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O MUNDO DOS FILÓSOFOS

CONTEXTO

I – Pensamento Clássico
Os pré-socráticos
Heráclito de Éfeso
Pitágoras de Samos
Zenão de Eléia
Demócrito de Abdera
Os sofistas
Sócrates
Platão
Aristóteles
Epicurismo, Ceticismo e Ecletismo
O Estoicismo

II – Pensamento Cristão
Neoplatonismo – Plutarco de Queronéia
O pensamento cristão
O cristianismo
A praxe ascética do cristianismo
Santo Agostinho e a patrística pré-agostiniana
Santo Agostinho
A escolástica pré-tomista
Santo Tomás de Aquino

III – Pensamento Latino


As ciências naturais na idade helenista e o pensamento latino
O direito romano e a educação romana

IV – Pensamento Moderno
O pensamento moderno
Os pensadores renascentistas – Giordano Bruno, Nicolau de Cusa
O cartesianismo – Baruch Spinoza
De Aristóteles à renascença
René Descartes
O empirismo – Francis Bacon, John Locke, George Berkeley
O iluminismo francês – Jean-Jacques Rosseau
Leibniz
A renascença – o renovamento das antigas escolas filosóficas
Nicolau Machiavelli, Galileu Galilei
O cartesianismo – Malebranche, Leibniz, Wolff
René Descartes
O empirismo – David Hume, Thomás Hobbes
O iluminismo francês – Condillac, Montesquieu, Voltaire
Blaise Pascal
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V – Pensamento Contemporâneo

Emmanuel Kant
Hegel – o idealismo lógico
Nietzsche
Kierkegaard
Kant – moral, metafísica e crítica do juízo
O idealismo pós-kantiano – Fichte, Schelling e Schleiermacher
Hegel – a idéia, a natureza, o espírito
O positivismo – Auguste Comte

VI - Bibliografia
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I - CLÁSSICOS

Os Pré-socráticos

Dualismo Grego

A característica fundamental do pensamento grego está na solução dualista do problema metafísico-


teológico, isto é, na solução das relações entre a realidade empírica e o Absoluto que a explique, entre o
mundo e Deus, em que Deus e mundo ficam separados um do outro. Conseqüência desse dualismo é o
irracionalismo, em que fatalmente finaliza a serena concepção grega do mundo e da vida. O mundo real
dos indivíduos e do vir-a-ser depende do princípio eterno da matéria obscura, que tende para Deus como
o imperfeito para o perfeito; assimila em parte, a racionalidade de Deus, mas nunca pode chegar até ele
porque dele não deriva. E a conseqüência desse irracionalismo outra não pode ser senão o pessimismo:
um pessimismo desesperado, porque o grego tinha conhecimento de um absoluto racional, de Deus, mas
estava também convicto de que ele não cuida do mundo e da humanidade, que não criou, não conhece,
nem governa; e pensava, pelo contrário, que a humanidade é governada pelo Fado, pelo Destino, a
saber, pela necessidade irracional. O último remédio desse mal da existência será procurado no
ascetismo, considerando-o como a solidão interior e a indiferença heróica para com tudo, a resignação e
a renúncia absoluta.

O Gênio Grego

A característica do gênio filosófico grego pode-se compendiar em alguns traços fundamentais:


racionalismo, ou seja, a consciência do valor supremo do conhecimento racional; esse racionalismo não
é, porém, abstrato, absoluto, mas se integra na experiência, no conhecimento sensível; o conhecimento,
pois, não é fechado em si mesmo, mas aberto para o ser, é apreensão (realismo); e esse realismo não se
restringe ao âmbito da experiência, mas a transpõe, a transcende para o absoluto, do mundo a Deus,
sem o qual o mundo não tem explicação; embora, para os gregos, o "conhecer" - a contemplação, o
teorético, o intelecto - tenham a primazia sobre o "operar" - a ação, o prático, a vontade - o segundo
elemento todavia, não é anulado pelo primeiro, mas está a ele subordinado; e o otimismo grego,
conseqüência lógica do seu próprio racionalismo, cederá lugar ao pessimismo, quando se manifestar toda
a irracionalidade da realidade, quando o realismo impuser tal concepção. Todos esses elementos vêm
sendo, ainda, organizados numa síntese insuperável, numa unidade harmônica, realizada por meio de um
desenvolvimento também harmônico, aperfeiçoado mediante uma crítica profunda. Entre as raças
gregas, a cultura, a filosofia são devidas, sobretudo, aos jônios, sendo jônios também os atenienses.

Divisão da História da Filosofia Grega


Os Períodos Principais do Pensamento Grego

Consoante a ordem cronológica e a marcha evolutiva das idéias pode dividir-se a história da filosofia
grega em três períodos:
I. Período pré-socrático (séc. VII-V a.C.) - Problemas cosmológicos. Período Naturalista: pré-socrático,
em que o interesse filosófico é voltado para o mundo da natureza;
II. Período socrático (séc. IV a.C.) - Problemas metafísicos. Período Sistemático ou Antropológico: o
período mais importante da história do pensamento grego (Sócrates, Platão, Aristóteles), em que o
interesse pela natureza é integrado com o interesse pelo espírito e são construídos os maiores sistemas
filosóficos, culminando com Aristóteles;
III. Período pós-socrático (séc. IV a.C. - VI p.C.) - Problemas morais. Período Ético: em que o
interesse filosófico é voltado para os problemas morais, decaindo entretanto a metafísica;
IV. Período Religioso: assim chamado pela importância dada à religião, para resolver o problema da
vida, que a razão não resolve integralmente. O primeiro período é de formação, o segundo de apogeu, o
terceiro de decadência.
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Primeiro Período

O primeiro período do pensamento grego toma a denominação substancial de período naturalista, porque
a nascente especulação dos filósofos é instintivamente voltada para o mundo exterior, julgando-se
encontrar aí também o princípio unitário de todas as coisas; e toma, outrossim, a denominação
cronológica de período pré-socrático, porque precede Sócrates e os sofistas, que marcam uma mudança
e um desenvolvimento e, por conseguinte, o começo de um novo período na história do pensamento
grego. Esse primeiro período tem início no alvor do VI século a.C., e termina dois séculos depois, mais ou
menos, nos fins do século V. Surge e floresce fora da Grécia propriamente dita, nas prósperas colônias
gregas da Ásia Menor, do Egeu (Jônia) e da Itália meridional, da Sicília, favorecido sem dúvida na sua
obra crítica e especulativa pelas liberdades democráticas e pelo bem-estar econômico. Os filósofos deste
período preocuparam-se quase exclusivamente com os problemas cosmológicos. Estudar o mundo
exterior nos elementos que o constituem, na sua origem e nas contínuas mudanças a que está sujeito, é
a grande questão que dá a este período seu caráter de unidade. Pelo modo de a encarar e resolver,
classificam-se os filósofos que nele floresceram em quatro escolas: Escola Jônica; Escola Itálica; Escola
Eleática; Escola Atomística.

Escola Jônica

A Escola Jônica, assim chamada por ter florescido nas colônias jônicas da Ásia Menor, compreende os
jônios antigos e os jônios posteriores ou juniores. A escola jônica, é também a primeira do período
naturalista, preocupando-se os seus expoentes com achar a substância única, a causa, o princípio do
mundo natural vário, múltiplo e mutável. Essa escola floresceu precisamente em Mileto, colônia grega do
litoral da Ásia Menor, durante todo o VI século, até a destruição da cidade pelos persas no ano de 494
a.C., prolongando-se porém ainda pelo V século. Os jônicos julgaram encontrar a substância última das
coisas em uma matéria única; e pensaram que nessa matéria fosse imanente uma força ativa, de cuja
ação derivariam precisamente a variedade, a multiplicidade, a sucessão dos fenômenos na matéria una.
Daí ser chamada esta doutrina hilozoísmo (matéria animada). Os jônios antigos consideram o Universo
do ponto de vista estático, procurando determinar o elemento primordial, a matéria primitiva de que são
compostos todos os seres. Os mais conhecidos são: Tales de Mileto, Anaximandro de Mileto, Anaxímenes
de Mileto. Os jônios posteriores distinguem-se dos antigos não só por virem cronologicamente depois,
senão principalmente por imprimirem outra orientação aos estudos cosmológicos, encarando o Universo
no seu aspecto dinâmico, e procurando resolver o problema do movimento e da transformação dos
corpos. Os mais conhecidos são: Heráclito de Éfeso, Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de
Clazômenas.

Tales de Mileto (624-548 A.C.) "Água"

Tales de Mileto, fenício de origem, é considerado o fundador da escola jônica. É o mais antigo filósofo
grego. Tales não deixou nada escrito mas sabemos que ele ensinava ser a água a substância única de
todas as coisas. A terra era concebida como um disco boiando sobre a água, no oceano. Cultivou
também as matemáticas e a astronomia, predizendo, pela primeira vez, entre os gregos, os eclipses do
sol e da lua. No plano da astronomia, fez estudos sobre solstícios a fim de elaborar um calendário, e
examinou o movimento dos astros para orientar a navegação. Provavelmente nada escreveu. Por isso, do
seu pensamento só restam interpretações formuladas por outros filósofos que lhe atribuíram uma idéia
básica: a de que tudo se origina da água. Segundo Tales, a água, ao se resfriar, torna-se densa e dá
origem à terra; ao se aquecer transforma-se em vapor e ar, que retornam como chuva quando
novamente esfriados. Desse ciclo de seu movimento (vapor, chuva, rio, mar, terra) nascem as diversas
formas de vida, vegetal e animal. A cosmologia de Tales pode ser resumida nas seguintes proposições: A
terra flutua sobre a água; A água é a causa material de todas as coisas. Todas as coisas estão cheias de
deuses. O imã possui vida, pois atrai o ferro.
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Segundo Aristóteles sobre a teoria de Tales: elemento estático e elemento dinâmico. Elemento Estático
- a flutuação sobre a água. Elemento Dinâmico - a geração e nutrição de todas as coisas pela água. Tales
acreditava em uma "alma do mundo", havia um espírito divino que formava todas as coisas da água.
Tales sustentava ser a água a substância de todas as coisas.

Anaximandro de Mileto (611-547 A.C.) "Ápeiron"

Anaximandro de Mileto, geógrafo, matemático, astrônomo e político, discípulo e sucessor de Tales e


autor de um tratado Da Natureza, põe como princípio universal uma substância indefinida, o ápeiron
(ilimitado), isto é, quantitativamente infinita e qualitativamente indeterminada. Deste ápeiron (ilimitado)
primitivo, dotado de vida e imortalidade, por um processo de separação ou "segregação" derivam os
diferentes corpos. Supõe também a geração espontânea dos seres vivos e a transformação dos peixes
em homens. Anaximandro imagina a terra como um disco suspenso no ar. Eterno, o ápeiron está em
constante movimento, e disto resulta uma série de pares opostos - água e fogo, frio e calor, etc. - que
constituem o mundo. O ápeiron é assim algo abstrato, que não se fixa diretamente em nenhum elemento
palpável da natureza. Com essa concepção, Anaximandro prossegue na mesma via de Tales, porém
dando um passo a mais na direção da independência do "princípio" em relação às coisas particulares.
Para ele, o princípio da "physis" (natureza) é o ápeiron (ilimitado). Atribui-se a Anaximandro a confecção
de um mapa do mundo habitado, a introdução na Grécia do uso do gnômon (relógio de sol) e a medição
das distâncias entre as estrelas e o cálculo de sua magnitude (é o iniciador da astronomia grega).
Ampliando a visão de Tales, foi o primeiro a formular o conceito de uma lei universal presidindo o
processo cósmico total. Diz-se também, que preveniu o povo de Esparta de um terremoto. Anaximandro
julga que o elemento primordial seria o indeterminado (ápeiron), infinito e em movimento perpétuo.

Fragmentos

"Imortal...e imperecível (o ilimitado enquanto o divino) - Aristóteles, Física". Esta (a natureza do ilimitado,
ele diz que) é sem idade e sem velhice. Hipólito, Refutação.

Anaxímenes de Mileto (588-524 A.C.) "Ar"

Segundo Anaxímenes, a arkhé (comando) que comanda o mundo é o ar, um elemento não tão abstrato
como o ápeiron, nem palpável demais como a água. Tudo provém do ar, através de seus movimentos: o
ar é respiração e é vida; o fogo é o ar rarefeito; a água, a terra, a pedra são formas cada vez mais
condensadas do ar. As diversas coisas que existem, mesmo apresentando qualidades diferentes entre si,
reduzem-se a variações quantitativas (mais raro, mais denso) desse único elemento. Atribuindo vida à
matéria e identificando a divindade com o elemento primitivo gerador dos seres, os antigos jônios
professavam o hilozoísmo e o panteísmo naturalista. Dedicou-se especialmente à meteorologia. Foi o
primeiro a afirmar que a Lua recebe sua luz do Sol. Anaxímenes julga que o elemento primordial das
coisas é o ar.

Fragmentos

"O contraído e condensado da matéria ele diz que é frio, e o ralo e o frouxo (é assim que ele expressa) é
quente. (Plutarco). " Com nossa alma, que é ar, soberanamente nos mantém unidos, assim também todo
o cosmo sopro e ar o mantém. (Aécio).
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Heráclito de Éfeso

Vida de Heráclito

Heráclito nasceu em Éfeso, cidade da Jônia, de família que ainda conservava prerrogativas reais
(descendentes do fundador da cidade). Seu caráter altivo, misantrópico e melancólico ficou proverbial em
toda a antigüidade. Desprezava a plebe. Recusou-se sempre a intervir na política. Manifestou desprezo
pelos antigos poetas, contra os filósofos de seu tempo e até contra a religião. Sem ter sido mestre,
Heráclito escreveu um livro Sobre a Natureza, em prosa, no dialeto jônico, mas de forma tão concisa que
recebeu o cognome de Skoteinós, o Obscuro. Floresceu em 504-500 a.C. - Heráclito é por muitos
considerados o mais eminente pensador pré-socrático, por formular com vigor o problema da unidade
permanente do ser diante da pluralidade e mutabilidade das coisas particulares e transitórias.
Estabeleceu a existência de uma lei universal e fixa (o Lógos), regedora de todos os acontecimentos
particulares e fundamento da harmonia universal, harmonia feita de tensões, "como a do arco e da lira".

Filosofia de Heráclito

Heráclito concebe o próprio absoluto como processo, como a própria dialética. A dialética é:
A. Dialética exterior, um raciocinar de cá para lá e não a alma da coisa dissolvendo-se a si mesma;
B. Dialética imanente do objeto, situando-se, porém, na contemplação do sujeito;
C. Objetividade de Heráclito, isto é, compreender a própria dialética como princípio.
É o progresso necessário, e é aquele que Heráclito fez. O ser é o um, o primeiro; o segundo é o devir -
até esta determinação avançou ele. Isto é o primeiro concreto, o absoluto enquanto nele se dá a unidade
dos opostos. Nele encontra-se, portanto, pela primeira vez, a idéia filosófica em sua forma especulativa;
o raciocínio de Parmênides e Zenão é entendimento abstrato; por isso Heráclito foi tido como filósofo
profundo e obscuro e como tal criticado.
O que nos é relatado da filosofia de Heráclito parece, à primeira vista, muito contraditório; mas nela se
pode penetrar com o conceito e assim descobrir, em Heráclito, um homem de profundos pensamentos.
Ele é a plenitude da consciência até ele - uma consumação da idéia na totalidade que é o início da
Filosofia ou expressa a essência da idéia, o infinito, aquilo que é.

O Princípio Lógico

O princípio universal. Este espírito arrojado pronunciou pela primeira vez esta palavra profunda: "O ser
não é mais que o não-ser", nem é menos; ou ser e nada são o mesmo, a essência é mudança. O
verdadeiro é apenas como a unidade dos opostos; nos eleatas, temos apenas o entendimento abstrato,
isto é, apenas o ser é. Dizemos, em lugar da expressão de Heráclito: O absoluto é a unidade do ser e do
não-ser. Se ouvimos aquela frase "O ser não é mais que o não-ser", desta maneira, não parece, então,
produzir muito sentido, apenas destruição universal, ausência de pensamento. Temos, porém, ainda uma
outra expressão que aponta mais exatamente o sentido do princípio. Pois Heráclito diz: "Tudo flui
(panta rei), nada persiste, nem permanece o mesmo". E Platão ainda diz de Heráclito: "Ele
compara as coisas com a corrente de um rio - que não se pode entrar duas vezes na mesma
corrente"; o rio corre e toca-se outra água. Seus sucessores dizem até que nele nem se pode mesmo
entrar, pois que imediatamente se transforma; o que é, ao mesmo tempo já novamente não é. Além
disso, Aristóteles diz que Heráclito afirma que é apenas um o que permanece; disto todo o resto é
formado, modificado, transformado; que todo o resto fora deste um flui, que nada é firme, que nada se
demora; isto é, o verdadeiro é o devir, não o ser - a determinação mais exata para este conteúdo
universal é o devir. Os eleatas dizem: só o ser é, é o verdadeiro; a verdade do ser é o devir; ser é o
primeiro pensamento enquanto imediato. Heráclito diz: Tudo é devir; este devir é o princípio. Isto está na
expressão: "O ser é tão pouco como o não-ser; o devir é e também não é". As determinações
absolutamente opostas estão ligadas numa unidade; nela temos o ser e também o não-ser. Dela faz
parte não apenas o surgir, mas também o desaparecer; ambos não são para si, mas são idênticos. É isto
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que Heráclito expressou com suas sentenças. O não ser é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por isso
é o ser; isto é a verdade da identidade de ambos.
É um grande pensamento passar do ser para o devir; é ainda abstrato, mas, ao mesmo tempo, também
é o primeiro concreto, a primeira unidade de determinações opostas. Estas estão inquietas nesta relação,
nela está o princípio da vida. Com isto está preenchido o vazio que Aristóteles apontou nas antigas
filosofias - a falta de movimento; este movimento é aqui, agora mesmo, princípio.
É uma grande convicção que se adquiriu, quando se reconheceu que o ser e o nada são abstrações sem
verdade, que o primeiro elemento verdadeiro é o devir. O entendimento separa a ambos como
verdadeiros e de valor; a razão, pelo contrário, reconhece um no outro, que num está contido seu outro -
e assim o todo, o absoluto deve ser determinado como o devir.
Heráclito também diz que os opostos são características do mesmo, como, por exemplo, "o mel é doce e
amargo" - ser e não-ser ligam-se ao mesmo. Sexto observa: Heráclito parte, como os céticos, das
representações correntes dos homens; ninguém negará que os sãos dizem do mel que é doce, e os que
sofrem de icterícia que é amargo - se fosse apenas doce, não poderia modificar sua natureza através de
outra coisa e assim também para os que sofrem de icterícia seria doce. Zenão começa a sobressumir os
predicados opostos e aponta no movimento aquilo que se opõe - um por limites e um sobressumir os
limites; Zenão só exprimiu o infinito pelo seu lado negativo - , por causa de sua contradição, como o não
verdadeiro. Em Heráclito, vemos o infinito como tal expresso como conceito e essência: o infinito, que é
em si e para si, é a unidade dos opostos e, na verdade, dos universalmente opostos, da pura oposição,
ser e não-ser. Tomamos nós o ente em si e para si, não a representação do ente, do pleno, assim o puro
ser é o pensamento simples, em que todo o determinado é negado, o absolutamente negativo - nada é o
mesmo, apenas este igual a si mesmo - , passagem absoluta para o oposto, ao qual Zenão não chegou!
"Do nada, nada vem." Em Heráclito o momento da negatividade é imanente; disto trata o conceito de
toda a Filosofia.
Primeiro tivemos a abstração de ser e não-ser, numa forma bem imediata e universal; mais exatamente,
porém, também Heráclito concebeu as oposições de maneira mais determinada. É esta unidade de real e
ideal, de objetivo e subjetivo; o objetivo somente é o devir subjetivo. Este verdadeiro é o processo do
devir; Heráclito expressou de modo determinado este pôr-se numa unidade das diferenças. Aristóteles
diz, por exemplo, que Heráclito "ligou o todo e o não-todo" (parte) - o todo se torna parte e a parte o é
para se tornar o todo - , o "que se une e se opõe", do mesmo modo, "o que concorda e o dissonante"; e
de que de tudo (que se opõe) resulta um, e de um tudo. Este um não é o abstrato, a atividade de dirimir-
se; a morta infinitude é uma má abstração em oposição a esta profundidade que vemos em Heráclito.
Sexto Empírico cita o seguinte que Heráclito teria dito: A parte é algo diferente do todo; mas é também o
mesmo que o todo é; a substância é o todo e a parte. O fato de Deus ter criado o mundo Ter-se dividido
a si mesmo, gerado seu Filho, etc. - todos estes elementos concretos estão contidos nesta determinação.
Platão diz, em seu Banquete, sobre o princípio de Heráclito: "O um, diferenciado de si mesmo, une-se
consigo mesmo" - este é o processo da vida, "como a harmonia do arco e da lira". Deixa então que
Erixímaco, que fala no Banquete, critique o fato de a harmonia ser desarmônica ou se componha de
opostos, pois que a harmonia se formaria de altos e baixos, mas da unidade pela arte da música. Mas
isto não contradiz Heráclito, que justamente quer isto. O simples, a repetição de um único som não é
harmonia. Da harmonia faz parte a diferença; é preciso que haja essencial e absolutamente uma
diferença. Esta harmonia é precisamente o absoluto devir, transformar-se - não devir outro, agora este,
depois aquele. O essencial é que cada diferente, cada particular seja diferente de um outro - mas não de
um abstrato qualquer outro, mas de seu outro; cada um apenas é, na medida em que seu outro em si
esteja consigo, em seu conceito. Mudança é unidade, relação de ambos a um, um ser, este e o outro. Na
harmonia e no pensamento concordamos que seja assim; vemos, pensamos a mudança, a unidade
essencial. O espírito relaciona-se na consciência com o sensível e este sensível é seu outro. Assim
também no caso dos sons; devem ser diferentes, mas de tal maneira que também possam ser unidos - e
isto os sons são em si. Da harmonia faz parte determinada oposição, seu oposto, como nas harmonia das
cores. A subjetividade é o outro da objetividade, não de um pedaço de papel - o absurdo disto logo se
mostra - , deve ser seu outro, e nisto reside sua identidade; assim cada coisa é o outro do outro
enquanto seu outro. Este é o grande princípio de Heráclito; pode parecer obscuro, mas é especulativo; e
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isto é, para o entendimento que segura para si o ser, o não-ser, o subjetivo e objetivo, o real e o ideal,
sempre obscuro.

Os Modos da Realidade

Heráclito não ficou parado, em sua exposição, nesta expressão em conceitos, no puro lógico, mas além
desta forma universal, na qual expôs seu princípio, deu à sua idéia também uma expressão real. Esta
figura pura é precipuamente de natureza cosmológica, ou sua forma é mais a forma natural; por isso, é
incluído ainda na Escola Jônica, e com isto deu novos impulsos à filosofia da natureza. Sobre esta forma
real de seu princípio os historiadores, contudo, não estão de acordo entre si. A maioria diz que ele teria
posto a essência ontológica como fogo, outros dizem que como ar, outros dizem que antes o vapor que o
ar; mesmo o tempo é citado, em Sexto, como o primeiro ser do ente. A questão é a seguinte: Como
compreender esta diversidade? Não se deve absolutamente crer que se deva atribuir estas notícias à
negligência dos escritores, pois as testemunhas são as melhores, como Aristóteles e Sexto Empírico, que
não falam destas formas de passagem, mas de modo bem determinado, sem, no entanto, chamar a
atenção para estas diferenças e contradições. Uma outra razão mais próxima parece-nos resultar da
obscuridade do escrito de Heráclito, o qual, na confusão de seu modo de expressão, poderia dar motivos
para mal-entendidos. Mas, considerando mais detidamente, esta dificuldade desaparece; esta mostra-se
mais para uma análise superficial; no conceito profundo de Heráclito acha-se a verdadeira saída deste
empecilho. De maneira alguma podia Heráclito afirmar, como Tales, que a água ou o ar ou coisa
semelhante seria a essência absoluta; e não o podia afirmar como um primeiro donde emanaria o outro,
na medida em que pensou ser como idêntico como o não-ser ou no conceito infinito. Assim, portanto, a
essência absoluta que é não pode surgir nele como uma determinidade existente, por exemplo, a água,
mas a água enquanto se transforma, ou apenas o processo.
A. - Processo abstrato, tempo. Heráclito, portanto, disse que o tempo é o primeiro ser corpóreo, como
exprime Sexto. "Corpóreo" é uma expressão inadequada. Os céticos escolhiam muitas vezes as
expressões mais grosseiras ou tornavam os pensamentos grosseiros para mais facilmente liquidá-los.
"Corpóreo" significa sensibilidade abstrata; o tempo é a intuição abstrata do processo; diz que ele é o
primeiro ser sensível. O tempo, portanto, é a essência verdadeira. Na medida em que Heráclito não parou
na expressão lógica do devir, mas deu a seu princípio a forma de um ente, deduz-se disto que primeiro
tinha que oferecer-se a forma do tempo; pois precisamente, no sensível, no que se pode ver, o tempo é
o primeiro que se oferece como o devir; é a primeira forma do devir. Enquanto intuído, o tempo é o puro
devir. O tempo é puro transformar-se, é o puro conceito, o simples, que é harmônico a partir de
absolutamente opostos. Sua essência é ser e não-ser, sem outra determinação - ser puro e abstrato não-
ser, postos imediatamente numa unidade e ao mesmo tempo separados. Não como se o tempo fosse e
não fosse, mas o tempo é isto: no ser imediatamente não-ser e no não-ser imediatamente ser - esta
mudança de ser para não-ser, este conceito abstrato, é, porém, visto de maneira objetiva, enquanto é
para nós. No tempo não é o passado e o futuro, somente o agora; e este é, para não ser, está logo
destruído, passado - e este não-ser passa, do mesmo modo, para o ser, pois ele é. É a abstrata
contemplação desta mudança. Se tivéssemos de dizer como aquilo que Heráclito reconheceu como a
essência existe para a consciência, nesta pura forma em que ele o reconheceu, não haveria outra que
nomear a não ser o tempo; é, por conseguinte, absolutamente certo que a primeira forma do que devém
é o tempo; assim isto se liga ao princípio do pensamento de Heráclito.
B. - A forma real como processo, fogo. Mas este puro conceito objetivo deve realizar-se mais. No tempo
estão os momentos, ser e não-ser, postos apenas negativamente ou como momentos que imediatamente
desaparecem. Além disso, Heráclito determinou o processo de um modo mais físico. O tempo é intuição,
mas inteiramente abstrata. Se quisermos representar-nos o que ele é, de modo real, isto é, expressar
ambos os momentos como uma totalidade para si, como subsistente, então levanta-se a questão: que
ser físico corresponde a esta determinação? O tempo, dotado de tais momentos, é o processo;
compreender a natureza significa apresentá-la como processo. Este é o elemento verdadeiro de Heráclito
e o verdadeiro conceito; por isso, logo compreendemos que Heráclito não podia dizer que a essência é o
ar ou a água ou coisas semelhantes, pois eles mesmos não são (isto é o próximo) o processo. O fogo,
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porém, é o processo: assim afirmou o fogo como a primeira essência - e este é o modo real do
processo heracliteano, a alma e a substância do processo da natureza. Justamente no processo
distinguem-se os momentos, como no movimento: 1. o puro momento negativo, 2. os momentos da
oposição subsistente, água e ar, e 3. a totalidade em repouso, a terra. A vida da natureza é o processo
destes momentos: a divisão da totalidade em repouso da terra na oposição, o pôr desta oposição, destes
momentos - e a unidade negativa, o retorno para a unidade, o queimar da oposição subsistente. O fogo é
o tempo físico; ele é esta absoluta inquietude, absoluta dissolução do que persiste - o desaparecer de
outros, mas também de si mesmo; ele não é permanente. Por isso compreendemos (é inteiramente
conseqüente) por que Heráclito pode nomear o fogo como o conceito do processo de sua determinação
fundamental.
C. - O fogo está agora mais precisamente determinado, mais explicitado como processo real; ele é para
si o processo real, sua realidade é o processo todo no qual, então, os momentos são determinados mais
exata e concretamente. O fogo, enquanto o metamorfosear-se das coisas corpóreas, é mudança,
transformação do determinado, evaporação, transformação em fumaça; pois ele é, no processo, o
momento abstrato do mesmo, não tanto o ar como antes a evaporação. Para este processo Heráclito
utilizou uma palavra muito singular: evaporação (anathymíasis) (fumaça, vapores do sol); evaporação é
aqui apenas a significação superficial - é mais: passagem. Sob este ponto de vista, Aristóteles diz de
Heráclito que, segundo sua exposição, o princípio era a alma, por ser ela a evaporação, o emergir de
tudo, e este evaporar-se, devir, seria o incorpóreo e sempre fluído. As determinações mais próximas
deste processo real são, em parte, falhas e contraditórias. Sob este ponto de vista, afirma-se, em
algumas notícias, que Heráclito teria determinado o processo assim: "As formas (mudanças) do fogo são,
primeiro, o mar e, então, a metade disto, terra, e a outra metade, o raio" - o fogo em sua eclosão. Este é
universal e muito obscuro. A natureza é assim esse círculo. Neste sentido ouvimo-lo dizer: "Nem um deus
nem um homem fabricou o universo mas sempre foi e é e será um fogo sempre vivo, que segundo suas
próprias leis (métro) se acende e se apaga.". Compreendemos o que Aristóteles cita, que o princípio é a
alma, por ser a evaporação, este processo do mundo que a si mesmo se move; o fogo é a alma. No que
se refere ao fato de Heráclito afirmar que o fogo é vivificante, a alma, encontra-se uma expressão que
pode parecer bizarra, isto é, que a alma mais seca é a melhor. Nós certamente não tomamos a alma
mais molhada como a melhor, mas, pelo contrário, a mais viva; seco quer dizer aqui cheio de fogo: assim
a alma mais seca é o fogo puro, e este não é a negação do vivo, mas a própria vida. Para retornar a
Heráclito: ele é aquele que primeiro expressou a natureza do infinito e que compreendeu a natureza
como sendo em si infinita, isto é, sua essência como processo. É a partir dele que se deve datar o
começo da existência da Filosofia; ele é a idéia permanente, que é a mesma em todos os filósofos até os
dias de hoje, assim como foi a idéia de Platão e Aristóteles.

"Os homens são deuses mortais e os deuses, homens imortais; viver é-lhes morte e morrer
é-lhes vida".
"Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos".

Pitágoras de Samos

Pitágoras, o fundador da escola pitagórica, nasceu em Samos pelos anos 571-70 a.C. Em 532-31 foi
para a Itália, na Magna Grécia, e fundou em Crotona, colônia grega, uma associação científico-ético-
política, que foi o centro de irradiação da escola e encontrou partidários entre os gregos da Itália
meridional e da Sicília. Pitágoras aspirava - e também conseguiu - a fazer com que a educação ética da
escola se ampliasse e se tornasse reforma política; isto, porém, levantou oposições contra ele e foi
constrangido a deixar Crotona, mudando-se para Metaponto, aí morrendo provavelmente em 497-96 a.C.
Segundo o pitagorismo, a essência, o princípio essencial de que são compostas todas as coisas, é o
número, ou seja, as relações matemáticas. Os pitagóricos, não distinguindo ainda bem forma, lei e
matéria, substância das coisas, consideraram o número como sendo a união de um e outro elemento. Da
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racional concepção de que tudo é regulado segundo relações numéricas, passa-se à visão fantástica
de que o número seja a essência das coisas.
Mas, achada a substância una e imutável das coisas, os pitagóricos se acham em dificuldades para
explicar a multiplicidade e o vir-a-ser, precisamente mediante o uno e o imutável. E julgam poder explicar
a variedade do mundo mediante o concurso dos opostos, que são - segundo os pitagóricos - o ilimitado e
o limitado, ou seja, o par e o ímpar, o imperfeito e o perfeito. O número divide-se em par, que não põe
limites à divisão por dois, e, por conseguinte, é ilimitado (quer dizer, imperfeito, segundo a concepção
grega, a qual via a perfeição na determinação); e ímpar, que põe limites à divisão por dois e, portanto, é
limitado, determinado, perfeito. Os elementos constitutivos de cada coisa - sendo cada coisa número -
são o par e o ímpar, o ilimitado e o limitado, o pior e o melhor. Radical oposição esta, que explicaria o
vir-a-ser e o múltiplice, que seriam reconduzidos à concordância e à unidade pela fundamental harmonia
(matemática), que governa e deve governar o mundo material e moral, astronômico e sonoro.
Como a filosofia da natureza, assim a astronomia pitagórica representa um progresso sobre a jônica. De
fato, os pitagóricos afirmaram a esfericidade da Terra e dos demais corpos celestes, bem como a rotação
da Terra, explicando assim o dia e a noite; e afirmaram também a revolução dos corpos celestes em
torno de um foco central, que não se deve confundir com o Sol. Pelo que diz respeito à moral, enfim,
dominam no pitagorismo o conceito de harmonia, logicamente conexo com a filosofia pitagórica, e as
práticas ascéticas e abstinenciais, com relação à metempsicose e à reincarnação das almas.
Para compreendermos seus princípios fundamentais, é preciso partir do eleatismo. Como é possível uma
pluralidade? Pelo fato de o não-ser ter um ser. Portanto, identificam o não-ser ao Ápeiron de
Anaximandro, ao absolutamente Indeterminado, àquilo que não tem nenhuma qualidade; a isso opõe-se
o absolutamente Determinado, o Péras. Mas ambos compõem o Uno, do qual se pode dizer que é impar,
delimitado e ilimitado, inqualificado e qualificado. Dizem, pois, contra o eleatismo, que, se o Uno existe,
foi em todo caso formado por dois princípios, pois, nesse caso, há também uma pluralidade; da unidade
procede a série dos números aritméticos (monádicos), depois os números geométricos ou grandezas
(formas espaciais). Portanto, a Unidade veio a ser; portanto, há também uma pluralidade. Desde que se
têm o ponto, a linha, as superfícies e os corpos, têm-se também os objetos materiais; o número é a
essência própria das coisas. Os eleatas dizem: "Não há não-ser, logo, tudo é uma unidade". Os
pitagóricos: "A própria unidade é o resultado de um ser e de um não-ser, portanto há, em todo caso,
não-ser e, portanto, também uma pluralidade".
À primeira vista, é uma especulação totalmente insólita. O ponto de partida me parece ser a apologia da
ciência matemática contra o eleatismo. Lembramo-nos da dialética de Parmênides. Nela, é dito da
Unidade (supondo que não existe pluralidade): 1) que ela não tem partes e não é um todo; 2) que
tampouco tem limites; 3) portanto, que não está em parte nenhuma; 4) que não pode nem mover-se
nem estar em repouso, etc. Mas, por outro lado, o Ser e a Unidade dão a Unidade existente, portanto a
diversidade, e as partes múltiplas, e o número, e a pluralidade do ser, e a delimitação, etc. É um
procedimento análogo: ataca-se o conceito da Unidade existente porque comporta os predicados
contraditórios e é, portanto, um conceito contraditório, impossível. Os matemáticos pitagóricos
acreditavam na realidade das leis que haviam descoberto; bastava-lhes que fosse afirmada a existência
da Unidade para deduzir dela também a pluralidade. E acreditavam discernir a essência verdadeira das
coisas em suas relações numéricas. Portanto, não há qualidades, não há nada além de quantidades, não
quantidades de elementos (água, fogo, etc.), mas delimitações do ilimitado, do Ápeiron; este é análogo
ao ser potencial da hyle de Aristóteles. Assim, toda coisa nasce de dois fatores opostos. De novo, aqui,
dualismo. Notável quadro estabelecido por Aristóteles (Metaf. I, 5): delimitado, ilimitado; ímpar, par; uno,
múltiplo; direita, esquerda; masculino, feminino; imóvel, agitado; reto, curvo; luz, trevas; bom, mau;
quadrado, ablongo. De um lado têm-se, portanto: delimitado, ímpar, uno, direita, masculino, imóvel,
reto, luz, bom, quadrado. De outro lado, ilimitado, par, múltiplo, esquerda, feminino, agitado, curvo,
trevas, mau, ablongo. Isso lembra o quadro-modelo de Parmênides. O ser é luz e, portanto, sutil, quente,
ativo; o não-ser é noite e, portanto, denso, frio, passivo.
O ponto de partida que permite afirmar que tudo o que é qualitativo é quantitativo encontra-se na
acústica.
[Teoria das cordas sonoras; relação de intervalos; modo dórico.]
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A música, con efeito, é o melhor exemplo do que queriam dizer os pitagóricos. A música, como tal, só
existe em nossos nervos e em nosso cérebro; fora de nós ou em si mesma (no sentido de Locke),
compõe-se somente das relações numéricas quanto ao ritmo, se se trata de sua quantidade, e quanto à
tonalidade, se se trata de sua qualidade, conforme se considere o elemento harmônico ou o elemento
rítmico. No mesmo sentido, poder-se-ia exprimir o ser do universo, do qual a música é, pelo menos em
certo sentido, a imagem, exclusivamente com o auxílio de números. E tal é, estritamente, o domínio da
química e das ciências naturais. Trata-se de encontrar fórmulas matemáticas para as forças
absolutamente impenetráveis. Nossa ciência é, nesse sentido, pitagórica. Na química, temos uma mistura
de atomismo e de pitagorismo, para a qual Ecphantus na Antiguidade passa por ter aberto o caminho.
A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do
número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física. Nos outros sistemas de física,
tratava-se sempre de elementos e de sua combinação. As qualidades nasciam por combinação ou por
dissociação; agora, enfim, afirma-se que as qualidades residem na diversidade das proporções. Mas esse
presentimento estava ainda longe da aplicação exata. Contentou-se, provisoriamente, com analogias
fantasiosas.
[Simbolismo dos números pitagóricos: um é a razão, dois a opinião, quatro a justiça, cinco o casamento,
dez a perfeição, etc.; um é o ponto, dois é a linha, três a superfície, quatro o volume. Cosmogonia. O
Universo e os planetas esféricos. A harmonia das esferas.]
Se se pergunta a que se pode vincular a filosofia pitagórica, encontra-se, inicialmente, o primeiro sistema
de Parmênides, que fazia nascer todas as coisas de uma dualidade; depois, o Ápeiron de Anaximandro,
delimitado e movido pelo fogo de Heráclito. Mas estes são apenas, evidentemente, problemas
secundários; na origem há a descoberta das analogias numéricas no universo, ponto de vista
inteiramente novo. Para defender essa idéia contra a doutrina unitária dos eleatas, tiveram de erigir a
noção de número, foi preciso que também a Unidade tivesse vindo a ser; retomaram então a idéia
heraclitiana do pólemos, pai de todas as coisas, e da Harmonia que une as qualidades opostas; a essa
força, Parmênides chamava Aphrodite. Simbolizava a gênese de todas as coisas a partir da oitava.
Decompuseram os dois elementos de que nasce o número em par e ímpar. Identificaram essas noções
com termos filosóficos já usuais. Chamar o Ápeiron de Par é sua grande inovação; isso porque os
ímpares, os gnómones, davam nascimento a uma série limitada de números, os números quadrados.
Remetem-se, assim, a Anaximandro, que reaparece aqui pela última vez. Mas identificam esse limite com
o fogo de Heráclito, cuja tarefa é, agora, dissolver o indeterminado em tantas relações numéricas
determinadas; é essencialmente uma força calculadora. Se houvessem tomado emprestado de Heráclito a
palavra lógos, teriam entendido por ela a proporção (aquilo que fixa as proporções, como o Péras fixa o
limite). Sua idéia fundamental é esta: a matéria, que é representada inteiramente destituída de
qualidade, somente por relações numéricas adquire tal ou tal qualidade determinada. Tal é a resposta
dada ao problema de Anaximandro. O vir-a-ser é um cálculo. Isso lembra a palavra de Leibniz, ao dizer
que a música é exercitium arithmeticae occultum nescientis se numerare animi (¹). Os pitagóricos teriam
podido dizer o mesmo do universo, mas sem poder dizer quem faz o cálculo.
(¹) O exercício de aritmética oculto do espírito que não sabe calcular.

Notas Biográficas sobre Pitágoras

A doutrina e a vida de Pitágoras, desde os tempos da antiguidade, jaz envolta num véu de mistério.
A força mística do grande filósofo e reformador religioso, há 2.600 anos vem, poderosamente, influindo
no pensamento Ocidentel. Dentre as religiões de mistérios, de caráter iniciático, a doutrina pitagórica foi
a que mais se difundiu na antiguidade.
Não consideramos apenas lenda o que se escreveu sobre essa vida maravilhosa, porque há, nessas
descrições, sem dúvida, muito de histórico do que é fruto da imaginação e da cooperação ficcional dos
que se dedicaram a descrever a vida do famoso filósofo de Samos.
O fato de negar-se, peremptoriamente, a historicidade de Pitágoras (como alguns o fazem), por não se
ter às mãos documentação bastante, não impede que seja o pitagorismo uma realidade empolgante na
história da filosofia, cuja influência atravessa os séculos até nossos dias.
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Acontece com Pitágoras o que aconteceu com Shakespeare, cuja existência foi tantas vezes negada.
Se não existiu Pitágoras de Samos, houve com certeza alguém que construiu essa doutrina, e que, por
casualidade, chamava-se Pitágoras. Podemos assim parafrasear o que foi dito quanto a Shakespeare.
Mas, pondo de lado esses escrúpulos ingênuos de certos autores, que preferem declará-lo como não
existente, como se houvesse maior validez na negação da sua historicidade do que na sua afirmação,
vamos a seguir relatar algo, sinteticamente, em torno dessa lenda.
Em 1917, perto de Porta Maggiori, sob os trilhos da estrada de ferro, que liga Roma a Nápoles, foi
descoberta uma cripta, que se julgou a princípio fosse a porta de uma capela cristã subterrânea.
Posteriormente verificou-se que se tratava de uma construção realizada nos tempos de Cláudio, por volta
de 41 a 54 d.C., e que nada mais era do que um templo, onde se reuniam os membros de uma seita
misteriosa, que, afinal, averigou-se ser pitagórica. Sabe-se hoje, com base histórica, que antes, já em
tempos de César, proliferavam os templos pitagóricos, e se essa seita foi tão combatida, deve-se mais ao
fato de ser secreta do que propriamente por suas idéias. Numa obra, hoje cara aos pitagóricos,
Carcopino (La Brasilique pythagoricienne de la Porte Majeure) dá-nos um amplo relato desse templo. E
foi inegavelmente essa descoberta tão importante que impulsionou novos estudos, que se realizaram
sobre a doutrina de Pitágoras, os quais tendem a mostrar o grande papel que exerceu na história,
durante vinte e cinco séculos, essa ordem, que ainda existe e tem seus seguidores, mebora esteja, em
nossos dias, como já esteve no passado, irremediavelmente infectada de idéias estranhas que, ao nosso
ver, desvirtuam o pensamento genuíno de Pitágoras de Samos.
É aceito quase sem divergência por todos que se debruçaram a estudar a sua vida, que Pitágoras nasceu
em Samos, entre 592 a 570 antes da nossa era; ou seja, naquele mesmo século em que surgiram tantos
grandes condutores de povos e criadores de religiões, como foi Gautama Buda, Zoroastro (Zaratustra),
Confúcio e Lao Tsé.
Inúmeras são as divergências sobre a verdadeira nacionalidade de Pitágoras, pois uns afirmam ter sido
ele de origem egípcia; outros, síria ou, ainda, natural de Tiro.
Relata a lenda que Pitágoras, cujo nome significa o Anunciador pítico (Pythios), era filho de Menesarco e
de Partêmis, ou Pythaia. Tendo esta, certa vez, levado o filho à Pítia de Delfos, esta sacerdotiza
vaticinou-lhe um grande papel, o que levou a mãe a devotar-se com o máximo carinho à sua educação.
Consta que Pitágoras, que desde criança se revelava prodigioso, teve como primeiros mestres a
Hermodamas de Samos até os 18 anos, depois Ferécides de Siros, tendo sido, posteriormente, aluno de
Tales, em Mileto, e ouvinte das conferências de Anaximandro. Foi depois discípulo de Sonchi, um
sacerdote egípcio, tendo, também, conhecido Zaratos, o assírio Zaratustra ou Zoroastro, em Babilônia,
quando de sua estada nessa grande metrópole da antiguidade.
Conta-nos, ainda, a lenda que o hierofante Adonai aconselhou-o a ir ao Egito, recomendado ao faraó
Amom, onde, afirma-se, foi iniciado nos mistérios egípcios, nos santuários de Mênfis, Dióspolis e
Heliópolis. Afirma-se, ademais, que realizou um retiro no Monte Carmelo e na Caldéia, quando foi feito
prisioneiro pelas tropas de Cambísis, tendo sido daí conduzido para a Babilônia. Foi em sua viagem a
essa metrópole da Antiguidade, que conheceu o pensamento das antigas religiões do Oriente, e
freqüentou as aulas ministradas por famosos mestres de então.
Observa-se, porém, em todas as fontes que nos relatam a vida de Pitágoras, que este realizou, em sua
juventude, inúmeras viagens e peregrinações, tendo voltado para Samos já com a idade de 56 anos.
Suas lições atraíram-lhe muitos discípulos, mas provocaram, também, a inimizade de Policrates, então
tirano de Samos, o que fez o sábio exilar-se na Magna Grécia (Itália), onde, em Crotona, fundou o seu
famoso Instituto.
Antes de sua localização na Magna Grécia, relata-se que esteve em contato com os órficos, já em
decadência, no Peloponeso, tendo então conhecido a famosa sacerdotiza Teocléia de Delfos.
Mas é na Itália que desempenha um papel extraordinário, porque aí é que funda o seu famoso Instituto,
o qual, combatido pelos democratas de então, foi finalmente destruído, contando-nos a lenda que, em
seu incêndio, segundo uns, pereceu Pitágoras, junto com os seus mais amados discípulos, enquanto
outros afirmam que conseguiu fugir, tomando um rumo que permaneceu ignorado.
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Segundo as melhores fontes, Pitágoras deve ter falecido entre 510 e 480. A sociedade pitagórica
continuou após a sua morte, tendo desaparecido quando do famoso massacre de Metaponto, depois da
derrota da liga crotoniata.
"Com ordem e com tempo encontra-se o segredo de fazer tudo e tudo fazer bem". (Pitágoras)

O Pitagorismo

Durante o século VI a.C. verificou-se, em algumas regiões do mundo grego, uma revivescência da vida
religiosa. Os historiadores mostram que um dos fatores concorreram para esse fenômeno foi a linha
política adotada, em geral, pelos tiranos, para garantir seu papel de líderes populares e para enfraquecer
a antiga aristocracia - que se supunha descendente dos deuses protetores das polis, das divindades
"oficiais" -, os tiranos favoreciam a expansão de cultos populares ou estrangeiros.
"Ajuda teus semelhantes a levantar sua carga, mas não a carregues". (Pitágoras)

A Pátria Estelar

Dentre as religiões de mistério, de caráter iniciático, uma teve enorme difusão: o culto de Dionisio,
originário da Trácia, e que passou a constituir o núcleo da religião órfica. O orfismo - de Orfeu, que
primeiro teria recebido a revelação de certos mistérios e os teria confiado a iniciados sob a forma de
poemas musicais - era uma religião essencialmente esotérica. Os órficos acreditavam na imortalidade da
alma e na metempsicose, ou seja, na transmigração da alma através de vários corpos, a fim de efetivar
sua purificação. A alma aspiraria, por sua própria natureza, a retornar à sua pátria celeste, às estrelas, de
onde caíra. Para libertar-se, porém, do ciclo das reincarnações, o homem necessitaria da ajuda de
Dioniso, deus libertador que completava a libertação preparada pelas práticas catárticas (entre as quais
se incluia a abstinência de certos alimentos). A religião órfica pressupunha, portanto, uma distinção - não
só de natureza como também de valor - entre a alma ignea e imortal e os corpos pereciveis através dos
quais ela realizava sua purificação.
"O que fala, semeia - o que escuta, recolhe". (Pitágoras)

Salvação pela Matemática

Pitágoras de Samos, que se tornou figura legendária na própria Antiguidade, teria sido antes de mais
nada um reformador religioso, pois realizou uma modificação fundamental na doutrina órfica,
transformando o sentido da "via de salvação"; em lugar do deus Dioniso colocou a matemática.
Da vida de Pitágoras quase nada pode ser afirmado com certeza, já que ela foi objeto de uma série de
relatos tardios e fantasiosos, como os referentes às suas viagens e a seus contatos com culturas
orientais. Parece certo, contudo, que ele teria deixado Samos (na Jônia), na segunda metade do século
VI a.C. fugindo à tirania de Polícrates, transferindo-se para Crotona (na Magna Grécia) fundou uma
confraria científico-religiosa.
Pitágoras criou um sistema global de doutrinas, cuja finalidade era descobrir a harmonia que preside à
constituição do cosmo e traçar, de acordo com ela, as regras da vida individual e do governo das cidades.
Partindo de idéias órficas, o pitagorismo pressupunha uma identidade fundamental, de natureza divina,
entre todos os seres. Essa similitude profunda entre os vários existentes era sentida pelo homem sob a
forma de um "acordo com a natureza", que, sobretudo, depois do pitagórico Filolau, será qualificada
como uma "harmonia", garantida pela presença do divino em tudo. Natural que dentro de tal concepção -
vista por alguns autores como o fundamento do "mito helênico" - o mal seja entendido sempre como
desarmonia.
A grande novidade introduzida certamente pelo próprio Pitágoras na religiosidade órfica foi a
tranformação do processo de libertação da alma num esforço puramente humano, porque basicamente
intelectual. A purificação resultaria do trabalho intelectual, que descobre a estrutura numérica das coisas
e torna, assim, a alma semelhante ao cosmo, entendido como unidade harmônica, sustentada pela
ordem e pela proporção, e que se manifesta como beleza.
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Pitágoras teria chegado à concepção de que todas as coisas são números através inclusive de uma
observação no campo musical: verificou no monocórdio que o som produzido varia de acordo com a
extensão da corda sonora. Ou seja, descobriu que há uma dependência do som em relação à extensão,
da música, (tão importante como propiciadora de vivências religiosas estáticas) em relação à matemática.
"Todas as coisas são números". (Pitágoras)

Em Todas as Coisas, o Número

A partir do próprio Pitágoras, o pitagorismo primitivo concebe a extensão como descontínua: constituída
por unidades indivisíveis e separadas por um "intervalo". Segundo a cosmologia pitagórica - que descreve
o cenário cósmico, onde se processa a purificação da alma - esse "intervalo" resultaria da respiração do
universo que, vivo, inalaria o ar infinito (pneuma ápeiron) em que estaria imerso. Mínimo de extensão e
mínimo de corpo, as unidades comporiam os números. Estes não seriam, portanto - como virão a ser
mais tarde -, meros símbolos a exprimir o valor das grandezas: para os pitagóricos, os números são reais,
são essências realizadas (usando-se um vocabulário filosófico posterior), são a própria "alma das coisas",
são entidades corpóreas constituídas por unidades contíguas e a prenunciar os átomos de Leucipo e
Demócrito. Assim, quando os pitagóricos falam que as coisas imitam os números estariam entendendo
essa imitação (mimesis) num sentido realista: as coisas manifestariam externamente a estrutura
numérica inerente.
De acordo com essa concepção, os pitagóricos adotaram uma representação figurada dos números, em
substituição às representações literais mais arcaicas, usadas pelos gregos e depois pelos romanos. A
representação figurada permitia explicitar a lei de composição dos números e torna-se um fator de
avanço das investigações matemáticas dos pitagóricos. Os primeiros números, representados
figurativamente, bastavam para justificar o que há de essencial no universo: o um é o ponto, mínimo de
corpo, unidade de extensão; o dois determina a linha; o três gera a superfície, enquanto o quatro produz
o volume. Já por sua própria notação figurativa evidencia-se que a primitiva matemática pitagórica
constitui uma aritmo-geometria, a associar intimamente os aspectos numéricos e geométrico, a
quantidade e sua expressão espacial.
"Pensem o que quiserem de ti; faze aquilo que te parece justo". (Pitágoras)

O Escândalo dos "Irracionais"

