público lê : )

SENSACIONAL TOURNÈE PARA A EUROPA!


A Companhia Theatral
AMANTES DE DANTE
Agora com subvenção própria
e em honra de si mesma
Com o gentil patrocínio da Senhorinha
AMANDA das CHAGAS VIEGAS
apresenta:
Farsa Cômmica
De Martins Penna
O IRMÃO DAS ALMAS
Com os mui famosos actores e actrizes
Amelinha Pereira , Augusto Vilaboim
Manoel D´Oliveiros e Giácomo Aymone

(Cartaz é deitado no piso do palco. Foco no esqueleto vestido com as roupas


de Santa Prisciliana, se engonçando no chão, ficando de pé no mesmo lugar
onde estava o cartaz. Amanda, Pessanha, Rodinni e Feliciano também se
juntam ao grupo, até que todos os personagens estejam no palco. Maria
Massangana e Bernardo Mina entram por último e se abraçam ao
esqueleto.Com a chegada deles todo o grupo se imobiliza e sorri para o
público, como se a posar para uma fotografia. Música cessa. Todos gritam em
coro:)

ELENCO:_ Viva Santa Prisciliana! Verdadeira padroeira do Brasil!

(Som do badalar de sinos de igreja. Polca vibrante, tocada pela bandinha,


explode na cena. Atores, sob luz geral, agradecem ao público. Luz e música
vão saindo. )

Fim

© Rio de JaneiroOutubro 1997 / 2001 Spírito Santo (Antônio José do Espírito Santo)

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