A primitiva concepção pitagórica de número apresentava limitações que logo exigiriam dos próprios
pitagóricos tentativas de reformulação. O principal impasse enfrentado por essa aritmo-geometria
baseada em inteiros (já que as unidades seriam indivisíveis) foi o levantado pelo números irracionais.
Tanto na relação entre certos valores musicais (expressos matematicamente), quanto na base mesma da
matemática, surgem grandezas inexprimíveis naquela concepção de número. Assim, a relação entre o
lado e a diagonal do quadrado (que é a da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto)
tornava-se "irracional", aquelas linhas não apresentavam "razão comum" ou "comum medida", o que se
evidenciava pelo aparecimento na tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidade
de determinação exaustiva, como V¯². O "escândalo" dos irracionais manifestava-se no próprio teorema
de Pitágoras (o quadrado construído sobre a hipotenusa é igual a soma dos quadrados construídos sobre
os catetos). Com efeito, desde que se atribuísse valor 1 ao cateto de um triângulo isósceles, a hipotenusa
seria igual a V¯². Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos
catetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era
afinal nem par nem ímpar.
Apesar desses impasses - e em grande parte por causa deles - o pensamento pitagórico evoluiu e
expandiu-se, influenciando praticamente todo o desenncolcimento da ciência e da filosofia gregas. Sua
astronomia, estreitamente vinculada à sua religião astral foi o ponto de partida das várias doutrinas que
os gregos formulariam, pressupondo o universo harmonicamente constituído por astros que desenvolvem
trajetórias, presos a esferas homocêntricas. Essa geometrização do cosmo estava aliada, no pitagorismo,
às concepções musicais também desenvolvidas pela escola: separadas por intervalos equivalentes aos
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intervalos musicais, aquelas esferas produziram, em seu movimento, sons de acorde perfeito. Essa
"harmonia das esferas", permanentemente soante, seria a própria tessitura do que o homem considera
"silêncio".
"Educai as crianças e não será preciso punir os homens". (Pitágoras)

Zenão de Eléia

Vida, Obras e Pensamento

Zenão floresceu cerca de 464/461 a.C. Nasceu em Eléia (Itália). Ao contrário de Heráclito, interveio na
política, dando leis à sua pátria. Tendo conspirado contra a tirania e o tirano (Nearco?), acabou preso,
torturado e, por não revelar o nome dos comparsas, perdeu a vida. - Escreveu várias obras em prosa:
Discussões, Contra os Físicos, Sobre a Natureza, Explicação Crítica de Empédocles. - Considerado criador
da dialética (entendida como argumentação combativa ou erística), Zenão erigiu-se em defensor de seu
mestre, Parmênides, contra as críticas dos adversários, principalmente os pitagóricos. Defendeu o ser
uno, contínuo e indivisível de Parmênides contra o ser múltiplo, descontínuo e divisível dos pitagóricos.
A característica de Zenão é a dialética. Ele é o mestre da Escola Eleática; nela seu puro pensamento
torna-se o movimento do conceito em si mesmo, a alma pura da ciência - é o iniciador da dialética. Pois
até agora só vimos nos eleatas a proposição: "O nada não possui realidade, não é, e aquilo que é
surgir e desaparecer cai fora". Em Zenão, pelo contrário, também descobrimos tal afirmar e
sobressumir daquilo que o contradiz, mas não o vemos, ao mesmo tempo, começar com esta afirmação;
é a razão que realiza o começo - ela aponta, tranqüila em si mesma, naquilo que é afirmado como sendo
sua destruição. Parmênides afirmou: "O universo é imutável, pois na mudança seria posto o não-
ser daquilo que é; mas somente é ser, no 'não-ser é' se contradizem sujeito e predicado".
Zenão, pelo contrário, diz: "Afirmai vossa mudança: nela enquanto mudança, é o nada para ela,
ou ela não é nada". Nisto consistia o movimento determinado, pleno para aquela mudança; Zenão
falou e voltou-se contra o movimento como tal ou puro movimento.
Também Zenão era um eleata; é o mais jovem e viveu particularmente em convívio com Parmênides.
Este o amava muito e o adotou como filho. Seu pai verdadeiro chamava-se Teleutágoras. Em sua vida
não apenas era algo de muito respeito em seu Estado, mas também em geral era célebre e muito
respeitado como professor. Platão o lembra: de Atenas e de outros lugares vinham homens a ele para
entregar-se à sua formação. Atribuiu-se-lhe orgulhosa auto-suficiência, pelo fato de (exceto sua viagem a
Atenas) ter sua residência fixa em Eléia, negando-se a viver por mais tempo na grande e poderosa
Atenas, para lá colher fama. Segundo muitas lendas, a fortaleza de sua alma tornou-se célebre pela sua
morte. Ela teria salvo um Estado (não se sabe se sua pátria Eléia ou se Sicília) de seu tirano, sacrificando
da seguinte maneira sua vida: Teria participado de uma conjuração para derrubar o tirano, tendo, porém,
esta sido traída. Quando o tirano, diante de seu povo, o fez torturar de todos os modos, para arrancar-
lhe a confissão dos nomes dos outros conjuradores, e ao perguntar pelos inimigos do Estado, Zenão
delatou primeiro todos os amigos do tirano como participantes da conjuração, chamando então o tirano
mesmo a peste do Estado. Dessa maneira, as poderosas admoestações ou também as torturas horríveis
e a morte de Zenão ergueram os cidadãos e levantaram-lhes o ânimo, para caírem sobre o tirano,
liquidá-lo e assim libertar-se. De modo violento e furioso de sua reação. Diz-se que ele se postou como
se quisesse dizer ainda algo aos ouvidos do tirano, mordendo-lhe, no entanto, a orelha e cerrando os
dentes até ter sido trucidado pelos outros. Outros narram que ele teria ferrado os dentes em seu nariz,
segurando-o assim. Outros ainda dizem que, tendo suas respostas sido seguidas de enormes torturas, ele
cortou a língua com os próprios dentes e a cuspiu no rosto do tirano, para lhe mostrar que dele nada
arrancaria; depois disso teria sido triturado num pilão.
1) Segundo seu elemento tético, a filosofia de Zenão é, em seu conteúdo, inteiramente igual à que vimos
em Xenófanes e Parmênides, apenas com esta diferença fundamental, que os momentos e as oposições
são expressos mais como conceitos e pensamentos. Já em seu elemento tético vemos progresso; ele já
está mais avançado no sobressumir das oposições e determinações.
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"É impossível", diz ele, "que, quando algo é, surja" (ele relaciona isto com a divindade); "pois teria
que surgir ou do igual ou do desigual. Ambas as coisas são, porém. impossíveis; pois não se pode
atribuir, ao igual, que dele se produza mais do que deve ser produzido, Já que os iguais devem ter entre
si as mesmas determinações." Com a aceitação da igualdade, desaparece a diferença entre o que produz
e aquilo que é produzido. "Tampouco pode surgir o desigual do desigual; pois se do mais fraco se
originasse o mais forte ou do menor o maior ou do pior o melhor, ou se, inversamente, o pior viesse do
melhor, originar-se-ia o não-ser do ente, o que é impossível; portanto. Deus é eterno." Isto foi
denominado panteísmo (spinozismo), que repousaria sobre a proposição ex nihilo nihil fit. Em Xenófanes
e Parmênides tínhamos ser e nada. Do nada é imediatamente nada, do ser, ser; mas assim já é. Ser é a
igualdade expressa como imediata; pelo contrário, igualdade como igualdade pressupõe o movimento do
pensamento e a mediação, a reflexão em si. Ser e não-ser situam-se assim, lado a lado, sem que sua
unidade seja concebida como a de diferentes; estes diferentes não são expressos como diferentes. Em
Zenão a desigualdade é o outro membro em oposição a igualdade.
Em seguida, é demonstrada a unidade de Deus: "Se Deus é o mais poderoso de tudo, então Ihe é
próprio que seja um; pois, na medida em que dele houvesse dois ou ainda mais, ele não teria poder
sobre eles; mas enquanto Ihe faltasse o poder sobre os outros não seria Deus. Se, portanto, houvesse
mais deuses, eles seriam mais poderosos e mais fracos um em face do outro; não seriam, por
conseguinte, deuses; pois faz parte da natureza de Deus não ter acima de si nada mais poderoso; pois o
igual não é nem pior nem melhor que o igual - ou não se distingue dele. Se, portanto, Deus é e se ele é
de tal natureza, então só há um Deus; não seria capaz de tudo o que quisesse, se houvesse mais
deuses".
"Sendo um, é em toda parte igual, ouve, vê e possui também, em toda parte, os outros sentimentos;
pois, não fosse assim, as partes de Deus dominariam uma sobre a outra" (uma estaria onde a outra não
está, reprimi-la-ia; uma parte teria determinações que faltariam às outras), "o que é impossível. Como
Deus é em toda parte igual, possui ele a forma esférica; pois não é aqui assim, em outra parte de outro
modo, mas em toda parte igual." Diz ainda: "Já que é eterno, um e esférico, ele nao é nem infinito
(ilimitado) nem limitado. Pois, a) ilimitado é o não-ente; pois este não possui nem meio, nem começo,
nem fim, nem uma parte - tal coisa é o ilimitado. Como, porém, é o não-ente, assim não é o ente. 0
ilimitado é o indeterminado, o negativo; seria o não-ente, a supressão do ser, e é assim, ele mesmo,
determinado como algo unilateral. b) Dar-se-ia delimitação mútua, se houvesse diversos; mas. como é
apenas um, ele não é limitado." Assim Zenão também mostra: "O um não se move, nem é imóvel. Pois
imóvel é a) o não-ente" (no não-ente não se realiza nenhum movimento; com a falta de movimento
estaria posto o não-ser ou o vazio; o imóvel é negativo; "pois para ele nenhuma outra coisa advém, nem
vai para coisa alguma. b) Movido, porém, somente é o múltiplo; pois um dever-se-ia mover para o
outro." Movido só é o que é diferente de outro; pressupõe-se uma multiplicidade de tempo, espaço. "O
um, portanto, não está nem em repouso nem se movimenta; pois não se parece nem com o não-ente
nem com o múltiplo. Em tudo isto, Deus se comporta assim; pois ele é eterno e um, idêntico a si mesmo
e esférico nem ilimitado nem limitado, nem em repouso nem em movimento." Do fato de nada poder
provir, quer do igual quer do desigual, Aristóteles conclui que, ou nada existe fora de Deus, ou tudo é
eterno.
Vemos, em tal tipo de raciocínio, uma dialética que se pode denominar de raciocínio metafísico. 0
princípio da identidade Ihe serve de fundamento: "O nada é igual ao nada, não passa para o ser, nem
vice-versa; do igual, portanto, nada pode provir". O ser, o um da Escola Eleática é apenas esta
abstração, este afundar-se no abismo da identidade do entendimento. Este modo, o mais antigo, de
argumentar é ainda, até o dia de hoje, válido, por exemplo, nas assim chamadas demonstrações da
unidade de Deus. A isto vemos ligada uma outra espécie de raciocínio metafísico: são feitas
pressuposições, por exemplo. o poder de Deus, raciocinando-se, a partir daí. negando-se predicados.
Esta a maneira comum de nós raciocinarmos. No que se refere às determinações deve-se observar que
elas, enquanto algo negativo, devem ser mantidas afastadas do ser positivo e apenas real.
Para ir a esta abstração fazemos um outro caminho, não utilizamos a dialética que usa a Escola Eleática;
nosso caminho é trivial e mais óbvio. Nós dizemos que Deus é imutável, a mudança apenas se atribui às
coisas finitas (isto como que sendo uma proposição empírica); de um lado temos, assim, as coisas finitas
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e a mudança; de outro lado, a imutabilidade nesta unidade abstrata e absoluta consigo mesma. É a
mesma separação; só que nós deixamos valer como ser também o finito. o que os eleatas desprezaram.
Ou também partimos das coisas finitas para as espécies, gêneros, e deixamos, passo a passo, o negativo
de lado; e o gênero mais alto é então Deus, que, enquanto o ser supremo, é apenas afirmativamente,
mas sem qualquer determinação. Ou passamos do finito para o infinito, dizendo que o finito, enquanto
limitado, deve ter seu fundamento no infinito. Em todas estas formas que nos são bem familiares está
contida a mesma dificuldade da questão que se levanta no que diz respeito ao pensamento eleático: De
onde vem a determinação, como deve ela ser concebida, tanto no um mesmo, que deixa o finito de lado,
como no modo como o infinito se manifesta no finito? Os eleatas distinguem-se, em seu pensamento, de
nosso modo de refletir comum, pelo fato de terem posto mãos à obra de maneira especulativa - o
especulativo tem lugar no fato de afirmarem que a mudança não é - e pelo fato de, desta maneira. terem
mostrado que, assim como se pressupõe o ser, a mudança é em si contradição, algo incompreensível:
pois do um, do ser, está afastada a determinação do negativo, da multiplicidade. Enquanto nós deixamos
valer, em nossa representação, a realidade do mundo finito, os eleatas foram mais conseqüentes,
avançando até a afirmação de que só o um é e de que o negativo não é - conseqüência que, ainda que
deva ser por nós admirada, é, contudo, não menos, uma grande abstração
Particularmente digno de nota é o fato de que. em Zenão, já há a consciência mais alta de que uma
determinação é negada de que esta negação mesma é novamente uma determinação, devendo então,
na negação absoluta. não ser negada apenas uma determinação, mas ambas as negações que se opõem.
Antes é negado o movimento e a essência absoluta aparece como em repouso; ou é negada enquanto
finita. e então é puramente infinita. Isto, porém, também é determinação, também ela finita. Do mesmo
modo, também o ser em oposição ao não-ser é uma determinação.
Sendo a essência absoluta posta como o um ou o ser, ela é posta através da negação; é determinada
como o negativo e, assim, como o nada, e ao nada se atribuem os mesmos predicados que ao ser: o
puro ser não é movimento, é o nada do movimento. Isto pressentiu Zenão; e, porque previu que o ser é
o oposto do nada, assim negou ele do um o que deveria dizer-se do nada. Mas o mesmo deveria
acontecer com o resto. 0 um é o mais poderoso e nisto determinado propriamente como o destruir
absoluto; pois o poder é também o não-ser absoluto de um outro, o vazio. 0 um é igualmente o não dos
muitos: tanto no nada como no um, a multiplicidade está sobressumida. Esta dialética mais alta
encontramo-la em Platão, em seu Parmênides. Aqui isto surge apenas referido a algumas determinações
não com referência às determinações do um e do ser mesmo.
A consciência mais alta é a consciência sobre a nulidade do ser enquanto algo determinado em face do
nada; isto se dá, parte em Heráclito e, então, nos sofistas; com isto não permanece verdade alguma, ser-
em-si, mas apenas o ser para o outro é, ou seja, a certeza da consciência individual e a certeza como
refutação - o lado negativo da dialética.
2) Já lembramos que também encontramos a verdadeira dialética objetiva igualmente em Zenão.
Zenão possui o aspecto importante de ser o descobridor da dialética: se não é ele propriamente, no que
vimos, o descobridor da dialética em sua plenitude, ao menos é quem está em seu começo; pois ele nega
predicados que se opõem. Portanto, Xenófanes, Parmênides, Zenão põem como fundamento a
proposição: Nada é nada, o nada não é, ou o igual (como diz Melisso) é a essência; isto é, eles afirmam
um dos predicados que se opõem, como a essência. Eles põem-no fixamente; onde encontram, numa
determinação, o oposto, suprimem com isto essa determinação. Mas, assim, esta somente se suprime
através de um outro, através de minha afirmação, através da distinção que faço de que um lado é o
verdadeiro, o outro sem importância (nulo) (parte-se de uma determinada proposição); sua nulidade não
aparece nela mesma, não de maneira que se suprima a si mesma, isto é, que contenha em si uma
contradição. Como movimento: Verifiquei algo e vejo que é o nulo; demonstrei isto, segundo o
pressuposto, no movimento; conclui-se, portanto, que ele é o nulo. Mas uma outra consciência não
verifica aquilo; eu declaro isto como imediatamente verdadeiro; a outra consciência tem razão em afirmar
uma outra: coisa como imediatamente verdadeira, por exemplo, o movimento. Como sempre é o caso
quando um sistema filosófico refuta o outro, o primeiro sistema é posto como fundamento e a partir dele
se entra em debate contra o outro. Assim a coisa é facilitada: "O outro sistema não possui verdade,
porque não concorda com o meu"; mas o outro sistema tem o mesmo direito de dizer assim. Eu não
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devo demonstrar sua não-ver dade através de um outro, mas em si mesmo. De nada ajuda
demonstrar meu sistema ou minha proposição e então concluir: portanto, o sistema que se opõe está
errado; para esta proposição aquela sempre parecerá algo de estranho, algo exterior. O falso não deve
ser apresentado corno falso porque o oposto é verdadeiro, mas em si mesmo.
Esta convicção racional vemos despertar em Zenão. No Parmênides de Platão (127-128), esta dialética é
muito bem descrita. Platão fá-lo falar assim sobre isto: faz Sócrates dizer que Zenão afirma em seu
escrito o mesmo que Parmênides, isto é, que tudo é um: mas que nos procura enganar com uma
expressão, procurando dar a impressão de que está dizendo algo de novo. Sócrates diz que Parmênides
afirma em seu poema que tudo é um: Zenão, pelo contrário, que o múltiplo não é. Zenão responde que
escreveu isto, antes contra aqueles que procuram tornar ridícula (komodeiñ) a proposição de
Parmênides, quando mostram quantas coisas ridículas e que contradições contra si mesmos resultam de
suas afirmações. Diz que combateu aqueles que afirmam o ser do múltiplo, para demonstrar que disto
resultariam muito mais coisas discordantes que da proposição de Parmênides.
Isto é a determinação mais exata da dialética objetiva. Nesta dialética não vemos afirmar-se o
pensamento simples para si mesmo, mas, fortalecido, levar a guerra para território inimigo. Este lado
possui a dialética na consciência de Zenão; mas ela deve ser considerada também de seu lado positivo.
Conforme a representação corrente da ciência, em que proposições são resultado da demonstração, é a
demonstração o movimento da convicção, ligação através de mediação. A dialética como tal é a) dialética
exterior, este movimento distinto do compreender deste movimento; b) não é um movimento apenas de
nossa intuição, mas a partir da coisa mesma, isto é, demonstrada para o puro conceito do conteúdo.
Aquela dialética é uma mania de contemplar objetos, de neles apontar razões e aspectos, através dos
quais se torna vacilante o que em geral vale como firme. Podem ser então razões bem exteriores. A outra
dialética, porém, é a consideração imanente do objeto: ele é tomado para si, sem pressuposições, idéia,
dever-ser, não segundo circunstâncias exteriores, leis, razões. A gente se põe inteiramente dentro da
coisa, considera o objeto em si mesmo e o toma segundo as determinações que possui. Nesta
consideração, ele se demonstra a si mesmo, mostra que possui determinações opostas, que se suprime
(sobressume): esta dialética encontramos precipuamente junto aos antigos. A dialética subjetiva, que
raciocina, baseando-se em razões exteriores, torna-se norma quando se concede: "No correto está o
incorreto e no falso também o verdadeiro". A dialética verdadeira não deixa nada sobrando em seu
objeto, de tal modo que apresentaria falhas apenas de um lado; mas ele se dissolve segundo sua
natureza inteira. 0 resultado desta dialética é zero, o negativo; o afirmativo que nela se esconde ainda
não aparece. A esta dialética verdadeira pode juntar-se o que os eleatas fizeram. Mas junto a eles ainda
não vingou a determinação, a essência do com-preender; ficaram parados na idéia de que através da
contradição o objeto se torna nulo.
A dialética da matéria de Zenão não foi até hoje ainda refutada; não se conseguiu ainda passar além dela
e a questão fica esquecida no indeterminado. "Ele demonstra que, quando é o múltiplo, então é grande e
pequeno: grande, assim o múltiplo é infinito, segundo a grandeza" (tò mégethos), deve-se ultrapassar a
multiplicidade, enquanto limite indiferente, para passar para o infinito; o que é infinito não é mais
grande, nem mais múltiplo; infinito é o negativo do múltiplo; "pequeno, de maneira que não tem mais
grandeza", átomos, o não-ente. "Aqui mostra ele que o que não tem tamanho, nem espessura, nem
massa (ónkos), também não é. Pois se fosse acrescentado a um outro não aumentaria a este; pois, se
não tem tamanho e grandeza, nada poderia acrescentar ao tamanho do outro; assim o que foi
acrescentado não é nada. O mesmo aconteceria ao ser retirado; o outro não seria por isso diminuído;
não é, portanto, nada".
Os aspectos mais exatos desta dialética nos conservou Aristóteles; o movimento foi tratado
particularmente por Zenão, de maneira objetiva e dialética. Mas o caráter exaustivo que vemos no
Parmênides de Platão não Ihe corresponde. Vemos desaparecer para a consciência de Zenão o simples
pensamento imóvel para tornar-se ele mesmo movimento pensante; na medida em que combate o
movimento sensível, ele o dá a si. O fato de a dialética ter tido atraída sua atenção primeiro para o
movimento é a razão de a dialética mesma ser este movimento ou o movimento mesmo ser a dialética de
todo ente. A coisa tem. enquanto se move, sua dialética mesma em si, e o movimento é: tornar-se outro,
sobressumir-se. Aristóteles afirma que Zenão teria negado o movimento pelo fato de possuir contradição
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interna. Mas não se deve entender isto assim como se o movimento não fosse - como nós dizemos,
não há elefantes, não há rinocerontes. Que o movimento existe, que ele é fenômeno, isto nem está em
questão; o movimento possui certeza sensível, como existem elefantes. Neste sentido, Zenão nem teve a
idéia de negar o movimento. Pelo contrário, seu questionar vai em busca de sua verdade; mas o
movimento é não verdadeiro, pois ele é contradição. Com isto quer ele dizer que não se Ihe deveria
atribuir verdadeiro ser. Zenão mostra então que a representação do movimento contém uma contradição
e apresenta quatro modos de refutação do movimento. Os argumentos repousam sobre a infinita divisão
do espaço e do tempo.
1) Primeira forma: Zenão diz que o movimento não tem verdade alguma, porque o movido deveria
atingir primeiro a metade do espaço como sua meta. Aristóteles diz isto de maneira tão breve por ter
tratado antes amplamente o objeto e tê-lo exposto detidamente. Isto deve ser compreendido de maneira
mais universal; é pressuposta a continuidade do espaço. O que se move deve atingir uma determinada
meta; este caminho é um todo. Para percorrer o todo, o que é movido deve antes ter percorrido a
metade. Agora a meta é o fim desta metade. Mas esta metade é novamente um todo, este espaço possui
assim uma metade; deve, portanto, ter atingido antes a metade desta metade, e assim até o infinito.
Zenão toca aqui na divisibilidade infinita do espaço. Pelo fato de espaço e tempo serem absolutamente
contínuos, nunca se pode parar com a divisão. Cada grandeza - e cada tempo e espaço sempre tem uma
grandeza - é novamente divisível em duas metades; estas devem ser percorridas e, mesmo onde
colocamos um espaço o menor possível, sempre surge este mesmo estado de coisas. O movimento que
seria o percurso destes momentos infinitos nunca termina; portanto, o que é movido nunca atinge sua
meta.
É conhecido como Diógenes de Sínope, o Cínico, refutou tais provas da contradição do movimento, de
maneira muito simples; levantou-se em silêncio e caminhou de cá para lá - ele as refutou pela ação. Mas
a estória é continuada também assim: a um aluno que se contentara com esta refutação, Diógenes o
castigou pela simples razão de que, se o professor havia discutido com argumentos, ele só poderia deixar
valer uma refutação também com argumentos. Da mesma maneira a gente não deve satisfazer-se com a
certeza sensível; mas é preciso compreender.
Vemos aqui desenvolvido o infinito aparecer. primeiro em sua contradição - uma consciência dele. O
movimento, o puro aparecer em si mesmo é o objeto e surge como um pensado, um posto segundo sua
essência, a saber, (consideramos a forma dos momentos) em suas diferenças da pura igualdade consigo
mesmo e da pura negatividade - do ponto contra a continuidade. Na nossa representação não parece
contraditório que o ponto no espaço ou, do mesmo modo, o momento no tempo contínuo seja posto ou
que seja afirmado o agora do tempo como uma continuidade, uma duração (dia, ano); mas seu conceito
contradiz-se a si mesmo. A igualdade consigo mesmo, a continuidade é absoluta homogeneidade, é
eliminação de toda diferença, de todo negativo, de todo ser para si; o ponto é, pelo contrário, o puro ser
para si, o absoluto distinguir-se e a supressão de toda igualdade e homogeneidade com outro. Mas estes
dois estão postos numa unidade, no espaço e no tempo, espaço e tempo, portanto, a contradição. O
mais fácil é mostrá-la no movimento; pois, no movimento, o oposto é também posto para a
representação. Pois o movimento e a essência, a realidade do tempo e do espaço; e, enquanto esta
aparece, é posta, também é posto já o fenômeno da contradição. É para esta contradição que Zenão
chama a atenção.
É a continuidade de um espaço, é o positivo que é posto; e nele o limite que o divide ao meio. Mas o
limite que divide ao meio não é limite absoluto ou em si e para si, mas é algo limitado, é novamente
continuidade. Mas esta continuidade também novamente nada é de absoluto, mas põe o oposto nela -
limite que divide ao meio; mas com isto novamente não é posto o limite da continuidade, a metade ainda
é continuidade e assim até o infinito. Até o infinito - com isto nos representamos um além, que não pode
ser atingido, fora da representação que não pode atingi-lo. É um inacabado ultrapassar, mas presente no
conceito - um passar além de uma determinação oposta para outra, de continuidade para negatividade,
de negatividade para continuidade; elas estão diante de nós. Destes dois momentos pode, no processo,
ser afirmado um deles como o essencial. Primeiro Zenão põe o progresso contínuo de maneira tal que
não se atinge nada igual a si, um determinado - nenhum espaço limitado, portanto, continuidade; ou
Zenão afirma o avanço neste limitar.
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A resposta geral e a solução de Aristóteles é que espaço e tempo não são divididos infinitamente, mas
apenas divisíveis. Parece, entretanto, que, enquanto são divisíveis (potentia, dynámei, não actu,
energeía), também devem estar efetivamente divididos infinitamente; pois, de outro modo, não poderiam
ser divididos ao infinito - uma resposta geral para a representação.
2) "O segundo argumento" (que também é pressuposição da continuidade e posição da divisão)
chama-se "argumento de Aquiles", o homem dos pés velozes. Os antigos gostavam de vestir as
dificuldades com representações sensíveis. De dois corpos que se movem numa direção, dos quais um
está na frente e outro o segue numa determinada distância, movendo-se, porém, mais rapidamente que
aquele, sabemos que o segundo alcançará o primeiro. Zenão, porém, diz: "O mais vagaroso nunca
poderá ser alcançado nem mesmo pelo mais rápido"; e isto ele demonstra assim: o que segue necessita
de uma determinada parte do tempo para "alcançar o lugar de onde partiu o que está em fuga", no
começo desta determinada parte do tempo. Durante o tempo em que o segundo atingiu o ponto onde o
primeiro se achava, este já avançou para mais longe, deixou atrás de si novo espaço que o segundo
novamente deverá percorrer numa parte desta parte do tempo; e assim se vai até o infinito. B percorre
numa hora duas milhas, A, no mesmo tempo, uma milha. Se estão separados entre si por duas milhas,
então B chegou numa hora onde A estava no começo da hora. Mas o espaço (uma milha), vencido por
A, será percorrido por B na metade de uma hora, e assim ao infinito. Desta maneira, o movimento mais
rápido nada ajuda ao segundo corpo para percorrer o espaço intermediário que o separa do outro; o
tempo de que necessita, também o mais vagaroso sempre tem à sua disposição, e "com isto ele já
sempre conseguiu uma vantagem".
Aristóteles, que trata disto, diz brevemente sobre o mesmo: "Este argumento representa a mesma
divisão infinita'' ou o infinito ser dividido através do movimento. "É algo não verdadeiro; pois o rápido,
contudo, alcançará o vagaroso, se Ihe for permitido ultrapassar o limite, o limitado." A resposta é correta
e contém tudo. Nesta representação são admitidos dois pontos de tempo e dois de espaço que estão
separados entre si - isto é, são limitados, são limites um para o outro. Se, ao contrário, se admite que
tempo e espaço são contínuos, de maneira tal que dois pontos do tempo ou dois pontos de espaço se
relacionam entre si de maneira contínua, então eles são, igualmente, na medida em que são dois
também não dois - são idênticos.
Zenão apenas faz valer o limite, a divisão, o momento da separação de espaço e tempo em sua total
determinação; por isto surge a contradição. O que gera a dificuldade sempre é o pensamento, porque
separa em sua distinção aqueles momentos de um objeto, na realidade unidos. 0 pensamento produziu a
queda original, quando o homem comeu da árvore do conhecimento do bem e do mal; mas também
ressarce este prejuízo. É uma dificuldade superar o pensamento e é somente ele que causa esta
dificuldade.
3) "O terceiro argumento" tem a forma que Zenão descreve assim: "A flecha em vôo repousa", e isto
porque "o que se move sempre está no mesmo agora" e no aqui igual a si mesmo, no "não-distinguível"
(en tõ nyn, katà tò íson); ele está aqui, e aqui e aqui. Assim que dizemos que sempre é o mesmo; a isto,
porém, não chamamos movimento, mas repouso: o que sempre está no aqui e agora, repousa. Ou deve-
se dizer da flecha que sempre está no mesmo espaço e no mesmo tempo; não consegue ultrapassar seu
espaço, não conquista um outro espaço, isto é, um espaço maior ou menor. Aqui o tornar-se outro foi
sobressumido; o ser limitado é posto como tal, mas o limitar é, contudo, um momento. No aqui agora
como tais, não há diferença. No espaço, um ponto é tão bem um aqui como o outro, isto aqui e isto aqui
e mais um outro, etc.; e, contudo, o aqui é sempre o mesmo aqui; não são distintos entre si. A
continuidade, a igualdade do aqui e afirmada aqui contra a opinião da diferença. Cada lugar é lugar
diferente - portanto, o mesmo; a diferença é apenas aparente. Não é neste estado de coisas. mas no
mundo do espirito que se manifesta a verdadeira e objetiva diferença.
Isto acontece também na mecânica: pergunta-se qual se move de dois corpos. Para determinar qual
deles se move é preciso mais de dois lugares, ao menos três. Mas uma coisa é correta: o movimento é
absolutamente relativo; se, no espaço absoluto, por exemplo, o olho repousa ou se move, é inteiramente
o mesmo. Ou, conforme uma proposição de Newton: se dois corpos giram, em círculo, um em torno do
outro, surge a pergunta se um repousa ou se ambos se movem. Newton quer decidir isto por uma
circunstância exterior, os fios estendidos (tensio filorum). Se num navio caminho na direção oposta da
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direção em que se move o navio, o mover-me é movimento com relação ao navio, mas repouso com
relação a outra coisa.
Nos dois primeiros argumentos a continuidade no avançar é o que predomina: não existe limite absoluto,
nem espaço limitado, mas apenas continuidade absoluta, transgredir todos os limites. No argumento
agora em questão é retido o aspecto inverso, a saber, o absoluto ser-limitado, a interrupção da
continuidade, nenhuma passagem para outro. Sobre este terceiro argumento diz Aristóteles que ele se
origina do fato de se aceitar que o tempo consiste de "agoras"; pois, se não se concede isto, não se pode
tirar a conclusão a que Zenão chegou.
4) "O quarto argumento" e tomado de corpos iguais que se movem no estádio ao lado de um igual,
com velocidade igual, um a partir do fim do estádio, o outro a partir do meio, um em direção do outro;
disto se deveria concluir que a metade do tempo é igual ao dobro. O erro da conclusão consiste no fato
de admitir que, no que se move e no que está em repouso, a coisa percorre uma mesma extensão em
tempo igual, com velocidade igual; isto, porém, é falso.
Esta quarta forma diz respeito à contradição no movimento oposto. A oposição possui aqui uma outra
forma: a) mas também novamente o universo, o comum, que deve ser atribuído inteiramente a cada
parte, enquanto realiza para si apenas uma parte; b) é apenas posto como verdadeiro (como sendo) o
que cada parte faz para si. Aqui a distância de um corpo é a soma do afastar se de ambos; é o que
acontece quando caminho dois pés para o leste e outro, partindo do mesmo ponto, caminha dois pés
para o oeste; assim estamos distantes um do outro quatro pés - aqui ambos devem ser somados; na
distância de ambos, ambos são positivos. Ou avancei e retrocedi dois pés - no mesmo ponto; ainda que
tenha andado quatro pés, não saí do ponto em que estava. 0 movimento é, portanto, nulo; pois pelo
movimento de ir para frente e para trás há aqui coisas opostas que se suprimem.
Isto é então a dialética de Zenão. Ele captou as determinações que contém nossa representação do
espaço e tempo; ele as tinha em sua consciência e nelas mostra o aspecto contraditório. As antinomias
de Kant nada mais são do que aquilo que Zenão aqui já fizera.
O elemento universal da dialética, a proposição universal da escola eleática foi, portanto: "0 verdadeiro é
apenas o um, todo o resto é não-verdadeiro"; como a filosofia kantiana chegou ao resultado:
"Conhecemos apenas fenômenos". No todo é o mesmo princípio: "O conteúdo da consciência é apenas
um fenômeno, nada verdadeiro"; mas nisto também reside uma diferença. Pois Zenão e os Eleatas
afirmaram sua proposição com a seguinte significação: "O mundo sensível é em si mesmo apenas mundo
fenomenal, com suas formas infinitamente diversas - este lado não possui verdade em si mesmo". Nào é,
porém, isto que pensa Kant. Ele afirma: Voltando-se para o mundo, quando o pensamento se dirige para
o mundo exterior (para o pensamento também o mundo dado no interior é algo exterior), voltando-se
para ele, fazemos dele um fenômeno; é a atividade de nosso pensamento que atribui ao exterior tantas
determinações: o sensível, determinações da reflexão, etc. Só nosso conhecimento é fenômeno, o mundo
é em si absolutamente verdadeiro; só nossa aplicação, nosso acréscimo o arruína para nós; o que
acrescentamos, nada vale. O mundo torna-se não-verdadeiro pelo fato de Ihe jogarmos em cima uma
massa de determinações. Isto é então a grande diferença. Este conteúdo também é nulo em Zenão; mas,
em Kant, porque é obra nossa. Em Kant é o elemento espiritual que arruína o mundo; segundo Zenão, é
o mundo, o que aparece em si que é não-verdadeiro. Segundo Kant, é nosso pensar, a atividade de
nosso espírito o elemento mau - é uma enorme humildade do espírito não ter confiança no
conhecimento. Na Bíblia diz Cristo: "Pois não sois melhores que os pardais?" Nós o somos enquanto
pensamos - enquanto seres sensíveis, tão bons ou tão maus como os pardais. O sentido da dialética de
Zenão possui maior objetividade que esta dialética moderna. A dialética de Zenão ainda se conteve nos
limites da metafísica: mais tarde, com os sofistas, tornou se universal.

1.5 - Demócrito de Abdera

De sua vida sabemos poucas coisas seguras. mas muitas lendas. Viagens extraordinárias, a ruína
material, as honras que recebeu de seus concidadãos, sua solidão, seu grande poder de trabalho. Uma
tradição tardia afirma que ele ria de tudo. . .
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Demócrito e Leucipo partem do eleatismo. Mas o ponto de partida de Demócrito é acreditar na
realidade do movimento porque o pensamento é um movimento. Esse é seu ponto de ataque: o
movimento existe porque eu penso e o pensamento tem realidade. Mas se há movimento deve haver um
espaço vazio, o que eqüivale a dizer que o não-ser é tão real quanto o ser. Se o espaço é absolutamente
pleno, não pode haver movimento. Com efeito: 1) o movimento espacial só pode ter lugar no vazio, pois
o pleno não pode acolher em si nada que Ihe seja heterogêneo; se dois corpos pudessem ocupar o
mesmo lugar no espaço, poderia haver uma infinidade deles, pois o menor poderia acolher em si o maior;
2) a rarefação e a condensação só se explicam pelo espaço vazio; 3) o crescimento só se explica porque
o alimento penetra nos interstícios do corpo; 4) em um vaso cheio de cinza pode-se ainda derramar
tanta água quanta se ele estivesse vazio, a cinza desaparece nos interstícios vazios da água. O não ser é,
portanto, também o pleno, nastón (de nasso, ou aperto), o stereón. O pleno é aquilo que não contém
nenhum Kenón. Se toda grandeza fosse divisível ao infinito, não haveria mais nenhuma grandeza, não
haveria mais ser. Se deve subsistir um pleno, isto é, um ser, é preciso que a divisão não possa ir ao
infinito. Mas o movimento demonstra o ser, tanto quanto o não-ser. Se somente o não ser existisse, não
haveria movimento. O que resta são os átomos. O ser é a unidade indivisível.
Mas, se esses seres devem agir uns sobre os outros pelo choque, é preciso que sejam de natureza
idêntica. Demócrito afirma, portanto, como Pitágoras, que o ser deve ser semelhante a si mesmo em
todos os pontos. O ser não pertence mais a um ponto do que a outro. Se um átomo fosse o que o outro
não é, haveria um não-ser, o que é uma contradição. Somente nossos sentidos nos mostram coisas
qualitativamente diferentes. São chamadas também idéai ou skhémata. Todas as qualidades são nómo,
os seres só diferem pela quantidade. É preciso, pois, remeter todas as qualidades a diferenças
quantitativas. Elas só se distinguem pela forma (rhysmós, skhéma), pela ordem (diathigé, táxis), peia
posição (tropé, thésis). A difere de N pela forma, AN de NA pela ordem, Z de N pela posição. A principal
diferença está na forma, que indica diferença de grandeza e de peso. O peso pertence a cada corpo
(como medida de todas as quantidades). Como todos os seres são da mesma natureza, o peso deve
pertencer igualmente a todos, isto é, à mesma massa, o mesmo peso. O ser, portanto, é definido como
pleno, dotado de uma forma, pesado; os corpos são idênticos a esses predicados. Temos aqui a distinção
que reaparece em Locke: as qualidades primárias pertencem às coisas em si mesmas, fora de nossa
representação; não se pode fazer abstração delas; são: a extensão, a impermeabilidade, a forma, o
número. Todas as outras qualidades são secundárias, produzidas pela ação das qualidades primárias
sobre os órgãos de nossos sentidos, dos quais são apenas as impressões: cor, som, gosto, odor, dureza,
moleza, polido, rugoso, etc. Pode-se, portanto, fazer abstração da natureza dos corpos na medida em
que é apenas a ação dos nervos sobre os órgãos sensoriais.
Uma coisa nasce quando se produz um certo agrupamento de átomos; desaparece quando esse grupo se
desfaz, muda quando muda a situação ou a disposição desse grupo ou quando uma parte é substituida
por outra. Cresce quando Ihe são acrescentados novos átomos. Toda ação de uma coisa sobre outra se
produz pelo choque dos átomos; se há separação no espaço, recorre-se à teoria das aporrhoaí. Percebe-
se, pois, que Empédocles foi utilizado a fundo, pois este havia discernido o dualismo do movimento em
Anaxágoras e recorrido à ação mágica. Demócrito adota uma posição adversa. Anaxágoras reconhecia
quatro elementos; Demócrito esforçou-se por caracterizá-los a partir de seus átomos da mesma natureza.
O fogo é feito de átomos pequenos e redondos; nos outros elementos estão misturados átomos diversos;
os elementos distinguem-se apenas pela grandeza de suas partes. É por isso que a água, a terra e o ar
podem nascer um do outro por dissociação.
Demócrito pensa, com Empédocles, que somente o semelhante age sobre o semelhante. A teoria dos
poros e das aporrhoaí preparava a do kenón. O ponto de partida de Demócrito, a realidade do
movimento, Ihe é comum com Anaxágoras e Empédocles, provavelmente também sua dedução a partir
da realidade do pensamento. Com Anaxágoras, tem em comum os ápeira ou matérias originais.
Naturalmente, é antes de tudo de Parmênides que ele procede, é este que domina todas as suas
concepções fundamentais. Ele retorna ao primeiro sistema de Parmênides, segundo o qual o mundo se
compunha de ser e de não-ser. Toma emprestado de Heráclito a crença absoluta no movimento, a idéia
de que todo movimento pressupõe uma contradição e de que o conflito é o pai de todas as coisas.
23
De todos os sistemas antigos, o de Demócrito é o mais lógico: pressupõe a mais estrita necessidade
presente em toda parte, não há nem interrupção brusca nem intervenção estranha no curso natural das
coisas. Só então o pensamento se desprende de toda a concepção antropomórfica do mito, tem-se,
enfim, uma hipótese cientificamente utilizável; esta hipótese, o materialismo, sempre foi da maior
utilidade. É a concepção mais terra-a-terra; parte das qualidades reais da matéria, não procura logo de
início, como a hipótese do Nous ou as causas finais de Aristóteles, ultrapassar as forças mais simples. É
um grande pensamento reconduzir às manifestações inumeráveis de uma força única, da espécie mais
comum, todo esse universo cheio de ordem e de exata finalidade. A matéria que se move segundo as
Ieis mais gerais produz, com o auxílio de um mecanismo cego, efeitos que parecem os desígnios de uma
sabedoria suprema. Leia-se Kant, História Natural do Céu, p. 48. Rosenkr.: ''Admito que a matéria de
todo o universo está em um estado de dispersão geral e faço dele um perfeito caos. Vejo as substâncias
se formarem em virtude de leis conhecidas de atração e modificarem, pelo choque, seu movimento. Sinto
o prazer de ver um todo bem ordenado nascer sem o auxílio de fábulas arbitrárias, pelo efeito de leis
mecânicas bem conhecidas, e esse todo é tão semelhante ao universo que temos sob os olhos que não
posso impedir-me de tomá-lo por ele mesmo. Não contestarei então que a teoria de Lucrécio ou de seus
predecessores, Epicuro, Leucipo, Demócrito, tem muita analogia com a minha. Parece-me que se poderia
dizer aqui, em certo sentido, sem muita imprudência: 'Dai-me a matéria, e eu vos farei um mundo' ".
Eis como Demócrito se representa a formação de um mundo dado: os átomos flutuam, perpetuamente
agitados, no espaço infinito; censurou-se desde a Antigüidade esse ponto de partida, dizendo que o
mundo teria sido movido e teria nascido por "acaso", concursu quodam fortuito, que o "acaso cego"
reinaria entre os materialistas. Esta é uma maneira muito pouco filosófica de se exprimir. O que é preciso
dizer é que há uma causalidade sem finalidade, anánke sem intenções. Não há acaso, mas um conjunto
de leis rigorosas, embora não racionais.
Demócrito deduz todo movimento do espaço vazio e do peso. Os átomos pesados caem e fazem subir os
átomos leves com sua pressão. O movimento original é, bem entendido, vertical, uma queda regular e
eterna no infinito do espaço; não se pode indicar sua velocidade, pois, como o espaço é infinito e a
queda regular não há medida para essa velocidade...
Como os átomos vieram a operar movimentos laterais, a formar turbilhões na regularidade das
combinações que se faziam e se desfaziam? Se tudo caía na mesma velocidade, isso seria equivalente ao
repouso absoluto; a velocidade sendo desigual, eles se encontram, alguns são repelidos, produz-se um
movimento giratório. Esse turbilhão aproxima, primeiramente, o que é de mesma natureza. Quando os
átomos em equilíbrio são tão numerosos que não podem mais se mover, os mais leves são repelidos para
o vazio exterior, como se fossem expulsos; os outros permanecem juntos, entrelaçando-se e formando
uma espécie de conglomerado... Cada um desses conglomerados que se separam da massa dos corpos
primitivos é um mundo; há infinitos mundos. Estes nasceram e perecerão.
Cada vez que nasce um mundo, é que uma massa produzida pelo choque de átomos heterogêneos se
separou; as partes mais leves são empurradas para o alto; sob o efeito combinado de forças opostas, a
massa entra em rotação, os elementos repelidos para fora depositam-se no exterior como uma película.
Esse invólucro vai-se tornando cada vez mais fino, certas partes sendo atraídas para o centro pela
rotação. Os átomos centrais formam a terra, aqueles que se elevam formam o céu, o fogo, o ar. Alguns
formam massas espessas, mas o ar que os leva é por sua vez levado em um rápido turbilhão; neste eles
secam pouco a pouco e se inflamam pela rapidez do movimento (astros). Do mesmo modo, as partículas
do corpo terrestre são pouco a pouco arrancadas pelos ventos e pelos astros e se acumulam em água
nos ocos. Assim a terra se solidifica. Pouco a pouco ela tomou uma posição fixa no centro do universo;
no começo, quando ela era ainda pequena e leve, movia-se de um lado para outro. O sol e a lua, em um
estágio antigo de sua formação, foram apanhados pelas massas que se moviam em torno do núcleo
terrestre e desse modo viram-se atraídos para nosso sistema sideral.
Nascimento dos seres animados. A essência da alma reside em sua força animadora; é esta que move os
seres animados. O pensamento é um movimento. A alma deve, pois, ser feita da matéria mais móvel, de
átomos sutis, lisos e arredondados (de fogo). Essas partículas de fogo estão espalhadas por todo o
corpo; entre todos os átomos corporais se intercala um átomo de alma. Estes se movem perpetuamente.
Por causa de sua sutileza e de sua mobilidade arriscam-se a serem arrancados do corpo pelo ar
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circundante. É disso que nos preserva a respiração, que nos traz constantemente de fora novos
átomos de fogo e de alma para substituir os átomos desaparecidos e que prende no interior do corpo
aqueles que quereriam escapar. Se a respiração cessa, o fogo interior escapa. Disso resulta a morte. Isso
não acontece em um instante; pode ocorrer que a vida seja restaurada depois da desaparição de uma
parte da alma. O sono - morte aparente. . .
Teoria das percepções dos sentidos. O contato não é imediato, opera-se por meio das aporrhoaí. Estas
penetram no corpo pelos sentidos e espalham-se por todas as partes; disso nasce a representação das
coisas. Duas condições são necessárias: uma certa força da impressão e a afinidade do órgão que a
recebe. Somente o semelhante sente o semelhante, percebemos as coisas por meio das partes de nosso
ser que Ihes são análogas. . .
A percepção é idêntica ao pensamento. Uma e outro são modificações mecânicas da matéria da alma; se
a alma é levada por esse movimento à temperatura conveniente, percebe exatamente os objetos, o
pensamento é sadio. Se o movimento a aquece ou a esfria excessivamente, as representações são falsas
e o pensamento é malsão. É aqui que começam as verdadeiras dificuldades do materialismo, porque ele
próprio começa a sentir seu prõton pseudos. Tudo o que é objetivo, extenso, agente, potanto material,
tudo aquilo que o materialismo considera como seu fundamento mais solido, não passa de um dado
extremamente mediato, um concreto extremamente relativo, que passou pelo mecanismo do cérebro e
acomodou-se às formas do tempo, do espaço e da causalidade, graças às quais se apresenta como
extenso no espaço e agente no tempo. É de um tal dado que o materialismo quer, agora, deduzir o único
dado imediato, a representação. É uma prodigiosa petição de princípios; de repente, o último elo aparece
como o ponto de partida de que já dependia o primeiro elo da corrente. Assim, comparou-se o
materialismo ao Barão de Crac (sic), que, quando atravessava o rio a cavalo, suspendia sua montaria
apertando-a entre as pernas e se suspendia a si mesmo por meio de sua peruca, que puxava para cima.
O absurdo consiste em partir do dado objetivo, enquanto, na verdade, todo dado objetivo é determinado
de várias maneiras pelo sujeito pensante e desaparece totalmente quando se faz abstração do sujeito.
Por outro lado, o materialismo é uma hipótese preciosa e de uma verdade relativa, mesmo depois que se
descobriu o prõton pseudos; é uma representação cômoda nas ciências naturais, e todos os seus
resultados permanecem verdadeiros para nós, se não no absoluto. Trata-se do mundo que é o nosso,
para cuja produção cooperamos sempre.

Anotações sobre Demócrito

Deveríamos a Demócrito muitos sacrifícios fúnebres, simplesmente para reparar os erros do passado para
com ele. Com efeito, é raro que um escritor considerável tenha tido de sofrer tantos ataques devidos o
razões diversas. Teólogos e metafísicos acumularam sobre seu nome suas acusações inveteradas contra
o rmaterialismo. O divino Platão chegou mesmo a considerar seus escritos tão perigosos que pretendia
destruí-los em um auto-de-fé privado e só foi impedido disso por considerar que já era tarde demais, que
o veneno já estava por demais alastrado. Mais tarde, os obscurantistas da Antigüidade se vingaram dele,
introduzindo, sob sua marca, o contrabando de seus escritos de magia e de alquimia, o que imputou ao
pai de todas as tendências racionais uma reputação de grande mágico. O cristianismo nascente, enfim,
logrou executar o enérgico desígnio de Platão; e sem dúvida um século anticósmico devia considerar os
escritos de Demócrito, assim como os de Epicuro, como a encarnação do paganismo. Enfim, foi reservado
à nossa época negar também a grandeza filosófica do homem e atribuir-lhe um temperamento de sofista.
Todos esses ataques se desenrolam em um terreno que não podemos mais defender.
Os fragmentos de Moral (= Estudos Éticos) têm, por um lado, um tom desenvolto de homem do mundo e
uma bela forma. Não recendem a estoicismo nem a platonismo, mas, aqui e ali, lembram Aristóteles e
sua metropathía.
Não são indignos de Demócrito. É um problema psicológico saber se foi ele que os escreveu. A tradição
não prova nada... Junta-se a isso a obscuridade em que nos encontramos a respeito de Leucipo. Se este
é o inventor da idéia principal, podemos entretanto atribuir também a Demócrito uma grande diversidade
de concepções.
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Todos os materialistas pensam que, se o homem é infeliz, é por não conhecer a natureza. Assim o
Sistema da Natureza começa nestes termos: "O homem é infeliz porque não conhece a natureza".
Sobre a questão da criação do mundo, Demócrito é perfeitamente claro. Uma seqüência infinita de anos,
a cada mil anos uma pedrinha é juntada às outras, e a terra acaba por ser o que é.
Sobre o problema da origem do mundo, ele foi, igualmente, de uma completa clareza.
O materialismo é o elemento conservador na ciência como na vida. A ética de Demócrito é conservadora.
"Contenta-te com o mundo tal como é", é o cânon moral que o materialismo produziu. Uma plena
virilidade do pensamento e da investigação aparece cm Demócrito. Entretanto, ele não perde o senso da
poesia. É o que prova sua própria descrição, seu juízo sobre os poetas, que considera como profetas da
verdade (isso Ihe parece um fato natural).
Não acreditamos nos contos, mas sentimos sua força poética.

Características do Pensamento de Demócrito

Gosto pela ciência. Aitíai. Viagens.


Clareza. Aversão ao bizarro.
Simplicidade do método.
Arrojo poético (poesia do atomismo).
Sentimento de um progresso poderoso.
Fé absoluta em seu sistema.
O Mal excluído de seu sistema.
Paz de espírito, resultado do estudo cientifico. Pitágoras.
Inquietações míticas: racionalismo.
Inquietações morais: ascetismo.
Inquietações políticas: quietismo.
Inquietações conjugais: adoção de filhos.
Vauvenargues diz com razão que os grandes pensamentos vêm do coração. É na moral que está a chave
da física de Demócrito. Sentir-se liberto de todo Incognoscível.
– É a meta de sua filosofia. Os sistemas anteriores não Ihe davam isso, pois deixavam subsistir um
elemento irracional. Eis por que ele procurou remeter tudo àquilo que é mais fácil de compreender, a
queda e o choque.
Queria sentir-se no mundo como em um quarto claro. Racionalista encarnado, pai do racionalismo,
acomodava à sua maneira os deuses, o espetáculo dos sacrifícios, etc. Demócrito, sem dúvida, deve
igualmente ser incluído entre os melancólicos...
A meta é o otium litteratum: "ter a paz"
Demócrito, esse Humboldt do mundo antigo.
Sente-se impelido a correr o mundo. Retorna pobre e sem recursos, reduzido, como um mendigo, a viver
das esmolas de seu irmão. Sua cidade natal o toma por um pródigo. Recusam-lhe uma sepultura
honrada, até o dia em que seus parentes tomam as dores do morto e em que se elevam monumentos
em honra daquele que, desprezado em vida, quase morrera de fome.
Ele se desempenha com excessiva rapidez dos encargos de construir o mundo e a moral. Os problemas
mais profundos Ihe permanecem ocultos. É que sua vontade é a mola de sua investigação; o que quer é
terminá-la e atingir o conhecimento último. Ele se atrela a este, e é isso que Ihe dá sua segurança e sua
confiança em si. Ainda não havia notado, ao passar em revista os sistemas anteriores, uma abundância
infinita de pontos de vista diversos; conservou, de seus raros predecessores.,aquilo que Ihe era
homogêneo, aquilo que lhe parecia inteligível e simples, e condenou sem indulgência a intrusão de um
mundo mítico. É, pois, um racionalista confiante; crê na capacidade liberadora de seu sistema e elimina
dele tudo aquilo que é mau e imperfeito.
26
Demócrito e suas Teorias

Demócrito fez uma tentativa bem independente de reconstrução. Como Sócrates, seu contemporâneo,
defrontou-se com as dificuldades referentes ao conhecimento, levantadas pelo seu concidadão
Protágoras e outros, e, da mesma forma que ele, deu grande atenção ao problema do comportamento,
ao qual também os sofistas deram impulsos. Ao contrário de Sócrates, porém, ele era um autor
volumoso, e nós ainda podemos constatar, através dos scus fragmentos, que era um dos maiores
escritores da Antigüidade. Para nos, contudo, é como se não tivesse escrito quase nada; de fato,
sabemos menos a seu respeito do que de Sócrates. Isto deve-se ao fato de ele ter escrito em Abdera, e
as suas obras na realidade nunca foram bem conhecidas em Atenas, onde teriam tido a possibilidade de
serem preservadas, como aquelas de Anaxágoras e outrem, na biblioteca da Academia. Não é certo que
Platão haja conhecido alguma coisa sobre Demócrito, pois que as poucas passagens no Timeu e alhures,
no qual parece que o reproduz, são facilmente explicadas pelas influências pitagóricas que afetaram a
ambos. Aristóteles, por outro lado, conhece bem Demócrito, pois era também jônio do Norte.
É certo, não obstante, que as obras completas de Demócrito (que incluem as obras de Leucipo e outros,
bem como as de Demócrito) continuaram a existir, porquanto a escola as conservou em Abdera e Teos
ao longo dos tempos helenísticos. Por isso, foi possível para Trasilo, sob o reinado de Tibério, fazer uma
edição das obras de Demócrito, organizada em tetralogias, exatamente como sua edição dos diálogos de
Platão. Mesmo isso não foi suficiente para preservá-las. Os epicuristas, que tinham a obrigação de ter
estudado o homem a quem deviam tanto, detestavam qualquer tipo de estudo, e provavelmente nem se
preocuparam em multiplicar os exemplares de um escritor cujas obras teriam sido um testemunho
permanente para a carência de originalidade que caracterizou o próprio sistema deles.
Sabemos extremamente pouco sobre a vida de Demócrito. Como Protágoras, era natural de Abdera na
Trácia, uma cidade que nem mereceria a reputação proverbial de embotamento, considerando que pode
dar origem a dois homens de tanta envergadura. Quanto à data do seu nascimento, temos apenas
conjeturas para nos orientar. Em uma das principais obras, afirmou que elas foram escritas 730 anos
após a queda de Tróia; não sabemos; porém, quando, segundo a suposição dele, isto ocorrera. Havia
nessa época e posteriormente diversas eras em uso. Disse também algures que, quando Anaxágoras era
velho, ele era jovem, e a partir dai concluiu-se que nasceu em 460 a.C. Parece, entretanto, cedo demais,
visto estar baseado na hipótese de que tinha quarenta anos quando se encontrou com Anaxágoras, e a
expressão "jovem" sugere menos que esta idade. Demais, cumpre-nos encontrar um espaço para Leucipo
entre eles [Demócrito] e Zenão. Se Demócrito morreu, como se diz, com a idade de noventa ou cem
anos, de qualquer maneira ainda vivia quando Platão fundara a Academia. Mesmo a partir de
fundamentos meramente cronológicos, é falso classificar Demócrito entre os predecessores de Sócrates,
e obscurece o fato de que, como Sócrates, ele tentou responder ao seu distinto concidadão Protágoras.
Demócrito foi discípulo de Leucipo, e temos uma prova contemporânea, a de Glauco de Régio, que
também os pitagóricos foram seus mestres. Um membro posterior da escola, Apolodoro de Quizico, diz
que tomou conhecimento por intermédio de Filolau, o que parece muito provável. Isto esclarece o seu
conhecimento geométrico, bem como, outros aspectos do seu sistema. Sabemos, outrossim, que
Demócrito falou nas obras das doutrinas de Parmênides e Zenão, que chegou a conhecê-las através de
Leucipo. Fez menção a Anaxágoras, e parece ter dito que a sua teoria do sol e da lua não era original.
Isto pode referir se à explicação dos eclipses, que geralmente fora atribuída em Atenas, e sem dúvida
alguma na Jonia, a Anaxágoras, ainda que Demócrito naturalmente estivesse ciente de ser ela pitagórica.
Diz-se ter visitado o Egito, mas há uma certa razão para se acreditar que o fragmento onde isto é
mencionado (fragmento 298 b) é apócrifo. Há um outro (fragmento 116) no qual ele diz: "Eu fui a Atenas
e ninguém tomou conhecimento de mim". Se disse isto, sem dúvida deu a entender que não conseguira
causar uma impressão tal como o fizera o seu mais brilhante concidadão Protágoras. Por outro lado,
Demétrio de Falerão afirmou que Demócrito jamais visitou Atenas; então é possível que este fragmento
também seja apócrifo. Seja como for, ele deve ter despendido a maior parte do seu tempo no estudo,
ensinando e escrevendo em Abdera. Não era um sofista itinerante do tipo moderno, mas sim o cabeça de
uma escola regular.
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A verdadeira grandeza de Demócrito não está na teoria dos átomos e do vazio, que ele parece ter
exposto bem conforme a tinha recebido de Leucipo. Menos ainda está no seu sistema cosmológico, que
deriva mormente de Anaxágoras. Pertence inteiramente a uma outra geração que a desses homens, e
não está preocupado de modo especial em encontrar uma resposta a Parmênides. A questão à qual tinha
que se dedicar era a de sua própria época. A possibilidade de ciência havia sido negada, bem como todo
o problema do conhecimento levantado por Protágoras, e era isto que exigia uma solução. Ademais, o
problema do comportamento tornara-se premente. A originalidade de Demócrito, portanto, está
precisamente na mesma linha que a de Sócrates.

Teoria do Conhecimento

Demócrito procedeu como Leucipo ao fazer uma avaliação puramente mecânica da sensação, e é
provável que ele seja o autor da doutrina minuciosa dos átomos com respeito a este assunto. Uma vez
que a alma se compõe de átomos como qualquer outra coisa, a sensação deve consistir no impacto dos
átomos externos sobre os átomos da alma, e os órgãos dos sentidos devem ser simplesmente
''passagens" (póroi = poros) através das quais estes átomos se introduzem. Disto decorre que os objetos
da visão não são estritamente as coisas que nós mesmos presumimos ver, mas as "imagens" (deíkela,
eídola) que os corpos estão constantemente emitindo. A imagem na pupila do olho era considerada como
a coisa essencial em visão. Não é, porém, uma semelhança exata do corpo do qual provém, pois está
sujeita às distorções causadas pela interferência do ar. Este é o motivo por que vemos as coisas a
distância de um modo embaraçado e indistinto, e por que, se a distância for grande, não podemos vê-las
de modo algum. Se não houvesse ar, mas somente o vazio, entre nós e os objetos da visão, isto não
seria assim; "poderíamos ver uma formiga rastejando no firmamento". As diferenças de cor devem-se à
lisura ou aspereza das imagens ao tato. A audição explica-se de uma maneira similar. O som é uma
torrente de átomos que jorram do corpo sonante e produzem movimento no ar entre ele [corpo] e o
ouvido. Chegou, portanto, ao ouvido junto com aquelas porções do ar que se Ihe assemelham. As
diferenças de paladar são devidas às diferenças nas figuras (eide, skhémata) dos átomos que entram em
contato com os órgãos desse sentido; e o olfato explica-se semelhantemente, embora não com os
mesmos detalhes. De modo idêntico, o tato, considerado como o sentido pelo qual sentimos o calor e o
frio, o molhado e o seco e outros que tais, é afetado de acordo com a forma e o tamanho dos átomos
chocando nele.
Aristóteles afirma que Demócrito reduziu todos os sentidos ao tato, e é realmente verdade se
entendermos por tato o sentido que percebe qualidades, tais como forma, tamanho e peso. Este, todavia,
deve ser cautelosamente distinguido do sentido próprio do tato, que acima foi descrito. Para
compreender esta questão, temos que considerar a doutrina do conhecimento "legítimo" e "ilegítimo".
É aqui que Demócrito entra nitidamente em conflito com Protágoras, que asseverou serem todas as
sensações igualmente verdadeiras para o objeto sensível. Demócrito, pelo contrário, considera falsas
todas as sensações dos sentidos próprios, posto que elas não têm uma contrapartida real fora do objeto
sensível. Nisto, naturalmente, está em conformidade com a tradição eleática onde repousa a teoria
atômica. Parmênides afirmara claramente que o paladar, as cores, o som e outros semelhantes eram
apenas "nomes" (onómata), e é bastante idêntico a Leucipo que disse algo de parecido, apesar de não
haver razão de se acreditar que ele tenha elaborado uma teoria sobre o assunto. Seguindo o exemplo de
Protágoras, Demócrito foi obrigado a ser explícito com referência à questão. Sua doutrina, felizmente, foi-
nos preservada através de suas próprias palavras. "Por convenção (nómo)": disse ele (fragmento 125),
"há o doce; por convenção há o amargo; por convenção há o quente e por convenção há o
frio; por convenção há a cor." Porém, na realidade (etee), há os átomos e o vazio. Deveras, as nossas
sensações não representam nada de externo, apesar de serem causadas por algo fora de nós, cuja
verdadeira natureza não pode ser apreendida pelos sentidos próprios. Esta é a razão por que a mesma
coisa às vezes dá a sensação de doce e às vezes de amargo. "Pelos sentidos", afirmou Demócrito
(fragmento 9), "nós na verdade não conhecemos nada de certo, mas somente alguma coisa
que muda de acordo com a disposição do corpo e das coisas que nele penetram ou Ihe
opõem resistência." Não podemos conhecer a realidade deste modo, pois "a verdade jaz num abismo"
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(fragmento 117). Vê-se que esta doutrina tem muito em comum com a distinção moderna entre as
qualidades primárias e secundárias da matéria.
Demócrito, pois, rejeita a sensação como fonte de conhecimento, exatamente como fizeram os
pitagóricos e Sócrates; contudo, como eles, ressalva a possibilidade de ciência, afirmando que existe uma
outra fonte de conhecimento que não a dos sentidos próprios. "Há", diz ele (fragmento 11), "duas formas
de conhecimento (gnóme): o legítimo (gnesíe) e o ilegítimo (skotíe). Ao ilegítimo pertencem todos estes:
a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. O legítimo, porém, está separado daquele." Esta é a
resposta de Demócrito a Protágoras. Ele diz que o mel, por exemplo, é tanto amargo quanto doce, doce
para mim e amargo para você. Na realidade, é "não mais tal do que tal" (oudèn mãllon toion è toion).
Sexto Empírico e Plutarco afirmaram claramente que Demócrito argüiu contra Protágoras, e o fato, por
conseguinte, está fora da discussão.
Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que Demócrito dera uma explicação puramente mecânica deste
conhecimento legítimo, como o fizera do ilegítimo. Defendeu, com efeito, que os átomos fora de nós
poderiam afetar diretamente os átomos da nossa alma sem a intervenção dos órgãos dos sentidos. Os
átomos da alma não se restringem a algumas partes específicas do corpo, mas nele penetram em
qualquer direção, e não há nada que os impeça de ter contato imediato com os átomos externos,
chegando assim a conhecê-los como realmente são. O "conhecimento legítimo" é, afinal de contas, da
mesma natureza do "ilegítimo", e Demócrito recusou-se, como Sócrates, a fazer uma separação absoluta
entre os sentidos e o conhecimento. "Pobre Mente", imagina ele os sentidos dizerem (fragmento 125); "é
por causa de nós que conseguiste as provas com as quais atiras contra nós. Teu tiro é uma capitulação."
O conhecimento "legítimo" não é, apesar de tudo, pensamento, mas uma espécie de sentido interno, e
seus objetos são como os "sensíveis comuns" de Aristóteles.
Como seria de esperar de um seguidor dos pitagóricos e de Zenão, Demócrito ocupou-se com o problema
da continuidade. Em uma passagem digna de nota (fragmento 155), ele o confirma desta forma: "Se um
cone fosse cortado por um plano em linha paralela à base, o que se deveria pensar das superfícies das
duas partes cortadas? Seriam iguais ou desiguais? Se forem desiguais, farão irregular o cone, pois ele
terá muitas incisões em forma de degraus e muitas asperezas. Se forem iguais, então as partes cortadas
serão iguais, e o cone terá a aparência de um cilindro, que é composto de círculos iguais e não desiguais,
o que é o maior absurdo". Segundo um comentário de Arquimedes, parece que Demócrito prosseguiu
afirmando que o volume do cone era a terça parte do volume do cilindro sobre a mesma base e do
mesmo peso, cujo teorema foi demonstrado primeiro por Eudoxo. É evidente, pois, que ele estava
empenhado em problemas tais como aqueles que finalmente deram origem ao método infinitesimal do
próprio Arquimedes. Vemos mais uma vez como foi importante a obra de Zenão como um fermento
intelectual.

Teoria do Comportamento

As concepções de Demócrito sobre o comportamento seriam até mais interessantes do que a sua teoria
do conhecimento, se pudéssemos restabelecê-las integralmente. É muito difícil, porém, ter certeza sobre
quais dos preceitos morais a ele atribuídos são genuínos. Não há dúvida de que o tratado Sobre a Boa
Disposição ou Bem-Estar (Perí Euthymíes) era seu. Foi utilizado livremente por Sêneca e Plutarco, e
alguns fragmentos importantes do tratado sobreviveram.
[O tratado] partia (fragmento 4) do princípio de que o prazer e a dor (térpsis e aterpsíe) são o que
determina a felicidade. Isto quer dizer fundamentalmente que a felicidade não deve ser procurada nos
bens exteriores. "A felicidade não reside em rebanhos, nem em ouro; a alma é a moradia do daímon "
(fragmento 171). Para compreender isto, devemos lembrar que a palavra daímon, que significava
propriamente um espírito protetor do homem, tem sido usada no sentido equivalente de "boa sorte". É,
como foi dito, o aspecto individual de týkhe, e a palavra grega que traduzimos por "felicidade"
(eudaimonía) baseia-se neste uso. De um lado, pois, a doutrina da felicidade ensinada por Demócrito é
intimamente afim com a de Sócrates, embora dê mais ênfase ao prazer e à dor. "O melhor para o
homem é levar a vida com o máximo de alegria e o mínimo de aborrecimentos" (fragmento
189).
29
Isto não é, porém, hedonismo vulgar. Os prazeres dos sentidos são prazeres verdadeiros tão breves
como as sensações são verdadeiro conhecimento. "O bom e o verdadeiro são a mesma coisa para
todos os homens, mas o agradável é diferente para gente diferente" (fragmento 69). Além
disso, os prazeres dos sentidos são de duração demasiado curta para preencher uma vida, e facilmente
se transformam ao contrário. Nós somente podemos ter certeza de superar a dor pelo prazer se não
procurarmos os nossos prazeres nas coisas "mortais" (fragmento 189).
O que devemos nos esforçar por conseguir é o "bem-estar" (euestó) ou a "alegria" (euthymíe), e este é
um estado da alma. Para atingi-lo, devemos ser capazes de ponderar, julgar e discernir o valor dos
diferentes prazeres. Demócrito afirmou, como Sócrates, que "a ignorância do melhor" (fragmento 83) é a
causa do erro. Os homens puseram a culpa na sorte, mas esta é apenas uma "imagem" que inventaram
para justificar a sua própria ignorância (fragmento 119). 0 grande principio que nos deve guiar é o da
"simetria" ou "harmonia". Este é, sem dúvida, pitagórico. Se aplicarmos este critério aos prazeres,
poderemos alcançar o sossego, o sossego do corpo, que é a saúde, e o sossego da alma, que é a alegria,
cujo sossego se deve procurar principalmente nos bens da alma. "Quem escolhe os bens da alma,
escolhe os mais divinos; quem escolhe os bens do 'tabernáculo' (isto é, o corpo), escolhe os humanos"
(fragmento 37).
Para o nosso presente objetivo, não é necessário discutir detalhadamente a cosmologia de Demócrito. Ela
é totalmente retrógrada e demonstra, se fosse preciso uma demonstração, que o seu real interesse está
em outro sentido. Ele herdara a teoria dos átomos e do vazio de Leucipo, que foi um verdadeiro gênio
neste campo, e, quanto ao resto, contentou-se em adotar a crua cosmologia dos jônios, como Leucipo
houvera feito. Deve ter conhecido ainda o sistema mais cientifico de Filolau. A idéia da forma esférica da
Terra era amplamente difundida na época de Demócrito, e Sócrates é descrito no Fédon tomando-a por
certa. Para Demócrito, a Terra era ainda um disco. Ele também aderiu a Anaxágoras defendendo que a
Terra era sustentada no ar "como a tampa de uma tina", cuja concepção Sócrates rejeita enfaticamente.
Por outro lado, Demócrito parece ter contribuído valiosamente à ciência natural. Infelizmente, as nossas
informações são extremamente escassas para possibilitar mesmo uma reconstrução aproximada do seu
sistema. A perda da edição completa das suas obras feita por Trasilo é talvez a mais deplorável das
muitas perdas desse tipo. É possível que tenham sido abandonadas à ruína porque Demócrito chegara a
compartilhar do descrédito que o prendera aos epicureus. O que temos dele foi preservado
principalmente porque ele foi um grande criador de frases notáveis, que foram dignas de constar nas
antologias. Este, porém, não é o tipo de material que se requer para a interpretação de um sistema
filosófico, e é muito duvidoso se de fato conhecemos as suas idéias mais profundas. Ao mesmo tempo,
não podemos deixar de reconhecer que é sobretudo pelo seu mérito literário que lamentamos a perda
das obras. Tem-se a impressão de que ele se situa à parte da corrente principal da filosofia grega, e é a
esta que devemos agora retornar. Do nosso ponto de vista, o único fato importante com referência a
Demócrito é que ele também sentiu a necessidade de uma resposta a Protágoras.

Os Sofistas

Período Sistemático

O segundo período da história do pensamento grego é o chamado período sistemático. Com efeito, nesse
período realiza-se a sua grande e lógica sistematização, culminando em Aristóteles, através de Sócrates e
Platão, que fixam o conceito de ciência e de inteligível, e através também da precedente crise cética da
sofística. O interesse dos filósofos gira, de preferência, não em torno da natureza, mas em torno do
homem e do espírito; da metafísica passa-se à gnosiologia e à moral. Daí ser dado a esse segundo
período do pensamento grego também o nome de antropológico, pela importância e o lugar central
destinado ao homem e ao espírito no sistema do mundo, até então limitado à natureza exterior.
Esse período esplêndido do pensamento grego - depois do qual começa a decadência - teve duração
bastante curta. Abraça, substancialmente, o século IV a.C., e compreende um número relativamente
pequeno de grandes pensadores: os sofistas e Sócrates, daí derivando as chamadas escolhas socráticas
menores, sendo principais a cínica e a cirenaica, precursoras, respectivamente, do estoicismo e do
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epicurismo do período seguinte; Platão e Aristóteles, deles procedendo a Academia e o Liceu , que
sobreviverão também no período seguinte e além ainda, especialmente a Academia por motivos éticos e
religiosos, e em seus desenvolvimentos neoplatônicos em especial - apesar de o aristotelismo ter
superado logicamente o platonismo.

A Sofística

Após as grandes vitórias gregas, atenienses, contra o império persa, houve um triunfo político da
democracia, como acontece todas as vezes que o povo sente, de repente, a sua força. E visto que o
domínio pessoal, em tal regime, depende da capacidade de conquistar o povo pela persuasão,
compreende-se a importância que, em situação semelhante, devia ter a oratória e, por conseguinte, os
mestres de eloqüência. Os sofistas, sequiosos de conquistar fama e riqueza no mundo, tornaram-se
mestres de eloqüência, de retórica, ensinando aos homens ávidos de poder político a maneira de
consegui-lo. Diversamente dos filósofos gregos em geral, o ensinamento dos sofistas não era ideal,
desinteressado, mas sobejamente retribuído. O conteúdo desse ensino abraçava todo o saber, a cultura,
uma enciclopédia, não para si mesma, mas como meio para fins práticos e empíricos e, portanto,
superficial.
A época de ouro da sofística foi - pode-se dizer - a segunda metade do século V a.C. O centro foi Atenas,
a Atenas de Péricles, capital democrática de um grande império marítimo e cultural. Os sofistas maiores
foram quatro. Os menores foram uma plêiade, continuando até depois de Sócrates, embora sem
importância filosófica. Protágoras foi o maior de todos, chefe de escola e teórico da sofística.

Moral, Direito e Religião

Em coerência com o ceticismo teórico, destruidor da ciência, a sofística sustenta o relativismo prático,
destruidor da moral. Como é verdadeiro o que tal ao sentido, assim é bem o que satisfaz ao sentimento,
ao impulso, à paixão de cada um em cada momento. Ao sensualismo, ao empirismo gnosiológicos
correspondem o hedonismo e o utilitarismo ético: o único bem é o prazer, a única regra de conduta é o
interesse particular. Górgias declara plena indiferença para com todo moralismo: ensina ele a seus
discípulos unicamente a arte de vencer os adversários; que a causa seja justa ou não, não lhe interessa.
A moral, portanto, - como norma universal de conduta - é concebida pelos sofistas não como lei racional
do agir humano, isto é, como a lei que potencia profundamente a natureza humana, mas como um
empecilho que incomoda o homem.
Desta maneira, os sofistas estabelecem uma oposição especial entre natureza e lei, quer política, quer
moral, considerando a lei como fruto arbitrário, interessado, mortificador, uma pura convenção, e
entendendo por natureza, não a natureza humana racional, mas a natureza humana sensível, animal,
instintiva. E tentam criticar a vaidade desta lei, na verdade tão mutável conforme os tempos e os lugares,
bem como a sua utilidade comumente celebrada: não é verdade - dizem - que a submissão à lei torne os
homens felizes, pois grandes malvados, mediante graves crimes, têm freqüentemente conseguido grande
êxito no mundo e, aliás, a experiência ensina que para triunfar no mundo, não é mister justiça e retidão,
mas prudência e habilidade.
Então a realização da humanidade perfeita, segundo o ideal dos sofistas, não está na ação ética e
ascética, no domínio de si mesmo, na justiça para com os outros, mas no engrandecimento ilimitado da
própria personalidade, no prazer e no domínio violento dos homens. Esse domínio violento é necessário
para possuir e gozar os bens terrenos, visto estes bens serem limitados e ambicionados por outros
homens. É esta, aliás, a única forma de vida social possível num mundo em que estão em jogo
unicamente forças brutas, materiais. Seria, portanto, um prejuízo a igualdade moral entre os fortes e os
fracos, pois a verdadeira justiça conforme à natureza material, exige que o forte, o poderoso, oprima o
fraco em seu proveito.
Quanto ao direito e à religião, a posição da sofística é extremista também, naturalmente, como na
gnosiologia e na moral. A sofística move uma justa crítica, contra o direito positivo, muitas vezes
arbitrário, contingente, tirânico, em nome do direito natural. Mas este direito natural - bem como a moral
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natural - segundo os sofistas, não é o direito fundado sobre a natureza racional do homem, e sim
sobre a sua natureza animal, instintiva, passional. Então, o direito natural é o direito do mais poderoso,
pois em uma sociedade em que estão em jogo apenas forças brutas, a força e a violência podem ser o
único elemento organizador, o único sistema jurídico admissível.
A respeito da religião e da divindade, os sofistas não só trilham a mesma senda dos filósofos racionalistas
gregos do período precedente e posterior, mas - de harmonia com o ceticismo deles - chegam até o
extremo, até o ateísmo, pelo menos praticamente. Os sofistas, pois, servem-se da injustiça e do muito
mal que existe no mundo, para negar que o mundo seja governado por uma providência divina.

Protágoras de Abdera

Protágoras nasceu em Abdera - pátria de Demócrito , cuja escola conheceu - pelo ano 480. Viajou por
toda a Grécia, ensinando na sua cidade natal, na Magna Grécia, e especialmente em Atenas, onde teve
grande êxito, sobretudo entre os jovens, e foi honrado e procurado por Péricles e Eurípedes. Acusado de
ateísmo, teve de fugir de Atenas, onde foi processado e condenado por impiedade, e a sua obra sobre os
deuses foi queimada em praça pública. Refugiou-se então na Sicília, onde morreu com setenta anos (410
a.C.), dos quais, quarenta dedicados à sua profissão. Dos princípios de Heráclito e das variações da
sensação, conforme as disposições subjetivas dos órgãos, inferiu Protágoras a relatividade do
conhecimento. Esta doutrina enunciou-a com a célebre fórmula; o homem é a medida de todas as
coisas. Esta máxima significava mais exatamente que de cada homem individualmente considerado
dependem as coisas, não na sua realidade física, mas na sua forma conhecida. Subjetivismo, relativismo
e sensualismo são as notas características do seu sistema de ceticismo parcial. Platão deu o nome de
Protágoras a um dos seus diálogos, e a um outro o de Górgias.

Górgias de Leôncio

Górgias nasceu em Abdera, na Sicília, em 480-375 a.C - correlacionado com Empédocles - representa a
maior expressão prática da sofística, mediante o ensinamento da retórica; teoricamente, porém, foi um
filósofo ocasional, exagerador dos artifícios da dialética eleática. Em 427 foi embaixador de sua pátria em
Atenas, para pedir auxílio contra os siracusanos. Ensinou na Sicília, em Atenas, em outras cidades da
Grécia, até estabelecer-se em Larissa na Tessália, onde teria morrido com 109 anos de idade. Menos
profundo, porém, mais eloqüente que Protágoras, partiu dos princípios da escola eleata e concluiu
também pela absoluta impossibilidade do saber. É autor duma obra intitulada "Do não ser", na qual
desenvolve as três teses: Nada existe; se alguma coisa existisse não a poderíamos conhecer; se
a conhecêssemos não a poderíamos manifestar aos outros. A prova de cada uma destas
proposições e um enredo de sofismas, sutis uns, outros pueris.
No Górgias de Platão, Górgias declara que a sua arte produz a persuasão que nos move a crer sem
saber, e não a persuasão que nos instrui sobre as razões intrínsecas do objeto em questão. Em suma, é
mais ou menos o que acontece com o jornalismo moderno. Para remediar este extremo individualismo,
negador dos valores teoréticos e morais, Protágoras recorre à convenção estatal, social, que deveria
estabelecer o que é verdadeiro e o que é bem!

Sócrates

A Vida

Quem valorizou a descoberta do homem feita pelos sofistas, orientando-a para os valores universais,
segundo a via real do pensamento grego, foi Sócrates. Nasceu Sócrates em 470 ou 469 a.C., em Atenas,
filho de Sofrônico, escultor, e de Fenáreta, parteira. Aprendeu a arte paterna, mas dedicou-se
inteiramente à meditação e ao ensino filosófico, sem recompensa alguma, não obstante sua pobreza.
Desempenhou alguns cargos políticos e foi sempre modelo irrepreensível de bom cidadão. Combateu a
Potidéia, onde salvou a vida de Alcebíades e em Delium, onde carregou aos ombros a Xenofonte,
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gravemente ferido. Formou a sua instrução sobretudo através da reflexão pessoal, na moldura da alta
cultura ateniense da época, em contato com o que de mais ilustre houve na cidade de Péricles.
Inteiramente absorvido pela sua vocação, não se deixou distrair pelas preocupações domésticas nem
pelos interesses políticos. Quanto à família, podemos dizer que Sócrates não teve, por certo, uma mulher
ideal na quérula Xantipa; mas também ela não teve um marido ideal no filósofo, ocupado com outros
cuidados que não os domésticos.
Quanto à política, foi ele valoroso soldado e rígido magistrado. Mas, em geral, conservou-se afastado da
vida pública e da política contemporânea, que contrastavam com o seu temperamento crítico e com o
seu reto juízo. Julgava que devia servir a pátria conforme suas atitudes, vivendo justamente e formando
cidadãos sábios, honestos, temperados - diversamente dos sofistas, que agiam para o próprio proveito e
formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar o
próximo.
Entretanto, a liberdade de seus discursos, a feição austera de seu caráter, a sua atitude crítica, irônica e
a conseqüente educação por ele ministrada, criaram descontentamento geral, hostilidade popular,
inimizades pessoais, apesar de sua probidade. Diante da tirania popular, bem como de certos elementos
racionários, aparecia Sócrates como chefe de uma aristocracia intelectual. Esse estado de ânimo hostil a
Sócrates concretizou-se, tomou forma jurídica, na acusação movida contra ele por Mileto, Anito e Licon:
de corromper a mocidade e negar os deuses da pátria introduzindo outros. Sócrates desdenhou
defender-se diante dos juizes e da justiça humana, humilhando-se e desculpando-se mais ou menos.
Tinha ele diante dos olhos da alma não uma solução empírica para a vida terrena, e sim o juízo eterno da
razão, para a imortalidade. E preferiu a morte. Declarado culpado por uma pequena minoria, assentou-se
com indômita fortaleza de ânimo diante do tribunal, que o condenou à pena capital com o voto da
maioria.
Tendo que esperar mais de um mês a morte no cárcere - pois uma lei vedava as execuções capitais
durante a viagem votiva de um navio a Delos - o discípulo Criton preparou e propôs a fuga ao Mestre.
Sócrates, porém, recusou, declarando não querer absolutamente desobedecer às leis da pátria. E passou
o tempo preparando-se para o passo extremo em palestras espirituais com os amigos. Especialmente
famoso é o diálogo sobre a imortalidade da alma - que se teria realizado pouco antes da morte e foi
descrito por Platão no Fédon com arte incomparável. Suas últimas palavras dirigidas aos discípulos,
depois de ter sorvido tranqüilamente a cicuta, foram: "Devemos um galo a Esculápio". É que o deus da
medicina tinha-o livrado do mal da vida com o dom da morte. Morreu Sócrates em 399 a.C. com 71 anos
de idade.

Método de Sócrates

É a parte polêmica. Insistindo no perpétuo fluxo das coisas e na variabilidade extrema das impressões
sensitivas determinadas pelos indivíduos que de contínuo se transformam, concluíram os sofistas pela
impossibilidade absoluta e objetiva do saber. Sócrates restabelece-lhe a possibilidade, determinando o
verdadeiro objeto da ciência.
O objeto da ciência não é o sensível, o particular, o indivíduo que passa; é o inteligível, o conceito que se
exprime pela definição. Este conceito ou idéia geral obtém-se por um processo dialético por ele chamado
indução e que consiste em comparar vários indivíduos da mesma espécie, eliminar-lhes as diferenças
individuais, as qualidades mutáveis e reter-lhes o elemento comum, estável, permanente, a natureza, a
essência da coisa. Por onde se vê que a indução socrática não tem o caráter demonstrativo do moderno
processo lógico, que vai do fenômeno à lei, mas é um meio de generalização, que remonta do indivíduo à
noção universal.
Praticamente, na exposição polêmica e didática destas idéias, Sócrates adotava sempre o diálogo, que
revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a
instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as
perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão
humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era
muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de
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obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em
questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava ele maiêutica ou
engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das idéias.

Doutrinas Filosóficas

A introspecção é o característico da filosofia de Sócrates. E exprime-se no famoso lema conhece-te a ti


mesmo - isto é, torna-te consciente de tua ignorância - como sendo o ápice da sabedoria, que é o
desejo da ciência mediante a virtude. E alcançava em Sócrates intensidade e profundidade tais, que se
concretizava, se personificava na voz interior divina do gênio ou demônio.
Como é sabido, Sócrates não deixou nada escrito. As notícias que temos de sua vida e de seu
pensamento, devemo-las especialmente aos seus dois discípulos Xenofonte e Platão , de feição
intelectual muito diferente. Xenofonte, autor de Anábase, em seus Ditos Memoráveis, legou-nos de
preferência o aspecto prático e moral da doutrina do mestre. Xenofonte, de estilo simples e harmonioso,
mas sem profundidade, não obstante a sua devoção para com o mestre e a exatidão das notícias, não
entendeu o pensamento filosófico de Sócrates, sendo mais um homem de ação do que um pensador.
Platão, pelo contrário, foi filósofo grande demais para nos dar o preciso retrato histórico de Sócrates;
nem sempre é fácil discernir o fundo socrático das especulações acrescentadas por ele. Seja como for,
cabe-lhe a glória e o privilégio de ter sido o grande historiador do pensamento de Sócrates, bem como o
seu biógrafo genial. Com efeito, pode-se dizer que Sócrates é o protagonista de todas as obras platônicas
embora Platão conhecesse Sócrates já com mais de sessenta anos de idade.
"Conhece-te a ti mesmo" - o lema em que Sócrates cifra toda a sua vida de sábio. O perfeito
conhecimento do homem é o objetivo de todas as suas especulações e a moral, o centro para o qual
convergem todas as partes da filosofia. A psicologia serve-lhe de preâmbulo, a teodicéia de estímulo à
virtude e de natural complemento da ética.
Em psicologia, Sócrates professa a espiritualidade e imortalidade da alma, distingue as duas ordens de
conhecimento, sensitivo e intelectual, mas não define o livre arbítrio, identificando a vontade com a
inteligência.
Em teodicéia, estabelece a existência de Deus: a) com o argumento teológico, formulando claramente o
princípio: tudo o que é adaptado a um fim é efeito de uma inteligência; b) com o argumento, apenas
esboçado, da causa eficiente: se o homem é inteligente, também inteligente deve ser a causa que o
produziu; c) com o argumento moral: a lei natural supõe um ser superior ao homem, um legislador, que
a promulgou e sancionou. Deus não só existe, mas é também Providência, governa o mundo com
sabedoria e o homem pode propiciá-lo com sacrifícios e orações. Apesar destas doutrinas elevadas,
Sócrates aceita em muitos pontos os preconceitos da mitologia corrente que ele aspira reformar.
Moral. É a parte culminante da sua filosofia. Sócrates ensina a bem pensar para bem viver. O meio único
de alcançar a felicidade ou semelhança com Deus, fim supremo do homem, é a prática da virtude. A
virtude adquiri-se com a sabedoria ou, antes, com ela se identifica. Esta doutrina, uma das mais
características da moral socrática, é conseqüência natural do erro psicológico de não distinguir a vontade
da inteligência. Conclusão: grandeza moral e penetração especulativa, virtude e ciência, ignorância e
vício são sinônimos. "Se músico é o que sabe música, pedreiro o que sabe edificar, justo será o que sabe
a justiça".
Sócrates reconhece também, acima das leis mutáveis e escritas, a existência de uma lei natural -
independente do arbítrio humano, universal, fonte primordial de todo direito positivo, expressão da
vontade divina promulgada pela voz interna da consciência.
Sublime nos lineamentos gerais de sua ética, Sócrates, em prática, sugere quase sempre a utilidade
como motivo e estímulo da virtude. Esta feição utilitarista empana-lhe a beleza moral do sistema.

Gnosiologia

O interesse filosófico de Sócrates volta-se para o mundo humano, espiritual, com finalidades práticas,
morais. Como os sofistas, ele é cético a respeito da cosmologia e, em geral, a respeito da metafísica;
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trata-se, porém, de um ceticismo de fato, não de direito, dada a sua revalidação da ciência. A única
ciência possível e útil é a ciência da prática, mas dirigida para os valores universais, não particulares. Vale
dizer que o agir humano - bem como o conhecer humano - se baseia em normas objetivas e
transcendentes à experiência. O fim da filosofia é a moral; no entanto, para realizar o próprio fim, é
mister conhecê-lo; para construir uma ética é necessário uma teoria; no dizer de Sócrates, a gnosiologia
deve preceder logicamente a moral. Mas, se o fim da filosofia é prático, o prático depende, por sua vez,
totalmente, do teorético, no sentido de que o homem tanto opera quanto conhece: virtuoso é o sábio,
malvado, o ignorante. O moralismo socrático é equilibrado pelo mais radical intelectualismo, racionalismo,
que está contra todo voluntarismo, sentimentalismo, pragmatismo, ativismo.
A filosofia socrática, portanto, limita-se à gnosiologia e à ética, sem metafísica. A gnosiologia de Sócrates,
que se concretizava no seu ensinamento dialógico, donde é preciso extraí-la, pode-se esquematicamente
resumir nestes pontos fundamentais: ironia, maiêutica, introspecção, ignorância, indução, definição.
Antes de tudo, cumpre desembaraçar o espírito dos conhecimentos errados, dos preconceitos, opiniões;
este é o momento da ironia, isto é, da crítica. Sócrates, de par com os sofistas, ainda que com finalidade
diversa, reivindica a independência da autoridade e da tradição, a favor da reflexão livre e da convicção
racional. A seguir será possível realizar o conhecimento verdadeiro, a ciência, mediante a razão. Isto quer
dizer que a instrução não deve consistir na imposição extrínseca de uma doutrina ao discente, mas o
mestre deve tirá-la da mente do discípulo, pela razão imanente e constitutiva do espírito humano, a qual
é um valor universal. É a famosa maiêutica de Sócrates, que declara auxiliar os partos do espírito, como
sua mãe auxiliava os partos do corpo.
Esta interioridade do saber, esta intimidade da ciência - que não é absolutamente subjetivista, mas é a
certeza objetiva da própria razão - patenteiam-se no famoso dito socrático "conhece-te a ti mesmo" que,
no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de si mesmo, para organizar
racionalmente a própria vida. Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência
da própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência. Esta
ignorância não é, por conseguinte, ceticismo sistemático, mas apenas metódico, um poderoso impulso
para o saber, embora o pensamento socrático fique, de fato, no agnosticismo filosófico por falta de uma
metafísica, pois, Sócrates achou apenas a forma conceptual da ciência, não o seu conteúdo.
O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceptual é, antes de tudo, a
indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao conceito. Este
conceito é, depois, determinado precisamente mediante a definição, representando o ideal e a conclusão
do processo gnosiológico socrático, e nos dá a essência da realidade.

A Moral

Como Sócrates é o fundador da ciência em geral, mediante a doutrina do conceito, assim é o fundador,
em particular da ciência moral, mediante a doutrina de que eticidade significa racionalidade, ação
racional. Virtude é inteligência, razão, ciência, não sentimento, rotina, costume, tradição, lei positiva,
opinião comum. Tudo isto tem que ser criticado, superado, subindo até à razão, não descendo até à
animalidade - como ensinavam os sofistas. É sabido que Sócrates levava a importância da razão para a
ação moral até àquele intelectualismo que, identificando conhecimento e virtude - bem como ignorância
e vício - tornava impossível o livre arbítrio. Entretanto, como a gnosiologia socrática carece de uma
especificação lógica, precisa - afora a teoria geral de que a ciência está nos conceitos - assim a ética
socrática carece de um conteúdo racional, pela ausência de uma metafísica. Se o fim do homem for o
bem - realizando-se o bem mediante a virtude, e a virtude mediante o conhecimento - Sócrates não
sabe, nem pode precisar este bem, esta felicidade, precisamente porque lhe falta uma metafísica.
Traçou, todavia, o itinerário, que será percorrido por Platão e acabado, enfim, por Aristóteles. Estes dois
filósofos, partindo dos pressupostos socráticos, desenvolverão uma gnosiologia acabada, uma grande
metafísica e, logo, uma moral.
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Escolas Socráticas Menores

A reforma socrática atingiu os alicerces da filosofia. A doutrina do conceito determina para sempre o
verdadeiro objeto da ciência: a indução dialética reforma o método filosófico; a ética une pela primeira
vez e com laços indissolúveis a ciência dos costumes à filosofia especulativa. Não é, pois, de admirar que
um homem, já aureolado pela austera grandeza moral de sua vida, tenha, pela novidade de suas idéias,
exercido sobre os contemporâneos tamanha influência. Entre os seus numerosos discípulos, além de
simples amadores, como Alcibíades e Eurípedes, além dos vulgarizadores da sua moral (socratici viri),
como Xenofonte, havia verdadeiros filósofos que se formaram com os seus ensinamentos. Dentre estes,
alguns, saídos das escolas anteriores não lograram assimilar toda a doutrina do mestre; desenvolveram
exageradamente algumas de suas partes com detrimento do conjunto.
Sócrates não elaborou um sistema filosófico acabado, nem deixou algo de escrito; no entanto, descobriu
o método e fundou uma grande escola. Por isso, dele depende, direta ou indiretamente, toda a
especulação grega que se seguiu, a qual, mediante o pensamento socrático, valoriza o pensamento dos
pré-socráticos desenvolvendo-o em sistemas vários e originais. Isto aparece imediatamente nas escolas
socráticas. Estas - mesmo diferenciando-se bastante entre si - concordam todas pelo menos na
característica doutrina socrática de que o maior bem do homem é a sabedoria. A escola socrática maior é
a platônica; representa o desenvolvimento lógico do elemento central do pensamento socrático - o
conceito - juntamente com o elemento vital do pensamento precedente, e culmina em Aristóteles, o
vértice e a conclusão da grande metafísica grega. Fora desta escola começa a decadência e desenvolver-
se-ão as escolas socráticas menores.
São fundadores das escolas socráticas menores, das quais as mais conhecidas são:
1. A escola de Megara, fundada por Euclides (449-369), que tentou uma conciliação da nova ética com a
metafísica dos eleatas e abusou dos processos dialéticos de Zenão.
2. A escola cínica, fundada por Antístenes (n. c. 445), que, exagerando a doutrina socrática do desapego
das coisas exteriores, degenerou, por último, em verdadeiro desprezo das conveniências sociais. São bem
conhecidas as excentricidades de Diógenes.
3. A escola cirenaica ou hedonista, fundada por Aristipo, (n. c. 425) que desenvolveu o utilitarismo do
mestre em hedonismo ou moral do prazer. Estas escolas, que, durante o segundo período, dominado
pelas altas especulações de Platão e Aristóteles , verdadeiros continuadores da tradição socrática,
vegetaram na penumbra, mais tarde recresceram transformadas ou degeneradas em outras seitas
filosóficas. Dentre os herdeiros de Sócrates, porém, o herdeiro genuíno de suas idéias, o seu mais ilustre
continuador foi o sublime Platão.

Introdução à Apologia de Sócrates

De acordo com Diógenes Laércio, a acusação apresentada contra Sócrates, em janeiro de 399 a.C., foi a
que segue:
"A seguinte acusação escreve e jura Meleto, filho de Meleto, do povoado de Piteo, contra Sócrates, filho
de Sofronisco, do povoado de Alópece. Sócrates é culpado de não aceitar os deuses que são
reconhecidos pelo Estado, de introduzir novos cultos, e, também, é culpado de corromper a juventude.
Pena: a morte"
A cidade de Atenas não podia mover ações, mas um cidadão podia, assumindo, porém, total
responsabilidade, se a acusação não fosse considerada procedente pelo júri. O acusador era Meleto, mas
não só ele; também Ânito e Lícon, com os mesmos direitos à palavra no decorrer do processo. Meleto era
o acusador oficial, porém nada exigia que o acusador oficial fosse o mais respeitável, hábil ou temível,
mas somente aquele que assinava a acusação.
E, neste caso, a influência exercida por Ânito constituiu o elemento mais respeitável no desfecho do
processo, que foi por ele zelosamente preparado nas reuniões dos diversos cidadãos, sustentando-o com
a autoridade de seu nome.
No Eutífron, vemos que Sócrates, ao se aproximar do Pórtico do Rei, onde fora afixada a acusação por
Meleto, ao ser inquirido pelo adivinho Eutífron a respeito de quem era aquele que o acusava, respondeu:
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"Sei bem pouco a respeito dele, talvez porque seja um homem jovem e desconhecido. Acredito
chamar-se Meleto, do povoado de Piteo, de cabelos lisos, barba rala e nariz em forma de bico de
pássaro".
A respeito de saber com exatidão quem era esse Meleto, existem muitas dúvidas, sendo uma delas se se
tratava do personagem citado por Aristófanes. Mas não há elementos em que basear essa suposição,
pois um jovem poeta de 399 a.C. pouco provavelmente chamaria a atenção de Aristófanes em 405 a.C.,
além de considerar que Sócrates insiste no fato de que Meleto é desconhecido.
Julgar tratar-se do Meleto que, em 399 a.C., chegou a tomar parte da acusação contra Andócides, no
célebre processo por causa da mutilação da estátua de Hermes e da profanação dos Mistérios, seria
muito conveniente, por haver sido essa também uma acusação de impiedade. Contudo, existe outro
obstáculo, de acordo com a própria informação de Andócides: esse Meleto foi um dos que, em 404 a.C.,
por ordem dos Trinta Tiranos, se prestaram a deter Leon de Salamina. À parte o problema da mudança
de lado - de partidário dos Trinta Tiranos tornar-se aliado de Ânito, que derrotara e expulsara esses
mesmos Trinta Tiranos –, sobra a dificuldade de explicar por que motivo Sócrates, que conforme ele
mesmo afirma na Apologia, juntamente com outros quatro homens recebera a ordem de deter a Leon de
Salamina, tendo sido o único a recusar-se a obedecer, não disse que Meleto era um desses homens.
Exceto se reputarmos que essa defesa não seja de fato de Sócrates, e sim escrita por Platão, que se vale
do nome de Meleto, já então tido como um fanático religioso, a fim de engrandecer o mestre
desaparecido.
Desse modo, podemos considerar Meleto de Sócrates o mesmo Meleto de Andócides, assim solucionando
o problema que tanta discussão tem provocado, embora, logicamente, fique apenas no campo da
suposição, já que nada corrobora realmente esta pretensão.
O pouco que conhecemos ou podemos presumir a respeito de Lícon é que pouca importância e
autoridade teve no decorrer do processo, com seu nome sendo citado sempre com evidente desapreço.
Ânito, o mais importante dos acusadores, é aquele que, não resta dúvida, dava a impressão de conhecer
Sócrates, que a ele alude como se Meleto fosse seu subordinado, como se deste tivesse se originado a
idéia da pena de morte para persuadir Sócrates a abandonar a cidade antes que o processo tivesse
seguimento. Ânito era filho de Antemione, comerciante de couro, nascera por volta de – 150 a.C. e já
havia exercido importantes cargos e magistraturas, sendo estratego em 410 a.C. Após ter sido enviado
ao exílio pelos Trinta Tiranos, juntamente com Trasíbulo e outros, regressou de File com estes e tomou
parte da expedição armada contra o governo dos tiranos. Depois da restauração do regime democrático,
tornou-se um dos mais eminentes cidadãos de Atenas.
Ânito manteve relação com Sócrates, segundo comprova sua atuação no Mênon, onde manifesta uma
ameaça velada a este: "Afigura-se-me, ó Sócrates, que com muita facilidade te dedicas à maledicência, e
eu te aconselho, se quiseres me ouvir, que tenhas cuidado".
A opinião de Platão a esse respeito é bem clara: não foi por razões religiosas que Sócrates recebeu a
condenação, mas sim por questões evidentemente políticas.
A bem da verdade, Sócrates dera, mediante palavras e atos, patente mostra de sua obstinada repulsa
aos governos democráticos.
Portanto, nessa época de instalação do regime democrático, convinha afastar de Atenas o mestre de
Crísias, o homem que sempre se recordava de haver sido discípulo de Arquesilau, o qual, por sua vez,
fora discípulo de Anaxágoras, expulso de Atenas em decorrência de um processo parecido com o seu.
Mas é preciso frisar que o propósito, como o próprio Sócrates repete, não era matá-lo, e sim afastá-lo de
Atenas, e se isso não ocorreu deveu-se à demasiada teimosia do próprio Sócrates, que em vez de
escolher o exílio preferiu a proposta de uma multa irrisória, vindo a ser, por conseguinte, condenado.
No que concerne à condenação por motivos religiosos, da mesma maneira que se dá com condenações
por motivos políticos, o texto da sentença preocupa-se muito mais em esconder do que apresentar as
verdadeiras causas. Tanto isso é verdade que, em sua defesa, vemos o réu inverter a ordem das
acusações e colocar em primeiro lugar a última imputação: corromper os jovens.
Desde a época de Sócrates, afirmara-se o culto patriarcal, em que Zeus era o deus-pai, o líder máximo.
Se a acusação tivesse se dado em épocas mais antigas, poderíamos presumir que Sócrates teria adotado
a defesa do culto da deusa, isto é, um movimento reacionário em termos de culto.
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Coloquemos a questão com mais clareza: as lendas referem a revolta patriarcal contra o matriarcado.
A Tripla Deusa, venerada como Réia, esposa de Cronos, em seus três aspectos: lua crescente, lua cheia a
lua minguante, era a suprema deusa e gerava uma vez por ano a Dionisos – Zagreus, seu filho, que era
sempre devorado pelo tempo.
Dessa maneira, as múltiplas facetas da deusa prevaleciam, constituindo as sacerdotisas os verdadeiros
líderes das povoações e os homens, seus instrumentos de fertilização e prazer, executando os trabalhos
mais necessários à sobrevivência e à defesa.
Numerosas revoltas começaram a eclodir com a chegada de contínuas levas de dórios, minianos e jônios,
em cujas culturas o patriarcalismo era arraigado, que acabaram por fomentar a rebelião de Zagreus
contra seu pai e mãe. Zagreus torna-se Zeus, o Deus-Agnes, ou o Agnos-Deus, que pode significar tanto
o deus desconhecido quanto o deus-carneiro; Réia vem a ser adorada como Hera, e seus aspectos:
marinho, lunar e noturno, como Anfitrite, Ártemis e Cérbero. Anfitrite é esposa de Posêidon, um dos
aspectos de Zeus; Ártemis é filha de Zeus, e permanece virgem; quanto a Cérbero, representa Hécate,
sendo fiel guardião dos domínios de Hades, outro aspecto de Zeus, seu culto tendo sido de novo extinto
durante o período de estabelecimento do culto olímpico.
Nessa fase seria de fato correto crer que alguém sofresse um processo por questões religiosas, mas à
época de Sócrates tudo isso já se encontrava devidamente solidificado, e a argumentação de Burnet, em
seu comentário à Apologia, revela-se, portanto, bem pouco confiável, quando afirma "que esses novos
deuses da cosmologia jônica eram uma antiga história e que poderia ser uma violação da anistia colocá-
los de novo à luz do dia".
Portanto, considerando-se a anistia garantida até mesmo pelo próprio Ânito, que juntamente com
Trasíbulo fora seu principal defensor, não era possível levar em conta as culpas passadas de Sócrates
para condená-lo, isso presumindo que existisse alguma, e era necessário arranjar o pretexto para
executá-lo.
Era todo o ensinamento socrático que se tornava perigoso, e não os novos fatos. O que significava
aquela sabedoria, proclamada superior até mesmo pelo oráculo, que consistia em saber que não se sabe?
Qual a postura dos políticos diante disso? Que direitos seriam mais opostos aos da democracia do que
aqueles originados da experiência e da competência, e a superioridade da inteligência sobre os direitos
da assembléia popular e soberana?
É isso que causou a condenação de Sócrates, a exigência de que o piloto do barco conheça seu ofício,
isto é, a superioridade do saber sobre a aclamação do povo.
Ademais, é necessário recordar que Sócrates manteve relações com os Trinta Tiranos: estes não Ihe
teriam ordenado a prisão de Leon de Salamina se não o considerassem um deles; Crísias, o mais feroz
dos Tiranos, havia sido seu discípulo, e também Alcebíades, que voltara a ser assunto pela recente
inclusão de seu nome entre os envolvidos na profanação dos Mistérios. E mais: Sócrates menciona a seu
favor sua participação no caso do exílio de Querofonte, porém, assim, insiste no fato de que, durante o
mandato dos Trinta, Querofonte foi obrigado a se exilar, enquanto Sócrates pôde permanecer.
Some-se a isto que Sócrates jamais desejou exercer nenhuma magistratura, nem participar de alguma
forma do governo de sua cidade, embora não seja verdade que permanecesse fora do âmbito do
governo, pois com freqüência era visto discutindo em público; e não se pode afirmar, pelos testemunhos
que possuímos, que fosse singularmente prudente ou diplomático em sua maneira de discutir.
As mais importantes orientações da vida eram subvertidas por seu orgulho de ter consciência da sua
ignorância, e os jovens, de fato, iriam acabar desrespeitando qualquer autoridade que não se
identificasse com a inteligência e a sabedoria, provocando ainda o desapreço por tudo que não buscasse
a sabedoria, desprezando a economia doméstica e a riqueza.

Preâmbulo

Desconheço atenienses, que influência tiveram meus acusadores em vosso espírito; a mim próprio, quase
me fizeram esquecer quem sou, tal o poder de persuasão de sua eloqüência. De verdades, porém, não
disseram nenhuma. Uma, sobretudo, me espantou das muitas perfídias que proferiram: a recomendação
de precaução para não vos deixardes seduzir pelo orador formidável que sou. Com efeito, não corarem
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de me haver eu de desmentir prontamente com os fatos, ao mostrar-me um orador nada formidável,
eis o que me pareceu a maior de suas insolências, salvo se essa gente chama formidável a quem diz a
verdade; se é o que entendem, eu admitiria que, em contraste com eles, sou um orador. Seja como for,
repito-o, de verdades eles não disseram alguma; de mim, porém, vós ouvireis a verdade inteira. Mas não
por Zeus, atenienses, não ouvireis discursos como os deles, aprimorados em substantivos e verbos, em
estilo florido; serão expressões espontâneas, nos termos que me ocorrerem, porque deposito confiança
na justiça do que digo; nem espere outra coisa qualquer um de vós. Verdadeiramente, senhores, não
ficaria bem a um velho como eu vir diante de vós modelar seus discursos como um rapazinho. Faço-vos,
contudo, um pedido, atenienses, uma súplica premente; se ouvirdes, na minha defesa, a mesma
linguagem que habitualmente emprego na praça, junto das bancas, onde tantos dentre vós me haveis
escutado, e em outros lugares, não a estranheis nem vos revolteis por isso. Acontece que venho ao
tribunal pela primeira vez aos setenta anos de idade; sinto-me, assim, completamente estrangeiro à
linguagem do local. Se eu fosse de fato um estrangeiro, sem dúvida me desculparíeis o sotaque e o
linguajar de minha criação; peço-vos nesta oportunidade a mesma tolerância, que é de justiça a meu ver,
para a minha linguagem, que poderia ser talvez pior, talvez melhor, e que examineis com atenção se o
que digo é justo ou não. Nisso reside o mérito de um juiz; o de um orador, em dizer a verdade.

A Defesa de Sócrates

Enunciado

Diversidade Entre Duas Categorias de Acusadores: os Antigos e os Recentes

Em princípio, ó atenienses, é legítimo que eu me defenda das calúnias das primeiras acusações que me
foram dirigidas e dos primeiros acusadores, e depois das mais recentes acusações e dos novos
acusadores. Pois muitos que se encontram entre vós já me acusaram no passado, sempre faltando com a
verdade, e esses me causam bem mais temor do que Ânito e seus amigos, embora estes sejam
acusadores perigosos. Mas os primeiros são muito mais perigosos, ó cidadãos, aqueles que convivendo
com a maior parte de vós, como crianças que deviam ser educadas, procuraram convencer-vos de
acusações não menos caluniosas contra mim: que existe um certo Sócrates, homem de muita sabedoria,
que especula a respeito das coisas do céu, que esquadrinha todos os segredos obscuros, que transforma
as razões mais fracas nas mais consistentes. Estes, ó atenienses, que propalaram essas coisas acerca de
mim, são os acusadores que mais receio, porque, ao ouvi-los, as pessoas acreditam que quem se dedica
a tais investigações não admite a existência dos deuses. E esses acusadores são muito numerosos e me
acusaram há bastante tempo, e, o que é mais grave, caluniaram-me quando vós tínheis aquela idade em
que é bastante fácil – alguns de vós éreis crianças ou adolescentes – dar crédito às calúnias, e assim, em
resumo, acusaram-me obstinadamente, sem que eu contasse com alguém para me defender. E o que é
mais assombroso é que seus nomes não podem sequer ser citados, exceto o de um comediógrafo; porém
os outros – os que, por inveja ou por vício em fazer falsas acusações, procuraram colocar-vos contra
mim, ou os que pretenderam convencer os outros por estarem verdadeiramente convencidos e de boa fé
–, esses todos não podem ser encontrados, nem se pode exigir que ao menos alguns deles venham até
aqui, nem acusar ninguém por difamação, e, em verdade, a fim de me defender só posso lutar contra
sombras, e acusar de mentiroso a quem não responde. Portanto, vós deveis vos certificar de que existem
duas categorias de acusadores: de um lado, os que me acusam há pouco tempo, e de outro, os que já
me acusam há bastante tempo e dos quais tenho falado a respeito, e então reconhecereis que devo
defender-me destes em primeiro lugar. Ainda mais porque esses acusadores fizeram-se ouvir por vós
antes e mais demoradamente do que aqueles que vieram depois.
Defender-me-ei, portanto, ó atenienses, e assim descobrirei se aquela calúnia, que martiriza meu coração
há tanto tempo, possa ser extirpada, embora deva fazê-lo em tão curto prazo. E se eu for bem-sucedido,
se conseguir acarretar-vos algum benefício com a minha defesa, será excelente para vós e para mim.
Bem sei quanto isto é difícil e tenho plena consciência da enorme dificuldade que me espera. Que tudo se
passe de acordo com a vontade do Deus, pois à lei é necessário obedecer e defender-se.
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Defesa Contra os Antigos Acusadores

Calúnia a Respeito do Saber de Sócrates

Vamos começar desde o início e examinar que tipo de acusação motivou essa calúnia, na qual Meleto se
baseou para redigir sua acusação neste processo. Que afirmavam meus detratores? Façamos de conta
que se trate de uma acusação juramentada de acusadores reais e dos quais seja preciso ler o texto:
"Sócrates é réu de haver-se ocupado de assuntos que não eram de sua alçada, e investigando o que
existe embaixo da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinando-a às
pessoas". A acusação possui mais ou menos este teor. Assististes a alguma coisa semelhante na comédia
de Aristófanes, na qual um certo Sócrates aparece andando de lá para cá, afirmando que caminha em
cima das nuvens, e outro amontoado de tolices, que não consigo compreender nem um pouco. E não
digo isso por julgar aquelas ciências coisas vis, se é mesmo verdade que haja cientistas de tais ciências.
Não faltaria quem, acompanhando Meleto, fizesse contra mim uma acusação tão grave! Eu só vos
asseguro, ó atenienses, que não me ocupo desses assuntos, e recorro à maioria de vós para que sirvam
de testemunhas. Peço que revelem publicamente quantos de vós já me ouviram falar a respeito dessas
coisas, e então compreendereis que tudo o mais que dizem sobre mim possui o mesmo valor.
Resumindo: nada existe em tudo isso que corresponda à verdade; e, mais ainda, se ouvistes alguém
declarar que instruo os homens em troca de dinheiro, isto também não passa de mentira. Mesmo que, se
alguém se propõe a instruir homens como fazem Górgias de Leontini, Pródico de Ceo e Hípias de Élida,
se me afigure coisa em absoluto nada condenável. Esses valorosos homens percorrem as cidades com o
propósito de instruir os jovens, aos quais seria mais fácil, e sem ter de gastar dinheiro, fazer-se instruir
por um de seus concidadãos; e convencem esses jovens a preferir a sua companhia à dos seus,
recebendo em troca dinheiro e ainda por cima gratidão. Ouvi também referências a outro homem, de
Paros, que possui muita sabedoria e veio morar em Atenas, e o soube por intermédio de Cálias, filho de
Hipônico, homem que gastou mais dinheiro com sofistas do que qualquer outro ateniense. Perguntei a
ele:
– Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias de contratar e pagar uma pessoa
que tomasse conta deles, que tivesse a capacidade de Ihes ensinar as virtudes para serem acrescentadas
à sua natureza, e eles se tomariam cavalariços ou agricultores; mas teus filhos são homens; que
educação, então: tencionas proporcionar-lhes? Quem entende das virtudes que Ihes são necessárias, ou
seja, das virtudes do homem e cidadão? Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhos
no mundo. Existe alguém capaz de fazê-lo?
– Claro que sim – respondeu-me.
– E quem é ele? – indaguei-lhe. – de onde é e quanto cobra para ensinar?
– Eveno de Paros. E seu preço é cinco minas – respondeu-me.
No íntimo, parabenizei esse tal de Eveno, se é de fato possuidor dessa doutrina e a ensina a tão baixo
preço. Eu mesmo me orgulharia se fosse capaz de tal coisa, contudo eu não sei, ó atenienses.

O Que é o Saber de Sócrates

O Oráculo de Delfos

Algum de vós poderia questionar-me: "Ó Sócrates, o que fazes então? Que motivo originou essas
calúnias? Com certeza, se muitos te acusaram, não se deveu ao fato de que nada fizeste fora do comum;
tantas vozes não teriam se erguido se tivesses te comportado como todos se comportam Conte o que
fizestes, pois não desejamos julgar-te irrefletidamente".
Procurarei esclarecer-vos a respeito da causa dessas calúnias contra mim. Escutai-me, portanto. É
possível que alguns entre vós creiam que eu esteja brincando; não, estou falando sério. Ó atenienses, é
verdade que adquiri renome por possuir certa sabedoria. E que tipo de sabedoria é essa? Possivelmente,
uma sabedoria estritamente humana. E a respeito de ser sábio, receio possuir esta única sabedoria. Ao
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passo que esses, de quem vos falava há pouco, talvez sejam possuidores de uma sabedoria sobre-
humana, mas afirmo que não a conheço, e quem diz o contrário mente, apenas com o intuito de
caluniar-me. Peço-vos para não fazer algazarra, ó atenienses, embora possais ter a impressão de que eu
esteja proferindo palavras por demais fortes; que não é meu depoimento, mas o de uma testemunha que
merece toda a vossa confiança. De minha sabedoria, se de fato se trata de sabedoria, e de sua natureza,
invocarei como testemunha, diante de vós, o próprio deus de Delfos. Todos vós conheceis Querefonte.
Era meu amigo desde o tempo da juventude e pertencente ao vosso partido popular; partiu no último
exílio em vossa companhia e regressou também em vossa companhia. Sabeis que tipo de homem era
Querofonte e de como era determinado em suas resoluções Dirigiu-se em certa ocasião a Delfos e
atreveu-se a perguntar ao oráculo se existia alguém mais sábio que eu. A pitonisa respondeu que não
existia ninguém. Como testemunho deste fato se prestará o irmão de Querefonte, em virtude de este
haver falecido.

Pesquisa Junto aos Políticos

Saberão agora o motivo pelo qual vos relato isso: meu intento é pôr-vos a par de onde se originou a
calúnia contra mim. Após ter ouvido a resposta do oráculo, refleti da seguinte maneira: "Que pretende o
deus dizer? Qual é o significado oculto do enigma? Tendo em vista que eu não me considero sábio, que
quer dizer o deus ao afirmar que sou o mais sábio dos homens? Com certeza não mente, pois ele não
pode mentir". E longamente me mantive nesta dúvida. Por fim, ao arrepio de minha vontade, comecei a
investigar acerca disso. Fui ter com um daqueles que possuem reputação de sábios, julgando que
somente assim poderia desmentir o oráculo e responder ao vaticínio: "Este é mais sábio que eu e
afirmastes que era eu". Mas enquanto estava analisando este – o nome não é necessário que eu vos
revele, ó cidadãos; basta dizer que era um de nossos políticos –, enfim, este com que, analisando e
raciocinando em conjunto, fiz a experiência que irei descrever-vos, e este homem aparentava ser sábio,
no entender de muitas pessoas e especialmente de si mesmo, mas talvez não o fosse de verdade.
Procurei fazê-lo compreender que embora se julgasse sábio, não o era. Em vista disso, a partir daquele
momento, não só ele passou a me odiar, como também muitos dos que se encontravam presentes.
Afastei-me dali e cheguei à conclusão de que era mais sábio que aquele homem, neste sentido, que nós,
eu e ele, podíamos não saber nada de bom, nem de belo, mas aquele acreditava saber e não sabia,
enquanto eu, ao contrário, como não sabia, também não julgava saber, e tive a impressão de que, ao
menos numa pequena coisa, fosse mais sábio que ele, ou seja, porque não sei, nem acredito sabê-lo. Aí
procurei um outro, entre os que possuem reputação de serem mais sábios que aqueles, e me ocorreu
exatamente a mesma coisa, e também este me dedicou ódio, juntamente com muitos outros.

Pesquisa Junto aos Poetas

Não obstante isso, continuei diligentemente com minha pesquisa, embora notando, com desagrado e
assombro, que todos passaram a me odiar e que, contudo, afigurava-se-me impossível deixar de atentar
para as palavras do deus. "Se almejas saber o que o oráculo quer dizer", dizia a mim mesmo, "deves
visitar todos aqueles que possuem reputação de sabedoria." Por isso, ó atenienses, devo dizer-
vos de novo a verdade; juro-vos que este foi o resultado da minha pesquisa: os que eram famosos por
possuírem maior sabedoria, conforme minha pesquisa, conforme a palavra do deus, pareceram-me quase
todos em maior erro. E outros, sem fama alguma, se me afiguraram melhores e mais sábios. Mas desejo
terminar de relatar-vos minhas peregrinações e as fadigas que sofri para convencer-me de que a palavra
do oráculo era incontestável.
Em seguida aos políticos, fui procurar os poetas, tanto os que escreviam ditirambos' e tragédias como os
demais, convencido de que diante daqueles confirmaria minha ignorância e sua superioridade. Peguei
suas melhores poesias, as que considerava mais bem construídas, e indaguei aos próprios poetas o que
eles pretendiam dizer; porque dessa maneira aprenderia alguma coisa com eles. Estou com vergonha, ó
atenienses, de contar-vos a verdade! Mas é obrigatório que eu a diga. Resumindo, todas as outras
pessoas presentes discorriam melhor a respeito do que os poetas haviam escrito que os próprios autores;
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diante disto, descobri que não era por nenhum tipo de sabedoria que eles faziam versos, mas por uma
propensão e inspiração natural que eu desconheço, como os adivinhos e vaticinadores, que dizem de fato
muitas coisas belas, mas não conhecem nada do que dizem, e aproximadamente o mesmo, e isto eu
percebi com clareza, é o que ocorre entre os poetas. E compreendi também que os poetas, pelo fato de
fazerem poesias, julgavam-se os mais sábios dos homens até mesmo em outras coisas em que realmente
não o eram. Então afastei-me deles, com a certeza de ser mais sábio que eles, pelo mesmo motivo que
era mais que os políticos.

Pesquisa Junto aos Artesãos

No final, dirigi-me aos artesãos, que de sua arte tinha a consciência de não conhecer nada, e eles sabiam
que eu os considerava conhecedores de numerosas e belas coisas. E não me equivoquei, eles conheciam
coisas que eu não conhecia, e nisso eram mais sábios do que eu. Porém, ó atenienses, também os
artesãos famosos apresentavam o mesmo defeito dos poetas: por conhecerem muito bem sua arte, cada
um deles julgava-se extremamente sábio, até mesmo em outros assuntos de maior realce e dificuldade, e
este importante defeito deslustrava toda sua sabedoria. De forma que eu, em nome do oráculo, indaguei
a mim mesmo se deveria permanecer tal como era, nem sabedor de minha sabedoria nem ignorante de
minha ignorância, ambas as coisas, como eles, e respondi a mim e ao oráculo que convinha continuar tal
qual eu era.

O Verdadeiro Saber Consiste em Saber Que Não se Sabe

Em virtude desta pesquisa, fiz numerosas e perigosíssimas inimizades, e a partir destas inimizades
surgiram muitas calúnias, e entre as calúnias, a fama de sábio, porque, toda vez que participava de uma
discussão, as pessoas julgavam que eu fosse sábio naqueles assuntos em que somente punha a
descoberto a ignorância dos demais. A verdade, porém, é outra, ó atenienses: quem sabe é apenas o
deus, e ele quer dizer, por intermédio de seu oráculo, que muito pouco ou nada vale a sabedoria do
homem, e, ao afirmar que Sócrates é sábio, náo se refere propriamente a mim, Sócrates, mas só usa
meu nome como exemplo, como se tivesse dito: "Ó homens, é muito sábio entre vós aquele que,
igualmente a Sócrates, tenha admitido que sua sabedoria nao possui valor algum". É por esta
razao que ainda hoje procuro e investigo, de acordo com a palavra do deus, se existe alguém entre os
atenienses ou estrangeiros que possa ser considerado sábio e, como acho que ninguém o seja, venho em
ajuda ao deus provando que nao há sábio algum. E tomado como estou por esta ânsia de pesquisa, não
me restou mais tempo para realizar alguma coisa de importante nem pela cidade nem pela minha casa, é
levo uma existência miserável por conta deste meu serviço ao deus.

As Muitas Inimizades e a Acusação

Vós tendes conhecimento de que os jovens que dispõem de mais tempo que os outros, os filhos das
famílias mais ricas, seguem-me de livre e espontânea vontade, e se regozijam em assistir a esta minha
análise dos homens; inúmeras vezes procuram imitar-me e tentam, por sua própria conta, analisar
alguma pessoa. Logicamente, deparam-se com numerosos homens que julgam saber alguma coisa e
sabem pouco ou nada, e então, aqueles que são analisados por eles voltam-se contra mim e não contra
quem os analisou, declarando que Sócrates é homem por demais infame e corruptor dos jovens. E se
alguém indaga: "Afinal, o que faz e o que ensina este Sócrates para corromper os jovens?",
nada respondem, porque o desconhecem, e, só para não evidenciar que estão confusos, dizem as coisas
que comumente são ditas contra todos os filósofos, além de afirmar que ele especula sobre as coisas que
se encontram no céu e as que ficam embaixo da terra, e que também ensina a não acreditar nos deuses
e apresenta como melhores as piores razões. A verdade, porém, é que esses homens demonstraram ser
pessoas que dão a impressão de saber tudo, porém, naturalmente, não querem dizer a verdade. Desta
maneira, ambiciosos, dominados pela paixão e numerosos como são, e todos da mesma opinião nesta
difamação a meu respeito e com argumentos que podem parecer também convincentes, sem escrúpulo
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algum encheram vossos ouvidos com suas calúnias. Este é o motivo pelo qual, finalmente, lançaram-
se contra mim Meleto, Ânito e Lícon: Meleto profundamente irado por causa dos poetas, Ânito por causa
dos artesãos e dos políticos, Lícon por causa dos oradores. Contudo, como vos disse desde o início, seria
de fato um verdadeiro milagre se eu tivesse a capacidade de arrancar-vos do coração esta calúnia que
possui raízes tão firmes e profundas. Esta é, ó cidadãos, a verdade, e eu a revelo por completo, sem
ocultar-vos nada, nem mesmo esquivando-me dela, embora saiba que sou odiado por muitos exatamente
por isso. Por sinal, é outra prova de que digo a verdade, e que esta é a calúnia contra mim e esta a
causa. Indagai quanto quiserdes, agora ou depois, e recebereis sempre a mesma resposta.

Defesa Contra Meleto

No que diz respeito aos meus primeiros acusadores, isso é o bastante para a defesa das culpas a mim
atribuídas; procurarei em seguida defender-me de Meleto, homem digno e patriota, como ele mesmo se
define, e dos acusadores que virão depois. Vou começar desde o início e como se na verdade dissesse
respeito a outra espécie de acusadores, analisemos também o ato de acusação deste. Declarou mais ou
menos isto: "Sócrates é réu de corromper os jovens, de não crer nos deuses nos quais a cidade
crê e também de praticar cultos religiosos extravagantes".
Analisemos esta acusação minuciosamente. Meleto afirma que corrompo a juventude, e eu digo, ó
atenienses, que o réu é o próprio Meleto, porque aborda com leviandade assuntos sérios e tão
inescrupulosamente leva homens diante do tribunal, com o intuito de fazer crer que se preocupa com
coisas com as quais, na verdade, nunca se preocupou. E procurarei provar-vos que isso é a pura
verdade.

Meleto Não Sabe o Que é Educar Nem Corromper

Meleto, mostra-te e responde. Não julgas de suprema importância que os jovens consigam se tornar os
melhores possíveis?
MELETO: — Julgo.
SÓCRATES: — Dize, então, aos juizes o que os torna melhores. Com certeza o sabes, pois esta é uma
preocupação tua e descobriste quem os corrompe, conforme afirmas, e por este motivo citaste-me diante
do tribunal e me acusaste. Vamos, dize aos juizes o que os faz melhores. Vês, Meleto, como ficas calado,
sem saber o que dizer? E isto não te se afigura vergonhoso, e prova suficiente do que afirmo: que nunca
te preocupaste com estes assuntos? Vamos, ó excelente homem, responde: que os faz melhores?
MELETO: — As leis.
SÓCRATES: — Não se trata disto, meu amigo. Indago-te qual é o homem que, em primeiro lugar, deve
ter conhecimento, conforme dizes, das leis.
MELETO: — Estes, ó Sócrates, os juizes.
SÓCRATES: — Afirmas, então, Meleto, que estes possuem a capacidade de educar os jovens e torná-los
melhores?
MELETO: — Afirmo.
SÓCRATES: — Crês que todos, ou alguns sim e outros não?
MELETO: — Todos.
SÓCRATES: — Dizes bem, por Hera! E grande a quantidade de bons educadores! Também estes que
estão nos ouvindo tornam os jovens melhores ou não?
MELETO: — Sim, também estes.
SÓCRATES: — E os senadores?
MELETO: — Também os senadores.
SÓCRATES: — Quer dizer, então, Meleto, que talvez aqueles das Assembléias Populares corrompam os
jovens? Ou também aqueles os tornam melhores?
MELETO: — Também aqueles.
SÓCRATES: — Todos os atenienses que te ouvem tornam os jovens bons e belos, todos, exceto eu.
Portanto, sou eu quem os corrompe. É isto que queres dizer?
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MELETO: — Exatamente isto.
SÓCRATES: — Como sou infeliz! Mas responde-me a isto: também com os cavalos crês que seja assim?
Que todos os homens os tornem melhores e somente um os mutile? Ou, ao contrário, que somente um
os torne melhores, ou poucos, aqueles que são peritos em cavalos, e que os demais se sirvam dos
cavalos e os mutilem? E não acontece assim, ó Meleto, com os cavalos e com todos os seres vivos? Com
certeza é assim, digam Ânito e tu mesmo que sim ou não. Seria uma grande felicidade para os jovens se
correspondesse à verdade que somente um Ihes causa danos e todos os outros os educam e melhoram.
Mas, prossegue, Meleto, já que demonstrei a contento que tu nunca te preocupaste com os jovens. Mais
ainda, demonstrei que nunca tiveste preocupação com as coisas pelas quais me trouxeste diante deste
tribunal.
Agora dize-me, ó Meleto, o que mais convém, viver entre bons cidadãos ou entre maus cidadãos? Amigo,
responde, não é difícil o que te pergunto. Os maus não prejudicam aqueles que Ihes são próximos? E os
bons não Ihes fazem o bem?
MELETO: — Com toda a certeza.
SÓCRATES: — Pode existir alguém que esteja com eles e que prefira receber o mal em lugar do bem?
Responde, excelente homem. Também a lei deseja que respondas. Pode existir alguém que prefira
receber o mal?
MELETO: — Não, realmente.
SÓCRATES: — Então, trouxeste-me a este tribunal porque corrompo os jovens por querer è os torno
maus, ou faço isto sem querer?
MELETO: — Afirmo que é por querer.
SÓCRATES: — Quer dizer, então, ó Meleto, tua sabedoria sendo maior que a minha, na tua idade, tendo
eu os anos que tenho, que pensas conhecer melhor do que eu que os maus sempre causam algum mal,
principalmente àqueles mais próximos deles, e que os bons façam o bem, e que eu ignore essas coisas a
ponto de não saber que se se torna mau a um deles corre-se o risco de receber algo mau dele e que, no
caso de saber disso, eu me empenhe em torná-los maus? Não me persuadirás disto, ó Meleto. Nem
acredito que possas persuadir a ninguém. Ou seja, não corrompo os jovens, ou, se os corrompo, faço-o
sem querer, de maneira que em ambos os casos mentes. Se eu os corrompo sem querer, por faltas
involuntárias, não existe lei alguma que poisa me obrigar a vir até aqui, mas sim que faça com que seja
afastado, a fim de advertir-me ou censurar-me, e é claro que, uma vez advertido, não mais farei o que
fazia sem querer. Tens evitado encontrar-te comigo e advertir-me; não o quiseste fazer de forma alguma
e me trazes aqui, embora as leis estabeleçam que aqui sejam trazidos somente os que devem ser
castigados, e não censurados.

Meleto Acusa Sócrates de Ateísmo e se Contradiz

Neste momento, cidadãos de Atenas, é bastante evidente aquilo que eu afirmava: que Meleto nunca se
preocupou com essas coisas. Apesar disso, dize-nos, Meleto, de que maneira, de acordo com tua opinião,
eu corrompo a juventude? Não o faço, como afirma com clareza a acusação que apresentaste contra
mim, ensinando-os a não acreditar nos deuses nos quais a cidade acredita, mas em outras divindades
novas? Não é, conforme dizes, ensinando estas coisas que os corrompo?
MELETO: — Sim, eu digo exatamente isto.
SÓCRATES: — Em nome desses mesmos deuses a respeito dos quais agora falamos, explica-te com
maior clareza, tanto para mim como para estes juizes, porque não consigo compreender a quais deuses
eu ensino que os jovens devem acreditar, pois se naqueles que acredito são deuses, não sou ateu e, por
conseguinte, não posso ser culpado disso, mesmo que não sejam os da cidade, e sim outros; é por causa
disso que me trazes a este tribunal, por que são outros ou por que afirmas que não acredito de maneira
alguma nos deuses e ensino isto aos jovens?
MELETO: — Eu afirmo que não acreditas de maneira alguma nos deuses.
SÓCRATES: — Ó excelente Meleto! Por que dizes que não acredito, da mesma maneira que os outros
homens, que o sol e a lua sejam deuses?
MELETO: — Com certeza, ó juizes, pois afirma que o sol é uma pedra e a lua é feita de terra.
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SÓCRATES: — Pensas, meu bom Meleto, em acusar também Anaxágoras? E tens em tão pouca
estima e reputas tão ignorantes nas letras a estes juizes, a ponto de não saberem que os livros de
Anaxágoras de Clazomena estão repletos destes ensinamentos? E por que motivo os jovens iriam
aprender de mim estas coisas que por uma simples dracma podem comprar na ágora e zombarem de
Sócrates, se este as apresentasse como suas, ainda mais sendo tão extravagantes? Por Zeus, pensas de
fato que eu não acredite em deus algum?
MELETO: — Em nenhum, com certeza.
SÓCRATES: — Ninguém acredita em ti, ó Meleto, e naquilo que afirmas; creio que não consegues
persuadir nem a ti mesmo. Na verdade, ó atenienses, tudo isto se me afigura desaforado e atrevido, e
quem escreveu esta acusação foi desaforado e a escreveu por atrevimento e desrespeito juvenil. É como
se alguém desejasse por-me à prova compondo uma espécie de enigma: "Dar-se-á conta Sócrates,
aquele grande sábio, que o estou ridicularizando e me contradigo? Ou conseguirei enganá-lo
e a todos aqueles que me ouvem?" Com efeito, parece-me que Meleto se contradiz na acusação,
como se declarasse: "Sócrates é réu de não acreditar nos deuses, mas também de acreditar nos
deuses". E isto significa desejo de se divertir.
Ó atenienses, analisai comigo de que maneira creio que ele se contradiz. Responde, ó Meleto. E vós,
como já vos exortei no começo, recordai-vos de não me interromper se continuo a raciocinar à minha
maneira.
Existe alguém, ó Meleto, que acredite na existência de fatos humanos e não em homens? Fazei com que
responda, ó atenienses, e não criai tanta agitação por causa de uma palavra. Há quem não acredite
na existência de cavalos, mas sim nas coisas relativas a cavalos? E que não acredite na
existência de flautistas, mas sim que existam sons de flauta? Não ha ninguém, eu mesmo
respondo, a ti e aos outros que aqui se encontram, se não queres responder. Mas responde ao menos à
pergunta seguinte: existe quem possa acreditar em coisas demoníacas, mas não em demônios?
MELETO: — É completamente impossível.
SÓCRATES: — Quanta satisfação me proporcionou tua resposta, embora tenhas sido obrigado pelos
juizes. Portanto, acusas-me de acreditar em coisas demoníacas e de ensiná-las; é isto que afirmas e que
juraste no teu ato de acusação. Mas se acredito em coisas demoníacas, devo obrigatoriamente crer em
demônios, não é assim? Com certeza é assim. Parece-me que aceitas, já que não contestas. E não
consideramos estes demônios filhos dos deuses?
MELETO: — Logicamente.
SÓCRATES: — Ora, se afirmas que existem demônios, se estes demônios são deuses, é neste ponto que
eu digo que fazes enigmas e brincadeiras, quando declaras que eu, embora não acreditando na
existência dos deuses, afirmo a sua existência, uma vez que digo existirem demônios. De outra forma, se
estes demônios são filhos dos deuses, são também filhos bastardos gerados por ninfas ou outras mães;
então, quem poderá pensar que existam filhos de deuses e de deuses não? Seria disparate igual se
pensasse que os mulos fossem filhos de jumentos e cavalos e que estes últimos não existissem. Por isso,
Meleto, é impossível, exceto que haja sido para pôr-me à prova, que tenhas escrito contra mim uma
acusação como esta, ou é necessário dizer que não sabias do que me acusar? Mas que consiga
convencer quem quer que seja, mesmo se fraco de intelecto, que a mesma pessoa que acredita em
coisas demoníacas possa não acreditar em coisas divinas e, de outra forma, que a mesma pessoa que
acredita em coisas demoníacas possa não acreditar nem em demônios, nem em deuses, nem em heróis,
isto é impossível.

A Missão Divina

Fazer o Que é Justo, Permanecer no Lugar Adequado, Obedecer ao Deus

Chega, ó atenienses, isto é o bastante para demonstrar que não sou culpado das acusações de Meleto,
pois não se faz necessária uma defesa muito longa. O que eu vos disse, desde o início, que um profundo
ódio ergueu-se contra mim, e vindo de muitas pessoas, é verdade, vós sabeis; e se algo me causará
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dano, não será nem Meleto nem Ânito, mas sim este ódio, esta calúnia e esta raiva das pessoas.
Pessoas estas que já causaram a perda de tantos outros e valorosos homens, e, acredito, outros ainda
irão perder, não havendo perigo que causem somente a minha perda.
Algum de vós poderia talvez altercar-me: "Sócrates, não te envergonhas de haveres exercido tal
atividade, que agora coloca em risco tua vida?" Eu responderia a este: "Não falas bem se pensas que
alguém, tendo a capacidade de fazer algum bem, mesmo sendo pequeno, deva calcular os riscos de vida
ou de morte e não deva olhar o injusto e se pratica as ações de homem honesto e corajoso ou de infame
e mau. Por outro lado, acompanhando este teu raciocínio, teriam sido néscios todos os heróis que
morreram em Tróia, e o mais néscio de todos seria o filho de Tétis que, sem se envergonhar, tamanho
desdém mostrou pelo perigo, quando sua mãe, uma deusa, estando ele ávido do sangue de Heitor,
disse-lhe, se bem me lembro: 'Ó filho, se vingares a morte do teu companheiro Pátroclo e matares
Heitor, também morrerás'. Ao ouvir tais palavras, Aquiles negligenciou o perigo e a morte, receando
muito mais viver miseravelmente sem vingar o amigo, e declarou: 'Rapidamente eu morra, logo após ter
castigado a quem matou, nem que para isso me torne objeto de desprezo'. Acreditas que Aquiles tenha
pensado na morte e no perigo?"
É assim que deve ser, ó atenienses, que onde alguém se haja instalado, considerando ser aquele seu
lugar mais honroso, ou onde tenha sido instalado por quem ordena, aí, creio, deve ficar e enfrentar os
riscos e não pensar na morte, nem em outra desgraça qualquer, à exceção de na desonra e na vergonha.
Declaro-vos, ó cidadãos, que meu comportamento seria anormal e excêntrico se, ao passo que em
Potidéia, Anfípolis e Délio, quando os comandantes que vós elegestes me designaram uma posição, lá
fiquei, como qualquer outro, arriscando minha vida, aqui, ao contrário, ao receber ordens do deus, ao
menos conforme pude ouvir e interpretar essa mesma ordem, pela qual deveria viver filosofando e
dedicando-me a conhecer a mim mesmo e aos outros, que, digo, por temor à morte ou a outra desgraça
semelhante, tivesse desertado do posto a mim designado pelo deus. Seria algo, repito, anormal e, de
fato, existiriam então motivos para trazer-me aqui no tribunal como sendo um desumano que não cresse
nos deuses, já que desobedece ao oráculo, receia a morte e julga ser sábio sem sê-lo. Com efeito,
atenienses, recear a morte não passa de julgar ser sábio e não sê-lo, dado que significa pensar saber
aquilo que não se sabe. E, em verdade, ninguém sabe se, por acaso, ela não seja o maior de todos os
bens que podem ser dados ao homem e, contudo, receiam-na como se soubessem que ela é a maior das
desgraças. E não é ignorância, a mais vergonhosa das ignorâncias, acreditar saber o que não se sabe?
Ora, atenienses, acredito distinguir-me por este motivo e precisamente neste ponto da maior parte dos
homens, e se me atrevesse a dizer que em alguma coisa sou mais sábio que os outros, somente por isto
o diria, que como não sei nada de preciso a respeito das coisas do Hades, também nada penso saber a
esse respeito. Mas ser injusto e desobedecer a quem é melhor que nós, seja deus, seja homem, isto bem
sei que é coisa vergonhosa e indecente. Por isso, como ocorre diante dos males que sei que são
nefastos, nunca acontecerá que eu fuja diante daqueles de que não sei se por acaso não são bens.
Portanto, mesmo que me concedesses a liberdade, contra a vontade de Ânito que, desde o começo,
declarava não ser necessário que eu viesse até este tribunal, ou, uma vez aqui trazido, que era
impossível não condenar-me à morte, porque, dizia, se consigo safar-me da condenação, daquele
momento em diante, seus filhos prosseguindo a praticar os ensinamentos de Sócrates, estariam
inapelavelmente perdidos e corrompidos; se, ao ouvir este raciocínio de Ânito, me dissésseis: "Ó
Sócrates, não pretendemos dar, agora, atenção a Ânito e deixamos-te livre, desde que não empregues
mais teu tempo nessas pesquisas, nem te ocupes mais de filosofia, e se fores surpreendido a praticar
ainda estas coisas, morrerás"; se, como dizia, com esta condição me deixásseis em liberdade, eu vos
responderia: "Ó atenienses, eu vos amo, mas obedecerei primeiro ao deus do que a vós, e enquanto tiver
ânimo, e enquanto for capaz, não pararei de filosofar, não pararei de estimular-vos e censurar-vos; e a
quem quer que eu encontrasse de vós, em qualquer ocasião, conversando da minha maneira habitual,
assim diria: "E tu, que és o melhor dos homens; tu, ateniense, cidadão da maior cidade e mais célebre
por sabedoria e poder, não te envergonhes de pensar em acumular o máximo de riquezas, fama e
honras, sem te preocupar em cuidar da inteligência, da verdade e da tua alma, para que se tornem tão
boas quanto possível?" E se algum de vós retrucasse que cuida de fato delas, não o deixaria afastar-se
nem iria embora, mas o interrogaria, o analisaria, o impugnaria, e se me afigurasse que não possui
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virtude mas apenas afirma possuí-la, eu o envergonharia demonstrando-lhe que considera infames as
coisas mais estimáveis e de valor, as infames. E agiria assim com qualquer um que eu quisesse: jovens
ou velhos, atenienses ou estrangeiros, e também com vós, que me sois mais estritamente próximos. Isto,
vós não desconheceis, é ordem do deus e estou convencido de que haja para vós maior bem na cidade
do que esta minha obediência ao deus.
Em verdade, com este meu caminhar não faço outra coisa a não ser convencer-vos, jovens e velhos, de
que não deveis vos preocupar nem com o corpo, nem com as riquezas, nem com qualquer outra coisa
antes e mais que com a alma, a fim de que ela se torne excelente e muito virtuosa, e de que das
riquezas não se origina a virtude, mas da virtude se originam as riquezas e todas as outras coisas que
são venturas para os homens, tanto para os cidadãos individualmente como para o Estado. Se ao falar
desta maneira corrompo os jovens, está certo, isto significará que minhas palavras são nocivas, mas se
alguém afirma que falo diferentemente e não deste modo, então diz coisas insensatas. Por tudo isso,
permiti que vos diga, ó cidadãos atenienses: ou dareis ouvidos a Ânito, ou não dareis, absolver-me-eis ou
não, mas, de qualquer forma, tende a certeza de que nunca agirei de outra maneira que esta, mesmo
que não só uma, mas muito mais vezes devesse morrer.
Não promoveis algazarra, ó cidadãos, lembrai-vos de meu pedido de que não causásseis balbúrdia diante
do que eu dissesse, mas que vos limitásseis a ouvir. Ademais, creio que vos será útil escutar. Restam-me
algumas outras coisas a dizer-vos, às quais, talvez, erguereis a voz. Não, não fazei assim. Convencei-vos:
se me condenardes à morte, a mim que sou como vos disse, não me causareis maior dano que podeis
causar a vós mesmos. A mim não causarão dano nem Meleto nem Ânito. E nem o poderiam. Não penso
que seja possível que um homem de bem receba o mal de um malvado. Poderá sim, Ânito, condenar-me
à morte, ou ao desterro, espoliar-me dos direitos civis; tudo em que este homem crer e outros crerem
serão grandes males, não o creio eu; penso que seja um mal bem mais grave aquele que é cometido por
esses que tentam condenar à morte um homem inocente. Logo, ó atenienses, de maneira alguma estou
falando em minha defesa, como alguém poderia achar, mas falo por vós, que não necessitais pecar,
condenando-me à morte, contra o dom do deus. Pois se me matardes, não encontrarão facilmente um
outro igual a mim, que, não riam da comparação, tenha sido colocado de fato pelo deus aos flancos da
cidade como aos flancos de um cavalo grande e de boa raça, mas pelo seu próprio tamanho, um pouco
lerdo e necessitado de estímulo, um ferrão. Assim parece-me que o deus me colocou aos flancos da
cidade; nunca paro de exortar-vos, de convencer-vos, de falar-vos, um por um, estando a vosso lado, em
todo lugar. Afirmo, pois, que outro como eu não nascerá facilmente, ó atenienses, e se desejais me
ouvir, me poreis a salvo. Mas se estais irritados comigo como o que está em vias de adormecer com
quem o desperta, e golpeais como a matar um inseto inoportuno, condenar-me-eis à morte, por
obediência a Ânito, e depois, no decorrer de todo o resto de vossa existência, dormireis tranqüilamente,
se o deus não vos mandar algum outro para substituir-me. E se for eu mesmo a pessoa indicada pelo
deus para presentear a cidade, podereis me reconhecer por isso: que não parece humano que haja
descuidado todos os meus negócios e ainda agüentar por tantos anos que tenham sido descuidadas as
coisas da minha casa, e sempre, ao contrário, cuidando das vossas, estando por perto como estaria um
pai ou irmão mais velho, para convencer-vos a buscar a virtude. Que se desta vida tirasse algum proveito
e se pelos conselhos que dou recebesse alguma compensação, aí sim haveria uma razão, mas vistes que
meus detratores, que me acusaram tão despudoradamente de tantas outras culpas, desta não tiveram o
despudor de me acusar, pondo-me frente a frente com uma testemunha, somente uma, que provasse ter
eu recebido uma única vez compensação ou de havê-la solicitado. E a prova cabal de que é verdade o
que vos declaro, eu dou: a minha pobreza.

Repugnância e Abstenção Socrática da Política Comum

É possível que pareça estranho eu me encontrar sempre próximo e me dar tanto ao trabalho de fornecer
conselhos a este ou àquele em particular, se, ao se tratar de aconselhar a cidade e de ir à tribuna para
falar ao povo, então me falte coragem. E o motivo disso me haveis ouvido dizer várias vezes e em vários
lugares, que existe em mim não sei que espírito divino e demoníaco, a respeito do qual, também Meleto,
com jeito de estar se divertindo, aponta no ato da acusação. É como uma voz que possuo dentro de mim
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desde criança, e que, toda vez que eu a ouço, sempre faz com que eu desista do que estou para
fazer, e nunca me convence a realizar qualquer outra coisa. É essa voz que me impede de me ocupar das
coisas do Estado, e parece-me que faz muito bem em agir dessa forma. Sabeis perfeitamente, ó
cidadãos, que se eu tivesse, por algum tempo, me ocupado dos negócios de Estado, teria sido morto
também num curto espaço de tempo e não teria realizado nada de útil, nem por vós nem por mim. E não
me desprezei se falo assim, pois é a verdade. Não existe homem que possa se salvar ao opor-se com
sinceridade, não digo a vós, mas a qualquer outra multidão, e tente impedir que muitas vezes se
cometam injustiças as leis na cidade; e é também preciso que aquele que luta em defesa do que é justo,
se de fato pretende escapar da morte, mesmo que por breve tempo, de viver de forma privada e não
exercer funções públicas.
Daquilo que afirmo eu mesmo posso oferecer-vos provas cabais, e não palavras, mas do que mais
necessitais: fatos. Escutai o que me sucedeu e vereis então que diante do que é justo não sou homem de
ceder a ninguém por temor à morte; e que, além de não ceder, estou pronto a morrer. Falarei um pouco
grosseiramente, como fazem alguns dos freqüentadores dos tribunais, mas com sinceridade. Tendes
conhecimento, ó cidadãos, de que nunca exerci em nossa cidade magistratura alguma, exceto uma vez
em que fiz parte do Conselho, justamente no dia em que era o vosso desejo julgar em conjunto, ao
arrepio da lei, e em seguida acolhestes todos ao meu parecer, aqueles dez capitães que não haviam
recolhidos os náufragos e os mortos depois da batalha naval das Arginusas.Então eu me opus, lutando
para que nada fosse feito contra a lei, e votei contra. Os oradores habituais já estavam prontos para
suspender-me da função e aprisionar-me, e vós a intigá-los e a gritar; julguei que era meu dver correr
aquele risco mantendo-me ao lado do direito e do justo em vez de apoiar-vos e deliberar o injusto por
temer a prisão e a morte. E isto ocorreu quando a cidade ainda era regida por uma democracia. Mais
tarde, depois que surgiu a oligarquia, os Trinta mandaram-me chamar, e a mais outros quatros, levaram-
nos à sala do Tolo e ordenaram que retirássemos de Salamina o Leon de Salamina, para que este viesse
a morrer. E davam ordens semelhantes a vários outros homens, na tentativa de envolver em seus atos
cruéis o maior número de pessoas possível. E naquela ocasião, não com palavras, e sim com fatos,
demonstrei que a morte, se a palavra não soar por demais vulgar, não possui importância alguma para
mim, mas de não cometer injustiças ou crueldades, isto sim me importa acima de qualquer coisa.E
aquele governo, apesar de prepotente, não me atemorizou, não me obrigou a cometer um ato injusto, e,
quando saímos do Tolo e os outros quatro se dirigiram para Salamina a fim de retirar Leon, deixei-os ir e
voltei para casa. Acredito que só por causa disso, eu já teria morrido, se aquele governo não tivesse sido
deposto logo em seguida. E disto que relatei possuo muitas testemunhas.

O Testemunho dos Discípulos, de seus Pais e Irmãos

Credes que eu teria vivido por tantos anos se houvesse me ocupado de assuntos públicos e, fazendo-o
como homem de bem, tivesse lutado em defesa da justiça e tivesse considerado esta defesa, como é
necessário, meu dever mais alto? Com certeza, atenienses, não existe homem que o tivesse conseguido!
Em verdade, em toda minha existência, tanto em público, nas poucas vezes que me ocupei de coisas
públicas, como privadamente, sempre fui o mesmo, um homem que diante do justo nunca cedeu a quem
quer que fosse, a ninguém, e nem mesmo àqueles que os caluniadores chamam de meus discípulos.
Nunca fui mestre de quem, quer que seja, principalmente se é uma pessoa que , quando falo ou atendo
àquilo que acredito ser meu ofício, deseja escutar-me; seja jovem, seja velho, nunca me refutaram, e
não é verdade que, se recebo dinheiro, eu falo e se não recebo, fico calado, porque estou da mesma
maneira à disposição de todos, pobres e ricos, quem quer que me indague e deseje ouvir as minhas
respostas. Por conseguinte, se entre os homens que me freqüentam, um se torne de boa formação moral
ou não, não será justo que eu receba elogios ou impropérios, já que não prometi ensinamento algum a
ninguém, nem nunca ensinei coisa alguma. E se há quem diga que aprendeu ou ouviu alguma coisa de
mm, em particular, alguma coisa que todos os outros não tenham aprendido ou ouvido, tenhais a certeza
de que este não diz a verdade.
Diante disso, como é possível que a alguns agrade estar comigo tanto tempo? Vós ouvistes, ó cidadãos,
que eu disse toda a verdade: têm prazer de ouvir-me quando submeto à prova aqueles que pensam
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serem sábios e não o são. Com efeito, não é desagradável. Ao fazer isso, repito-vos, cumpro as
ordens do deus, dadas por intermédios de vaticínios e sonhos, e por outros meios de que se serve a
providência divina para ordenar ao homem que faça alguma coisa. E estas coisas, ó atenienses, são
verdadeiras e demonstráveis. Se de fato eu corrompo os jovens, se já corrompi algum, seria ainda
necessário que estes, ao envelhecerem, tomassem consciência de que quando eram jovens eu os
aconselhei a praticar o mal, e que viessem à tribuna para acusar-me e para exigir minha punição, e, se
não quisessem fazê-lo diretamente, que enviassem hoje para cá as pessoas de sua família, pais, irmãos,
e outros, se os que lhe são caro sofreram algum mal por mim causado, e que me fizessem pagar por
isso. Muitos destes estão presentes, eu os vejo. Ali está Críton, meu contemporâneo e conterrâneo com
sei filho Critóbulo, e também Lisânias de Esfeto, com seu filho Ésquino,e ainda Antífon de Cefísia, pai de
Epígeno, e ali estão outros, cujos irmãos viveram comigo familiarmente, Nicóstrato, , filho de Teozótides,
irmão de Teódoto, e como Teódoto faleceu, não poderá falar com o irmão a meu favor, e aí está Parálio,
filho de Demódoco,de quem era irmão Teages, e ali Adimanto, filho de Aríston, de quem ali se encontra o
irmão Platão, e Aantodoro, de quem temos aqui o irmão Apolodoro. E poderia nomear muitos outros. E
conseguiria indicar vários outros que Meleto poderia apresentar como testemunhas na sua acusação; se
ele se esqueceu disso, que os apresente agora, cedo-lhe o lugar; se existe alguma testemunha deste
tipo, que se manifeste.
Porém, atenienses, vereis que todos farão o contrário, todos falarão a favor do corruptor, em defesa
daquele que causa o mal de seus familiares, como afirmam Meleto e Ânito. Talvez esses, os corrompidos,
tenham alguma razão para me defender, mas aqueles que não foram corrompidos, que são agora
anciãos, que outra razão podem ter para me defender exceto esta, que é verdadeira e justa: a certeza de
que Meleto mente e eu digo a verdade?

Epílogo

Sócrates não quer Misericórdia

Cidadãos, são estas, enfim, as razões que posso apresentar em minha defesa, e algumas mais, que,
porém, são bem poucos diferentes destas. É possível que alguém entre vós, ao pensar em si mesmo,
possa irritar-se comigo se, algum dia, ao ter de enfrentar um processo menos arriscado do que este,
suplicou clemência aos juizes, e, além disso, trouxe ao tribunal os filhos e vários de seus parentes e
amigos, ao passo que eu não me porto desta maneira, embora, ao que parece, esteja arriscando a vida
.É possível que alguém, ao fazer intimamente esta comparação, se deixe influenciar pelo amor-próprio
ferido e, desta forma, enraivecido com minha atitude, emita seu voto com raiva. A uma pessoa assim,
que talvez esteja entre vós, não afirmo categoricamente que há, poderei responder da seguinte maneira:
"Meu estimado amigo, eu também trouxe alguém da minha família, e aqui caberia aquele dito de
Homero: 'Que não de carvalho, nem de pedra nasci, mas de criaturas humanas'.
Eu também possuo família, ó atenienses; tenho três filhos, um já crescido e dois ainda crianças, mas não
os trouxe aqui para despertar vossa misericórdia e absolver-me". E não é por orgulho que me comporto
assim, nem por desprezo, nem para provar que sou corajoso diante da mote, mas pela minha reputação,
pela vossa e de toda a cidade, não me pareceu honroso agir dessa maneira, ainda mais na minha idade e
com o meu nome, verdadeiro ou falso que seja, porque corre pela cidade que, em quaisquer aspectos,
Sócrates se distingue da maioria dos homens. Ora, se aquele que entre vós possuem fama de se
distinguirem pela sabedoria e coragem, ou por outra virtude qualquer, se procedessem dessa maneira,
seria vergonhoso, e pessoas desse tipo, eu mesmo presenciei muitas vezes, quando eram réus em um
processo, embora possuíssem alguma boa reputação, têm atitudes excepcionais, como se achassem que
iriam sofrer sabe-se lá que tortura se devessem morrer e como se tornassem imortais se não fossem
condenados à morte por vós. Estes, sim, envergonham a toda a cidade, tanto que qualquer forasteiro
poderia imaginar que aqueles atenienses que se distinguem por sua virtude e que seus concidadãos
elegem à magistratura e outras honras não são em nada melhores que as mulheres. Por isso, não nos
portamos dessa maneira é o que compete a nós, que temos fama de sermos ainda alguma coisa. Nem
vos conviria, se nos comportássemos assim, deixar-nos fazê-lo, mas sim mostrar a todos que julgais com
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maior rigor quem encena esses dramas lastimosos e cobre a cidade de ridículo do que quem suporta
com serenidade o próprio destino.
Não considero justo, ó cidadãos, tentar influir nos juízes e, mediante súplicas, livrar-me da condenação,
mas sim infomá-los e convencê-los.
Os juízes não se encontram aqui para favorecer o justo, mas para julgar o justo, nem juraram que
favorecerão a quem lhes paga, mas que farão justiça de acordo com as leis. Portanto, não é necessário
que vos habitueis a isso; não faremos coisas boas e piedosas, nem vos nem eu. Não iríeis querer então,
ó atenienses, que eu cometesse diante de vós atos que reputo desonestos, injustos e vis, e eu menos
ainda, eu que sou acusado por Meleto, aqui presente, de impiedade. Porque é evidente que se eu, por
meio de súplicas procurasse convencer-vos e obrigar-vos a violar o juramento, eu vos ensinaria que,
desta acusação, seria culpado de não crer nos deuses. E é justamente o contrário que sucede. Acredito
nos deuses mais do que qualquer um dos meus acusadores, e deixo a vosso critério, e ao do deus, julgar
o que será para vós e para mim o melhor.

A Pena

Do Esperado da Pena

Se eu não estou abalado, ó atenienses, com o que acaba de ocorrer, o de terem votado pela minha
condenação, isso deve-se, entre outras razões, ao fato de não haver sido apanhado de surpresa. O que,
no entanto, me causa mais estranheza é o grande número de votos favoráveis a mm , pois acreditava
que seria condenado por muito mais votos, e não por tão poucos. Ao que me parece, com apenas mais
trinta votos a meu favor teria sido absolvido. Portanto, penso haver escapado das mãos de Meleto, e não
só haver escapado delas, mas, o que é bastante evidente, se Ânito e Lícon não tivessem vindo para me
acusar, eu teria sido multado em mil dracmas por não haver conseguido um quinto dos votos.
Este homem, então, pensa que mereço a pena capital. E eu, que pena apresentarei em oposição à vossa,
ó atenienses? Não é evidente que seja a mesma que me foi imposta? Qual será então? Que pena
merecerei ou que multa, por não haver usufruído em paz, ao longo da minha existência, o que aprendi, e
por ter desprezado aquilo que atrai a maioria; riquezas, interesses particulares, cargos militares e
políticos e todas as outras magistraturas, e as agitações e conspirações que acontecem nas cidades, pois
sempre me considerei por demais honesto para conseguir salvar-me se me dedicasse a tais coisas e
convencido de que não teria sido útil nem para mm nem para vós, e porque sempre acudi rapidamente
aonde quer que eu reputasse poder proporcionar o maior bem a cada um de vós em particular, tentando
convencer-vos de que, antes de qualquer coisa e de vós mesmos, procurásseis ser os melhores e mais
sensatos possível, e que vos esforçásseis ao máximo para trabalhar em prol da cidade. Que mereço por
sempre haver agido desta forma? Algum grande bem, ó atenienses, se é que devo ser recompensado
como mereço. Que será apropriado para um pobre benfeitor que precisa de tempo para aconselhar-vos
nos vossos assuntos? O que mais seria conveniente a esse homem, atenienses não seria mantê-lo no
Pritaneu com muito maior razão do que aqueles que, com cavalo, biga ou quadriga, tenham conseguido
triunfos nos Jogos Olímpicos. Porque estes vos proporcionam felicidade, e também a mim, e não
precisam ser sustentados como eu precioso. Se, então, devo pedir, de acordo com o direito, aquilo a que
faço jus, peço se alimentado no Pritaneu.
Contudo, mesmo nestas minhas palavras de agora, talvez julgais notar quase o mesmo sentimento de
ofensivo orgulho que acreditáveis ter percebido quando falava a respeito de suplicar e despertar
comiseração. Não, não é isso, ó cidadãos, mas algo bastante diferente. Penso nunca haver prejudicado
ninguém por querer, e mesmo assim não logrei convencer-vos; tivemos muito pouco tempo para nos
entendermos. E acredito que se houvesse leis entre nós, como as que há entre outros povos, que
proíbem que uma pena de morte seja aplicada em apenas um dia, e sim em mais, estaríeis convencidos,
e, mesmo assim, não é fácil livrar-se em tão breve espaço de tempo de acusações tão graves. E também
pensa em prejudicar a mm mesmo ao declarar que sou merecedor da pena e pedir que esta pena seja
aplicada a mim. E por temer o que eu deveria agir dessa forma? Talvez por temer sofrer aquilo que
Meleto exige para mim e que eu declaro não saber se é bom ou mau? E em troca desta pena devo
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escolher outra entre aquelas que eu sei serem más? Deverei solicitar a prisão? E por que motivo
deverei viver preso, a serviço da eterna magistratura dos Onze? Uma pena em dinheiro e permanecer
enjaulado enquanto não for paga? Mas é exatamente a mesma coisa que a anterior, porque não possuo
dinheiro para pagá-la. Pedirei o exílio? Sim, talvez seja precisamente esta pena que desejastes para mim.
Porém, em verdade, ó atenienses, eu teria de estar imbuído de uma bem ingênua vontade de viver se
fosse assim tão irracional a ponto de não poder nem mesmo fazer este raciocínio, que enquanto vós,
embora sendo meus concidadãos, não fostes capazes de agüentar minha companhia e os meus
discursos, e mais, que minha companhia foi tão desagradável que procuras agora livrar-vos dela, que
outros a agüentariam de bom grado? E ainda, atenienses, que excelente vida seria a minha, nesta idade,
exilado, mudando sempre de país para país, perseguido em todos os lugares. Porque sei muito bem que
aonde quer que eu vá, os jovens acorrerão a fim de me ouvir, como aqui, e, se eu os repelir, serão estes
mesmos que me farão perseguir, convencendo os mais velhos; e se não os repelir, serei perseguido por
seus pais e demais parentes.
Algum de vós talvez pudesse contestar-me: "Em silêncio e quieto, ó Sócrates, não poderias viver após ter
saído de Atenas?" Isso seria simplesmente impossível. Porque, se vos dissesse que significaria
desobedecer ao deus e que, por conseguinte, não seria possível que eu vivesse em silêncio, não
acreditaríeis e pensaríeis que estivesse sendo sarcástico. Se vos dissesse que esse é o maior bem para o
homem, meditar todos os dias sobre a virtude e acerca dos outros assuntos que me ouvistes discutindo e
analisando a meu respeito e dos demais, e que uma vida desprovida de tais análises não é digna de ser
vivida, se vos dissesse isto, acreditar-me-iam menos ainda. Contudo, é isto que vos digo, ó atenienses,
porém é difícil convencer-vos. Por outro lado, não estou habituado a considerar-me merecedor de mal
algum. Se eu possuísse dinheiro, poderia ter-me aplicado uma multa que conseguisse pagar, porque,
assim, não teria me infligido mal algum. Mas não possuo dinheiro e não posso fazer isso, exceto se
desejeis multar-me de uma quantia que eu tenha a possibilidade de pagar. Poderei pagar-vos apenas
uma mina de prata. Portanto, multo-me em uma mina de prata.
Mas vedes, ó atenienses, que Platão, Críton, Critóbulo e Apolodoro querem que eu me multe em trinta
minas, que eles mesmos garantirão. Multo-me então em trinta minas. E esses homens, dignos de crédito
e confiança, serão garantes dessa quantia.

Após a Condenação

Aos que Votaram Contra

Por não haverdes aguardado mais um pouco, atenienses, aqueles que desejarem injuriar a cidade vos
impingirão a fama e a acusação de terdes matado Sócrates, um sábio. Sim, chamar-me-ão de sábio,
apesar de que eu não o seja, os que vos quiserem censurar. Se esperásseis mais algum tempo, a própria
natureza satisfaria o vosso desejo. Bem sabeis a minha idade, já distante da vida e próxima da morte.
Não dirijo essas palavras a todos vós, mas aos que votaram pela minha morte.
Para esses mesmos, adito o seguinte: talvez imagineis, senhores, que me perdi por falta de discursos
com que vos poderia persuadir, se na minha opinião se devesse tudo fazer e dizer para escapar à justiça.
Engano! Perdi-me por falta, não de discursos, mas de atrevimento e descaramento, por me recusar a
proferir o que mais gostais de ouvir, lamentos e gemidos, fazendo e dizendo uma porção de coisas que
declaro indignas de mm, tais como costumais ouvir dos outros. Ora, se antes achei que o perigo não
justificava indignidade alguma, tampouco me pesa agora da maneira por que me defendi; ao contrário,
muito mais folgo em morrer após a defesa que fiz, do que folgaria em viver após fazê-la daquele outro
modo. Quer no tribunal, quer na guerra, não devo eu, não deve ninguém lançar mão de todo e qualquer
recurso para escapar à morte. Com efeito, é evidente que, nas batalhas, muitas vezes se pode escapar à
morte arrojando as armas e suplicando piedade aos perseguidores; em cada perigo, tem muitos outros
meios de escapar à morte quem ousa tudo fazer e dizer. Não se tenha por difícil escapar à morte, porque
muito mais difícil é escapar à maldade; ela corre mais ligeira que a morte. Neste momento, fomos
apanhados, eu, que sou um velho vagaroso, pela mais lenta das duas, eu e os meus acusadores, ágeis e
velozes, pela mais ligeira, a malvadez. Agora, vamos partir; eu, condenado por vós à morte; eles,
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condenados pela verdade a seu pecado e a seu crime. Eu aceito a pena imposta; eles igualmente. Por
certo, tinha de ser assim e penso que não houve excessos.
Acerca do futuro, no entanto, quero fazer-vos um vaticínio, meus condenadores; de fato, eis-me chegado
àquele momento em que os homens vaticinam melhor, quando estão para morrer. Eu vos afianço,
homens que me mandais matar, que o castigo os vos alcançará logo após a minha morte e será, por
Zeus, muito mais duro que a pena capital que me impusestes. Vós o fizestes supondo que vos livraríeis
de dar boas contas de vossa vida; mas o resultado será inteiramente oposto, eu vo-lo asseguro. Serão
mais numerosos os que vos pedirão contas; até agora eu os continha e vós não os percebíeis; eles serão
tanto mais importunos quanto são mais jovens, e vossa irritação será maior. Se imaginais que, matando
homens, evitareis que alguém vos repreenda a má vida, estais enganados; essa não é uma forma de
libertação, enm é inteiramente eficaz nem honrosa; esta outra, sim, é a mais honrosa e mais fácil; em
vez de tapar a boca dos outros, preparar-se para ser o melhor possível. Com este vaticínio, despeço-me
de vós que me condenastes.

Aos que o Absolveram

Com os que votaram pela absolvição, gostaria de conversar com respeito ao que se acaba de suceder,
enquanto os magistrados estão ocupados e antes de ir para onde devo morrer. Por conseguinte,
senhores, ficai comigo mais um pouco; nada obsta que nos entretenhamos enquanto dispomos de
tempo. Quero explicar-vos, como a amigos, o sentido exato de que me aconteceu agora.
O que me ocorreu senhores juízes, a vós é que chamo com tino de juízes, foi algo prodigioso. A usual
inspiração, a da divindade, sempre foi rigorosamente assídua em opor-se a ações mínimas, quando eu ia
cometer um erro; agora, porém, acaba de me ocorrer o que vós estais vendo, o que se poderia
considerar, e há quem o faça, como o maior dos males; mas a advertência divina não se me opôs de
manhã, ao sair de casa, nem enquanto subia aqui para o tribunal, nem quando ia dizer alguma coisa; no
entanto, quantas vezes ela me conteve em meio de outros discursos! Mas hoje não se me opôs vez
alguma no decorrer do julgamento, em nenhuma ação ou palavra. A que devo atribuir isso? Vou dizer-
vos: é bem possível que seja um bem para mim o que aconteceu e não é forçoso acreditar que a morte
seja um mal. Disso tenho agora uma boa prova, porque a usual advertência não poderia deixar de opor-
se, se não fosse uma ação boa o que eu estava para praticar.
Façamos mais esta reflexão: há grande esperança de que isto seja um bem. Morrer é uma destas duas
coisas: ou o morte é igual a nada, e não sente nenhuma sensação d coisa nenhuma; ou, então, como se
costuma dizer, trata-se duma mudança, uma emigração da alma, do lugar deste mundo para outro lugar.
Se não há nenhuma sensação, se é como um sono em que o adormecido nada vê nem sonha, que
maravilhosa vantagem seria a morte!
Bem posso imaginar que, se devêssemos identificar uma noite em que estivéssemos dormindo tão
profundamente que nem mesmo sonhássemos e, contrapondo a essa as demais noites e dias de nossa
vida, pensar e dizer quantos dias e noites de nossa existência vivemos melhor e mais agradavelmente do
que naquela noite, bem posso imaginar que, já não digo um homem comum, mas o próprio rei da Pérsia
acharia fácil enumerar tal noite entre as outras noites e dias. Logo, se a morte é isso, digo que é uma
vantagem, porque, assim sendo, toda a duração do tempo se apresenta como nada mais que uma noite.
Se, do outro lado, a morte é como a mudança daqui para outro lugar e está certa a tradição de que lá
estão todos os mortos, que maior bem haveria que esse, senhores juízes?
Se, ao chegar ao Hades, livre dessas pessoas que se intitulam juízes, a gente vai encontrar os
verdadeiros juízes que, segundo consta, lá distribuem a justiça, Minos,¹ Radamanto, Éaco, Triptólemo e
outros semideuses que foram justiceiros em vida, não valeria a pena a viagem? Quanto não daria
qualquer de vós para estar na companhia de Orfeu,² Museu, Hesíodo e Homero? Por mm, estou pronto a
morrer muitas vezes, se isso é verdade; eu de modo especial acharia lá um entretenimento maravilhoso,
quando encontrasse Palamedes, Ajax de Telamon e outros dos antigos, que tenham morrido por um
sentença iníqua; não me seria desagradável comparar com os deles os meus sofrimentos e, o que é
mais, passar o tempo examinando e interrogando os de lá como aos de cá, a ver quem deles é sábio e
quem, não o sendo, cuida que é. Quanto não se daria, senhores juízes, para sujeitar a exame aquele que
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comandou a imensa expedição contra Tróia, ou Ulisses, ou Sísifo? Milhares de outros se poderiam
nomear, homens e mulheres, com quem seria uma felicidade indizível estar junto, conversando com eles,
sujeitando-os a exame! Os de lá absolutamente não matam por uma razão dessas! Os de lá são mais
felizes que os de cá, entre outros motivos, por serem imortais pelo resto do tempo, se a tradição está
certa.
Vós também, senhores juízes, deveis bem esperar da morte e considerar particularmente esta verdade:
não há, para o homem bom, mal algum, quer na vida, quer na morte, e os deuses não descuidam de seu
destino. O meu não é conseqüência do acaso; vejo claramente que era melhor para mim morrer agora e
ficar livre de fadigas. Por isso é que a advertência nada me impediu. Não me insurjo absolutamente
contra os que votaram contra mm ou me acusaram. Verdade é que não me acusaram e condenaram com
esse modo de pensar, mas na suposição de que me causavam dano: nisso merecem censura. No
entanto, só tenho um pedido a lhes fazer: quando meus filhos crescerem, castigai-os, atormentai-os com
os mesmíssimos tormentos que eu vos infligi, se achardes que eles estejam cuidando mais da riqueza ou
de outra coisa que da virtude; se estiverem supondo ter um valor que não tenham, repreendei-os, como
vos fiz eu, por não cuidarem do que devem e por suporem méritos, sem ter nenhum. Se vós assim
agirdes, eu terei recebido de vós justiça; eu, e meus filhos também.
Bem, é chegada a hora de partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor destino, se
eu, se vós, é segredo para todos, exceto para a divindade.
¹ Rei lendário de Creta, filho de Europa e de Zeus, marido de Pasífae, sábio legislador, juiz dos Infernos
com Éaco e Triptólemo.
² Célebre aedo da era pré-homérica, cantava e tocava a lira com tal perfeição que até as feras se
aquietavam e vinham deitar-se a seus pés. Atribuía-se-lhe a invenção da lira e dos rituais mágicos e
divinatórios, origem de seitas místicas, a que se deu o nome de orfismo.

Platão

A Vida e as Obras

Diversamente de Sócrates , que era filho do povo, Platão nasceu em Atenas, em 428 ou 427 a.C., de pais
aristocráticos e abastados, de antiga e nobre prosápia. Temperamento artístico e dialético - manifestação
característica e suma do gênio grego - deu, na mocidade, livre curso ao seu talento poético, que o
acompanhou durante a vida toda, manifestando-se na expressão estética de seus escritos; entretanto
isto prejudicou sem dúvida a precisão e a ordem do seu pensamento, tanto assim que várias partes de
suas obras não têm verdadeira importância e valor filosófico.
Aos vinte anos, Platão travou relação com Sócrates - mais velho do que ele quarenta anos - e gozou por
oito anos do ensinamento e da amizade do mestre. Quando discípulo de Sócrates e ainda depois, Platão
estudou também os maiores pré-socráticos. Depois da morte do mestre, Platão retirou-se com outros
socráticos para junto de Euclides, em Mégara.
Daí deu início a suas viagens, e fez um vasto giro pelo mundo para se instruir (390-388). Visitou o Egito,
de que admirou a veneranda antigüidade e estabilidade política; a Itália meridional, onde teve ocasião de
travar relações com os pitagóricos (tal contato será fecundo para o desenvolvimento do seu
pensamento); a Sicília, onde conheceu Dionísio o Antigo, tirano de Siracusa e travou amizade profunda
com Dion, cunhado daquele. Caído, porém, na desgraça do tirano pela sua fraqueza, foi vendido como
escravo. Libertado graças a um amigo, voltou a Atenas.
Em Atenas, pelo ano de 387, Platão fundava a sua célebre escola, que, dos jardins de Academo, onde
surgiu, tomou o nome famoso de Academia. Adquiriu, perto de Colona, povoado da Ática, uma herdade,
onde levantou um templo às Musas, que se tornou propriedade coletiva da escola e foi por ela
conservada durante quase um milênio, até o tempo do imperador Justiniano (529 d.C.).
Platão, ao contrário de Sócrates, interessou-se vivamente pela política e pela filosofia política. Foi assim
que o filósofo, após a morte de Dionísio o Antigo, voltou duas vezes - em 366 e em 361 - à Dion,
esperando poder experimentar o seu ideal político e realizar a sua política utopista. Estas duas viagens
políticas a Siracusa, porém, não tiveram melhor êxito do que a precedente: a primeira viagem terminou
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com desterro de Dion; na segunda, Platão foi preso por Dionísio, e foi libertado por Arquitas e pelos
seus amigos, estando, então, Arquistas no governo do poderoso estado de Tarento.
Voltando para Atenas, Platão dedicou-se inteiramente à especulação metafísica, ao ensino filosófico e à
redação de suas obras, atividade que não foi interrompida a não ser pela morte. Esta veio operar aquela
libertação definitiva do cárcere do corpo, da qual a filosofia - como lemos no Fédon - não é senão uma
assídua preparação e realização no tempo. Morreu o grande Platão em 348 ou 347 a.C., com oitenta
anos de idade.
Platão é o primeiro filósofo antigo de quem possuímos as obras completas. Dos 35 diálogos, porém, que
correm sob o seu nome, muitos são apócrifos, outros de autenticidade duvidosa.
A forma dos escritos platônicos é o diálogo, transição espontânea entre o ensinamento oral e
fragmentário de Sócrates e o método estritamente didático de Aristóteles. No fundador da Academia, o
mito e a poesia confundem-se muitas vezes com os elementos puramente racionais do sistema. Faltam-
lhe ainda o rigor, a precisão, o método, a terminologia científica que tanto caracterizam os escritos do
sábio estagirita.
A atividade literária de Platão abrange mais de cinqüenta anos da sua vida: desde a morte de Sócrates ,
até a sua morte. A parte mais importante da atividade literária de Platão é representada pelos diálogos -
em três grupos principais, segundo certa ordem cronológica, lógica e formal, que representa a evolução
do pensamento platônico, do socratismo ao aristotelismo.

O Pensamento: A Gnosiologia

Como já em Sócrates, assim em Platão a filosofia tem um fim prático, moral; é a grande ciência que
resolve o problema da vida. Este fim prático realiza-se, no entanto, intelectualmente, através da
especulação, do conhecimento da ciência. Mas - diversamente de Sócrates, que limitava a pesquisa
filosófica, conceptual, ao campo antropológico e moral - Platão estende tal indagação ao campo
metafísico e cosmológico, isto é, a toda a realidade.
Este caráter íntimo, humano, religioso da filosofia, em Platão é tornado especialmente vivo, angustioso,
pela viva sensibilidade do filósofo em face do universal vir-a-ser, nascer e perecer de todas as coisas; em
face do mal, da desordem que se manifesta em especial no homem, onde o corpo é inimigo do espírito, o
sentido se opõe ao intelecto, a paixão contrasta com a razão. Assim, considera Platão o espírito humano
peregrino neste mundo e prisioneiro na caverna do corpo. Deve, pois, transpor este mundo e libertar-se
do corpo para realizar o seu fim, isto é, chegar à contemplação do inteligível, para o qual é atraído por
um amor nostálgico, pelo eros platônico.
Platão como Sócrates, parte do conhecimento empírico, sensível, da opinião do vulgo e dos sofistas, para
chegar ao conhecimento intelectual, conceptual, universal e imutável. A gnosiologia platônica, porém,
tem o caráter científico, filosófico, que falta a gnosiologia socrática, ainda que as conclusões sejam, mais
ou menos, idênticas. O conhecimento sensível deve ser superado por um outro conhecimento, o
conhecimento conceptual, porquanto no conhecimento humano, como efetivamente, apresentam-se
elementos que não se podem explicar mediante a sensação. O conhecimento sensível, particular, mutável
e relativo, não pode explicar o conhecimento intelectual, que tem por sua característica a universalidade,
a imutabilidade, o absoluto (do conceito); e ainda menos pode o conhecimento sensível explicar o dever
ser, os valores de beleza, verdade e bondade, que estão efetivamente presentes no espírito humano, e
se distinguem diametralmente de seus opostos, fealdade, erro e mal-posição e distinção que o sentido
não pode operar por si mesmo.
Segundo Platão, o conhecimento humano integral fica nitidamente dividido em dois graus: o
conhecimento sensível, particular, mutável e relativo, e o conhecimento intelectual, universal, imutável,
absoluto, que ilumina o primeiro conhecimento, mas que dele não se pode derivar. A diferença essencial
entre o conhecimento sensível, a opinião verdadeira e o conhecimento intelectual, racional em geral, está
nisto: o conhecimento sensível, embora verdadeiro, não sabe que o é, donde pode passar
indiferentemente o conhecimento diverso, cair no erro sem o saber; ao passo que o segundo, além de
ser um conhecimento verdadeiro, sabe que o é, não podendo de modo algum ser substituído por um
conhecimento diverso, errôneo. Poder-se-ia também dizer que o primeiro sabe que as coisas estão assim,
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sem saber porque o estão, ao passo que o segundo sabe que as coisas devem estar necessariamente
assim como estão, precisamente porque é ciência, isto é, conhecimento das coisas pelas causas.
Sócrates estava convencido, como também Platão, de que o saber intelectual transcende, no seu valor, o
saber sensível, mas julgava, todavia, poder construir indutivamente o conceito da sensação, da opinião;
Platão, ao contrário, não admite que da sensação - particular, mutável, relativa - se possa de algum
modo tirar o conceito universal, imutável, absoluto. E, desenvolvendo, exagerando, exasperando a
doutrina da maiêutica socrática, diz que os conceitos são a priori, inatos no espírito humano, donde têm
de ser oportunamente tirados, e sustenta que as sensações correspondentes aos conceitos não lhes
constituem a origem, e sim a ocasião para fazê-los reviver, relembrar conforme a lei da associação.
Aqui devemos lembrar que Platão, diversamente de Sócrates, dá ao conhecimento racional, conceptual,
científico, uma base real, um objeto próprio: as idéias eternas e universais, que são os conceitos, ou
alguns conceitos da mente, personalizados. Do mesmo modo, dá ao conhecimento empírico, sensível, à
opinião verdadeira, uma base e um fundamento reais, um objeto próprio: as coisas particulares e
mutáveis, como as concebiam Heráclito e os sotistas . Deste mundo material e contigente, portanto, não
há ciência, devido à sua natureza inferior, mas apenas é possível, no máximo, um conhecimento sensível
verdadeiro - opinião verdadeira - que é precisamente o conhecimento adequado à sua natureza inferior.
Pode haver conhecimento apenas do mundo imaterial e racional das idéias pela sua natureza superior.
Este mundo ideal, racional - no dizer de Platão - transcende inteiramente o mundo empírico, material, em
que vivemos.

Teoria das Idéias

Sócrates mostrara no conceito o verdadeiro objeto da ciência. Platão aprofunda-lhe a teoria e procura
determinar a relação entre o conceito e a realidade fazendo deste problema o ponto de partida da sua
filosofia.
A ciência é objetiva; ao conhecimento certo deve corresponder a realidade. Ora, de um lado, os nossos
conceitos são universais, necessários, imutáveis e eternos (Sócrates), do outro, tudo no mundo é
individual, contigente e transitório (Heráclito). Deve, logo, existir, além do fenomenal, um outro mundo
de realidades, objetivamente dotadas dos mesmos atributos dos conceitos subjetivos que as
representam. Estas realidades chamam-se Idéias. As idéias não são, pois, no sentido platônico,
representações intelectuais, formas abstratas do pensamento, são realidades objetivas, modelos e
arquétipos eternos de que as coisas visíveis são cópias imperfeitas e fugazes. Assim a idéia de homem é
o homem abstrato perfeito e universal de que os indivíduos humanos são imitações transitórias e
defeituosas.
Todas as idéias existem num mundo separado, o mundo dos inteligíveis, situado na esfera celeste. A
certeza da sua existência funda-a Platão na necessidade de salvar o valor objetivo dos nossos
conhecimentos e na importância de explicar os atributos do ente de Parmênides , sem, com ele, negar a
existência do fieri. Tal a célebre teoria das idéias, alma de toda filosofia platônica, centro em torno do
qual gravita todo o seu sistema.

A Metafísica

As Idéias

O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das idéias; e estas contrapõe-se
a matéria obscura e incriada. Entre as idéias e a matéria estão o Demiurgo e as almas, através de que
desce das idéias à matéria aquilo de racionalidade que nesta matéria aparece.
O divino platônico é representado pelo mundo das idéias e especialmente pela idéia do Bem, que está no
vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma base
ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceptual. Esse conhecimento, aliás, se impõe ao
lado e acima do conhecimento sensível, para poder explicar verdadeiramente o conhecimento humano na
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sua efetiva realidade. E, em geral, o mundo ideal é provado pela necessidade de justificar os valores,
o dever ser, de que este nosso mundo imperfeito participa e a que aspira.
Visto serem as idéias conceitos personalizados, transferidos da ordem lógica à ontológica, terão
consequentemente as características dos próprios conceitos: transcenderão a experiência, serão
universais, imutáveis. Além disso, as idéias terão aquela mesma ordem lógica dos conceitos, que se
obtém mediante a divisão e a classificação, isto é, são ordenadas em sistema hierárquico, estando no
vértice a idéia do Bem, que é papel da dialética (lógica real, ontológica) esclarecer. Como a multiplicidade
dos indivíduos é unificada nas idéias respectivas, assim a multiplicidade das idéias é unificada na idéia do
Bem. Logo, a idéia do Bem, no sistema platônico, é a realidade suprema, donde dependem todas as
demais idéias, e todos os valores (éticos, lógicos e estéticos) que se manifestam no mundo sensível; é o
ser sem o qual não se explica o vir-a-ser. Portanto, deveria representar o verdadeiro Deus platônico. No
entanto, para ser verdadeiramente tal, falta-lhe a personalidade e a atividade criadora. Desta
personalidade e atividade criadora - ou, melhor, ordenadora - é, pelo contrário, dotado o Demiurgo o
qual, embora superior à matéria, é inferior às idéias, de cujo modelo se serve para ordenar a matéria e
transformar o caos em cosmos.

As Almas

A alma, assim como o Demiurgo, desempenha papel de mediador entre as idéias e a matéria, à qual
comunica o movimento e a vida, a ordem e a harmonia, em dependência de uma ação do Demiurgo
sobre a alma. Assim, deveria ser, tanto no homem como nos outros seres, porquanto Platão é um
pampsiquista, quer dizer, anima toda a realidade. Ele, todavia, dá à alma humana um lugar e um
tratamento à parte, de superioridade, em vista dos seus impelentes interesses morais e ascéticos,
religiosos e místicos. Assim é que considera ele a alma humana como um ser eterno (coeterno às idéias,
ao Demiurgo e à matéria), de natureza espiritual, inteligível, caído no mundo material como que por uma
espécie de queda original, de um mal radical. Deve portanto, a alma humana, libertar-se do corpo, como
de um cárcere; esta libertação, durante a vida terrena, começa e progride mediante a filosofia, que é
separação espiritual da alma do corpo, e se realiza com a morte, separando-se, então, na realidade, a
alma do corpo.
A faculdade principal, essencial da alma é a de conhecer o mundo ideal, transcendental: contemplação
em que se realiza a natureza humana, e da qual depende totalmente a ação moral. Entretanto, sendo
que a alma racional é, de fato, unida a um corpo, dotado de atividade sensitiva e vegetativa, deve existir
um princípio de uma e outra. Segundo Platão, tais funções seriam desempenhadas por outras duas almas
- ou partes da alma: a irascível (ímpeto), que residiria no peito, e a concupiscível (apetite), que residiria
no abdome - assim como a alma racional residiria na cabeça. Naturalmente a alma sensitiva e a
vegetativa são subordinadas à alma racional.
Logo, segundo Platão, a união da alma espiritual com o corpo é extrínseca, até violenta. A alma não
encontra no corpo o seu complemento, o seu instrumento adequado. Mas a alma está no corpo como
num cárcere, o intelecto é impedido pelo sentido da visão das idéias, que devem ser trabalhosamente
relembradas. E diga-se o mesmo da vontade a respeito das tendências. E, apenas mediante uma
disciplina ascética do corpo, que o mortifica inteiramente, e mediante a morte libertadora, que
desvencilha para sempre a alma do corpo, o homem realiza a sua verdadeira natureza: a contemplação
intuitiva do mundo ideal.

O Mundo

O mundo material, o cosmos platônico, resulta da síntese de dois princípios opostos, as idéias e a
matéria. O Demiurgo plasma o caos da matéria no modelo das idéias eternas, introduzindo no caos a
alma, princípio de movimento e de ordem. O mundo, pois, está entre o ser (idéia) e o não-ser (matéria),
e é o devir ordenado, como o adequado conhecimento sensível está entre o saber e o não-saber, e é a
opinião verdadeira. Conforme a cosmologia pampsiquista platônica, haveria, antes de tudo, uma alma do
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mundo e, depois, partes da alma, dependentes e inferiores, a saber, as almas dos astros, dos homens,
etc.
O dualismo dos elementos constitutivos do mundo material resulta do ser e do não-ser, da ordem e da
desordem, do bem e do mal, que aparecem no mundo. Da idéia - ser, verdade, bondade, beleza -
depende tudo quanto há de positivo, de racional no vir-a-ser da experiência. Da matéria - indeterminada,
informe, mutável, irracional, passiva, espacial - depende, ao contrário, tudo que há de negativo na
experiência.
Consoante a astronomia platônica, o mundo, o universo sensível, são esféricos. A terra está no centro,
em forma de esfera e, ao redor, os astros, as estrelas e os planetas, cravados em esferas ou anéis
rodantes, transparentes, explicando-se deste modo o movimento circular deles.
No seu conjunto, o mundo físico percorre uma grande evolução, um ciclo de dez mil anos, não no sentido
do progresso, mas no da decadência, terminados os quais, chegado o grande ano do mundo, tudo
recomeça de novo. É a clássica concepção grega do eterno retorno, conexa ao clássico dualismo grego,
que domina também a grande concepção platônica.

Moral

Segundo a psicologia platônica, a natureza do homem é racional, e, por conseqüência, na razão realiza o
homem a sua humanidade: a ação racional realiza o sumo bem, que é, ao mesmo tempo, felicidade e
virtude. Entretanto, esta natureza racional do homem encontra no corpo não um instrumento, mas um
obstáculo - que Platão explica mediante um dualismo filosófico-religioso de alma e de corpo: o intelecto
encontra um obstáculo nos sentidos, a vontade no impulso, e assim por diante. Então a realização da
natureza humana não consiste em uma disciplina racional da sensibilidade, mas na sua final supressão,
na separação da alma do corpo, na morte. Agir moralmente é agir racionalmente, e agir racionalmente é
filosofar, e filosofar é suprimir o sensível, morrer aos sentidos, ao corpo, ao mundo, para o espírito, o
inteligível, a idéia.
Em todo caso, visto que a alma humana racional se acha, de fato, neste mundo, unida ao corpo e aos
sentidos, deve principiar a sua vida moral sujeitando o corpo ao espírito, para impedir que o primeiro seja
obstáculo ao segundo, à espera de que a morte solte definitivamente a alma dos laços corpóreos.
Noutras palavras, para que se realize a sabedoria, a contemplação, a filosofia, a virtude suma, a única
virtude verdadeiramente humana e racional, é necessário que a alma racional domine, antes de tudo, a
alma concupiscível, derivando daí a virtude da temperança, e domine também a alma irascível, donde a
virtude da fortaleza. Tal harmônica distribuição de atividade na alma conforme a razão constituiria, pois,
a justiça, virtude fundamental, segundo Platão, juntamente com a sapiência, embora a esta naturalmente
inferior. Temos, destarte, uma classificação, uma dedução das famosas quatro virtudes naturais,
chamadas depois cardeais - prudência, fortaleza, temperança, justiça - sobre a base da metafísica
platônica da alma.
Quanto ao destino das almas depois da morte, eis o pensamento de Platão: em geral, o destino da alma
depende da sua filosofia, da razão; em especial, depende da religião, dos mistérios órfico-dionisíacos. Em
geral, distingue ele três categorias de alma:
1. As que cometeram pecados inexpiáveis, condenadas eternamente;
2. As que cometeram pecados expiáveis;
3. As que viveram conforme à justiça. As almas destas últimas duas categorias nascem de novo,
encarnam-se de novo, para receber a pena ou o prêmio merecidos. Segundo o pensamento que lemos no
Fédon, seria mister acrescentar uma quarta categoria de almas, as dos filósofos, videntes de idéias,
libertados da vida temporal para sempre.

A Política

Os escritos em que Platão trata especificamente do problema da política, são a República, o Político e as
Leis. Na República, a obra fundamental de Platão sobre o assunto, traça o seu estado ideal, o reino do
espírito, da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.
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Qual é, pois, a justificação da sociedade e do estado? Platão acha-a na própria natureza humana,
porquanto cada homem precisa do auxílio material e moral dos outros. Desta variedade de necessidades
humanas origina-se a divisão do trabalho e, por conseqüência, a distinção em classes, em castas, que
representam um desenvolvimento social e uma sistematização estável da divisão do trabalho no âmbito
de um estado. A essência do estado seria então, não uma sociedade de indivíduos semelhantes e iguais,
mas dessemelhantes e desiguais. Tal especificação e concretização da divisão do trabalho seria
representada pela instituição da escravidão; tal instituição, consoante Platão, é necessária porquanto os
trabalhos materiais, servis, são incompatíveis com a condição de um homem livre em geral.
Segundo Platão, o estado ideal deveria ser dividido em classes sociais. Três são, pois, estas classes: a
dos filósofos, a dos guerreiros, a dos produtores, as quais, no organismo do estado, corresponderiam
respectivamente às almas racional, irascível e concupiscível no organismo humano. À classe dos filósofos
cabe dirigir a república. Com efeito, contemplam eles o mundo das idéias, conhecem a realidade das
coisas, a ordem ideal do mundo e, por conseguinte, a ordem da sociedade humana, e estão, portanto, à
altura de orientar racionalmente o homem e a sociedade para o fim verdadeiro. Tal atividade política
constitui um dever para o filósofo, não, porém, o fim supremo, pois este fim supremo é unicamente a
contemplação das idéias.
À classe dos guerreiros cabe a defesa interna e externa do estado, de conformidade com a ordem
estabelecida pelos filósofos, dos quais e juntamente com os quais, os guerreiros receberam a educação.
Os guerreiros representam a força a serviço do direito, representado pelos filósofos.
À classe dos produtores, enfim, - agricultores e artesãos - submetida às duas precedentes, cabe a
conservação econômica do estado, e, consequentemente, também das outras duas classes, inteiramente
entregues à conservação moral e física do estado. Na hierarquia das classes, a dos trabalhadores ocupa o
ínfimo lugar, pelo desprezo com que era considerado por Platão - e pelos gregos em geral - o trabalho
material.
Na concepção ideal, espiritual, ética, ascética do estado platônico, pode causar impressão, à primeira
vista, o comunismo dos bens, das mulheres e dos filhos, que Platão propugna para as classes superiores.
Entretanto, Platão foi levado a esta concepção política - tornada depois sinônimo de imanentismo,
materialismo, ateísmo - não certamente por estes motivos, mas pela grande importância e função moral
por ele atribuída ao estado, como veículo dos valores transcendentais da Idéia. Tinha ele compreendido
bem que os interesses particulares, privados, econômicos e, especialmente, domésticos, estão
efetivamente em contraste com os interesses coletivos, sociais, estatais, sendo estes naturalmente
superiores àqueles - eticamente considerados. E não hesita em sacrificar totalmente os interesses
inferiores aos superiores, a riqueza, a família, o indivíduo ao estado, porquanto representa precisamente
- consoante seu pensamento - um altíssimo valor moral terreno, político-religioso, como única e total
expressão da eticidade transcendente.
Se a natureza do estado é, essencialmente, a de organismo ético-transcendente, a sua finalidade
primordial é pedagógico-espiritual; a educação deve, por isso, estar substancialmente nas mãos do
estado. O estado deve, então, promover, antes de tudo, o bem espiritual dos cidadãos, educá-los para a
virtude, e ocupar-se com o seu bem estar material apenas secundária e instrumentalmente. Platão tende
a desvalorizar a grandeza militar e comercial, a dominação e a riqueza, idolatrando a grandeza moral. O
grande, o verdadeiro político não é - diz Platão - o homem prático e empírico, mas o sábio, o pensador;
não realiza tanto as obras exteriores, mas, sobretudo, se preocupa com espiritualizar os homens. Desta
maneira é concebido o estado educador de homens virtuosos, segundo as virtudes que se referem a cada
classe, respectivamente. Esta educação é dispensada essencialmente às classes superiores -
especialmente aos filósofos, a quem cabem as virtudes mais elevadas, e, portanto, a direção da
república. Ao contrário, o estado em nada se interessa - ao menos positivamente - pelo povo, pelo vulgo,
pela plebe, cuja formação é inteiramente material e subordinada, consistindo sua virtude apenas na
obediência, visto a alma concupiscível estar sujeita à alma racional.
A educação das classes superiores importa, fundamentalmente, música e ginástica. A música -
abrangendo também a poesia, a história, etc., e, em geral, todas as atividades presididas pelas Musas -
é, todavia, cultivada apenas para fins práticos e morais. Deveria ela equilibrar, com a sua natureza gentil
e civilizadora, a ação oposta, fortificadora, da ginástica. Platão reconhece a importância da ginástica, mas
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não passa de uma importância instrumental e parcial, pois o prevalecer da cultura física do corpo
torna os homens grosseiros e materiais. Daí a sua aversão ao culto idolátrico dos exercícios físicos, que
foi um dos indícios da decadência grega.

A Religião e a Arte

A idéia do Bem seria o centro da religião platônica. Seu culto essencial é representado pela ciência e,
portanto, pela virtude que deriva necessariamente da ciência. Ao lado, e subordinadas a esta espécie de
Deus supremo, estão as demais idéias, denominadas por Platão, deuses eternos. Entretanto, este
absoluto - o Bem e as idéias - embora transcendente, espiritual e ético, não pode tornar-se objeto de
religião, nem sequer da religião assim chamada natural, dadas a sua impersonalidades e inatividade a
respeito do mundo.
Quanto à avaliação da religião positiva, Platão hostiliza o antromorfismo, até querer banidos de seu
estado ideal os poetas, inclusive Homero, pelos mitos fantásticos e imorais, narrados em torno dos
deuses e dos heróis. Apesar de repelir os deuses da mitologia popular e poética, aceita francamente o
politeísmo. É um politeísmo estranho, cujas divindades são os astros e o cosmo, animados e racionais, os
assim chamados deuses visíveis, subordinados ao Demiurgo, bem como à idéia do Bem e às outras
idéias. Platão pode, pois, conservar - reformada e purificada - a religião helênica, como religião do seu
estado ideal.
As doutrinas estéticas de Platão são algo oscilantes entre uma valorização e uma desvalorização da arte.
Em todo caso, no conjunto do seu pensamento, em oposição ao seu gênio e ao gênio artístico grego,
prevalece a desvalorização por dois motivos, teorético um, prático outro. O motivo teorético é que a arte
resultaria como cópia de uma cópia: cópia do mundo empírico, que é já uma cópia do mundo ideal; cópia
não de essências, como a ciência, mas de fenômenos. Por conseqüência, a arte deveria ser,
gnosiologicamente, inferior à ciência. O motivo prático é que a arte - dada esta sua inferior natureza
teorética, impura fonte gnosiológica - torna-se outro tanto danosa no campo moral. Atuando cegamente
sobre o sentimento, a arte nos atrai para o verdadeiro, como para o falso, para o bem como para o mal.
Seja como for, encontramos em Platão uma tentativa de valorização da arte em si, sendo considerada a
arte como uma espécie de loucura divina, de mania, semelhante à religião e ao amor, ou seja, uma
espécie de revelação superior. A arte, pois - como o amor, que tem por objeto a Beleza eterna e os graus
que levam até ela - deveria ser um itinerário especial do espírito para o Absoluto e o inteligível, algo
como que uma filosofia, porquanto deveria atingir intuitivamente, encarnada em formas sensíveis, aquele
mesmo ideal inteligível que a filosofia atinge abstratamente, na sua pureza lógica, conceptual.

A Academia

A escola filosófica fundada por Platão, a Academia, sobreviveu-lhe por quase um milênio, até o VI século
d.C. Costuma-se dividi-la - cronologicamente e logicamente - em antiga, média e nova. A antiga
academia dura até o ano de 260 a.C., mais ou menos, isto é, quase um século. É governada por
discípulos, reitores, sucessores de Platão. A ela pertencem homens insignes e de grande doutrina. Vai-se
acentuando a importância da experiência, segundo os interesses do último Platão, como também uma
tendência para uma sempre maior sistematização do pensamento platônico, provavelmente também pela
influência de Aristóteles .
Segue-se na média academia, que toma uma orientação cética, sobretudo graças a Carnéades (213-128
a.C.). Finalmente, a nova academia volta ao antigo dogmatismo e, depois, orienta-se para o ecletismo,
prevalecendo simpatias pitagóricas. Chegamos assim ao princípio da era vulgar. No entanto, a academia
platônica sobreviverá ainda e tomará uma última forma e feição com o neoplatonismo. É este o último
esforço grandioso do pensamento grego para resolver o problema filosófico, desenvolvendo o dualismo
no panteísmo emanatista, e valorizando o elemento religioso positivo, que Platão já tinha valorizado no
mito.
59
Para Entender Platão

Platão, nascido em 428 a.C., é o primeiro grande filósofo da tradição ocidental a deixar uma obra escrita
considerável. Todavia, a obra de Platão só pode ser entendida em função de outros pensamentos,
anteriores e contemporâneos - de saída, o pensamento de seu mestre Sócrates, como também o
pensamento dos filósofos anteriores, precisamente denominados pré-socráticos.
Tratemos, inicialmente, de evocar Pitágoras de Samos, que viveu no século V antes de nossa era e que
sabemos ter sido um ilustre matemático. Na realidade, sua matemática desemboca numa metafísica, já
que Pitágoras acredita que os números são o princípio e a chave de todo o universo; assim como a
natureza do som é função do comprimento da corda que vibra, as aparências coloridas do universo,
infinitamente diversas, dissimulam relações numéricas que constituem o fundo das coisas: idéia capital,
que não só reencontramos em Platão, mas que está na origem da ciência moderna. Pitágoras (que teria
inventado a palavra filosofia, amor à sabedoria), também é um místico, fundador de sociedades
iniciáticas que visam à salvação de seus membros. A doutrina pitagórica da salvação está muito próxima
dos mistérios do orfismo. Os pitagóricos acreditam na metempsicose. A alma, como punição de faltas
passadas, torna-se prisioneira de um corpo (soma = sema; corpo = túmulo). A encarnação é tão
somente um encarceramento provisório para a alma. A morte anuncia o renascimento num outro corpo
até que a alma, simultaneamente purificada pela virtude e pela prática de ritos iniciáticos, mereça ser
finalmente libertada de toda materialização.
Muitas outras doutrinas dessa época tentam explicar o mundo. Empédocles vê na matéria quatro
elementos (terra, água, ar e fogo), enquanto o ódio que dissocia e o amor que unifica seriam os
princípios motores do universo. Anaxágoras, que foi professor de Péricles, acha que os elementos
constitutivos do mundo são ordenados por uma Inteligência cósmica, o Nous.
Duas doutrinas se opõem radicalmente entre si. Para Heráclito de Éfeso, tudo muda infinitivamente.
"Planta rei", tudo flui: a morte sucede à vida, a noite ao dia, a vigília ao sono. "Não nos banhamos duas
vezes no mesmo rio". O fluxo que faz do universo uma torrente é constantemente produzido e destruído
por um Fogo cósmico, segundo um ritmo regular. A esta filosofia da mobilidade universal se opõem
Parmênides e seu discípulo Zenão de Eléia: para eles, a mobilidade não passa de uma ilusão que engana
nossos sentidos; o real é o Ser único, imóvel, eterno. "O Ser é, o não-ser não é"; o não-ser é a mudança
(mudar é deixar de ser o que se é para ser o que não se é). Demócrito tenta conciliar as duas doutrinas
por intermédio de sua filosofia de átomos, elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas.
Diremos uma palavra sobre os sofistas, cujo ceticismo é engendrado pela multiplicidade de doutrinas
contraditórias, pelo abuso da retórica (um orador hábil pode demonstrar o que quiser) e, de um modo
geral, pelo incremento do individualismo e decadência dos costumes após Péricles.
Um dos mais célebres, Protágoras de Abdera, dizia, segundo o testemunho de Platão, que "o homem é a
medida de todas as coisas". Em outras palavras: não existe verdade absoluta, mas tão somente opiniões
relativas ao homem (este vinho, delicioso para o amador, é amargo para o enfermo).
Platão, no entanto, só reencontra a filosofia a partir de preocupações de caráter político. É um jovem
aristocrata que une aos seus dons intelectuais e físicos (duas vezes coroado nos jogos atléticos nacionais,
é belo e vigoroso: apelidam-no "Platão" em virtude de seus ombros largos), o nascimento mais
prestigioso: sua mãe descendia de Sólon, seus ancestrais paternos, do último rei de Atenas. Estava
destinado, portanto, a uma brilhante carreira política. Mas Atenas, que por ocasião do nascimento de
Platão se encontra no apogeu - com inigualável poder marítimo - , esboroa-se na época em que Platão
atinge a idade adulta. Platão tinha quatro anos quando começaram as guerras do Peloponeso e trinta e
um quando eles terminaram, com a capitulação de Atenas. A destruição da frota, a peste, o arrasamento
dos famosos muros (uniam a cidade ao Pireu) pelos esparciatas vencedores, assinalam a importância da
catástrofe. Platão vai sonhar com a reconstrução de uma cidade, mas uma cidade cuja potência é antes
moral e espiritual do que material, uma cidade que seja a encarnação da Justiça.
Para compreender isto, recordemos o acontecimento fundamental da juventude de Platão, seu encontro
com Sócrates. Sócrates tem sessenta e três anos quando, em 407, Platão a ele se une. Alain falou a
propósito desse "choque dos contrários": Platão, aristocrata jovem e belo, torna-se discípulo de um
cidadão de origem modesta, velho e muito feio (seus olhos salientes e seu nariz achatado são célebres).
60
E isto é significativo e simbólico. A verdade e a justiça (das quais Sócrates será o símbolo) não
possuem bom aspecto, pertencem a um mundo que não o das aparências. Na Atenas vencida, o jovem
Platão é convocado por parentes e amigos a participar do governo autoritário dos Trinta; ele se retrai,
porém, e constata que os Trinta acumulam injustiças e violências. Devemos agora, portanto, caracterizar
os grandes traços da filosofia de Sócrates:
1. Sócrates não pretende, como Empédocles ou Heráclito, elaborar uma cosmologia; segundo ele, deve-
se deixar aos deuses o cuidado de se ocupar com o universo; devemos nos interessar, de preferência,
por aquilo que nos concerne diretamente. "Conhece-te a ti mesmo". Esta máxima gravada no frontão do
templo de Delfos, é a palavra-chave do humanismo socrático.
2. Sócrates, todavia, não pretende ensinar coisa alguma sobre a natureza humana; não quer nos
comunicar um saber que não possuiríamos. Ajuda-nos tão somente a refletir, isto é, a tomar consciência
dos nossos próprios pensamentos, dos problemas que eles colocam. Muitas vezes, ele se comparava à
sua mãe, que era parteira. Nada ensinava e limitava-se a partejar os espíritos, ajudá-los a trazer à luz o
que já trazem em si mesmos. Tal é a maiêutica socrática.
3. Ao mesmo tempo que convida o interlocutor a tomar consciência de seu próprio pensamento, Sócrates
fá-lo compreender que, na verdade, ignora o que acreditava saber. Tal é a ironia, que, ao pé da letra,
significa a arte de interrogar. Sócrates, de fato, faz perguntas e sempre dá a impressão de buscar uma
lição no interlocutor. Aborda com humildade fingida os sofistas inflados de falso-saber. E as perguntas
feitas por Sócrates levam o interlocutor a descobrir as contradições de seus pensamentos e a
profundidade de sua ignorância.
4. Na realidade, se Sócrates é o primeiro a reconhecer sua própria ignorância, ele funda todas as suas
esperanças na verdade tão somente. Seu método é, antes de tudo, um esforço de definição. Por
exemplo: partindo dos aspectos os mais diversos da justiça, ele procura depreender o conceito de justiça,
a idéia geral que contém os caracteres constitutivos da justiça. Sócrates possui tal confiança no saber e
na verdade que está firmemente persuadido que os injustos e os maus não passam de ignorantes. Se
conhecessem verdadeiramente a justiça, eles a praticariam, pois ninguém é "maus voluntariamente".
Segundo sua perspectiva racionalista, só há salvação pelo saber. O verdadeiro ponto de partida da
filosofia de Platão é a morte de Sócrates em 399 a.C. Acontecimento político: é o partido popular, de
novo no poder, que, por iniciativa de um certo Anytos (filho de um rico empreiteiro e antigo amigo dos
Trinta, aos quais traiu para assumir a liderança do outro partido), condena Sócrates a beber a cicuta
como corruptor da juventude e adversário dos deuses da cidade. Condenação injusta e escandalosa que
exprime uma incompatibilidade trágica entre o poder político e a sabedoria do filósofo. Daí as resoluções
que Platão nos apresenta na sétima carta. "Reconheço que todos os Estados atuais, sem exceção, são
mal governados...É somente pela filosofia que se pode discernir todas as formas de justiça política e
individual". Talvez a solução seja a evasão do filósofo que "foge daqui debaixo" para se refugiar na
meditação pura (tal é o filósofo cujo retrato nos é traçado no Teeteto; filósofo puramente contemplativo
que nem sabe onde se reúne o Conselho e cujo corpo está apenas presente na Cidade). Mas uma outra
solução seria o próprio filósofo encarregar-se do governo da cidade (a Justiça reinará, diz Platão, no dia
em que os filósofos forem reis ou no dia em que os reis forem filósofos).
Tal é o sonho que Platão tentaria realizar em Siracusa. Encontrara aí um discípulo estusiasta na pessoa
de Dion, cunhado do novo tirano, Dionísio I. Este último, todavia, não se revelou muito adequado para se
tornar o rei filósofo que Platão quisera fazer dele. Dionísio I prendeu Platão e, na ilha de Egina, fê-lo
expor no mercado de escravos para ser vendido. Resgatado por Anikeris de Cítera por vinte minas, Platão
retornou a Atenas.
É então que ele funda, aos quarenta anos, uma escola de filosofia à portas da cidade, perto de Colona,
nos jardins de Academos. Devemos representar a Academia como uma espécie de Universidade onde se
ensina matemáticas (não entra aqui quem não for geômetra), filosofia e a arte de governar as cidades
segundo a justiça. O ensino esotérico (isto é, secreto, reservado aos iniciados) dado por Platão a seus
discípulos só nos é conhecido atualmente pelas críticas de Aristóteles; restam-nos, porém, a obra escrita
de Platão, seus diálogos célebres tais como o Gógias, o Fedro, o Fédon, o Banquete, a República, o
Teeteto, o Sofista, o Político, o Parmênides, o Timeu, as Leis. Esses trabalhos esotéricos de Platão
constituem a mais pura jóia da filosofia de todos os tempos. Platão morre em 348 a.C.
61
Se quiséssemos resumir a filosofia de Platão em uma palavra, poderíamos dizer que ela é
fundamentalmente um dualismo. Platão, de certo modo, reconcilia Parmênides e Heráclito ao admitir a
existência de dois mundos: o mundo das idéias imutáveis, eternas, e o mundo das aparências sensíveis,
perpetuamente mutáveis. Acrescenta-se que o mundo das Idéias é, no fundo, o único mundo verdadeiro.
Platão concede ao mundo sensível uma certa realidade, mas ele só existe porque participa do mundo das
idéias do qual é uma cópia ou, mais exatamente, uma sombra. Um belo efebo, por exemplo, só é belo
porque participa da Beleza em si.
Podemos mostrar de duas maneiras que a intuição fundamental de Platão se prende ao ensinamento de
Sócrates:
a) Recordemos o ensinamento socrático sobre a definição, sobre o conceito; para que haja, por exemplo,
como Sócrates o estabeleceu, uma definição do homem em geral, uma essência universal do homem, é
preciso que exista algo além dos homens particulares e diferentes entre si que nós reconhecemos, um
outro mundo onde exista o Homem em si, a Justiça em si, isto é, as Idéias. Em suma, Platão dá realidade
ao conceito socrático. A idéia platônica é uma promoção ontológica do conceito socrático.
b) Mas é sobretudo a vida e a morte de Sócrates que suscitam o idealismo platônico. Como diz muito
bem André Bonnard, a cidade que condena Sócrates à morte, a cidade que vê triunfar a injustiça e a
mentira é "um mundo ao inverso, um mundo de pernas para o ar". Desse modo, o idealismo platônico
"traz a marca de um grave traumatismo. A morte de Sócrates feriu-o mortalmente. É no mundo invisível
que a justiça e a verdade triunfam". E Sócrates, pela tranqüilidade quase contente de sua morte, atesta a
existência desse mundo invisível, mostra que, para ele, as Idéias contam mais que a vida.
Os temas principais do platonismo podem ligar-se à distinção entre o mundo das Idéias eternas e o
mundo das aparências mutáveis. A ascensão dialética, por exemplo, é o itinerário pelo qual nos levamos
do mundo sensível ao mundo das Idéias: no mais baixo grau, as simples impressões sensíveis (eikasia),
um pouco mais acima, as opiniões estabelecidas (pistis), em seguida, o pensamento discursivo (dianoia)
que constrói o raciocínio partindo de figuras, como fazem os geômetras, e, finalmente, no mais alto grau,
o pensamento intuitivo, a iluminação direta pela Idéia (noesis).
A teoria platônica da alma está ligada à doutrina das Idéias. As almas outrora contemplaram às Idéias à
vontade. Depois, por punição de alguma falta, segundo a doutrina órfico-pitagórica, elas foram
aprisionadas no corpo. Todavia, elas continuam capazes de reminiscência, uma vez que guardaram uma
lembrança obscura - que, no entanto, pode ser redespertada - de seu antigo contato com as Idéias.
Assim, o jovem escravo que Sócrates interroga no Mênon descobre propriedades geométricas quase sem
ajuda. Platão pensa igualmente que a emoção amorosa, a emoção que rebata a alma diante da Beleza -
de todas as idéias a mais fácil de reconhecer - é o meio de uma conversão dialética: o amor por um belo
corpo, em seguida pelos belos corpos, depois pelas belas almas e pelas belas virtudes conduz à
redescoberta do Belo em si (leia-se o Banquete).
À doutrina das Idéias também se correlaciona a esperança da imortalidade da alma, "esse belo risco a ser
corrido". Uma vez que a alma é feita para as Idéias - visto que sua união com o corpo é acidental e
monstruosa - por que não seria eterna como as Idéias que ela tem por vocação contemplar?
Do mesmo modo, uma vez que as Idéias constituem absolutos referenciais - não o homem, mas Deus é
que é a medida de todas as coisas, objeta Platão a Protágoras - é preciso renunciar do oportunismo e à
imoralidade dos sofistas. Platão sustenta contra Cálicles (no Górgias), contra Trasímaco e Gláucon (na
República) o valor absoluto da Idéia de justiça. A justiça é a hierarquia harmônica das três partes da
alma - a sensibilidade, a vontade e o espírito. Ela também se encontra em cada uma das virtudes
particulares: a temperança nada mais é que uma sensibilidade regulamentada segundo a justiça; a
coragem é a justiça da vontade e a sabedoria é a justiça do espírito.
A justiça política é uma harmonia semelhante à justiça do indivíduo, mas "escritas em caracteres mais
fortes" na escala do Estado... A política de Platão distingue, à imagem de todas as sociedades indo-
européias primitivas, três classes sociais: os artesãos dos quais a Justiça exige a temperança, os militares
nos quais a Justiça será coragem, os chefes cuja Justiça é, antes de tudo, Sabedoria e que são filósofos
longamente instruídos. Entre todas as formas de governo, Platão prefere a aristocracia e, nele, é preciso
tomar a palavra em seu sentido etimológico: governo dos melhores.
Finalmente, podemos ligar à distinção dos dois mundos algumas observações sobre o mito platônico:
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a) O mito, procedimento pedagógico paradoxal, traduz uma espécie de narração poética legendária,
isto é, numa linguagem de imagens uma verdade filosófica estranha ao mundo sensível! É o mundo das
Idéias eternas transposto em imagens sensíveis, sugerido pelo mundo das imagens!
b) O mito é o único meio de exposição para os problemas de origem (acontecimentos sem testemunhos)
e dos fins últimos (que ainda não existem!), pois a inteligência abstrata só compreende o eterno e não
pode bastar para evocar o que pertence à história.
c) O mito indica que o pensamento filosófico vem se abeberar nas fontes das crenças religiosas
tradicionais.
d) Finalmente, o mito ressalta as relações que, segundo Platão, existem entre a poesia e a verdade. A
poesia mítica é uma mensagem metafísica, o belo não é senão o "esplendor do verdadeiro" e a arte está
em segundo lugar em relação à filosofia.

Aristóteles

A Vida e as Obras

Este grande filósofo grego, filho de Nicômaco, médico de Amintas, rei da Macedônia, nasceu em Estagira,
colônia grega da Trácia, no litoral setentrional do mar Egeu, em 384 a.C. Aos dezoito anos, em 367, foi
para Atenas e ingressou na academia platônica, onde ficou por vinte anos, até à morte do Mestre. Nesse
período estudou também os filósofos pré-platônicos, que lhe foram úteis na construção do seu grande
sistema.
Em 343 foi convidado pelo Rei Filipe para a corte de Macedônia, como preceptor do Príncipe Alexandre,
então jovem de treze anos. Aí ficou três anos, até à famosa expedição asiática, conseguindo um êxito na
sua missão educativo-política, que Platão não conseguiu, por certo, em Siracusa. De volta a Atenas, em
335, treze anos depois da morte de Platão, Aristóteles fundava, perto do templo de Apolo Lício, a sua
escola. Daí o nome de Liceu dado à sua escola, também chamada peripatética devido ao costume de dar
lições, em amena palestra, passeando nos umbrosos caminhos do ginásio de Apolo. Esta escola seria a
grande rival e a verdadeira herdeira da velha e gloriosa academia platônica. Morto Alexandre em 323,
desfez-se politicamente o seu grande império e despertaram-se em Atenas os desejos de independência,
estourando uma reação nacional, chefiada por Demóstenes. Aristóteles, malvisto pelos atenienses, foi
acusado de ateísmo. Preveniu ele a condenação, retirando-se voluntariamente para Eubéia, Aristóteles
faleceu, após enfermidade, no ano seguinte, no verão de 322. Tinha pouco mais de 60 anos de idade. A
respeito do caráter de Aristóteles, inteiramente recolhido na elaboração crítica do seu sistema filosófico,
sem se deixar distrair por motivos práticos ou sentimentais, temos naturalmente muito menos a revelar
do que em torno do caráter de Platão, em que, ao contrário, os motivos políticos, éticos, estéticos e
místicos tiveram grande influência. Do diferente caráter dos dois filósofos, dependem também as
vicissitudes exteriores das duas vidas, mais uniforme e linear a de Aristóteles, variada e romanesca a de
Platão. Aristóteles foi essencialmente um homem de cultura, de estudo, de pesquisas, de pensamento,
que se foi isolando da vida prática, social e política, para se dedicar à investigação científica. A atividade
literária de Aristóteles foi vasta e intensa, como a sua cultura e seu gênio universal. "Assimilou Aristóteles
escreve magistralmente Leonel Franca todos os conhecimentos anteriores e acrescentou-lhes o trabalho
próprio, fruto de muita observação e de profundas meditações. Escreveu sobre todas as ciências,
constituindo algumas desde os primeiros fundamentos, organizando outras em corpo coerente de
doutrinas e sobre todas espalhando as luzes de sua admirável inteligência. Não lhe faltou nenhum dos
dotes e requisitos que constituem o verdadeiro filósofo: profundidade e firmeza de inteligência, agudeza
de penetração, vigor de raciocínio, poder admirável de síntese, faculdade de criação e invenção aliados a
uma vasta erudição histórica e universalidade de conhecimentos científicos. O grande estagirita explorou
o mundo do pensamento em todas as suas direções. Pelo elenco dos principais escritos que dele ainda
nos restam, poder-se-á avaliar a sua prodigiosa atividade literária". A primeira edição completa das obras
de Aristóteles é a de Andronico de Rodes pela metade do último século a.C. substancialmente autêntica,
salvo uns apócrifos e umas interpolações. Aqui classificamos as obras doutrinais de Aristóteles do modo
seguinte, tendo presente a edição de Andronico de Rodes.
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I. Escritos lógicos: cujo conjunto foi denominado Órganon mais tarde, não por Aristóteles. O nome,
entretanto, corresponde muito bem à intenção do autor, que considerava a lógica instrumento da ciência.
II. Escritos sobre a física: abrangendo a hodierna cosmologia e a antropologia, e pertencentes à
filosofia teorética, juntamente com a metafísica.
III. Escritos metafísicos: a Metafísica famosa, em catorze livros. É uma compilação feita depois da
morte de Aristóteles mediante seus apontamentos manuscritos, referentes à metafísica geral e à teologia.
O nome de metafísica é devido ao lugar que ela ocupa na coleção de Andrônico, que a colocou depois da
física.
IV. Escritos morais e políticos: a Ética a Nicômaco, em dez livros, provavelmente publicada por
Nicômaco, seu filho, ao qual é dedicada; a Ética a Eudemo, inacabada, refazimento da ética de
Aristóteles, devido a Eudemo; a Grande Ética, compêndio das duas precedentes, em especial da
segunda; a Política, em oito livros, incompleta.
V. Escritos retóricos e poéticos: a Retórica, em três livros; a Poética, em dois livros, que, no seu
estado atual, é apenas uma parte da obra de Aristóteles. As obras de Aristóteles as doutrinas que nos
restam - manifestam um grande rigor científico, sem enfeites míticos ou poéticos, exposição e expressão
breve e aguda, clara e ordenada, perfeição maravilhosa da terminologia filosófica, de que foi ele o
criador.

O Pensamento: A Gnosiologia

Segundo Aristóteles, a filosofia é essencialmente teorética: deve decifrar o enigma do universo, em face
do qual a atitude inicial do espírito é o assombro do mistério. O seu problema fundamental é o problema
do ser, não o problema da vida. O objeto próprio da filosofia, em que está a solução do seu problema,
são as essências imutáveis e a razão última das coisas, isto é, o universal e o necessário, as formas e
suas relações. Entretanto, as formas são imanentes na experiência, nos indivíduos, de que constituem a
essência. A filosofia aristotélica é, portanto, conceptual como a de Platão mas parte da experiência; é
dedutiva, mas o ponto de partida da dedução é tirado - mediante o intelecto da experiência. A filosofia,
pois, segundo Aristóteles, dividir-se-ia em teorética, prática e poética, abrangendo, destarte, todo o saber
humano, racional. A teorética, por sua vez, divide-se em física, matemática e filosofia primeira (metafísica
e teologia); a filosofia prática divide-se em ética e política; a poética em estética e técnica. Aristóteles é o
criador da lógica, como ciência especial, sobre a base socrático-platônica; é denominada por ele analítica
e representa a metodologia científica. Trata Aristóteles os problemas lógicos e gnosiológicos no conjunto
daqueles escritos que tomaram mais tarde o nome de Órganon. Limitar-nos-emos mais especialmente
aos problemas gerais da lógica de Aristóteles, porque aí está a sua gnosiologia. Foi dito que, em geral, a
ciência, a filosofia - conforme Aristóteles, bem como segundo Platão - tem como objeto o universal e o
necessário; pois não pode haver ciência em torno do individual e do contingente, conhecidos
sensivelmente. Sob o ponto de vista metafísico, o objeto da ciência aristotélica é a forma, como idéia era
o objeto da ciência platônica. A ciência platônica e aristotélica são, portanto, ambas objetivas, realistas:
tudo que se pode aprender precede a sensação e é independente dela. No sentido estrito, a filosofia
aristotélica é dedução do particular pelo universal, explicação do condicionado mediante a condição,
porquanto o primeiro elemento depende do segundo. Também aqui se segue a ordem da realidade, onde
o fenômeno particular depende da lei universal e o efeito da causa. Objeto essencial da lógica aristotélica
é precisamente este processo de derivação ideal, que corresponde a uma derivação real. A lógica
aristotélica, portanto, bem como a platônica, é essencialmente dedutiva, demonstrativa, apodíctica. O
seu processo característico, clássico, é o silogismo. Os elementos primeiros, os princípios supremos, as
verdades evidentes, consoante Platão, são fruto de uma visão imediata, intuição intelectual, em relação
com a sua doutrina do contato imediato da alma com as idéias - reminiscência. Segundo Aristóteles,
entretanto, de cujo sistema é banida toda forma de inatismo, também os elementos primeiros do
conhecimento - conceito e juízos - devem ser, de um modo e de outro, tirados da experiência, da
representação sensível, cuja verdade imediata ele defende, porquanto os sentidos por si nunca nos
enganam. O erro começa de uma falsa elaboração dos dados dos sentidos: a sensação, como o conceito,
é sempre verdadeira. Por certo, metafisicamente, ontologicamente, o universal, o necessário, o
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inteligível, é anterior ao particular, ao contigente, ao sensível: mas, gnosiologicamente,
psicologicamente existe primeiro o particular, o contigente, o sensível, que constituem precisamente o
objeto próprio do nosso conhecimento sensível, que é o nosso primeiro conhecimento. Assim sendo,
compreende-se que Aristóteles, ao lado e em conseqüência da doutrina de dedução, seja constrangido a
elaborar, na lógica, uma doutrina da indução. Por certo, ela não está efetivamente acabada, mas pode-se
integrar logicamente segundo o espírito profundo da sua filosofia. Quanto aos elementos primeiros do
conhecimento racional, a saber, os conceitos, a coisa parece simples: a indução nada mais é que a
abstração do conceito, do inteligível, da representação sensível, isto é, a "desindividualização" do
universal do particular, em que o universal é imanente. A formação do conceito é, a posteriori, tirada da
experiência. Quanto ao juízo, entretanto, em que unicamente temos ou não temos a verdade, e que é o
elemento constitutivo da ciência, a coisa parece mais complicada. Como é que se formam os princípios da
demonstração, os juízos imediatamente evidentes, donde temos a ciência? Aristóteles reconhece que é
impossível uma indução completa, isto é, uma resenha de todos os casos os fenômenos particulares para
poder tirar com certeza absoluta leis universais abrangendo todas as essências. Então só resta possível
uma indução incompleta, mas certíssima, no sentido de que os elementos do juízo os conceitos são
tirados da experiência, a posteriori, seu nexo, porém, é a priori, analítico, colhido imediatamente pelo
intelecto humano mediante a sua evidência, necessidade objetiva.

Filosofia de Aristóteles

Partindo como Platão do mesmo problema acerca do valor objetivo dos conceitos, mas abandonando a
solução do mestre, Aristóteles constrói um sistema inteiramente original. Os caracteres desta grande
síntese são:
1. Observação fiel da natureza  Platão, idealista, rejeitara a experiência como fonte de conhecimento
certo. Aristóteles, mais positivo, toma sempre o fato como ponto de partida de suas teorias, buscando na
realidade um apoio sólido às suas mais elevadas especulações metafísicas.
2. Rigor no método  Depois de estudas as leis do pensamento, o processo dedutivo e indutivo aplica-
os, com rara habilidade, em todas as suas obras, substituindo à linguagem imaginosa e figurada de
Platão, em estilo lapidar e conciso e criando uma terminologia filosófica de precisão admirável. Pode
considerar-se como o autor da metodologia e tecnologia científicas. Geralmente, no estudo de uma
questão, Aristóteles procede por partes: a) começa a definir-lhe o objeto; b) passa a enumerar-lhes as
soluções históricas; c) propõe depois as dúvidas; d) indica, em seguida, a própria solução; e) refuta, por
último, as sentenças contrárias.
3. Unidade do conjunto  Sua vasta obra filosófica constitui um verdadeiro sistema, uma verdadeira
síntese. Todas as partes se compõem, se correspondem, se confirmam.

A Teologia

Objeto próprio da teologia é o primeiro motor imóvel, ato puro, o pensamento do pensamento, isto é,
Deus, a quem Aristóteles chega através de uma sólida demonstração, baseada sobre a imediata
experiência, indiscutível, realidade do vir-a-ser, da passagem da potência ao ato. Este vir-a-ser,
passagem da potência ao ato, requer finalmente um não-vir-a-ser, motor imóvel, um motor já em ato,
um ato puro enfim, pois, de outra forma teria que ser movido por sua vez. A necessidade deste primeiro
motor imóvel não é absolutamente excluída pela eternidade do vir-a-ser, do movimento, do mundo. Com
efeito, mesmo admitindo que o mundo seja eterno, isto é, que não tem princípio e fim no tempo,
enquanto é vir-a-ser, passagem da potência ao ato, fica eternamente inexplicável, contraditório, sem um
primeiro motor imóvel, origem extra-temporal, causa absoluta, razão metafísica de todo devir. Deus, o
real puro, é aquilo que move sem ser movido; a matéria, o possível puro, é aquilo que é movido, sem se
mover a si mesmo.
Da análise do conceito de Deus, concebido como primeiro motor imóvel, conquistado através do
precedente raciocínio, Aristóteles, pode deduzir logicamente a natureza essencial de Deus, concebido,
antes de tudo, como ato puro, e, consequentemente, como pensamento de si mesmo. Deus é
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unicamente pensamento, atividade teorética, no dizer de Aristóteles, enquanto qualquer outra
atividade teria fim extrínseco, incompatível com o ser perfeito, auto-suficiente. Se o agir, o querer têm
objeto diverso do sujeito agente e "querente", Deus não pode agir e querer, mas unicamente conhecer e
pensar, conhecer a si próprio e pensar em si mesmo. Deus é, portanto, pensamento de pensamento,
pensamento de si, que é pensamento puro. E nesta autocontemplação imutável e ativa, está a beatitude
divina.
Se Deus é mera atividade teorética, tendo como objeto unicamente a própria perfeição, não conhece o
mundo imperfeito, e menos ainda opera sobre ele. Deus não atua sobre o mundo, voltando-se para ele,
com o pensamento e a vontade; mas unicamente como o fim último, atraente, isto é, como causa final,
e, por conseqüência, e só assim, como causa eficiente e formal (exemplar). De Deus depende a ordem, a
vida, a racionalidade do mundo; ele, porém, não é criador, nem providência do mundo. Em Aristóteles o
pensamento grego conquista logicamente a transcendência de Deus; mas, no mesmo tempo, permanece
o dualismo, que vem anular aquele mesmo Absoluto a que logicamente chegara, para dar uma explicação
filosófica da relatividade do mundo pondo ao seu lado esta realidade independente dele.

A Moral

Aristóteles trata da moral em três Éticas, de que se falou quando das obras dele. Consoante sua doutrina
metafísica fundamental, todo ser tende necessariamente à realização da sua natureza, à atualização
plena da sua forma: e nisto está o seu fim, o seu bem, a sua felicidade, e, por conseqüência, a sua lei.
Visto ser a razão a essência característica do homem, realiza ele a sua natureza vivendo racionalmente e
senso disto consciente. E assim consegue ele a felicidade e a virtude, isto é, consegue a felicidade
mediante a virtude, que é precisamente uma atividade conforme à razão, isto é, uma atividade que
pressupõe o conhecimento racional. Logo, o fim do homem é a felicidade, a que é necessária à virtude, e
a esta é necessária a razão. A característica fundamental da moral aristotélica é, portanto, o
racionalismo, visto ser a virtude ação consciente segundo a razão, que exige o conhecimento absoluto,
metafísico, da natureza e do universo, natureza segundo a qual e na qual o homem deve operar.
As virtudes éticas, morais, não são mera atividade racional, como as virtudes intelectuais, teoréticas; mas
implicam, por natureza, um elemento sentimental, afetivo, passional, que deve ser governado pela razão,
e não pode, todavia, ser completamente resolvido na razão. A razão aristotélica governa, domina as
paixões, não as aniquila e destrói, como queria o ascetismo platônico. A virtude ética não é, pois, razão
pura, mas uma aplicação da razão; não é unicamente ciência, mas uma ação com ciência.
Uma doutrina aristotélica a respeito da virtude doutrina que teve muita doutrina prática, popular, embora
se apresente especulativamente assaz discutível é aquela pela qual a virtude é precisamente concebida
como um justo meio entre dois extremos, isto é, entre duas paixões opostas: porquanto o sentido
poderia esmagar a razão ou não lhe dar forças suficientes. Naturalmente, este justo meio, na ação de um
homem, não é abstrato, igual para todos e sempre; mas concreto, relativo a cada qual, e variável
conforme as circunstâncias, as diversas paixões predominantes dos vários indivíduos.
Pelo que diz respeito à virtude, tem, ao contrário, certamente, maior valor uma outra doutrina
aristotélica: precisamente a da virtude concebida como hábito racional. Se a virtude é,
fundamentalmente, uma atividade segundo a razão, mais precisamente é ela um hábito segundo a razão,
um costume moral, uma disposição constante, reta, da vontade, isto é, a virtude não é inata, como não é
inata a ciência; mas adquiri-se mediante a ação, a prática, o exercício e, uma vez adquirida, estabiliza-se,
mecaniza-se; torna-se quase uma segunda natureza e, logo, torna-se de fácil execução - como o vício.
Como já foi mencionado, Aristóteles distingue duas categorias fundamentais de virtudes: as éticas, que
constituem propriamente o objeto da moral, e as dianoéticas, que a transcendem. É uma distinção e uma
hierarquia, que têm uma importância essencial em relação a toda a filosofia e especialmente à moral. As
virtudes intelectuais, teoréticas, contemplativas, são superiores às virtudes éticas, práticas, ativas.
Noutras palavras, Aristóteles sustenta o primado do conhecimento, do intelecto, da filosofia, sobre a
ação, a vontade, a política.
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A Política

A política aristotélica é essencialmente unida à moral, porque o fim último do estado é a virtude, isto é, a
formação moral dos cidadãos e o conjunto dos meios necessários para isso. O estado é um organismo
moral, condição e complemento da atividade moral individual, e fundamento primeiro da suprema
atividade contemplativa. A política, contudo, é distinta da moral, porquanto esta tem como objetivo o
indivíduo, aquela a coletividade. A ética é a doutrina moral individual, a política é a doutrina moral social.
Desta ciência trata Aristóteles precisamente na Política, de que acima se falou.
O estado, então, é superior ao indivíduo, porquanto a coletividade é superior ao indivíduo, o bem comum
superior ao bem particular. Unicamente no estado efetua-se a satisfação de todas as necessidades, pois o
homem, sendo naturalmente animal social, político, não pode realizar a sua perfeição sem a sociedade do
estado.
Visto que o estado se compõe de uma comunidade de famílias, assim como estas se compõem de muitos
indivíduos, antes de tratar propriamente do estado será mister falar da família, que precede
cronologicamente o estado, como as partes precedem o todo. Segundo Aristóteles, a família compõe-se
de quatro elementos: os filhos, a mulher, os bens, os escravos; além, naturalmente, do chefe a que
pertence a direção da família. Deve ele guiar os filhos e as mulheres, em razão da imperfeição destes.
Deve fazer frutificar seus bens, porquanto a família, além de um fim educativo, tem também um fim
econômico. E, como ao estado, é-lhe essencial a propriedade, pois os homens têm necessidades
materiais. No entanto, para que a propriedade seja produtora, são necessários instrumentos inanimados
e animados; estes últimos seriam os escravos.
Aristóteles não nega a natureza humana ao escravo; mas constata que na sociedade são necessários
também os trabalhos materiais, que exigem indivíduos particulares, a que fica assim tirada fatalmente a
possibilidade de providenciar a cultura da alma, visto ser necessário, para tanto, tempo e liberdade, bem
como aptas qualidades espirituais, excluídas pelas próprias características qualidades materiais de tais
indivíduos. Daí a escravidão.
Vejamos, agora, o estado em particular. O estado surge, pelo fato de ser o homem um animal
naturalmente social, político. O estado provê, inicialmente, a satisfação daquelas necessidades materiais,
negativas e positivas, defesa e segurança, conservação e engrandecimento, de outro modo irrealizáveis.
Mas o seu fim essencial é espiritual, isto é, deve promover a virtude e, consequentemente, a felicidade
dos súditos mediante a ciência.
Compreende-se, então, como seja tarefa essencial do estado a educação, que deve desenvolver
harmônica e hierarquicamente todas as faculdades: antes de tudo as espirituais, intelectuais e,
subordinadamente, as materiais, físicas. O fim da educação é formar homens mediante as artes liberais,
importantíssimas a poesia e a música, e não máquinas, mediante um treinamento profissional. Eis porque
Aristóteles, como Platão, condena o estado que, ao invés de se preocupar com uma pacífica educação
científica e moral, visa a conquista e a guerra. E critica, dessa forma, a educação militar de Esparta, que
faz da guerra a tarefa precípua do estado, e põe a conquista acima da virtude, enquanto a guerra, como
o trabalho, são apenas meios para a paz e o lazer sapiente.
Não obstante a sua concepção ética do estado, Aristóteles, diversamente de Platão, salva o direito
privado, a propriedade particular e a família. O comunismo como resolução total dos indivíduos e dos
valores no estado é fantástico e irrealizável. O estado não é uma unidade substancial, e sim uma síntese
de indivíduos substancialmente distintos. Se se quiser a unidade absoluta, será mister reduzir o estado à
família e a família ao indivíduo; só este último possui aquela unidade substancial que falta aos dois
precedentes. Reconhece Aristóteles a divisão platônica das castas, e, precisamente, duas classes
reconhece: a dos homens livres, possuidores, isto é, a dos cidadãos e a dos escravos, dos trabalhadores,
sem direitos políticos.
Quanto à forma exterior do estado, Aristóteles distingue três principais: a monarquia, que é o governo de
um só, cujo caráter e valor estão na unidade, e cuja degeneração é a tirania; a aristocracia, que é o
governo de poucos, cujo caráter e valor estão na qualidade, e cuja degeneração é a oligarquia; a
democracia, que é o governo de muitos, cujo caráter e valor estão na liberdade, e cuja degeneração é a
demagogia. As preferências de Aristóteles vão para uma forma de república democrático-intelectual, a
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forma de governo clássica da Grécia, particularmente de Atenas. No entanto, com o seu profundo
realismo, reconhece Aristóteles que a melhor forma de governo não é abstrata, e sim concreta: deve ser
relativa, acomodada às situações históricas, às circunstâncias de um determinado povo. De qualquer
maneira a condição indispensável para uma boa constituição, é que o fim da atividade estatal deve ser o
bem comum e não a vantagem de quem governa despoticamente.

A Religião e a Arte

Com Aristóteles afirma-se o teísmo do ato puro. No entanto, este Deus, pelo seu efetivo isolamento do
mundo, que ele não conhece, não cria, não governa, não está em condições de se tornar objeto de
religião, mais do que as transcendentes idéias platônicas. E não fica nenhum outro objeto religioso.
Também Aristóteles, como Platão, se exclui filosoficamente o antropomorfismo, não exclui uma espécie
de politeísmo, e admite, ao lado do Ato Puro e a ele subordinado, os deuses astrais, isto é, admite que os
corpos celestes são animados por espíritos racionais. Entretanto, esses seres divinos não parecem e não
podem ter função religiosa e sem física.
Não obstante esta concepção filosófica da divindade, Aristóteles admite a religião positiva do povo, até
sem correção alguma. Explica e justifica a religião positiva, tradicional, mítica, como obra política para
moralizar o povo, e como fruto da tendência humana para as representações antropomórficas; e não diz
que ela teria um fundamento racional na verdade filosófica da existência da divindade, a que o homem
se teria facilmente elevado através do espetáculo da ordem celeste.
Aristóteles como Platão considera a arte como imitação, de conformidade com o fundamental realismo
grego. Não, porém, imitação de uma imitação, como é o fenômeno, o sensível, platônicos; e sim imitação
direta da própria idéia, do inteligível imanente no sensível, imitação da forma imanente na matéria. Na
arte, esse inteligível, universal é encarnado, concretizado num sensível, num particular e, destarte,
tornando intuitivo, graças ao artista. Por isso, Aristóteles considera a arte a poesia de Homero que tem
por conteúdo o universal, o imutável, ainda que encarnado fantasticamente num particular, como
superior à história e mais filosófica do que a história de Heródoto que tem como objeto o particular, o
mutável, seja embora real. O objeto da arte não é o que aconteceu uma vez como é o caso da história ,
mas o que por natureza deve, necessária e universalmente, acontecer. Deste seu conteúdo inteligível,
universal, depende a eficácia espiritual pedagógica, purificadora da arte.
Se bem que a arte seja imitação da realidade no seu elemento essencial, a forma, o inteligível, este
inteligível recebe como que uma nova vida através da fantasia criadora do artista, isto precisamente
porque o inteligível, o universal, deve ser encarnado, concretizado pelo artista num sensível, num
particular. As leis da obra de arte serão, portanto, além de imitação do universal verossimilhança e
necessidade coerência interior dos elementos da representação artística, íntimo sentimento do conteúdo,
evidência e vivacidade de expressão. A arte é, pois, produção mediante a imitação; e a diferença entre as
várias artes é estabelecida com base no objeto ou no instrumento de tal imitação.

A Metafísica

A metafísica aristotélica é "a ciência do ser como ser, ou dos princípios e das causas do ser e de seus
atributos essenciais". Ela abrange ainda o ser imóvel e incorpóreo, princípio dos movimentos e das
formas do mundo, bem como o mundo mutável e material, mas em seus aspectos universais e
necessários. Exporemos portanto, antes de tudo, as questões gerais da metafísica, para depois
chegarmos àquela que foi chamada, mais tarde, metafísica especial; tem esta como objeto o mundo que
vem-a-ser  natureza e homem  e culmina no que não pode vir-a-ser, isto é, Deus. Podem-se reduzir
fundamentalmente a quatro as questões gerais da metafísica aristotélica: potência e ato, matéria e
forma, particular e universal, movido e motor. A primeira e a última abraçam todo o ser, a segunda e a
terceira todo o ser em que está presente a matéria.
I. A doutrina da potência e do ato é fundamental na metafísica aristotélica: potência significa
possibilidade, capacidade de ser, não-ser atual; e ato significa realidade, perfeição, ser efetivo. Todo ser,
que não seja o Ser perfeitíssimo, é portanto uma síntese  um sínolo  de potência e de ato, em diversas
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proporções, conforme o grau de perfeição, de realidade dos vários seres. Um ser desenvolve-se,
aperfeiçoa-se, passando da potência ao ato; esta passagem da potência ao ato é atualização de uma
possibilidade, de uma potencialidade anterior. Esta doutrina fundamental da potência e do ato é aplicada 
e desenvolvida - por Aristóteles especialmente quando da doutrina da matéria e da forma, que
representam a potência e o ato no mundo, na natureza em que vivemos. Desta doutrina da matéria e da
forma, vamos logo falar.
II. Aristóteles não nega o vir-a-ser de Herácllito, nem o ser de Parmênides, mas une-os em uma síntese
conclusiva, já iniciada pelos últimos pré-socráticos e grandemente aperfeiçoada por Demócrito e Platão.
Segundo Aristóteles, a mudança, que é intuitiva, pressupõe uma realidade imutável, que é de duas
espécies. Um substrato comum, elemento imutável da mudança, em que a mudança se realiza; e as
determinações que se realizam neste substrato, a essência, a natureza que ele assume. O primeiro
elemento é chamado matéria (prima), o segundo forma (substancial). O primeiro é potência,
possibilidade de assumir várias formas, imperfeição; o segundo é atualidade - realizadora, especificadora
da matéria  , perfeição. A síntese  o sinolo  da matéria e da forma constitui a substância, e esta, por sua
vez, é o substrato imutável, em que se sucedem os acidentes, as qualidades acidentais. A mudança,
portanto, consiste ou na sucessão de várias formas na mesma essência, forma concretizada da matéria,
que constitui precisamente a substância.
A matéria sem forma, a pura matéria, chamada matéria-prima, é um mero possível, não existe por si, é
um absolutamente interminado, em que a forma introduz as determinações. A matéria aristotélica,
porém, não é o puro não-ser de Platão, mero princípio de decadência, pois ela é também condição
indispensável para concretizar a forma, ingrediente necessário para a existência da realidade material,
causa concomitante de todos os seres reais.
Então não existe, propriamente, a forma sem a matéria, ainda que a forma seja princípio de atuação e
determinação da própria matéria. Com respeito à matéria, a forma é, portanto, princípio de ordem e
finalidade, racional, inteligível. Diversamente da idéia platônica, a forma aristotélica não é separada da
matéria, e sim imanente e operante nela. Ao contrário, as formas aristotélicas são universais, imutáveis,
eternas, como as idéias platônicas.
Os elementos constitutivos da realidade são, portanto, a forma e a matéria. A realidade, porém, é
composta de indivíduos, substâncias, que são uma síntese  um sínolo  de matéria e forma. Por
conseqüência, estes dois princípios não são suficientes para explicar o surgir dos indivíduos e das
substâncias que não podem ser atuados  bem como a matéria não pode ser atuada  a não ser por um
outro indivíduo, isto é, por uma substância em ato. Daí a necessidade de um terceiro princípio, a causa
eficiente, para poder explicar a realidade efetiva das coisas. A causa eficiente, por sua vez, deve operar
para um fim, que é precisamente a síntese da forma e da matéria, produzindo esta síntese o indivíduo.
Daí uma quarta causa, a causa final, que dirige a causa eficiente para a atualização da matéria mediante
a forma.
III. Mediante a doutrina da matéria e da forma, Aristóteles explica o indivíduo, a substância física, a
única realidade efetiva no mundo, que é precisamente síntese  sínolo  de matéria e de forma. A essência 
igual em todos os indivíduos de uma mesma espécie  deriva da forma; a individualidade, pela qual toda
substância é original e se diferencia de todas as demais, depende da matéria. O indivíduo é, portanto,
potência realizada, matéria enformada, universal particularizado. Mediante esta doutrina é explicado o
problema do universal e do particular, que tanto atormenta Platão; Aristóteles faz o primeiro  a idéia 
imanente no segundo  a matéria, depois de ter eficazmente criticado o dualismo platônico, que fazia os
dois elementos transcendentes e exteriores um ao outro.
IV. Da relação entre a potência e o ato, entre a matéria e a forma, surge o movimento, a mudança, o
vir-a-ser, a que é submetido tudo que tem matéria, potência. A mudança é, portanto, a realização do
possível. Esta realização do possível, porém, pode ser levada a efeito unicamente por um ser que já está
em ato, que possui já o que a coisa movida deve vir-a-ser, visto ser impossível que o menos produza o
mais, o imperfeito o perfeito, a potência o ato, mas vice-versa. Mesmo que um ser se mova a si mesmo,
aquilo que move deve ser diverso daquilo que é movido, deve ser composto de um motor e de uma coisa
movida. Por exemplo, a alma é que move o corpo. O motor pode ser unicamente ato, forma; a coisa
movida  enquanto tal  pode ser unicamente potência, matéria. Eis a grande doutrina aristotélica do motor
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e da coisa movida, doutrina que culmina no motor primeiro, absolutamente imóvel, ato puro, isto é,
Deus.

A Psicologia

Objeto geral da psicologia aristotélica é o mundo animado, isto é, vivente, que tem por princípio a alma e
se distingue essencialmente do mundo inorgânico, pois, o ser vivo diversamente do ser inorgânico possui
internamente o princípio da sua atividade, que é precisamente a alma, forma do corpo. A característica
essencial e diferencial da vida e da planta, que tem por princípio a alma vegetativa, é a nutrição e a
reprodução. A característica da vida animal, que tem por princípio a alma sensitiva, é precisamente a
sensibilidade e a locomoção. Enfim, a característica da vida do homem, que tem por princípio a alma
racional, é o pensamento. Todas estas três almas são objeto da psicologia aristotélica. Aqui nos limitamos
à psicologia racional, que tem por objeto específico o homem, visto que a alma racional cumpre no
homem também as funções da vida sensitiva e vegetativa; e, em geral, o princípio superior cumpre as
funções do princípio inferior. De sorte que, segundo Aristóteles diversamente de Platão todo ser vivo tem
uma só alma, ainda que haja nele funções diversas faculdades diversas porquanto se dão atos diversos. E
assim, conforme Aristóteles, diversamente de Platão, o corpo humano não é obstáculo, mas instrumento
da alma racional, que é a forma do corpo.
O homem é uma unidade substancial de alma e de corpo, em que a primeira cumpre as funções de
forma em relação à matéria, que é constituída pelo segundo. O que caracteriza a alma humana é a
racionalidade, a inteligência, o pensamento, pelo que ela é espírito. Mas a alma humana desempenha
também as funções da alma sensitiva e vegetativa, sendo superior a estas. Assim, a alma humana, sendo
embora uma e única, tem várias faculdades, funções, porquanto se manifesta efetivamente com atos
diversos. As faculdades fundamentais do espírito humano são duas: teorética e prática, cognoscitiva e
operativa, contemplativa e ativa. Cada uma destas, pois, se desdobra em dois graus, sensitivo e
intelectivo, se se tiver presente que o homem é um animal racional, quer dizer, não é um espírito puro,
mas um espírito que anima um corpo animal.
O conhecimento sensível, a sensação, pressupões um fato físico, a saber, a ação do objeto sensível sobre
o órgão que sente, imediata ou à distância, através do movimento de um meio. Mas o fato físico
transforma-se num fato psíquico, isto é, na sensação propriamente dita, em virtude da específica
faculdade e atividade sensitivas da alma. O sentido recebe as qualidades materiais sem a matéria delas,
como a cera recebe a impressão do selo sem a sua matéria. A sensação embora limitada é objetiva,
sempre verdadeira com respeito ao próprio objeto; a falsidade, ou a possibilidade da falsidade, começa
com a síntese, com o juízo. O sensível próprio é percebido por um só sentido, isto é, as sensações
específicas são percebidas, respectivamente, pelos vários sentidos; o sensível comum, as qualidades
gerais das coisas tamanho, figura, repouso, movimento, etc. são percebidas por mais sentidos. O senso
comum é uma faculdade interna, tendo a função de coordenar, unificar as várias sensações isoladas, que
a ele confluem, e se tornam, por isso, representações, percepções.
Acima do conhecimento sensível está o conhecimento inteligível, especificamente diverso do primeiro.
Aristóteles aceita a essencial distinção platônica entre sensação e pensamento, ainda que rejeite o
inatismo platônico, contrapondo-lhe a concepção do intelecto como tabula rasa, sem idéias inatas. Objeto
do sentido é o particular, o contingente, o mutável, o material. Objeto do intelecto é o universal, o
necessário, o imutável, o imaterial, as essências, as formas das coisas e os princípios primeiros do ser, o
ser absoluto. Por conseqüência, a alma humana, conhecendo o imaterial, deve ser espiritual e, quanto a
tal, deve ser imperecível.
Analogamente às atividades teoréticas, duas são as atividades práticas da alma: apetite e vontade. O
apetite é a tendência guiada pelo conhecimento sensível, e é próprio da alma animal. Esse apetite é
concebido precisamente como sendo um movimento finalista, dependente do sentimento, que, por sua
vez depende do conhecimento sensível. A vontade é o impulso, o apetite guiado pela razão, e é própria
da alma racional. Como se vê, segundo Aristóteles, a atividade fundamental da alma é teorética,
cognoscitiva, e dessa depende a prática, ativa, no grau sensível bem como no grau inteligível.
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A Cosmologia

Uma questão geral da física aristotélica, como filosofia da natureza, é a análise dos vários tipos de
movimento, mudança, que já sabemos ser passagem da potência ao ato, realização de uma
possibilidade. Aristóteles distingue quatro espécies de movimentos:
1. Movimento substancial - mudança de forma, nascimento e morte;
2. Movimento qualitativo  mudança de propriedade;
3. Movimento quantitativo  acrescimento e diminuição;
4. Movimento espacial  mudança de lugar, condicionando todas as demais espécies de mudança.
Outra especial e importantíssima questão da física aristotélica é a concernente ao espaço e ao tempo, em
torno dos quais fez ele investigações profundas. O espaço é definido como sendo o limite do corpo, isto
é, o limite imóvel do corpo "circundante" com respeito ao corpo circundado. O tempo é definido como
sendo o número  isto é, a medida  do movimento segundo a razão, o aspecto, do "antes" e do "depois".
Admitidas as precedentes concepções de espaço e de tempo  como sendo relações de substâncias, de
fenômenos  é evidente que fora do mundo não há espaço nem tempo: espaço e tempo vazios são
impensáveis.
Uma terceira questão fundamental da filosofia natural de Aristóteles é a concernente ao teleologismo 
finalismo  por ele propugnado com base na finalidade, que ele descortina em a natureza. "A natureza faz,
enquanto possível, sempre o que é mais belo". Fim de todo devir é o desenvolvimento da potência ao
ato, a realização da forma na matéria.
Quanto às ciências químicas, físicas e especialmente astronômicas, as doutrinas aristotélicas têm apenas
um valor histórico, e são logicamente separáveis da sua filosofia, que tem um valor teorético.
Especialmente célebre é a sua doutrina astronômica geocêntrica, que prestará a estrutura física à Divina
Comédia de Dante Alighieri.

Juízo sobre Aristóteles

É difícil aquilatar em sua justa medida o valor de Aristóteles. A influência intelectual por ele até hoje
exercida sobre o pensamento humano e à qual se não pode comparar a de nenhum outro pensador dá-
nos, porém, uma idéia da envergadura de seu gênio excepcional. Criador da lógica, autor do primeiro
tratado de psicologia científica, primeiro escritor da história da filosofia, patriarca das ciências naturais,
metafísico, moralista, político, ele é o verdadeiro fundador da ciência moderna e "ainda hoje está
presente com sua linguagem científica não somente às nossas cogitações, senão também à expressão
dos sentimentos e das idéias na vida comum e habitual".
Nem por isso podemos deixar de apontar as lacunas do seu sistema. Sua moral, sem obrigação nem
sanção, é defeituosa e mais gravemente defeituosa ainda que a teodicéia, sobretudo na parte que trata
das relações de Deus com o mundo. O dualismo primitivo e irredutível entre Deus, ato puro, e a matéria,
princípio potencial, é, na própria teoria aristotélica, uma verdadeira contradição e deixa subsistir, como
enigma insolúvel e inexplicável, a existência dos seres fora de Deus.

Vista Retrospectiva

Com Sócrates entre a filosofia em seu caminho definitivo. O problema do objeto e da possibilidade da
ciência é posto em seus verdadeiros termos e resolvido, nas suas linhas gerais, pela doutrina do conceito.
Platão dá um passo além, procurando determinar a relação entre o conceito e a realidade, mas encalha,
dum lado, nas dificuldades insolúveis de um realismo exagerado; de outro, nas extravagâncias dum
idealismo extremo. Aristóteles, com o seu espírito positivo e observador, retoma o mesmo problema no
pé em que o pusera Platão e dá-lhe, pela teoria da abstração e da inteligência ativa, uma solução
satisfatória e definitiva nos grandes lineamentos. Em torno desta questão fundamental, que entende com
a metafísica, a psicologia e a lógica, se vão desenvolvendo harmoniosamente as outras partes da filosofia
até constituírem em Aristóteles esta grandiosa síntese do saber universal, o mais precioso legado da
civilização grega que declinava à civilização ocidental que surgia.
71

O Epicurismo

Epicuro, fundador da escola que tomou o seu nome, nasceu em Atenas, provavelmente, em 341 a.C.,
do ateniense Néocles, e foi criado em Samos. A mãe praticava a magia. Cedo dedicou-se à filosofia,
sendo iniciado por Nausífanes de Teo no sistema de Demócrito. Em 306 abriu a sua famosa escola em
Atenas, nos jardins da sua vila, que se tornaram centro das reuniões aristocráticas dos seus admiradores,
discípulos e amigos. Epicuro expôs a sua doutrina num grande número de escritos, pela maior parte
perdidos. Faleceu em 270 a.C. com setenta anos de idade. O epicurismo teve, desde logo, rápida e vasta
difusão no mundo romano, onde encontramos, sobretudo, Tito Lucrécio Caro - I século a.C. - o poeta
entusiasta, autor de De rerum natura, que venerava Epicuro como uma divindade. A ele devemos as
melhores notícias sobre o sistema epicurista. A escola epicurista durou até o IV século d.C., mas teve
escasso desenvolvimento, conforme o desejo do mestre, que queria os discípulos fiéis até a letra do
sistema. A originalidade deveria manifestar-se na vida.
Epicuro foi pessoa fidalga e refinada, o ideal da fidalguia antiga: fazer da formosura o princípio inspirador
da vida, e fruir dessa formosura na própria existência pessoal. E foi um mestre eficaz de sabedoria
aristocrática, feita de nobreza de sentimentos, senso refinado, gosto para a formosura, para a cultura
superior. Em seus jardins, num sereno lazer, semelhante ao dos deuses, deu vida a uma sociedade
genial, em que dominava o vínculo da amizade. As amizades dos epicuristas ficaram famosas como as
dos pitagóricos. A associação espalhou-se depois, mas conservou-se fortemente organizada, mediante
uma estável constituição, ajudas materiais, cartas, missões. O mestre pareceu aos discípulos como que
um redentor; a sua filosofia foi considerada como uma religião, a sua doutrina, resumida em catecismos,
a sua imagem, gravada nas jóias, em sua honra celebravam-se festas comemorativas, mensais e anuais.
Se não houve pensadores epicuristas notáveis depois de Epicuro no mundo clássico nem depois, houve
todavia, em todos os tempos e lugares, homens famosos, pertencentes a classes sociais elevadas, os
quais aplicaram a sua doutrina à vida e dela fizeram a substância de sua arte.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

Também o epicurismo - como o estoicismo - divide a filosofia em lógica, física e ética; também subordina
a teoria à pratica, a ciência à moral, para garantir ao homem o bem supremo, a serenidade, a paz, a
apatia. A filosofia é a arte da vida. Precisamente, é tarefa do conhecimento do mundo, da física - diz
Epicuro - libertar o homem dos grandes temores que ele tem a respeito da sua vida, da morte, do além-
túmulo, de Deus e fazer com que ele atue de conformidade. Portanto, recorre Epicuro à física atomista,
mecanicista, democritiana, pela qual também os deuses vêm a ser compostos de átomos, e - habitadores
felizes de intermundos - desinteressam-se por completo dos homens. Aliás, não é excluído o fato de que
a necessidade universal oprimiria o homem ainda mais do que o arbítrio divino. Igualmente, a alma -
formada de átomos sutis, mas sempre materiais - perece com o corpo; daí, nenhuma preocupação com a
morte, nem com o além-túmulo: seria igualmente absurdo preocupar-se com aquilo que se segue à
morte, como com aquilo que precede o nascimento.
A gnosiologia (lógica, canônica) epicurista é rigorosamente sensista. Todo o nosso conhecimento deriva
da sensação, é uma complicação de sensações. Estas nos dão o ser, indivíduo material, que constitui a
realidade originária. O processo cognoscitivo da sensação é explicado mediante os assim chamados
fantasmas, que seriam imagens em miniatura das coisas, arrancar-se-iam destas e chegariam até à alma
imediatamente, ou mediatamente através dos sentidos. Dada tal gnosiologia coerentemente sensista, é
natural que o critério fundamental e único da verdade seja a sensação, a percepção sensível, que é
imediata, intuitiva, evidente. Como a sensação, a evidência sensível é o único critério de verdade no
campo teorético, da mesma forma o sentimento (prazer e dor) será o critério supremo de valor no campo
prático.
Como a gnosiologia epicurista é rigorosamente sensista, a metafísica epicurista é rigorosamente
materialista: quer dizer, resolve-se numa física. Epicuro, seguindo as pegadas de Demócrito, concebe os
elementos últimos constitutivos da realidade como corpúsculos inúmeros, eternos, imutáveis, invisíveis,
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homogêneos, indivisíveis (átomos), iguais qualitativamente e diversos quantitativamente - no
tamanho, na figura, no peso. Também segundo Epicuro, os átomos estão no espaço vazio, infinito,
indispensável para que seja possível o movimento e, consequentemente, a origem e a variedade das
coisas. Os átomos são animados de movimento necessário para baixo. Entretanto, no movimento
uniforme retilíneo para baixo introduz Epicuro desvios múltiplos, sem causa, espontâneos (clinamen); daí
derivam encontros e choques de átomos e, por conseqüência, os vórtices e os mundos. Estes, de fato,
não teriam explicações se os átomos caíssem todos com movimentos uniforme e retilíneos para baixo -
como pensava Demócrito. Mediante o clinamen Epicuro justifica ainda o livre arbítrio, que é uma simples
combinação da contingência, do indeterminismo universal. O universo não é concebido como finito e uno,
mas infinito e resultante de mundos inúmeros divididos por intermundos, espalhado pelo espaço infindo,
sujeitos ao nascimento e à morte. Nesse mundo o homem, sem providência divina, sem alma imortal,
deve adaptar-se para viver como melhor puder. Nisto estão toda a sabedoria, a virtude, a moral
epicuristas.

A Moral e a Religião

A moral epicurista é uma moral hedonista. O fim supremo da vida é o prazer sensível; critério único de
moralidade é o sentimento. O único bem é o prazer, como o único mal é a dor; nenhum prazer deve ser
recusado, a não ser por causa de conseqüências dolorosas, e nenhum sofrimento deve ser aceito, a não
ser em vista de um prazer, ou de nenhum sofrimento menor. No epicurismo não se trata, portanto, do
prazer imediato, como é desejado pelo homem vulgar; trata-se do prazer imediato, refletido, avaliado
pela razão, escolhido prudentemente, sabiamente, filosoficamente. É mister dominar os prazeres, e não
se deixar por eles dominar; ter a faculdade de gozar e não a necessidade de gozar. A filosofia toda está
nesta função prática. Este prazer imediato deveria ficar sempre essencialmente sensível, mesmo quando
Epicuro fala de prazeres espirituais, para os quais não há lugar no seu sistema, e nada mais seriam que
complicações de prazeres sensíveis. O prazer espiritual diferenciar-se-ia do prazer sensível, porquanto o
primeiro se estenderia também ao passado e ao futuro e transcende o segundo, que é unicamente
presente. Verdade é que Epicuro mira os prazeres estéticos e intelectuais, como os mais altos prazeres.
Aqui, porém, se ele faz uma afirmação profunda, está certamente em contradição com a sua metafísica
materialista.
Em que consiste, afinal, esse prazer imediato, refletido, racionado? Na satisfação de uma necessidade, na
remoção do sofrimento, que nasce de exigências não satisfeitas. O verdadeiro prazer não é positivo, mas
negativo, consistindo na ausência do sofrimento, na quietude, na apatia, na insensibilidade, no sono, e
na morte. Mas precisamente ainda, Epicuro divide os desejos em naturais e necessários - por exemplo, o
instinto da reprodução; não naturais e não necessários - por exemplo, a ambição. O sábio satisfaz os
primeiros, quando for preciso, os quais exigem muito pouco e cessam apenas satisfeito; renuncia os
segundos, porquanto acarretam fatalmente inquietação e agitação, perturbam a serenidade e a paz; mas
ainda renuncia os terceiros, pelos mesmos motivos. Assim, a vida ideal do sábio, do filósofo, que aspira a
liberdade e à paz como bens supremos, consistiria na renúncia a todos os desejos possíveis, aos prazeres
positivos, físicos e espirituais; e, por conseguinte, em vigiar-se, no precaver-se contra as surpresas
irracionais do sentimento, da emoção, da paixão. Não sofrer no corpo, satisfazendo suas necessidades
essenciais, para estar tranqüilo; não ser perturbado no espírito, renunciando a todos os desejos
possíveis, visto ser o desejo inimigo do sossego: eis as condições fundamentais da felicidade, que é
precisamente liberdade e paz.
Em realidade, Epicuro, se ensina a renúncia, não tem a coragem de ensinar a renúncia aos prazeres
positivos espirituais, estéticos e intelectuais, a amizade genial, que representa o ideal supremo na
concepção grega da vida. E sustenta isto em contradição com a sua ascética radical, bem como contradiz
a sua metafísica materialista com a sua moral, que encontra precisamente a mais perfeita realização
nestes bens espirituais. O mundo e a vida são um espetáculo: melhor é ser espectadores e atores,
melhor é conhecer do que agir. No entanto, o bem espiritual não consiste unicamente na contemplação
(cfr. a virtude dianoética de Aristóteles), mas também na ação (cfr. a virtude ética de Aristóteles), e
precisamente em uma vida curta e refinada, esteticamente, a maneira grega, no isolamento do mundo,
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do vulgo, na unidade da amizade, na conversa arguta e delicada: numa palavra, vivendo ocultamente.
É de fato, nos jardins de Epicuro, a vida se inspirava nos mais requintados costumes, preenchida com as
mais nobres ocupações - como na Academia e no Liceu. Almejava, no entanto, dar uma unidade estética
e racional à vida, mais do que ao mundo. O epicurismo, portanto, considerado vulgarmente como
propulsor de devassidão e sensualidade, representa, inversamente, uma norma de vida ordinária e
espiritual, até um verdadeiro pessimismo e ascetismo, praticamente ateu.
A serenidade do sábio não é perturbada pelo medo da morte, pois todo mal e todo bem se acham na
sensação, e a morte é a ausência de sensibilidade, portanto, de sofrimento. Nunca nos encontraremos
com a morte, porque quando nós somos, ela não é, quando ela é nós não somos mais, Epicuro, porém,
não defende o suicídio que poderia justificar com maior razão do que os estóicos.
Dado este conceito da vida concebida como liberdade, paz e contemplação, é natural que Epicuro seja
hostil ao matrimônio e à família, aliás geralmente desvalorizado no mundo grego. Epicuro é também
hostil à atividade pública, à política considerando a família e a pátria como causas de agitações e inimigos
da autarquia.
Não obstante o seu materialismo teórico e o seu ateísmo prático, Epicuro admite a divindade
transcendente, diversamente do imanentismo estóico. A prova da existência da divindade estaria no fato
de que temos na mente humana a sua idéia, que não pode ser senão cópia de realidade. Os fantasmas
dos deuses proviriam dos próprios deuses - como os fantasmas de todas as outras coisas - desceriam até
nós dos intermundos, especialmente durante o sono. Os deuses de Epicuro são muitos, constituídos de
átomos etéreos, sutis e luzentes, dotados de corpos luminosos, tendo forma humana belíssima, imortais -
diversamente dos deuses estóicos - beatos, contemplados - segundo ideal grego da vida - sempre
acordados e sentados em jovial convívio, sorvendo ambrósia, conversando em grego! Mas - como as
idéias transcendentes de Platão e ato puro de Aristóteles - não atuam sobre o mundo e a humanidade,
para não serem contaminados, perturbados. Vivem, portanto, fora do mundo e dos mundos, nos espaços
entre mundo e mundo, na beata solidão dos intermundos, escapando destarte a fatal destruição dos
mundos. É uma teologia refinada de ateniense e de artista, que vive no mundo de estátuas divinas,
encarnando na serenidade do mármore o ideal grego contemplativo e estético da vida.
Epicuro venera os deuses, não para receber auxílio, mas porque eles encarnam o ideal estético grego da
vida, ideal que tem uma expressão concreta precisamente nas belas divindades do panteão helênico.
Então, se os deuses não proporcionam ao homem nenhuma vantagem prática, proporcionam-lhe contudo
o bem da elevação, que importa na contemplação do ideal. É preciso venerá-los para imitá-los. Deste
modo, Epicuro, proclamado ateu, teria praticado - entre os limites impostos pelo pensamento grego e
pelo seu pensamento - o mal da religião, uma religião desinteressada, uma espécie de puro amor de
Deus dos ascetas e dos místicos.

Ceticismo e Ecletismo

O ceticismo apresenta-se mais coerente do que as escolas precedentes, especialmente do que o


estoicismo, com os fins práticos de uma filosofia da renúncia, da indiferença, do sossego. É o ceticismo a
última palavra da sabedoria antiga, desesperada por não ter podido resolver o problema da vida
mediante a razão. O estoicismo procura realizar a apatia ainda mediante uma metafísica positiva, embora
imperfeita, incoerente. O epicurismo tende a realizar o mesmo fim com uma metafísica negativa,
negando todo absoluto e transcendente. O ceticismo visa sempre um fim último ético-ascético, sem
qualquer metafísica, mesmo negativa.
Através da mais absoluta indiferença, prática e teorética, procura-se realizar finalmente tão almejada paz.
A felicidade não é mais uma coisa positiva, nem está no saber e não se pode alcançar mediante o saber,
mas pode ser alcançada unicamente negando o saber. Chega-se, destarte, à destruição de todos os
valores. Substancialmente, a grande metafísica platônico-aristotélica é posta de lado, mas não é atacada
pelo ceticismo. Persiste nos céticos uma fé nostálgica e realista e o conceito da objetividade da ciência: o
ser, o objeto, existem, mas não se podem conhecer por falta de meios. Diz Argesilau: "Deus unicamente
conhece a verdade, que é inacessível ao homem".
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O ceticismo clássico começa com Pirro de Elis (365-275 a.C., mais ou menos), cuja escola terminou
pouco depois do seu discípulo Timon. Encarna-se na média academia com Argesilau e Carnéades. E,
enfim, surge de novo na forma pirroniana com Enesidemo e Sexto Empírico, em princípios da era vulgar.
O ceticismo critica o conhecimento sensível, bem como o intelectual, e também a opinião. A primeira
escola cética serve-se, geralmente, do relativismo sofista; a segunda afirma-se de modo original graças a
Carnéades; a terceira, de tendência pirroniana, faz uso da dialética eleática, da tese e da antítese.
O ecletismo apresenta-se como um sistema afim, embora imensamente inferior ao ceticismo. Também o
ecletismo, como o ceticismo, substitui ao critério da verdade o da verossimilhança, embora acriticamente.
O nem-nem dos céticos é mudado em e-e pelos ecléticos; se nada é verdadeiro, tudo vale igualmente. E
isto basta aos fins ético-empíricos dos ecléticos, semelhantes e diversos ao mesmo tempo dos fins éticos-
ascéticos dos céticos. É o ecletismo filosofia de espíritos pragmáticos ou decadentes, não filosóficos, que
concebem a filosofia popularmente, moralisticamente, ou não têm a força da crítica, nem a da afirmação,
que implica sempre numa crítica, pois a filosofia é escolha, construção, sistema, organismo especulativo,
e não justaposição mecânica de peças sem vida.
O advento de uma semelhante filosofia foi favorecido pela permanência e pela coexistência, no período
helenista e depois ainda, de várias escolas filosóficas, que surgiram em tempos diferentes, e por demais
despersonalizadas, esvaziadas do seu conteúdo original, característico - como acontece nos períodos de
decadência especulativa - de sorte que se torna fácil a síntese eclética, feita de abstratas generalidades
ou de particularidades secundárias. O pragmatismo eclético foi, enfim, favorecido pelo contato do
pensamento grego com a romanidade dominante, inteiramente voltada para a prática e para a ação, cuja
grande obra, portanto será não a filosofia, e sim o jus.
O ecletismo apresenta-se como uma síntese prática ou, melhor ainda, como uma suma de elementos
estóicos, acadêmicos e também peripatéticos. Contém muito menos elementos céticos e epicuristas, dada
a natureza crítica do ceticismo, e a coerência materialista do epicurismo. Temos precisamente, em ordem
cronológica, um ecletismo estóico, depois acadêmico e, enfim, peripatético, segundo os elementos de
uma ou de outra escola na síntese prática do próprio ecletismo.

O Período Ético
(300 a.C. - 529 D.C.)

Características Gerais

O terceiro período do pensamento grego abrange os três séculos que decorrem da morte de Aristóteles
ao início da era vulgar. Na história da civilização e da cultura, este período toma o nome de helenismo,
significando a expansão da cultura grega, helênica, no mundo civilizado; na história da filosofia
denomina-se período ético, porquanto o interesse filosófico é voltado para os problemas morais.
Primeiramente (estoicismo e epicurismo), retorna-se à metafísica naturalista dos pré-socráticos, bem
como à moral das escolas socráticas menores, cínica e cirenaica; depois (ceticismo e ecletismo), anula-se
toda metafísica e, consequentemente, toda moral, voltando-se para a sofística, menosprezando o grande
desenvolvimento filosófico platônico-aristotélico.
Os motivos desta filosofia pragmatista devem ser procurados na decadência espiritual e moral da época,
faltando ao homem interesse e a força para a especulação pura, bem como na profunda tristeza dos
tempos e na profunda sensibilidade diante do mal. Tudo isto torna dolorosa a vida do homem, que
procura na filosofia um conforto, uma orientação moral, encontrando-a na renúncia ao mundo e à própria
vida. Do contingente e do temporal, o homem volta-se para o transcendente e para o eterno; a filosofia
torna-se uma preparação para a morte, como julga Platão, e a sabedoria é desapego da ação, como
opina Aristóteles.
O interesse teorético, o vigor especulativo, restringem-se ao particular, à erudição e às ciências especiais
que se desenvolvem, ao passo que a metafísica esmorece. Não filosofia teorética, mas filologia, história,
literatura; ciências naturais, medicina, geografia, física, astronomia, matemática. E, com relação às
ciências especiais, desenvolve-se naturalmente a técnica, como na idade moderna. A arte resolve-se no
virtuosismo e na imitação. Em conclusão, a cultura helenista reduz-se à erudição e ao virtuosismo, ciência
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e técnica, filosofia moral e moral prática. Nesta civilização cosmopolita encontram-se dois valores
universais: o pensamento e a arte dos gregos, isto é, o helenismo; o jus e a política dos romanos. O
primeiro valor dá o conteúdo, o segundo a forma - Graecia capta ferum victorem cepit.
No terceiro período do pensamento grego não se encontram mais alguns poucos e grandes pensadores,
como no precedente, mas vastas orientações e escolas; não sistemas críticos, mas afirmações
dogmáticas. Trataremos, antes de tudo, da escola estóica, em que ainda há uma metafísica, elementar,
porém, e anacrônica, em contradição consigo mesma e com a moral; em segundo lugar, da escola
epicuréia, em que a metafísica tem apenas uma função negativa, a saber, libertar o homem das
preocupações transcendentais, do temor de além-túmulo; em terceiro lugar, da escola cética, em que
não há mais metafísica alguma, e, portanto, nem moral, como na escola eclética, em que a metafísica e
moral são sincretistas, e, por conseqüência, anuladas; enfim exporemos o pensamento latino, o qual,
pelo que diz respeito à filosofia, depende de cultura grega, e precisamente desse terceiro período -
ecletismo e estoicismo. A grandeza verdadeira e original do pensamento latino é o jus, o direito romano,
valor universal como a filosofia grega.

O Estoicismo

Em seu conjunto, o estoicismo pode-se dividir em três períodos: um período antigo ou ético, um período
médio ou eclético, um período recente ou religioso. Os dois últimos, bastante divergentes do estoicismo
clássico.
O fundador da antiga escola estóica é Zenão de Citium (334-262 a.C., mais ou menos). Seu pai,
mercador, leva para ele, de Atenas, uns tratados socráticos, que lhe despertam o entusiasmo para com
os estudos filosóficos. Aos vinte e dois anos vai para Atenas; aí - perdidos seus bens - dedica-se à
filosofia, freqüentando por algum tempo várias escolas e mestres, entre os quais o cínico Crates.
Finalmente, pelo ano 300, funda a sua escola, que se chamou estóica, do lugar onde ele costumava
ensinar: pórtico em grego, stoá. Iniciou, juntamente com a atividade didática, a de escritor. Em seus
escritos já se encontram a clássica divisão estóica da filosofia em lógica, física e ética, a primazia da ética
e a união de filosofia e vida.
A escola estóica média ou eclética, surge pela influência de outras escolas e para responder às objeções
dessas escolas. Podem-se, pois, agrupar na escola estóica nova ou religiosa os que entendiam
absolutamente a filosofia, o estoicismo, não como ciência, metafísica, mas como uma missão e uma
prática religiosa, sacerdotal.

O Pensamento: Gnosiologia e Metafísica

O estoicismo não apresenta o fenômeno de um grande filósofo, seguido por uma série de discípulos mais
ou menos originais, mas sim uma turma bastante uniforme de pensadores medíocres. No dizer dos
estóicos, a tarefa essencial da filosofia é a solução do problema da vida; em outras palavras, a filosofia é
cultivada exclusivamente em vista da moral, para firmar a virtude e, logo, para assegurar ao homem a
felicidade. Entende-se, pois, como a filosofia estóica chega a ser substancialmente pragmatista e, por
conseguinte, no fundo, acaba não sendo mais filosofia. E compreende-se o seu vasto êxito em todos os
tempos, amiúde apresentando-se como a filosofia dos não filósofos que têm pretensões filosóficas,
moralizadoras, rigoristas. Não obstante esse absorvente moralismo, os estóicos distinguem na filosofia
uma lógica, uma física, uma ética. Na lógica trata-se da gnosiologia; a física iguala a metafísica; a ética é
o fim último e único de toda a filosofia, inclusive da política e da religião.
Os estóicos dividem a lógica em dialética e retórica, em correspondência com o discurso interior e
exterior. A mente humana é concebida como uma tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento
parte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado ao
âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estóicas em louvor da razão. O
conhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de
elementos sensíveis. O conceito, pois, é destruído, seguindo-se o aniquilamento da ciência, da metafísica
e, logo, também da moral.
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A metafísica estóica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, toda
atividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades
das coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desse
princípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.
Devendo os estóicos, todavia, fornecer alguma base à sua ética do dever, e dar uma explicação à razão,
que se manifesta no mundo, em especial no homem, incoerentemente declaram racional o fogo -
substância metafísica da realidade -, atribuem-lhe arbitrariamente os atributos divinos da sabedoria e da
providência, imaginam-no como espírito ordenador, razão da vida, fazendo emergir todas as qualidades
da matéria, como o Sol faz brotar da semente a planta, segundo uma ordem teológica. Deus,
providência, espírito, ordem são afirmados ao lado dos conceitos opostos de fado, destino, necessidade,
mecanicismo. Como se vê, a metafísica dos estóicos é uma metafísica elementar, decadente,
contraditória, e os estóicos não são filósofos, metafísicos, mas pragmatistas, moralistas, inteiramente
absorvidos na prática, na ética.

A Moral e a Política

No pensamento dos estóicos, o fim supremo, o único bem do homem, não é o prazer, a felicidade, mas a
virtude; não é concebida como necessária condição para alcançar a felicidade, e sim como sendo ela
própria um bem imediato. Com o desenvolvimento do estoicismo, todavia, a virtude acaba por se tornar
meio para a felicidade da tranqüilidade, da serenidade, que nasce da virtude negativa da apatia, da
indiferença universal. A felicidade do homem virtuoso é a libertação de toda perturbação, a tranqüilidade
da alma, a independência interior, a autarquia.
Como o bem absoluto e único é a virtude, assim o mal único e absoluto é o vício. E não tanto pelo dano
que pode acarretar ao vicioso, quanto pela sua irracionalidade e desordem intrínseca, ainda que se acabe
por repudiá-lo como perturbador da indiferença, da serenidade, da autarquia do sábio. Tudo aquilo que
não é virtude nem vício, não é nem bem nem mal, mas apenas indiferença; pode tornar-se bem se for
unido com a virtude, mal se for ligado ao vício; há o vício quando à indiferença se ajunta a paixão, isto é,
uma emoção, uma tendência irracional, como geralmente acontece.
A paixão, na filosofia estóica, é sempre e substancialmente má; pois é movimento irracional, morbo e
vício da alma - quer se trate de ódio, quer se trate de piedade. De tal forma, a única atitude do sábio
estóico deve ser o aniquilamento da paixão, até a apatia. O ideal ético estóico não é o domínio racional
da paixão, mas a sua destruição total, para dar lugar unicamente à razão: maravilhoso ideal de homem
sem paixão, que anda como um deus entre os homens. Daí a guerra justificada do estoicismo contra o
sentimento, a emoção, a paixão, donde derivam o desejo, o vício, a dor, que devem ser aniquilados.
A virtude estóica é, no fundo, a indiferença e a renúncia a todos os bens do mundo que não dependem
de nós, e cujo curso é fatalmente determinado. Por conseguinte, indiferença e renúncia a tudo, salvo e
pensamento, a sabedoria, a virtude, que constituem os únicos bens verdadeiros: indiferença e renúncia à
vida e à morte, à saúde e à doença, ao repouso e à fadiga, à riqueza e à pobreza, às honras e à
obscuridade, numa palavra, ao prazer e ao sofrimento - pois o prazer é julgado insana vaidade da alma.
Dada a indiferença estóica do suicídio como voluntário e moral afastamento do mundo; isto não se
concilia, porém, com a virtude da fortaleza que o estoicismo reconhece e louva, e nem se pode explicar
racionalmente o suicídio, se a ordem do universo é racional, como precisamente afirmam os estóicos.
O estóico pratica esta indiferença e renúncia para não ser perturbado, magoado pela possível e freqüente
carência dos bens terrenos, e para não perder, de tal maneira, a serenidade, a paz, o sossego, que são o
verdadeiro, supremo, único bem da alma. O sábio é beato, porque, inteiramente fechado na sua torre de
marfim, nada lhe acontece que não seja por ele querido, e se conforma com o demais, sem saudades e
sem esperanças; pois sabe que tudo é efeito de um determinismo universal. A serenidade, a apatia dos
estóicos seria, sem dúvida, fruto de uma fatigosa conquista, de uma dura virtude. Mas é uma virtude
absolutamente negativa. Com efeito, quando o homem se torna indiferente a tudo, e a tudo renuncia,
salvo o seu pensamento - cujo conteúdo é, em definitivo, esta mesma renúncia -, não lhe resta
efetivamente mais nada. Não Deus, pois no sistema estóico, é uma pura palavra; não a alma, destinada a
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resolver-se na matéria. A sabedoria estóica é ação negadora da expansão das forças espirituais,
virtude corrosiva, morte moral.
Pelo que diz respeito à política, manifesta-se na filosofia estóica um racionalismo cosmopolita radical a
propósito da sociedade estatal: o homem, político por natureza, torna-se cosmopolita por natureza. Diz o
estóico Musônio: "O mundo é a pátria comum de todos os homens". Tal cosmopolitismo foi fecundo em
progresso, em civilização humana e moral. Abre-se caminho a um sentimento de caridade, de perdão, até
para os infelizes e os escravos, os estrangeiros e os inimigos, em virtude da doutrina que afirma a
identidade da natureza humana, sentimento este inteiramente desconhecido ao mundo antigo, clássico,
onde campeia solitária uma justiça, que existe, porém, apenas para os concidadãos, livres e íntegros. E
até começam a nascer instituições caritativas para com os pobres e os doentes. Destarte, esse
cosmopolitismo, a que os estóicos não podem fornecer uma base racional e metafísica, promove todavia
os conceitos de sociedade universal, de direito natural, de lei racional, conceitos que deveriam ser
deduzidos da natureza racional do homem.

II - Cristão

O Neoplatonismo

Características Gerais do Neoplatonismo

O neoplatonismo pode ser considerado como o último e supremo esforço do pensamento clássico para
resolver o problema filosófico, que tinha encontrado um obstáculo intransponível no dualismo e
racionalismo gregos - dualismo e racionalismo que nem sequer o gênio sintético e profundo de Aristóteles
conseguiu superar. O neoplatonismo julga poder superar o dualismo, mediante o monismo estóico, na
qual o aristotelismo fornece sobretudo os quadros lógicos; e julga poder superar, completar, integrar a
filosofia mediante a religião, o racionalismo grego mediante o misticismo oriental, proporcionando o
racionalismo grego especialmente a forma, e o misticismo oriental o conteúdo.
Será acentuado o dualismo platônico entre sensível e inteligível, entre matéria e espírito, entre finito e
infinito, entre o mundo e Deus: primeiro, identificando, por um lado, a matéria com o mal, e elevando,
por outro lado, o vértice da realidade inteligível ao suprainteligível e, em segundo lugar, elaborando uma
moral ascética e mística, em relação com tal metafísica, a qual, todavia, se esforçará por unificar os pólos
opostos da realidade, fazendo com que da substância do Absoluto seja gerado todo o universo até a
matéria obscura.
A filosofia antiga, em seu último período, não tem mais sua capital tradicional em Atenas, cidade grega
por excelência. O centro do pensamento então se estabelece em Alexandria, cidade cosmopolita na qual
vivem egípcios, judeus, gregos e romanos. É o local privilegiado de todos os intercâmbios,
particularmente os intelectuais. A cidade é povoada de pensadores que dispõem de uma admirável
biblioteca.
Isto nos ajuda a compreender o caráter sincrético, ou sintético, da filosofia neoplatônica. O racionalismo
lúcido dos gregos se une - numa síntese muito original - aos fervores do misticismo oriental. Apesar das
denegações dos céticos e da propaganda materialista dos epicuristas, nunca os homens foram tão
famintos de Deus quanto nessa época. As religiões de salvação, o culto de Mitra, de Ísis, então se
desenvolvem. O cristianismo tomará impulso. Preocupações filosóficas e religiosas se unem
estreitamente. Os filósofos, além da verdade suprema, buscam a salvação. Os homens piedosos querem
fundamentar suas crenças filosoficamente. Tal é a atmosfera que vamos encontrar envolvendo tanto
Filon de Alexandria, quanto Plutarco ou Plotino.

Filon de Alexandria

Filon de Alexandria (nascido por volta de 25 a.C.) é bem representativo dos meios judeus helenizados
que só sabiam ler a Bíblia na versão grega denominada dos Setenta (segundo a tradição, a Bíblia
hebraica teria sido traduzida para o grego por setenta sábios, em Alexandria). Seus correligionários
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tinham-no encarregado de uma missão junto ao imperador Calígula (para serem dispensados do culto
ao imperador, incompatível com o monoteísmo judaico).
Filon pretende fazer uma síntese entre os ensinamentos de Moisés, de Platão e de Zenão de Citium. Para
ele, a Bíblia diz a verdade, mas sob forma alegórica. Platão traz a mesma mensagem sob forma filosófica.
Como dirá mais tarde um discípulo de Filon, "Platão é um Moisés que fala grego". A idéia de Filon de
harmonizar a revelação e a razão, a Bíblia e Platão, estaria fadada a uma grande existência. Num sentido,
o grande problema da escolástica medieval, o da concordância entre razão e fé, é uma herança legada
por Filon (é nesse sentido que Wolfson dirá que a filosofia medieval é inteiramente filoniana).
Para Filon, o próprio Deus é inefável, inacessível às nossas abordagens. Todavia, podemos nos aproximar
d'Ele por intermédio da renúncia ao mundo e do recolhimento da alma. Já Platão não houvera dito que é
preciso morrer para o sensível, a fim de nascer para o inteligível? Se Deus é inacessível, o espírito
humano, ao menos, pode participar do Inteligível - ao qual Filon denomina Logos, Verbo eterno de Deus,
seu filho primogênito (protógonos). A concepção que São João faz do Verbo divino muito deve às
fórmulas e às idéias de Filon de Alexandria.

Plutarco de Queronéia

O autor da Vida dos Homens Ilustres também é um pensador religioso. Colocou em particular o problema
do mal e da Providência em seu ensaio sobre as Dilações da Justiça Divina, que levou Joseph de Maistre,
que o admirou, a traduzi-lo.
Para Plutarco, não podemos, à maneira dos estóicos, identificar Deus com o universo. Isto porque, ao
princípio transcendente do Bem se opõe um princípio do mal, que é a lei do nosso mundo. Essa filosofia
dualista provém de Platão e a encontraremos em todos os sistemas denominados "gnósticos". A idéia
essencial (já presente em Platão e Plutarco) é a de que somos formados de uma alma, divina por
essência, envolvida por uma potência malfazeja num corpo radicalmente vicioso (a encarnação é uma
encarceração) e de que a salvação provém do verdadeiro conhecimento (gnosis em grego), isto é, do
conhecimento dos dois princípios rivais, das causas que fizeram triunfar o princípio do mal, dos meios
que permitiriam a vitória do princípio do bem.
Plutarco encontra simbolização de sua doutrina nos mitos da salvação comuns em sua época. Ísis
simboliza a matéria e Osíris o Logos. A união dos dois explica a criação no que ela tem de bom. Mas
Tifon, o princípio do mal, introduz a desordem e a perturbação: dispersa os membros divinos de Osíris
que Ísis tenta reunir.
Plutarco aceita tornar-se sacerdote de Apolo Pítico em Delfos; trabalha da melhor maneira possível para o
renascimento do culto délfico. Leva a sério as profecias de Pítia, cuja exegese ele propõe: á Apolo que,
diretamente, ilumina o espírito de Pítia, mas esta exprime a Revelação segundo sua mentalidade e sua
cultura, com os seus hábitos de linguagem... Dezoito séculos antes do Pe. Lagrange, temos um primeiro
esboço da teoria dos gêneros literários e das mentalidades! É com relação à inspiração sagrada da Pítia
que Plutarco formulará sua célebre expressão: "O corpo é o instrumento da alma e a alma o instrumento
de Deus, psyche organon theou!"

Plotino

Plotino nasceu em Licópolis, no Alto Egito, e, aos 28 anos, dirigiu-se para Alexandria onde seguiu as
lições do platônico Amônio Sacas, que o "converteu" à filosofia (pois, na escola neoplatônica, assim como
entre os estóicos, a filosofia não era simples disciplina teórica, mas escola de vida espiritual, destinada a
transformar inteiramente a alma, e purificá-la, a voltá-la para as realidades sublimes). Em 243, a fim de
conhecer a filosofia dos persas, Plotino engajou-se no exército do imperador Giordano; sobrevivendo aos
seus desastres, estabeleceu-se definitivamente em Roma, onde abriu uma escola. Aí, uniu às práticas
ascéticas ("Tinha vergonha de estar num corpo", dirá seu discípulo Porfírio a seu respeito) um ensino
muito brilhante. Porfírio anotou e publicou seus cursos. O conjunto compreende cinqüenta e quatro
tratados agrupados em seis Enéadas (isto é, grupos de nove).
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A doutrina fundamental de Plotino é a das três hipóstases, isto é, das três substâncias, das três
realidades eternas - embora elas derivem, em termos plotinianos, embora elas procedam uma das
outras.
A. - A realidade suprema, o Deus de Plotino, é o Uno, o qual não é o conhecimento (uma vez que este
supõe a dualidade do sujeito cognoscente e do objeto cognoscível - nem o Ser, mas antes a fonte
inefável de todo ser e de todo pensamento. Ele é todas as coisas e nenhuma delas. É aquilo de que
promana toda existência, toda vida e todo valor, mas ele próprio é de tal ordem que nada podemos
afirmar a seu respeito, nem a vida, nem a essência; é superior a tudo e fonte absoluta de tudo.
B. - Por que existem outras hipóstases? Por que esse Deus plotiniano, por que o Uno não é único, por
que se degrada na multiplicidade? É certo que não está submetido a qualquer necessidade, não pode
desejar coisa alguma - pois, desejar é sentir falta de algo, e ele é plenitude. Mas o Uno é riqueza infinita,
generosidade sublime. A perfeição suprema se difunde em si mesma, tende a engendrar outros seres que
se lhe assemelham, ainda que menores. Assim como de um fogo ardente as chamas se irradiam, assim
ocorre com os seres emanados do Uno. O primogênito de Deus é o Logos, a Inteligência. Essa
Inteligência é o princípio de toda justiça, de toda virtude e, o que é capital para Plotino, de toda beleza. A
Inteligência é que faz a realidade ter uma forma, na medida em que ela é coerente e harmoniosa, na
medida em que ela é Beleza (nesta segunda hipóstase encontramos algo das Idéias de Platão e do
pensamento que se pensa de Aristóteles).
C. - Da Inteligência procede a Alma, terceira hipóstase (que evoca o tema platônico da alma do mundo,
assim como o deus cósmico dos estóicos). A Alma é a mediação entre a Inteligência, da qual ela procede,
e o mundo sensível, cuja ordem é constituída por ela. As almas individuais emanam dessa alma universal.
A alam humana também é uma parcela do próprio Deus presente em nós.
Abaixo das três hipóstases, o mundo material representa o último estágio dessa "difusão" divina, o ponto
extremo onde morre a luz; é aqui que encontramos a opacidade da carne, o peso da matéria, as trevas
do mal. Todavia, enquanto o Uno dispersou-se, obscureceu-se, abismou-se no múltiplo, este último
aspira à reconquista da unidade, à luz e ao repouso na fonte sublime. Ao movimento de procedência
corresponde o impulso de conversão pelo qual a alma, caída no corpo, obscurecida no mal, se assume e
tenta se elevar até o Princípio original.
Reservemo-nos, todavia, de ver no plotinismo um dualismo gnóstico. O próprio Plotino escreveu uma
tratado contra as seitas gnósticas. Para ele, não existe um mundo do mal, rival do mundo do bem. O
mal, para Plotino, nada tem de uma substância positiva: "O mal não é senão o apequenamento da
sabedoria e uma diminuição progressiva e contínua do bem". A alma que dizem prisioneira do mal é
apenas uma alma que se ignora, é, como diz Plotino, uma luz mergulhada na bruma. O mal não é uma
substância original, é só o procurado pelo reflexo do bem que fracamente ainda brilha nele. Nesse
sentido, livrar-se do mal, para Plotino, não é, como para os gnósticos, destruir um universo para dar
nascimento a outro, mas antes encontrar a si mesmo em sua verdade. Não esqueçamos que é a leitura
de Plotino que, um dia, arrancará o jovem Agostinho de suas crenças dualistas abeberadas no
maniqueísmo.
Essa filosofia, no entanto, não é absolutamente nova. Já no Timeu de Platão está colocada a questão de
uma gênese do mundo; por outro lado, a conversão plotiniana lembra a dialética ascendente de Platão.
Em ambos os métodos de purificação, a idéia do Belo desempenha importante papel. Todavia, a obra de
Plotino possui uma tônica de misticismo que é nova; sente-se aí, como até então não se sentira ainda, o
desejo e o esforço de uma alma que quer se encontrar e ao mesmo tempo se perder no Uno universal e
inefável. Esse arrebatamento da alma, esse êxtase foi que impressionou Bergson ao ler as Enéadas, o
que explica o fato de o autor das Duas Fontes Ter colocado Plotino acima de todos os filósofos.

A Gnosiologia

A gnosiologia de Plotino é semelhante à de Platão, pela desvalorização da sensibilidade como aparência,


opinião, com respeito ao pensamento. A sensação representa o primeiro grau de conhecimento humano,
manifestando-se nela obscuros vestígios da verdade. Segue-se, superior à sensibilidade, a razão:
conhecimento mediato, discursivo, dialético, demonstrativo, que atinge as idéias, as essências das coisas.
80
A razão é a atividade do espírito, que conhece enquanto vem iluminado pelo pensamento
propriamente dito, o qual é superior ao espírito.
À razão segue-se o pensamento imediato, que é autocontemplação do espírito pensante. Nesse grau de
conhecimento o espírito compreende, ao mesmo tempo, a si e as coisas. É conhecimento intuitivo,
imediato, não discursivo e sucessivo. Também o pensamento - o intelecto - representa uma atividade do
espírito humano participada do pensamento absoluto, isto é, da Inteligência - noûs. O pensamento
absoluto, a inteligência, o noûs, em si mesmo, está sempre em ato de conhecer, e nunca erra; mas, no
espírito humano, o pensamento vem a ser intermitente e sujeito ao erro, precisamente pelo fato de ser,
nele, o conhecimento participado. O conhecimento humano, finalmente, se completa e atinge a sua
perfeição no êxtase, que é identificação do espírito humano com o espírito absoluto, o Uno, Deus, em
que o espírito humano se torna passivo, inconsciente.

A Metafísica

Como os graus de conhecimento são quatro - sensibilidade, razão, intelecto, êxtase - assim quatro são os
graus do ser: matéria, alma, noûs, Uno. O Uno, Deus - segundo Plotino - é a raiz de todo ser e de todo
conhecer, tudo depende dele. No entanto, transcende toda essência e todo o conhecimento, de sorte que
é inteiramente indeterminado e inefável, e em torno dele pode-se dizer apenas o que não é - teologia
negativa. O universo deriva de Deus, não por criação consciente e livre, mas por emanação inconsciente
e necessária, que procede de Deus degradando-se até à matéria. Deus certamente transcende o mundo,
mas o mundo é da sua mesma natureza. A primeira emanação é representada pelo noûs, inteligência
subsistente, intuitiva e imutável, que se conhece a si mesma e em si as coisas. A segunda emanação do
Uno é a alma; ela procede do pensamento, como este procede do Uno. A alma contempla as idéias - que
estão no noûs - e enforma a matéria, segundo o modelo delas. A alma universal, a alma do mundo, por
sua vez se multiplica e especifica nas várias almas individuais, que estão em escala decrescente do céu
até os homens. Também Plotino sustenta que as almas humanas caíram de uma vida pré-mundana para
o cárcere corpóreo; também ensina a metempsicose e a conversão. Com a alma termina o mundo
inteligível, divino, e começa o mundo sensível, material. A matéria plotiniana, pois, não é apenas
potencialidade, indeterminação, mas também mal, irracionalidade.

A Moral

Depois da descida - a emanação das coisas do Uno - há a subida, a conversão do mundo para Deus.
Efetua-se ela através do homem, microcosmo, compêndio do universo. Nisto consiste a moral plotiniana,
radicalmente ascética: libertação, purificação da matéria, do corpo, do sentido. Os graus dessa libertação
são representados, em linha ascendente, pelas virtudes éticas, dianoéticas - arte e filosofia - ,
culminando no êxtase.

A Religião

O neoplatonismo afirma certa transcendência de Deus, em que este é imaginado como o suprainteligível.
Por isso, é inefável e pode ser atingido na sua plenitude unicamente mediante o êxtase, que é uma
fulguração divina, superior à filosofia. Com esta doutrina do êxtase, em que é afirmada uma relação
específica com a Divindade, parece abrir-se o caminho para uma nova filosofia religiosa, para a
valorização da religião positiva. E outro caminho parece abrir-se na doutrina dos intermediários, que
estão entre Deus e o homem, e por Plotino distintos em deuses invisíveis e visíveis, a que são assimiladas
as divindades das religiões tradicionais.

O Cristianismo
81
As Características Filosóficas do Cristianismo

Não há propriamente uma história da filosofia cristã, assim como há uma história da filosofia grega ou da
filosofia moderna, pois no pensamento cristão, o máximo valor, o interesse central, não é a filosofia, e
sim a religião. Entretanto, se o cristianismo não se apresenta, de fato, como uma filosofia, uma doutrina,
mas como uma religião, uma sabedoria, pressupõe uma específica concepção do mundo e da vida,
pressupõe uma precisa solução do problema filosófico. É o teísmo e o cristianismo. O cristianismo fornece
ainda uma  imprescindível  integração à filosofia, no tocante à solução do problema do mal, mediante os
dogmas do pecado original e da redenção pela cruz. E, enfim, além de uma justificação histórica e
doutrinal da revelação judaico-cristã em geral, o cristianismo implica uma determinação, elucidação,
sistematização racional do próprio conteúdo sobrenatural da Revelação, mediante uma disciplina
específica, que será a teologia dogmática.
Pelo que diz respeito ao teísmo, salientamos que o cristianismo o deve, historicamente, a Israel. Mas
entre os hebreus o teísmo não tem uma justificação, uma demonstração racional, como, por exemplo,
em Aristóteles, de sorte que, em definitivo, o pensamento cristão tomará na grande tradição especulativa
grega esta justificação e a filosofia em geral. Isto se realizará graças especialmente à Escolástica e,
sobretudo, a Tomás de Aquino. Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, solução que
constitui a integração filosófica proporcionada pelo cristianismo ao pensamento antigo  que sentiu
profundamente, dramaticamente, este problema sem o poder solucionar  frisamos que essa representa a
grande originalidade teórica e prática, filosófica e moral, do cristianismo. Soluciona este o problema do
mal precisamente mediante os dogmas fundamentais do pecado original e da redenção da cruz.
Finalmente, a justificação da Revelação em geral, e a determinação, dilucidação, sistematização racional
do conteúdo da mesma, têm uma importância indireta com respeito à filosofia, porquanto implicam
sempre numa intervenção da razão. Foi esta, especialmente, a obra da Patrística e, sobretudo, de
Agostinho.
Esta parte, dedicada à história do pensamento cristão, será, portanto, dividida do seguinte modo: o
Cristianismo, isto é, o pensamento do Novo Testamento, enquanto soluciona o problema filosófico do
mal; a Patrística, a saber, o pensamento cristão desde o II ao VIII século, a que é devida particularmente
a construção da teologia, da dogmática católica; a Escolástica, a saber, o pensamento cristão desde o
século IX até o século XV, criadora da filosofia cristã verdadeira e própria.

Características Gerais do Pensamento Cristão

Foi conquistada a cidade que conquistou o universo. Assim definiu São Jerônimo o momento que
marcaria a virada de uma época. Era a invasão de Roma pelos germanos e a queda do Império Romano.
A avalancha dos bárbaros arrasou também grande parte das conquistas culturais do mundo antigo.
A Idade Média inicia-se com a desorganização da vida política, econômica e social do Ocidente, agora
transformado num mosaico de reinos bárbaros. Depois vieram as guerras, a fome e as grandes
epidemias. O cristianismo propaga-se por diversos povos. A diminuição da atividade cultural transforma o
homem comum num ser dominado por crenças e superstições.
O período medieval não foi, porém, a "Idade das Trevas", como se acreditava. A filosofia clássica
sobrevive, confinada nos mosteiros religiosos. O aristotelismo dissemina-se pelo Oriente bizantino,
fazendo florescer os estudos filosóficos e as realizações científicas. No Ocidente, fundam-se as primeiras
universidades, ocorre a fusão de elementos culturais greco-romanos, cristãos e germânicos, e as obras
de Aristóteles são traduzidas para o latim.
Sob a influência da Igreja, as especulações se concentram em questões filosófico-teológicas, tentando
conciliar a fé e a razão. E é nesse esforço que Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino trazem à luz
reflexões fundamentais para a história do pensamento cristão.
82
A Filosofia Medieval e o Cristianismo

Ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente sofreu ataques constantes dos povos
bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente desenvolveu-se uma
nova estruturação européia de vida social, política e econômica, que corresponde ao período medieval.
Em meio ao esfacelamento do Império Romano, decorrente, em grande parte, das invasões germânicas,
a Igreja católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou sua
estrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos da
cultura pagã greco-romana.
Apoiada em sua crescente influência religiosa, a Igreja passou a exercer importante papel político na
sociedade medieval. Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites
dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobreza
feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material: tornou-se dona de aproximadamente um terço das
áreas cultiváveis da Europa ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Assim,
pôde estender seu manto de poder "universalista" sobre diferentes regiões européias.

Conflitos e Conciliação entre a Fé e Saber

No plano cultural, a Igreja exerceu amplo domínio, trançando um quadro intelectual em que a fé cristã
era o pressuposto fundamental de toda sabedoria humana.
Em que consistia essa fé?
Consistia na crença irrestrita ou na adesão incondicional às verdades reveladas por Deus aos homens.
Verdades expressas nas Sagradas Escrituras (Bíblia) e devidamente interpretadas segundo a autoridade
da Igreja.
"A Bíblia era tão preciosa que recebia as mais ricas encadernações".
De acordo com a doutrina católica, a fé representava a fonte mais elevada das verdades reveladas 
especialmente aquelas verdades essenciais ao homem e que dizem respeito à sua salvação. Neste
sentido, afirmava Santo Ambrósio (340-397, aproximadamente): Toda verdade, dita por quem quer que
seja, é do Espírito Santo.
Assim, toda investigação filosófica ou científica não poderia, de modo algum, contrariar as verdades
estabelecidas pela fé católica. Segundo essa orientação, os filósofos não precisavam se dedicar à busca
da verdade, pois ela já havia sido revelada por Deus aos homens. Restava-lhes, apenas, demonstrar
racionalmente as verdades da fé.
Não foram poucos, porém, aqueles que dispensaram até mesmo essa comprovação racional da fé. Eram
os religiosos que desprezavam a filosofia grega, sobretudo porque viam nessa forma pagã de
pensamento uma porta aberta para o pecado, a dúvida, o descaminho e a heresia (doutrina contrária ao
estabelecido pela Igreja, em termos de fé).
Por outro lado, surgiram pensadores cristãos que defendiam o conhecimento da filosofia grega, na
medida em que sentiam a possibilidade de utilizá-la como instrumento a serviço do cristianismo.
Conciliado com a fé cristã, o estudo da filosofia grega permitiria à Igreja enfrentar os descrentes e
demolir os hereges com as armas racionais da argumentação lógica. O objetivo era convencer os
descrentes, tento quanto possível, pela razão, para depois fazê-los aceitar a imensidão dos mistérios
divinos, somente acessíveis à fé.
Entre os grandes nomes da filosofia católica medieval destacam-se Agostinho e Tomás de Aquino. Eles
foram os responsáveis pelo resgate cristão das filosofias de Platão e de Aristóteles, respectivamente.
"Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganadoras especulações da
"filosofia", segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo
Cristo." (São Paulo).

Patrística

"A fé em busca de argumentos racionais a partir de uma matriz platônica"


83
Desde que surgiu o cristianismo, tornou-se necessário explicar seus ensinamentos às autoridades
romanas e ao povo em geral. Mesmo com o estabelecimento e a consolidação da doutrina cristã, a Igreja
católica sabia que esses preceitos não podiam simplesmente ser impostos pela força. Eles tinham de ser
apresentados de maneira convincente, mediante um trabalho de conquista espiritual.
Foi assim que os primeiros Padres da Igreja se empenharam na elaboração de inúmeros textos sobre a fé
e a revelação cristãs. O conjunto desses textos ficou conhecido como patrística por terem sido escritos
principalmente pelos grandes Padres da Igreja.
Uma das principais correntes da filosofia patrística, inspirada na filosofia greco-romana, tentou munir a fé
de argumentos racionais. Esse projeto de conciliação entre o cristianismo e o pensamento pagão teve
como principal expoente o Padre Agostinho.
"Compreender para crer, crer para compreender". (Santo Agostinho)

Escolástica

"Os caminhos de inspiração aristotélica levam até Deus".


No século VIII, Carlos Magno resolveu organizar o ensino por todo o seu império e fundar escolas ligadas
às instituições católicas. A cultura greco-romana, guardada nos mosteiros até então, voltou a ser
divulgada, passando a Ter uma influência mais marcante nas reflexões da época. Era a renascença
carolíngia.
Tendo a educação romana como modelo, começaram a ser ensinadas as seguintes matérias: gramática,
retórica e dialética (o trivium) e geometria, aritmética, astronomia e música (o quadrivium). Todas elas
estavam, no entanto, submetidas à teologia.
A fundação dessas escolas e das primeiras universidades do século XI fez surgir uma produção filosófico-
teológica denominada escolástica (de escola).
A partir do século XIII, o aristotelismo penetrou de forma profunda no pensamento escolástico,
marcando-o definitivamente. Isso se deveu à descoberta de muitas obras de Aristóteles, descobertas até
então, e à tradução para o latim de algumas delas, diretamente do grego.
A busca da harmonização entre a fé cristã e a razão manteve-se, no entanto, como problema básico de
especulação filosófica. Nesse sentido, o período escolástico pode ser dividido em três fases:
Primeira fase  (do século IX ao fim do século XII): caracterizada pela confiança na perfeita harmonia
entre fé e razão.
Segunda fase  (do século XIII ao princípio do século XIV): caracterizada pela elaboração de grandes
sistemas filosóficos, merecendo destaques nas obras de Tomás de Aquino. Nesta fase, considera-se que
a harmonização entre fé e razão pôde ser parcialmente obtida.
Terceira fase  (do século XIV até o século XVI): decadência da escolástica, caracterizada pela afirmação
das diferenças fundamentais entre fé e razão.

A Questão dos Universais: O que há entre as palavras e as coisas

O método escolástico de investigação, segundo o historiador francês Jacques Le Goff, privilegiava o


estudo da linguagem (o trivium) para depois passar para o exame das coisas (o quadrivium). Desse
modo surgiu a seguinte pergunta: qual a relação entre as palavras e as coisas?
Rosa, por exemplo, é o nome de uma flor. Quando a flor morre, a palavra rosa continua existindo. Nesse
caso, a palavra fala de uma coisa inexistente, de uma idéia geral. Mas como isso acontece? O grande
inspirador da questão foi o inspirador neoplatônico Porfírio, em sua obra Isagoge: "Não tentarei
enunciar se os gêneros e as espécies existem por si mesmos ou na pura inteligência, nem, no
caso de subsistirem, se são corpóreos ou incorpóreos, nem se existem separados dos objetos
sensíveis ou nestes objetos, formando parte dos mesmos".
Esse problema filosófico gerou muitas disputas. Era a grande discussão sobre a existência ou não das
idéias gerais, isto é, os chamados universais de Aristóteles.
84
Os Precedentes do Cristianismo

Os fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião israelita; em segundo lugar, o
pensamento grego e, enfim, o direito romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um
privilégio único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e civilizações, ainda que
poderosos e ilustres, são, religiosamente, politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel
toma o cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial de Deus. Daí a idéia de
uma história, que é desenvolvimento providencial da humanidade, idéia peculiar ao cristianismo e
desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.
Na revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de uma queda original do homem
no começo da sua história, e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitos
indispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e racionalmente insolúvel. No
entanto, o mundano e carnal Israel resistiu tenaz e longamente a esta idéia de uma radical miséria
humana -, e, por conseqüência, à idéia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e próspera, as
riquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as satisfações conjugais e domésticas, o estado
autônomo e privilegiado, o poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que o
chamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os flagelos com que Jeová o castigava,
até que Israel, ainda que contra a sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido,
através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo. A solução integral do problema
do mal viria unicamente do mistério da redenção pela cruz - necessário complemento do mistério do
pecado original.
Quanto ao pensamento grego, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador das
verdades reveladas, e como justificador dos pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como
elemento constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e cristão. E quanto ao direito
romano, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a
Igreja, e não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, que são próprios e
originais do cristianismo.

Jesus Cristo

Entretanto, o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é Jesus Cristo. Pode
ele dar plena solução ao problema do mal - solução que representa o maior valor filosófico no
cristianismo - unicamente se é Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz.
Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria vã, como a estóica e todas as
demais soluções filosóficas de tal problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, a
pessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não fosse Homem-Deus.
Não é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico, para determinar a personalidade
de Cristo. Basta lembrar que, uma vez admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de uma
revelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando, propriamente, senão de provas
históricas. Os argumentos em contrário não são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; quer
dizer, dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e imanentista em especial.
Eis o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem ser examinados à luz da
crítica histórica, antes de tudo, os documentos fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo
Testamento. E achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo - , que ensina uma
grande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si mesma como divina e comprova explicitamente com
prodígios e sinais - os milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se torna garantia
de toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento - , também se responsabiliza por uma
instituição que a ele se segue - a Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente a
revelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz respeito à queda original e à relativa
reparação, a qual, por certo, pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.
85
O Novo Testamento

Como é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso conhecimento mais imediato em
torno da sua personalidade se realiza através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo
testemunhas também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e canônicas. Estas
últimas, porém, são fundamentais e mais do que suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são
elas as seguintes: Paulo de Tarso, os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João.
Paulo de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não conheceu Jesus Cristo durante sua
vida terrena, mas, convertido ao cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o
maior apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em Cristo crucificado o Deus
padecente, vítima e Salvador, que eles procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A
vida de Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para finalidades apostólicas. Para o
mesmo fim escreveu Paulo as famosas cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade,
relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e têm como ponto de irradiação
Antioquia, tocando os centros mais importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta
cidade encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato com todas as formas de
civilização do Oriente helenista e do mundo greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego -
devemos dizer que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente aprimoradas,
tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado como Porfírio; são porém, densas de
conteúdo, de forma incisiva e eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do
sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, crucificado e ressuscitado. É este o
aspecto do cristianismo que mais o impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da
Redenção. No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à miséria do homem
decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o
homem consciente de sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o pecado do
mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo sentia tão profundamente.
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos - formam um grupo à
parte, por certa característica histórica e didática, que os torna comuns e os distingue do quarto
evangelho, o de João, de caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o
Evangelho de Mateus, o publicano, tornando em seguida um dos doze apóstolos. Escrito,
originariamente, em aramaico e destinado ao ambiente palestino, foi em seguida traduzido para o grego
e, nesta língua, transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os ensinamentos de
Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos, que não foi discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o
ensinamento de Pedro. Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro dos
Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas, companheiro de Paulo, que o chamava o caro médico.
Também ele não foi discípulo imediato de Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.
O quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um discípulo direto de Cristo, um
dos doze apóstolos: João, o predileto do Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto
Evangelho, juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo, teológico. Como
Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João pode ser considerado o teólogo da Encarnação;
Cristo é o Verbo de Deus encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João
foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento,
os quais - no seu conjunto - podem se considerar compostos na Segunda metade do primeiro século,
tomada com certa amplidão.

A Solução do Problema do Mal

Não há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde se bateu a grande filosofia
grega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é,
pois, precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, e
praticamente dolorosa a vida? Não é, por certo, o mal assim chamado metafísico, a saber, a necessária
limitação de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles devida
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por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente,
isto é, teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, é
plenamente explicável.
Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral, porquanto é limitação da natureza, verdadeira
imperfeição de um determinado ser. O mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar
a natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o que não significa certamente
lhe pertença a racionalidade pura, devida ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do
sensível ao inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos sejam instrumentos
do intelecto e o instinto seja instrumento da vontade, naquele característico processo que é o
conhecimento e a operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam submetidos
às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia racional dos valores.
Ora, se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a psicologia e a história, as coisas
serão bem diferentes. Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto
partir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades e não sem graves
erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto,
indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais freqüentemente ainda, o instinto
assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências da
própria natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisa
é ainda mais patente: basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer
que a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana, como tal, mas
unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua
atual intensidade, se evidenciam como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e racional.
Temos, pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A filosofia conhece a
essência metafísica dessa natureza humana, deve reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a
causa. A filosofia é certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve tornar-se
crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, porquanto não consegue resolver plenamente o seu
problema, o problema da vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar
absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, comprometeria também a sua maior
conquista: Deus. É antiga e famosa a objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de
Deus com todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, naturalmente, o mal físico e
moral, e este propriamente em relação ao homem.

O Pecado Original

Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio a
que pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente?
Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda do
homem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas -
como divinamente revelada.
Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral,
do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há
nele algo de não-ser, de potência, precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio
proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se
efetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à
realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida.
Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia,
evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia
natural, de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem
sobrenatural, com um conveniente conjunto de dons preternaturais. Noutras palavras, o homem teria
participado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de uma
espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa
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de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia
descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural,
juntamente com os dons conexos.
Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desde
o nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela
lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por conseqüência, também morais:
deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que
importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até ao
sofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado
em Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindas
do pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.
O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por mais
supereminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem
sobrenatural sendo, por definição, gratuita, isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhuma
natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a natureza
humana, nem a perda dos dons praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos
considerado insolúvel pela filosofia.

A Redenção pela Cruz

Mas, que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, frustar o plano divino
da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, mediante uma divina dialética, o bem e até um bem
maior? É o que explica um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por Cristo.
Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda pessoa da Trindade divina, assume
natureza humana, precisamente para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas conseqüências
naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita com respeito ao Infinito ofendido,
Deus precisava de uma reparação infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que
devia pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza humana. Para a Redenção,
teria sido suficiente o mínimo ato expiatório de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à
dignidade do operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto para dar toda a glória
possível à infinita majestade de Deus no reino do mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória
de Deus o fim último de toda atividade divina.

O Cristianismo - Conseqüente Praxe Ascética

Ascetismo e Teísmo

Das precedentes considerações segue-se que o cristianismo importa sempre e essencialmente numa
praxe ascética com respeito ao mundo, e não pelo fato de o sobrenatural oprimir a natureza, mas por
causa da desordem introduzida na ordem da natureza pelo pecado original.
Em verdade, a raiz metafísica desta praxe ascética acha-se no próprio teísmo, e, precisamente, no
conceito de criação, tomando-se esta palavra "ascética" não no sentido rigoroso de renúncia aos bens
criados, mas no sentido de que o homem, sendo criatura e portanto dependendo totalmente de Deus,
deve reconhecer praticamente esta sua dependência absoluta, este seu nada ser por si.
A razão humana constata, nem pode deixar de constatar, que o mundo, de que temos imediatamente
experiência, não se pode explicar por si mesmo, e, logo, exige absolutamente uma explicação.
Entretanto, para que o problema do mundo tenha verdadeiramente solução, é preciso chegar até Deus. E
Deus, para que seja verdadeiramente a explicação do mundo, não pode certamente ser imanente, mas
deve ser transcendente e criador, o que eqüivale dizer, a relação entre Deus e o mundo deve ser
concebida segundo o conceito de criação, retamente definido como uma produção das coisas do nada
por parte de Deus.
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Ora, tal definição exclui que Deus organize uma pressuposta matéria qualquer, com respeito à qual
Deus seria passivo e, logo, não mais ato-puro, não mais Deus, não mais explicação do mundo.
Contrariamente a quanto pensava o dualismo grego, Deus cria toda a realidade. Daí nada se poder
levantar contra ele e proclamar a sua autonomia. Além disso, é excluído que o mundo seja, de qualquer
modo, formado pela mesma natureza de Deus, pois, neste caso, haveria a contradição de que Deus seria
da mesma natureza do mundo, que não tem em si a sua explicação e, por isso, a procura em Deus.
Contrariamente ao que pensa o panteísmo, Deus, criando, dispõe uma realidade essencialmente distinta
de si, de modo que nenhum ser criado pode, de modo nenhum, exigir de participar da natureza divina e
enaltecer como tal a sua natureza.
A este segundo princípio é conexa a absoluta liberdade da criação. Com efeito, se ela fosse necessária,
ter-se-ia uma contradição semelhante à precedente, a saber: Deus teria necessidade do mundo que ele
deve explicar. Deus, portanto, pode ou não pode criar, pode criar este ou um outro mundo, entre
infinitos mundos possíveis, de modo que Deus, querendo criar o mundo, pode única e absolutamente
criá-lo para a sua glória  embora esta já seja interiormente infinita, sendo Deus a atualidade, a perfeição
plena. Se se admitisse para a obra de Deus uma finalidade diversa, extrínseca, seria também preciso
admitir em Deus uma indigência, com todas as conseqüências acima mencionadas. Deus, portanto, cria o
mundo do nada, e não o tira de sua substância, mas o cria livremente e para a sua glória. E o homem faz
parte dessa criação.
Compreende-se, então, como a atitude prática, fundamental, da criatura racional deva ser, em
conseqüência do conceito de criação, uma atitude de reconhecimento do próprio nada, não só na ordem
do ser, mas também na ordem de operar, porque nada de quanto é real pode escapar à absoluta
causalidade de Deus. Aqui falamos, evidentemente, do operar positivo, isto é, do bem, porquanto o mal,
sendo negação, privação, não tem causa eficiente, mas deficiente, como diz Agostinho. Não Deus, por
conseqüência, mas o homem é o autor do mal. Então, a humildade será a virtude essencial do sábio,
como o orgulho será o pecado essencial do estulto; nas relações práticas com Deus  que constituem o
objeto da religião em geral  e também nas relações com a remanente realidade, não em si, mas
enquanto querida por Deus.

Ascetismo e Cristianismo

Deus quis remir o homem, exigindo ao mesmo tempo que a sua justiça fosse dignamente satisfeita
mediante uma expiação infinita por parte do Verbo humanado. Esta expiação divina, porém, não
dispensava, mas apenas tornava possível a expiação por parte do homem, precisamente através dos
sofrimentos provenientes da desordem decorrida do pecado. Unicamente deste modo o homem era
redimido, unicamente através da justiça se manifestava a misericórdia de Deus. Antes, quis Deus que
fosse juntamente realizada a sua maior glória e o maior bem do homem, através do sacrifício mais
completo por parte de Cristo, bem como por parte do homem, dada sempre a desordem das coisas,
proveniente do pecado.
Esta  tão significativa  praxe ascética tem a sua primeira e perfeita realização em Cristo, redentor pela
cruz. Tornando-se ele, deste modo, o modelo e o ideal da vida cristã. Mas, para o mundo, esta praxe
ascética será loucura e escândalo. Os Gentios julgavam naturalmente loucura a renúncia cristã. Os
próprios israelitas sonhavam o Redentor cercado de grandeza e poder, e não de humildade e sofrimento.
Cristo, ao contrário, menosprezando a prudência e a fortaleza humanas, envereda pelo caminho da cruz,
que repugna à natureza, mas já é a única via de salvação e de santificação. E, assim, Cristo  realizando a
sua obra  foi julgado justo, mas não lhe foi feita justiça pela majestade do direito; foi condenado pelo
povo que ele viera remir; foi abandonado pelos próprios e mais chegados discípulos, um dos quais  o que
devia ser seu vigário  até o renegou, e um outro o traiu de morte. E morreu abandonado sobre a cruz,
assistido por algumas pobres mulheres. Humanamente e também racionalmente falando, unicamente
desta maneira se realizava a glória de Deus e a redenção do homem em toda a sua plenitude.
Cristo não apenas realizou na sua pessoa o sacrifício redentor, mas também apontou aos homens este
caminho como sendo o caminho único para a salvação e a perfeição, e confirmou a doutrina com o
exemplo, propondo-se como modelo de todos os cristãos: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. A vida
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cristã será, portanto, a imitação de Cristo crucificado  diversamente embora, segundo os graus de
perfeição cristã e as concretas diferenças individuais. Tal ensinamento ascético de Cristo  que, em
concreto, se acha em toda a sua vida e, em especial, na sua morte  em abstrato se acha em toda a sua
doutrina, mas especialmente no sermão da montanha, o sermão das bem-aventuranças, que se pode
considerar o compêndio do espírito do Cristianismo. Aí são invertidos os valores terrenos, e exaltados não
os ricos, os gozadores, os poderosos, que o mundo inveja, mas os pobres, os sofredores, os mesquinhos,
conforme a sabedoria cristã, o que à orgulhosa razão humana parece estultícia. Deste modo Cristo dirá
que o busquemos  isto é, que procuremos a sua imagem, a sua imitação  não no homem feliz, para
gozarmos a vida em sua companhia, mas no homem sofredor, com o qual e para o qual sofremos e,
destarte, acharemos alimento ascético.
Este ensinamento, Cristo dirige a todos os seus seguidores, como condição necessária para a salvação 
se alguém quer vir após mim, renuncia-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Entretanto, aos que
aspiram à santidade, à plenitude da vida cristã, à perfeita imitação dele, impõe Cristo a renúncia total aos
grandes bens do mundo: renúncia à riqueza, à família, à liberdade, para abraçar a pobreza, a castidade,
a obediência. E esta a chamada via dos conselhos evangélicos, em contraposição com a vida comum dos
preceitos. E realiza-se na clássica praxe cristã dos votos religiosos, sempre idêntica e imutável na
substância, embora variável nas aplicações concretas.

Ascetismo e Caridade

Esta moral ascética cristã é racionalmente fundada sobre o teísmo e a Revelação. Garante, pois, ao
homem, a consecução da felicidade na vida eterna, e de uma felicidade que transcende toda aspiração e
capacidade humana. Na vida temporal esta moral ascética apresenta-se também como a mais sábia,
porquanto torna conformada e voluntária a aceitação do sofrimento, já que não se apresenta mais como
inesperado e trágico, pois não fica certamente dispensado da dor quem neste mundo entende de viver
apenas moralmente e não heroicamente, e nem sequer quem entende de gozar livremente dos bens da
terra. Provê igualmente esta moral ascética o bem dos outros, ou não parece, ao contrário,  por causa da
renúncia ao mundo devastado pelo mal  isolar fatalmente os homens dos seus semelhantes? E este
isolamento não é ainda mais acentuado, quando a perfeição se eleva dos preceitos aos conselhos?
Poderia assim parecer, mas assim não é. Antes de tudo, tal egoísmo está em franco contraste com o
conceito de caridade, dominante na moral cristã, em lugar do clássico conceito de justiça. A caridade
cristã purificou a civilização antiga da barbárie da exposição das crianças, da escravidão, das lutas dos
gladiadores, barbárie que se repete, mais ou menos intensamente, no egoísmo de toda civilização
puramente humana. A caridade cristã favoreceu ainda obras numerosas e fecundas para os infelizes, os
velhos, os pobres, os doentes, mais ou menos desprezados e negligenciados na civilização antiga, bem
como em toda civilização mundana em geral, apesar das aparências contrárias.
Em segundo lugar, a convivência social, moral, racional, não é possível nas atuais condições de egoísmo
e malvadez humana, mas faz-se mister a ascética cristã para vencer este egoísmo mediante a paciência,
a humildade, a caridade. Considere-se, por exemplo, a questão econômica e o problema da autoridade,
que preocupam tão profundamente a sociedade humana. A questão econômica não se pode resolver
naturalmente. Com efeito  prescindindo do fato de que o trabalho, em seus termos atuais, é uma pena,
como claramente o prova a dura experiência, e a Revelação disto dá explicação e justificação  não
somente a justiça não consegue abolir a pobreza, mas nem sequer a caridade, a própria caridade cristã,
consegue tirar a humilhação do receber. Menos ainda conseguem isto a filantropia e os demais
equivalentes humanistas. Resolve isto verdadeiramente só a ascética cristã, valorizando a dor, exaltando
o sofrimento: bem-aventurados os pobres. E também não se pode resolver naturalmente o problema
árduo da sujeição à autoridade, no entanto necessária para que a sociedade possa sustentar-se. O fato
de a autoridade ser necessária à existência da sociedade, não é argumento suficiente para que todos
obedeçam à autoridade; e isto é evidente se se examinam as paixões humanas, especialmente o orgulho,
a violência, a fraude, freqüentemente mais fortes em quem domina. E isto acontece não apenas na
sociedade civil, mas também na religiosa, porquanto formada de homens. E, então, não fica senão a
obediência no sentido cristão, ascético, como renúncia à própria vontade. Tal renúncia não é imoral,
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porque tem como objeto não a pessoa, mas o ofício, nem pode objetivamente, de modo nenhum,
transpor os confins da ética.
Finalmente, a renúncia ascética não é estéril egoísmo, mas o contrário. Precisamente pelo fato de que o
homem, renunciando a si mesmo e dando-se em holocausto a Deus, é disposto, até desejoso,
imensamente capaz, cheio de boa vontade para sacrificar-se inteiramente para com todos. Não
considera, todavia, a humanidade como fim último, como divina, mas conforme à transcendente vontade
de Deus, que criou o homem à sua imagem, e o remiu com a Paixão do seu Verbo encarnado. A ética
cristã da renúncia perfeita ao mundo é a mais proveitosa para a sociedade  familiar, nacional, universal.
De fato, a prescindir dos demais, mesmo razoáveis, motivos de altruísmo, unicamente quem é indiferente
às qualidades alheias, até solícito dos mais miseráveis, não encontra limites no altruísmo, no heroísmo,
mas uma oportunidade de engrandecimento mediante o sacrifício.
Este será o caminho percorrido  embora de modos diferentes  pelos santos, os super-homens do
cristianismo: o caminho dos conselhos evangélicos, que é o caminho mais perfeito do que o dos
preceitos. E os santos mais facilmente florescem nas Ordens Religiosas, precisamente porque é
característica das Ordens Religiosas a via dos conselhos, da renúncia ao mundo, cada qual realizando
este ascetismo cristão com diversa intensidade, de modos muito diferentes, conforme os tempos, os
lugares, os temperamentos pessoais e as necessidades sociais. E é mediante e através desta renúncia
ascética, que os santos se tornam os grandes benfeitores da humanidade.

A Patrística Pré-agostiniana

Características Gerais

Com o nome de patrística entende-se o período do pensamento cristão que se seguiu à época
neotestamentária, e chega até ao começo da Escolástica: isto é, os séculos II-VIII da era vulgar. Este
período da cultura cristã é designado com o nome de Patrística, porquanto representa o pensamento dos
Padres da Igreja, que são os construtores da teologia católica, guias, mestres da doutrina cristã.
Portanto, se a Patrística interessa sumamente à história do dogma, interessa assaz menos à história, em
que terá importância fundamental a Escolástica.
A Patrística é contemporânea do último período do pensamento grego, o período religioso, com o qual
tem fecundo contato, entretanto dele diferenciado-se profundamente, sobretudo como o teísmo se
diferencia do panteísmo. E é também contemporâneo do império romano, com o qual também polemiza,
e que terminará por se cristianizar depois de Constantino. Dada a culminante grandeza de Agostinho, a
Patrística será dividida em três períodos: antes de Agostinho, período em que, filosoficamente,
interessam especialmente os chamados apologistas e os padres alexandrinos; Agostinho, que merece um
desenvolvimento à parte, visto ser o maior dos Padres; depois de Agostinho vem o período que, logo
após a sistematização, representa a decadência da Patrística.

O II Século: Os Apologistas e os Controvertistas

A Patrística do II século é caracterizada pela defesa que faz do cristianismo contra o paganismo, o
hebraísmo e as heresias. Os padres deste período podem-se dividir em três grupos: os chamados padres
apostólicos, os apologistas e os controversistas. Interessam-nos particularmente os segundos, pela
defesa racional do cristianismo contra o paganismo; ao passo que os primeiros e os últimos têm uma
importância religiosa, dogmática, no âmbito do próprio cristianismo.
Chamam-se apostólicos os escritos não canônicos, que nos legaram as duas primeiras gerações cristãs,
desde o fim do primeiro século até a metade do segundo. Seus autores, quando conhecidos, recebem o
apelido de padres apostólicos, porquanto floresceram no templo dos Apóstolos, ou os conheceram
diretamente, ou foram discípulos imediatos deles.
Costuma-se designar como o nome de apologistas os escritores cristãos dos fins do segundo século, que
procuram de um lado demonstrar a inocência dos cristãos para obter em favor deles a tolerância das
autoridades públicas; e provar do outro lado o valor da religião cristã para lhe granjear discípulos. Seus
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escritos, portanto, são, por vezes, apologias propriamente ditas, por vezes, obras de controvérsia, às
vezes, teses. E são dirigidas às vezes contra os pagãos, outras vezes contra os hebreus. Os apologistas,
mais cultos do que os padres apostólicos, freqüentemente são filósofos - por exemplo, São Justino Mártir
- ainda que não apresentem uma unidade sistemática; continuam filósofos também depois da conversão,
e se esforçam por defender a fé mediante a filosofia. Para bem compreendê-lo, é mister lembrar que o
escopo por eles visado era, sobretudo, por em focos os pontos de contato existentes entre o cristianismo
e a razão, entre o cristianismo e a filosofia. E apresentavam o cristianismo como uma sabedoria, aliás,
como a sabedoria mais perfeita, para levarem, gradualmente, até à conversão os pagãos.
O maior dos apologistas é certamente São Justino. Flávio Justino Mártir nasceu em Siquém na Palestina
em princípios do segundo século, e morreu mártir no ano 170. Depois de Ter peregrinado pelas mais
diversas escolas filosóficas – peripatética, estóica, , pitagórica - em busca da verdade para a solução do
problema da vida, abandonando o platonismo, último estádio da sua peregrinação filosófica, entrou no
cristianismo, onde encontrou a paz. Ufana-se ele de ser filósofo e cristão; leigo embora, Justino dedicou
sua vida à difusão e ao ensino do cristianismo. Imitando os filósofos, abriu em Roma uma escola para o
ensino da doutrina cristã. Suas obras são duas Apologias - contra os pagãos - e um Diálogo com o judeu
Trifão - contra os hebreus. Escreveu suas obras nos meados do segundo século.
Justino procura a unidade, a conciliação entre paganismo e cristianismo, entre filosofia e revelação. E
julga achá-la, primeiro, na crença de que os filósofos clássicos - especialmente Platão - dependem de
Moisés e dos profetas, depois da doutrina famosa dos germes do Verbo, encarnado pessoalmente em
Cristo, mas difundidos mais ou menos em todos os filósofos antigos.

O III Século: Os Alexandrinos e os Africanos

O terceiro século apresenta um interesse particular pelo que diz respeito ao pensamento cristão. Tentou-
se um renovamento do paganismo com bases no panteísmo neoplatônico e nos cultos orientais, fundidos
numa característica síntese filosófico-religiosa em oposição ao cristianismo, que já ia afirmando mesmo
culturalmente. Os Padres deste período polemizam filosoficamente com os pensadores pagãos, levados a
estimarem seus adversários.
O cristianismo, sem mudar a sua fisionomia original, está em condições de desenvolver do seu seio um
pensamento, uma filosofia, uma teologia, que representarão a sua essência doutrinal. Daí a distinção que
então se afirmou entre os simples fiéis e os gnósticos - sábios - cristãos. Este gnosticismo cristão se
afirmou especialmente em Alexandria do Egito, o grande centro cultural da época, mesmo do ponto de
vista católico. Naquele famoso didascaléion, naquela celebrizada escola catequética, espécie de faculdade
teológica, foram luminares Clemente e Orígenes.
O cristianismo filosófico é próprio e característico dos padres alexandrinos, que vivem na tradição cultural
helenista, enaltecedora e potenciadora dos valores intelectuais, teoréticos, especulativos, metafísicos, dos
quais teremos, em tempo oportuno, o primeiro sistema orgânico de teologia cristã, graças a Orígenes. É,
entretanto, hostilizado pelos padres chamados africanos, pertencentes não à África oriental, ao Egito,
mas África ocidental, latina, que se ressentem, por conseguinte, do espírito prático, pragmatista, jurídico,
moralista latino - que produziu os estóicos e os cínicos romanos - em oposição ao gênio grego. Se bem
que entres os padres africano-latinos apareçam vulto notáveis, como por exemplo Tertuliano, os padres
africanos - bem como os padres latinos em geral - não apresentam interesse particular para a história da
filosofia.
Clemente Alexandrino - Tito Flávio Clemente - nasceu no ano 150, provavelmente em Atenas, de
família pagã. Converteu-se ao cristianismo talvez levado por exigências filosóficas; desejoso de um
conhecimento mais profundo do cristianismo, empreendeu uma série de viagens em busca de mestres
cristãos. Depois de ter visitado a Magna Grécia, a Síria e a Palestina, foi, pelo ano 180, para Alexandria
do Egito, onde o seu espírito achou finalmente paz junto do eminente mestre Panteno. Falecido este no
ano 200, Clemente foi chamado para dirigir a famosa escola catequética, cabendo-lhe a glória de ter o
grande Orígines entre seus discípulos. Devido às perseguições anticristãs do imperador Setímio Severo,
que mandou fechar a escola, Clemente teve de suspender o seu ensino alguns anos depois. Retirou-se
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para a Ásia Menor, junto de um seu antigo discípulo, o bispo Alexandre de Capadócia, e morreu nessa
cidade entre 211 e 216.
Embora as preocupações de Clemente sejam sobretudo morais e pedagógicas, e os meios empregados,
satisfatoriamente, religiosos e cristãos sobretudo, valoriza ele também, e grandemente, a filosofia, à
maneira de Justino, sendo ademais dotado de uma erudição prodigiosa e de uma cultura incomparável.
As obras principais de Clemente são: o Protréptico - isto é, o Verbo promotor da vida cristã - pequena
apologia em doze capítulos, perfeitamente acabada na forma e no conteúdo; o Pedagogo, em três livros,
apresentado no primeiro o Verbo como educador das almas, e indicando nos demais dois livros os vícios
mais graves, que os cristãos devem evitar; os Strômata - tapetes - que é uma coleção de pensamentos,
considerações, dissertações filosóficas, morais e religiosas, de interesse especialmente ético.
Filosoficamente importante e característica é a distinção que faz Clemente dos cristãos em simples fiéis e
gnósticos, isto é, sábios, perfeitos. O gnóstico cristão, diversamente do simples fiel ou crente, é
consciente de sua fé, justificando-a e organizando-a racionalmente, filosoficamente. "Querendo
harmonizar a doutrina cristã com a filosofia pagã, acentuava demasiadamente a última, negligenciando
um tanto a Sagrada Escritura e a Tradição".
Discípulo de Clemente, Orígenes, chamado adamantino por sua energia incomparável, é o maior
expoente filosófico da escola alexandrina. Nasceu em Alexandria do Egito, pelo ano 185, de família cristã.
O precoce menino recebeu do pai, Leônidas, a primeira formação literária e, sobretudo, religiosa. Durante
a perseguição de Septímio Severo, Orígenes, desprezando os mais graves perigos, foi encarregado pelo
bispo de Alexandria, Demétrio, da direção da famosa escola didascaléion, que o seu mestre Clemente
teve que abandonar. Tinha então Orígenes dezoito anos. Aos vinte e cinco, sentindo a necessidade de
conhecer profundamente as doutrinas que desejava combater e querendo completar a sua formação,
escutou - como Plotino - as lições de Amônio Saca. Empreendeu então longas viagens para se instruir,
sobretudo, religiosamente, e para atender aos desejos de grandes personagens que queriam consultá-lo.
Ordenado sacerdote no ano 230 pelos bispos de Cesaréia e de Jerusalém, contra a vontade de seu bispo,
de volta à pátria, foi proibido por este de ensinar e foi condenado, devido também a algumas opiniões
heterodoxas contidas na sua grande obra Sobre os Princípios, e também por ciúme, talvez, no dizer de
São Jerônimo. Retirou-se então Orígenes para a Palestina, abrindo em Cesaréia uma escola teológica (
chamada depois neo-alexandrina - , que superou a de Alexandria pelo seu caráter científico. Aí lecionou
ainda durante vinte anos, falecendo em Tiro pelo ano 254.
A atividade literária de Orígenes não conhece igual, atribuindo-se-lhe milhares de obras. Prescindindo dos
escritos exegéticos e as céticos, que não nos interessam, mencionamos a obra Sobre os Princípios e os
oito livros Contra Celso. Por princípios Orígenes entende os artigos principais do ensino da Igreja, e as
verdades primordiais deduzidas mediante a razão teológica das premissas reveladas, por falta de
revelação formal. A obra Sobre os Princípios nos proporciona a ciência baseada na Revelação, e
representa uma suma teológica verdadeira e própria. Representa, talvez, a primeira grande síntese
doutrinal da Igreja, segundo a tendência metafísica dos doutores orientais. Granjeou ao autor grande
nomeada e contém o origenismo, que depois suscitou a grande polêmica origenista. A obra Contra Celso
é a mais célebre de Orígenes sob o aspecto apologético. É uma resposta à obra Sermão Verdadeiro de
Celso, filósofo pagão. Antes de tudo, declara Orígenes que a melhor apologia do cristianismo é
constituída pela vitalidade divina da Igreja, isto é, pela sua força e virtude para a reforma moral dos
homens e pela sua difusão universal, apesar dos ataques dos adversários. A maior parte do escrito é,
todavia, dedicada ao exame atento e pormenorizado das profecias, dos milagres e das afirmações
solenes de Cristo, visto que Celso, que tinha estudado as fontes do cristianismo, o ataca em todos os
pontos. Nesta obra, Orígenes ostenta uma erudição extraordinária, uma serenidade nobre e inigualável,
bem como uma fé inabalável. Orígenes pode ser considerado o verdadeiro fundador da teologia científica,
bem como o primeiro sistematizador do pensamento cristão em uma vasta síntese filosófica.

O IV Século: Os Luminares de Capadócia

O século quarto, especialmente a Segunda metade, representa a idade de ouro da Patrística. Basta
lembrar, para a igreja oriental, Atanásio, o malho do arianismo, os luminares de Capadócia - Basílio,
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Gregório Nazianzeno e Gregório de Nissa - , e João Crisóstomo, o mais celebrado representante da
escola de Antioquia; para a igreja ocidental, Ambrósio de Milão e Jerônimo. Os padres dessa época se
exprimem em aprimorada forma clássica e possuem uma profunda cultura filosófica. Os maiores dentre
eles são solidamente formados na solidão monástica e ascética e pertencem, geralmente, às altas classes
sociais. A igreja católica, declarada livre pelo Edito de Milão, protegida por Constantino, torna-se religião
do estado com Teodósio. Estas condições de paz e de privilégio, eram certamente favoráveis à cultura
cristã.
Entretanto, a grandeza da Patrística, no quarto século, não é tanto científica, quanto dogmática,
teológica. A teologia, sobretudo graças aos luminares de Capadócia, torna-se uma construção intelectual
sistemática, imponente, devido naturalmente à filosofia, à lógica aristotélica, que proporcionam o
instrumento, o método, para a precisão e a organização do dogma. As grandes heresias da época
obrigaram os padres a defender racionalmente, filosoficamente, a doutrina católica, atacada
especialmente por Ário (256-336), padre alexandrino oriundo da Líbia, negador da divindade do Verbo. A
heresia ariana - arianismo - foi condenada pelo concílio de Nicéia (325), sendo Atanásio o mais destacado
e forte opositor.
São João Crisóstomo, de Antioquia, nasceu de família ilustre, pelo ano 344. Recebeu uma educação
clássica aprimorada, estudando retórica, filosofia, direito, que, depois de batizado, valorizou cristãmente
na solidão e no ascetismo. Padre em Antioquia, e depois bispo de Constantinopla, faleceu, degredado
pela fé, em 407. É significativo neste grande prelado o senso profundo da vaidade do mundo, e a grande
estima do cristianismo, concebido como ascética.
Também os grandes representantes da escola neo-alexandrina, os luminares de Capadócia, foram
grandes testemunhas do caráter fundamentalmente ascético do Cristianismo. São Basílio, nascido em
Cesaréia de Capadócia pelo ano de 330 de família rica e cristã, fez longos e aprofundados estudos,
aperfeiçoando-se em Atenas. Recebido o batismo, abandona o mundo e se retira para a vida ascética,
organizando a vida solitária dos que o seguiram, e escrevendo uma Grande Regra e uma Pequena Regra,
para a vida monástica, em que a atividade dos monges é distribuída entre o trabalho, o estudo, a oração,
pelo que será considerado o legislador do monaquismo oriental. Trata-se, porém, de regras morais, e não
jurídicas, destinadas a um monaquismo culto, aristocrático. Grande admirador de Orígenes, insigne
promotor da beneficência cristã quando bispo de Cesaréia, e organizador da vida monástica na
Capadócia, faleceu em 379. Também São Gregório, chamado Nizianzeno, nasceu pelo ano 330 em
Capadócia, de família cristã, fez estudos aprofundados, que aperfeiçoou em Atenas. Também ele admirou
e praticou a vida ascética com o amigo Basílio, compartilhando com ele a admiração para com Orígenes.
Bispo de Sásima antes e, em seguida, de Constantinopla, inflamou os fiéis com a sua pregação brilhante
e comovedora. Aristocrático e delicado, pouco afeito à vida prática, retirou-se depois para a solidão, em
conformidade com o seu ideal ascético e contemplativo, falecendo pelo ano 390.
São Gregório de Nissa foi o maior dos luminares de Capadócia e, talvez, de todos os padres gregos
sob o aspecto especulativo e filosófico. Irmão de Basílio, nasceu pelo ano 355 em Cesaréia e recebida
uma informação cultural aprimorada, foi destinado ao estado eclesiástico; entretanto, deixou-se desviar
da sua vocação, foi professor de retórica e casou-se. As exortações do irmão e de Gregório Nazianzeno
persuadiram-no da vaidade do mundo, até que afinal, abandonando a cátedra de retórica, retirou-se para
a vida ascética contemplativa. Em seguida, foi feito bispo de Nissa, cidadezinha da Capadócia, primando
pela sua cultura teológica e filosófica. Faleceu, provavelmente, em 395. Gregório de Nissa é o maior
filósofo dos padres gregos. Esforça-se para mostrar que os dados da razão e os ensinamentos da fé não
se hostilizam, mas se harmonizam reciprocamente. Possui, como verdadeiro filósofo, o gosto das
definições claras e das classificações metódicas. Como em teologia é origenista, em filosofia é
neoplatônico.

Santo Agostinho
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A Vida e as Obras

Aurélio Agostinho destaca-se entre os Padres como Tomás de Aquino se destaca entre os Escolásticos. E
como Tomás de Aquino se inspira na filosofia de Aristóteles, e será o maior vulto da filosofia metafísica
cristã, Agostinho inspira-se em Platão, ou melhor, no neoplatonismo. Agostinho, pela profundidade do
seu sentir e pelo seu gênio compreensivo, fundiu em si mesmo o caráter especulativo da patrística grega
com o caráter prático da patrística latina, ainda que os problemas que fundamentalmente o preocupam
sejam sempre os problemas práticos e morais: o mal, a liberdade, a graça, a predestinação.
Aurélio Agostinho nasceu em Tagasta, cidade da Numídia, de uma família burguesa, a 13 de novembro
do ano 354. Seu pai, Patrício, era pagão, recebido o batismo pouco antes de morrer; sua mãe, Mônica,
pelo contrário, era uma cristã fervorosa, e exercia sobre o filho uma notável influência religiosa. Indo
para Cartago, a fim de aperfeiçoar seus estudos, começados na pátria, desviou-se moralmente. Caiu em
uma profunda sensualidade, que, segundo ele, é uma das maiores conseqüências do pecado original;
dominou-o longamente, moral e intelectualmente, fazendo com que aderisse ao maniqueísmo, que
atribuía realidade substancial tanto ao bem como ao mal, julgando achar neste dualismo maniqueu a
solução do problema do mal e, por conseqüência, uma justificação da sua vida. Tendo terminado os
estudos, abriu uma escola em Cartago, donde partiu para Roma e, em seguida, para Milão. Afastou-se
definitivamente do ensino em 386, aos trinta e dois anos, por razões de saúde e, mais ainda, por razões
de ordem espiritual.
Entrementes - depois de maduro exame crítico - abandonara o maniqueísmo, abraçando a filosofia
neoplatônica que lhe ensinou a espiritualidade de Deus e a negatividade do mal. Destarte chegara a uma
concepção cristã da vida - no começo do ano 386. Entretanto a conversão moral demorou ainda, por
razões de luxúria. Finalmente, como por uma fulguração do céu, sobreveio a conversão moral e absoluta,
no mês de setembro do ano 386. Agostinho renuncia inteiramente ao mundo, à carreira, ao matrimônio;
retira-se, durante alguns meses, para a solidão e o recolhimento, em companhia da mãe, do filho e
dalguns discípulos, perto de Milão. Aí escreveu seus diálogos filosóficos, e, na Páscoa do ano 387,
juntamente com o filho Adeodato e o amigo Alípio, recebeu o batismo em Milão das mãos de Santo
Ambrósio, cuja doutrina e eloqüência muito contribuíram para a sua conversão. Tinha trinta e três anos
de idade.
Depois da conversão, Agostinho abandona Milão, e, falecida a mãe em Óstia, volta para Tagasta. Aí
vendeu todos os haveres e, distribuído o dinheiro entre os pobres, funda um mosteiro numa das suas
propriedades alienadas. Ordenado padre em 391, e consagrado bispo em 395, governou a igreja de
Hipona até à morte, que se deu durante o assédio da cidade pelos vândalos, a 28 de agosto do ano 430.
Tinha setenta e cinco anos de idade.
Após a sua conversão, Agostinho dedicou-se inteiramente ao estudo da Sagrada Escritura, da teologia
revelada, e à redação de suas obras, entre as quais têm lugar de destaque as filosóficas. As obras de
Agostinho que apresentam interesse filosófico são, sobretudo, os diálogos filosóficos: Contra os
acadêmicos, Da vida beata, Os solilóquios, Sobre a imortalidade da alma, Sobre a quantidade da alma,
Sobre o mestre, Sobre a música. Interessam também à filosofia os escritos contra os maniqueus: Sobre
os costumes, Do livre arbítrio, Sobre as duas almas, Da natureza do bem.
Dada, porém, a mentalidade agostiniana, em que a filosofia e a teologia andam juntas, compreende-se
que interessam à filosofia também as obras teológicas e religiosas, especialmente: Da Verdadeira
Religião, As Confissões, A Cidade de Deus, Da Trindade, Da Mentira.

O Pensamento: A Gnosiologia

Agostinho considera a filosofia praticamente, platonicamente, como solucionadora do problema da vida,


ao qual só o cristianismo pode dar uma solução integral. Todo o seu interesse central está portanto,
circunscrito aos problemas de Deus e da alma, visto serem os mais importantes e os mais imediatos para
a solução integral do problema da vida.
O problema gnosiológico é profundamente sentido por Agostinho, que o resolve, superando o ceticismo
acadêmico mediante o iluminismo platônico. Inicialmente, ele conquista uma certeza: a certeza da
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própria existência espiritual; daí tira uma verdade superior, imutável, condição e origem de toda
verdade particular. Embora desvalorizando, platonicamente, o conhecimento sensível em relação ao
conhecimento intelectual, admite Agostinho que os sentidos, como o intelecto, são fontes de
conhecimento. E como para a visão sensível além do olho e da coisa, é necessária a luz física, do mesmo
modo, para o conhecimento intelectual, seria necessária uma luz espiritual. Esta vem de Deus, é a
Verdade de Deus, o Verbo de Deus, para o qual são transferidas as idéias platônicas. No Verbo de Deus
existem as verdades eternas, as idéias, as espécies, os princípios formais das coisas, e são os modelos
dos seres criados; e conhecemos as verdades eternas e as idéias das coisas reais por meio da luz
intelectual a nós participada pelo Verbo de Deus. Como se vê, é a transformação do inatismo, da
reminiscência platônica, em sentido teísta e cristão. Permanece, porém, a característica fundamental, que
distingue a gnosiologia platônica da aristotélica e tomista, pois, segundo a gnosiologia platônica-
agostiniana, não bastam, para que se realize o conhecimento intelectual humano, as forças naturais do
espírito, mas é mister uma particular e direta iluminação de Deus.

A Metafísica

Em relação com esta gnosiologia, e dependente dela, a existência de Deus é provada,


fundamentalmente, a priori, enquanto no espírito humano haveria uma presença particular de Deus. Ao
lado desta prova a priori, não nega Agostinho as provas a posteriori da existência de Deus, em especial a
que se afirma sobre a mudança e a imperfeição de todas as coisas. Quanto à natureza de Deus,
Agostinho possui uma noção exata, ortodoxa, cristã: Deus é poder racional infinito, eterno, imutável,
simples, espírito, pessoa, consciência, o que era excluído pelo platonismo. Deus é ainda ser, saber, amor.
Quanto, enfim, às relações com o mundo, Deus é concebido exatamente como livre criador. No
pensamento clássico grego, tínhamos um dualismo metafísico; no pensamento cristão - agostiniano -
temos ainda um dualismo, porém moral, pelo pecado dos espíritos livres, insurgidos orgulhosamente
contra Deus e, portanto, preferindo o mundo a Deus. No cristianismo, o mal é, metafisicamente,
negação, privação; moralmente, porém, tem uma realidade na vontade má, aberrante de Deus. O
problema que Agostinho tratou, em especial, é o das relações entre Deus e o tempo. Deus não é no
tempo, o qual é uma criatura de Deus: o tempo começa com a criação. Antes da criação não há tempo,
dependendo o tempo da existência de coisas que vem-a-ser e são, portanto, criadas.
Também a psicologia agostiniana harmonizou-se com o seu platonismo cristão. Por certo, o corpo não é
mau por natureza, porquanto a matéria não pode ser essencialmente má, sendo criada por Deus, que fez
boas todas as coisas. Mas a união do corpo com a alma é, de certo modo, extrínseca, acidental: alma e
corpo não formam aquela unidade metafísica, substancial, como na concepção aristotélico-tomista, em
virtude da doutrina da forma e da matéria. A alma nasce com o indivíduo humano e, absolutamente, é
uma específica criatura divina, como todas as demais. Entretanto, Agostinho fica indeciso entre o
criacionismo e o traducionismo, isto é, se a alma é criada diretamente por Deus, ou provém da alma dos
pais. Certo é que a alma é imortal, pela sua simplicidade. Agostinho, pois, distingue, platonicamente, a
alma em vegetativa, sensitiva e intelectiva, mas afirma que elas são fundidas em uma substância
humana. A inteligência é divina em intelecto intuitivo e razão discursiva; e é atribuída a primazia à
vontade. No homem a vontade é amor, no animal é instinto, nos seres inferiores cego apetite.
Quanto à cosmologia, pouco temos a dizer. Como já mais acima se salientou, a natureza não entra nos
interesses filosóficos de Agostinho, preso pelos problemas éticos, religiosos, Deus e a alma.
Mencionaremos a sua famosa doutrina dos germes específicos dos seres - rationes seminales. Deus, a
princípio, criou alguns seres já completamente realizados; de outros criou as causas que, mais tarde,
desenvolvendo-se, deram origem às existências dos seres específicos. Esta concepção nada tem que ver
com o moderno evolucionismo, como alguns erroneamente pensaram, porquanto Agostinho admite a
imutabilidade das espécies, negada pelo moderno evolucionismo.
96
A Moral

Evidentemente, a moral agostiniana é teísta e cristã e, logo, transcendente e ascética. Nota característica
da sua moral é o voluntarismo, a saber, a primazia do prático, da ação - própria do pensamento latino - ,
contrariamente ao primado do teorético, do conhecimento - próprio do pensamento grego. A vontade
não é determinada pelo intelecto, mas precede-o. Não obstante, Agostinho tem também atitudes
teoréticas como, por exemplo, quando afirma que Deus, fim último das criaturas, é possuído por um ato
de inteligência. A virtude não é uma ordem de razão, hábito conforme à razão, como dizia Aristóteles,
mas uma ordem do amor.
Entretanto a vontade é livre, e pode querer o mal, pois é um ser limitado, podendo agir
desordenadamente, imoralmente, contra a vontade de Deus. E deve-se considerar não causa eficiente,
mas deficiente da sua ação viciosa, porquanto o mal não tem realidade metafísica. O pecado, pois, tem
em si mesmo imanente a pena da sua desordem, porquanto a criatura, não podendo lesar a Deus,
prejudica a si mesma, determinando a dilaceração da sua natureza. A fórmula agostiniana em torno da
liberdade em Adão - antes do pecado original - é: poder não pecar; depois do pecado original é: não
poder não pecar; nos bem-aventurados será: não poder pecar. A vontade humana, portanto, já é
impotente sem a graça. O problema da graça - que tanto preocupa Agostinho - tem, além de um
interesse teológico, também um interesse filosófico, porquanto se trata de conciliar a causalidade
absoluta de Deus com o livre arbítrio do homem. Como é sabido, Agostinho, para salvar o primeiro
elemento, tende a descurar o segundo.
Quanto à família, Agostinho, como Paulo apóstolo, considera o celibato superior ao matrimônio; se o
mundo terminasse por causa do celibato, ele alegrar-se-ia, como da passagem do tempo para a
eternidade. Quanto à política, ele tem uma concepção negativa da função estatal; se não houvesse
pecado e os homens fossem todos justos, o Estado seria inútil. Consoante Agostinho, a propriedade seria
de direito positivo, e não natural. Nem a escravidão é de direito natural, mas conseqüência do pecado
original, que perturbou a natureza humana, individual e social. Ela não pode ser superada naturalmente,
racionalmente, porquanto a natureza humana já é corrompida; pode ser superada sobrenaturalmente,
asceticamente, mediante a conformação cristã de quem é escravo e a caridade de quem é amo.

O Mal

Agostinho foi profundamente impressionado pelo problema do mal - de que dá uma vasta e viva
fenomenologia. Foi também longamente desviado pela solução dualista dos maniqueus, que lhe impediu
o conhecimento do justo conceito de Deus e da possibilidade da vida moral. A solução deste problema
por ele achada foi a sua libertação e a sua grande descoberta filosófico-teológica, e marca uma diferença
fundamental entre o pensamento grego e o pensamento cristão. Antes de tudo, nega a realidade
metafísica do mal. O mal não é ser, mas privação de ser, como a obscuridade é ausência de luz. Tal
privação é imprescindível em todo ser que não seja Deus, enquanto criado, limitado. Destarte é explicado
o assim chamado mal metafísico, que não é verdadeiro mal, porquanto não tira aos seres o lhes é devido
por natureza. Quanto ao mal físico, que atinge também a perfeição natural dos seres, Agostinho procura
justificá-lo mediante um velho argumento, digamos assim, estético: o contraste dos seres contribuiria
para a harmonia do conjunto. Mas é esta a parte menos afortunada da doutrina agostiniana do mal.
Quanto ao mal moral, finalmente existe realmente a má vontade que livremente faz o mal; ela, porém,
não é causa eficiente, mas deficiente, sendo o mal não-ser. Este não-ser pode unicamente provir do
homem, livre e limitado, e não de Deus, que é puro ser e produz unicamente o ser. O mal moral entrou
no mundo humano pelo pecado original e atual; por isso, a humanidade foi punida com o sofrimento,
físico e moral, além de o ter sido com a perda dos dons gratuitos de Deus. Como se vê, o mal físico tem,
deste modo, uma outra explicação mais profunda. Remediou este mal moral a redenção de Cristo,
Homem-Deus, que restituiu à humanidade os dons sobrenaturais e a possibilidade do bem moral; mas
deixou permanecer o sofrimento, conseqüência do pecado, como meio de purificação e expiação. E a
explicação última de tudo isso - do mal moral e de suas conseqüências - estaria no fato de que é mais
glorioso para Deus tirar o bem do mal, do que não permitir o mal. Resumindo a doutrina agostiniana a
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respeito do mal, diremos: o mal é, fundamentalmente, privação de bem (de ser); este bem pode ser
não devido (mal metafísico) ou devido (mal físico e moral) a uma determinada natureza; se o bem é
devido nasce o verdadeiro problema do mal; a solução deste problema é estética para o mal físico, moral
(pecado original e Redenção) para o mal moral (e físico).

A História

Como é notório, Agostinho trata do problema da história na Cidade de Deus, e resolve-o ainda com os
conceitos de criação, de pecado original e de Redenção. A Cidade de Deus representa, talvez, o maior
monumento da antigüidade cristã e, certamente, a obra prima de Agostinho. Nesta obra é contida a
metafísica original do cristianismo, que é uma visão orgânica e inteligível da história humana. O conceito
de criação é indispensável para o conceito de providência, que é o governo divino do mundo; este
conceito de providência é, por sua vez, necessário, a fim de que a história seja suscetível de
racionalidade. O conceito de providência era impossível no pensamento clássico, por causa do basilar
dualismo metafísico. Entretanto, para entender realmente, plenamente, o plano da história, é mister a
Redenção, graças aos quais é explicado o enigma da existência do mal no mundo e a sua função. Cristo
tornara-se o centro sobrenatural da história: o seu reino, a cidade de Deus, é representada pelo povo de
Israel antes da sua vinda sobre a terra, e pela Igreja depois de seu advento. Contra este cidade se ergue
a cidade terrena, mundana, satânica, que será absolutamente separada e eternamente punida nos fins
dos tempos.
Agostinho distingue em três grandes seções a história antes de Cristo. A primeira concerne à história das
duas cidades, após o pecado original, até que ficaram confundidas em um único caos humano, e chega
até a Abraão, época em que começou a separação. Na Segunda descreve Agostinho a história da cidade
de Deus, recolhida e configurada em Israel, de Abraão até Cristo. A terceira retoma, em separado, a
narrativa do ponto em que começa a história da Cidade de Deus separada, isto é, desde Abraão, para
tratar paralela e separadamente da Cidade do mundo, que culmina no império romano. Esta história,
pois, fragmentária e dividida, onde parece que Satanás e o mal têm o seu reino, representa, no fundo,
uma unidade e um progresso. É o progresso para Cristo, sempre mais claramente, conscientemente e
divinamente esperado e profetizado em Israel; e profetizado também, a seu modo, pelos povos pagãos,
que, consciente ou inconscientemente, lhe preparavam diretamente o caminho. Depois de Cristo cessa a
divisão política entre as duas cidades; elas se confundem como nos primeiros tempos da humanidade,
com a diferença, porém, de que já não é mais união caótica, mas configurada na unidade da Igreja. Esta
não é limitada por nenhuma divisão política, mas supera todas as sociedades políticas na universal
unidade dos homens e na unidade dos homens com Deus. A Igreja, pois, é acessível, invisivelmente,
também às almas de boa vontade que, exteriormente, dela não podem participar. A Igreja transcende,
ainda, os confins do mundo terreno, além do qual está a pátria verdadeira. Entretanto, visto que todos,
predestinados e ímpios, se encontram empiricamente confundidos na Igreja - ainda que só na unidade
dialética das duas cidades, para o triunfo da Cidade de Deus - a divisão definitiva, eterna, absoluta,
justíssima, realizar-se-á nos fins dos tempos, depois da morte, depois do juízo universal, no paraíso e no
inferno. É uma grande visão unitária da história, não é uma visão filosófica, mas teológica: é uma
teologia, não uma filosofia da história.

A Escolástica

Características Gerais

A Escolástica representa o último período do pensamento cristão, que vai do começo do século IX até o
fim do século XVI, isto é, da constituição do sacro romano império bárbaro, ao fim da Idade Média, que
se assinala geralmente com a descoberta da América (1492). Este período do pensamento cristão se
designa com o nome de escolástica, porquanto era a filosofia ensinada nas escolas da época, pelos
mestres, chamados, por isso, escolásticos. As matérias ensinadas nas escolas medievais eram
representadas pelas chamadas artes liberais, divididas em trívio - gramática, retórica, dialética - e
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quadrívio - aritmética, geometria, astronomia, música. A escolástica surge, historicamente, do especial
desenvolvimento da dialética.
A falta dessa distinção - específica do pensamento agostiniano - manifesta-se não apenas na corrente
chamada mística, mas também na orientação denominada dialética do pensamento medieval pré-tomista.
Misticismo e dialeticismo, todavia, se diferenciam profundamente entre si. O segundo, com efeito,
embora parta da revelação e do sobrenatural, toma-os como dados e pretende penetrá-los mediante a
filosofia, até procurar as razões necessárias dos mistérios, finalizando uma espécie de racionalismo
(Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo). É, porém, um racionalismo inconsciente, proveniente da ignorância
da verdadeira natureza e dos verdadeiros limites da razão. E, mesmo que os resultados lógicos pudessem
ser os mesmos do racionalismo verdadeiro e próprio, o escopo não era reduzir a religião aos limites da
razão humana, mas levantar esta à compreensão do supra-inteligível, a uma espécie de intuição mística.
A tendência mística, pelo contrário, (São Pedro Damião e São Bernardo de Claraval) põe, acima e contra
a razão e o intelecto, uma outra forma de conhecimento, de experiência do Divino: o sentimento, a fé, a
vontade, o amor, culminando na união mística, no êxtase.
Depois destas premissas, podemos dividir a escolástica em três períodos, colocando o período central da
escolástica a figura soberana de Tomás de Aquino. Teremos, assim, um período pré-tomista em que
persiste a tendência teológica-agostiniana. Este primeiro período da escolástica vai do começo do século
IX (Carlos Magno) até à metade do século XIII (Tomás de Aquino), e pode ser assim dividido: séculos IX
e X (Scoto Erígena e a questão dos universais); séculos XI e XII (místicos e dialéticos); século XIII (o
triunfo do aristotelismo).
O segundo período da escolástica é dominado pela figura soberana de Tomás de Aquino, o Aristóteles do
pensamento filosófico cristão; este período coincide com a Segunda metade do século XIII.
Depois de Tomás de Aquino, a escolástica declina como metafísica (séculos XIV e XV), devido a um
anacrônico e ilógico retorno ao agostinianismo. Afirmam-se, entretanto, ao mesmo tempo, tendências
novas para a experiência e a concretidade, representando como que o prelúdio do pensamento moderno.
Tal desenvolvimento da escolástica no sentido da experiência e da concretidade, é devido em especial
aos franciscanos ingleses de Osford - Rogério Bacon, Duns Scoto, Guilherme de Occam -, em
conformidade com as tendências positivas e práticas do espírito anglo-saxônio.

Educação e Cultura na Idade Média

Carlos Magno pretendia dar uma unidade interior, espiritual, ao seu vasto e vário império e, portanto,
educar intelectual, moral e religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Deste modo restauraria
a civilização e a religião, a cultura clássica e o catolicismo e lhes daria incremento. Para tanto, o meio
natural eram as escolas, e o clero se apresentava como o mais apto e preparado docente, quer pelo seu
imanente caráter de mestre do povo, quer pela cultura de que era dotado. Na intenção de Carlos Magno,
complexo devia ser o papel das escolas, que ele ia fundando e desenvolvendo: formar, antes de tudo,
mestres adequados para as escolas, isto é, um clero culto; educar, em seguida, a massa popular, seu
escopo final; preparar uma classe dirigente em geral e, em especial, os funcionários do império.
Havia nos mosteiros beneditinos escolas monásticas, surgidas da própria exigência de uma observância
adequada da Regra de São Bento. Paulatinamente espalharam-se também as escolas episcopais,
imitações atualizadas das escolas catequéticas do cristianismo primitivo. As escolas monásticas dos
mosteiros visavam, antes de tudo, a formação dos monges futuros (escolas internas), e, depois, a
formação dos leigos cultos (escolas externas), proporcionando, ao mesmo tempo, o ensino religioso e os
rudimentos das ciências profanas. O programa de ensino era, inicialmente, bastante elementar: leitura,
aprender a escrever, canto orfeônico e um tanto de aritmética. As escolas episcopais - que surgem nas
cidades, ao passo que as escolas monásticas surgem nos mosteiros afastados das cidades - visavam, em
especial, a formação do clero secular e também de leigos instruídos, para a vida civil. Presidia a estas
escolas um eclesiástico chamado scholasticus, dependente diretamente do bispo, donde o nome de
escolástica à doutrina e, por conseguinte, à filosofia ensinadas. Os docentes eram também eclesiásticos e
denominados também scholastici. Carlos Magno dará muito incremento a ambas as escolas e, ademais,
fundará junto da corte imperial a assim chamada escola palatina, que pode ser considerada como a
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primeira universidade medieval. Mencionamos também como, com o correr do tempo, no âmbito das
paróquias, as escolas paroquiais, destinadas a ensinar ao povo os primeiros elementos do saber.
Para elaborar o seu vasto plano de política escolar, Carlos Magno chamou à corte Alcuíno (735-804, mais
ou menos), que veio da Inglaterra, o viveiro da cultura naquela época. E sob a sua inspiração, a partir do
ano 787, foram emanados os decretos capitulares para a organização das escolas, enquanto o douto
inglês ditava-lhes o programa relativo, que se espalhou pelo vasto império e perdurou invariado,
podemos dizer, durante toda a Idade Média.
O programa de Alcuíno abraçava as sete artes liberais, de que acima falamos, repartidas no trívio e no
quadrívio. O trívio abraçava as disciplinas formais: gramática, retórica, dialética, esta última
desenvolvendo-se, mais tarde, na filosofia; o quadrívio abraçava as disciplinas reais: aritmética,
geometria, astronomia, música, e, mais tarde, a medicina.
Sob a direção de Alcuíno, foi constituída junto da corte de Carlos Magno a famosa escola palatina. Nela
ensinaram os homens mais famosos da época, como, por exemplo, o historiador Paulo Diácono, o
gramático Pedro de Pisa, o teólogo Paulino de Aquiléia. Freqüentavam esta escolas o próprio imperador,
os príncipes e os jovens da nobreza. Outras escolas surgiram, em seguida, especialmente na França,
modeladas na escola palatina.
Ao lado desta instrução e educação eclesiásticas, ministradas por eclesiásticos e, sobretudo, a
eclesiásticos, temos na Idade Média uma educação militar, ministrada por militares e a militares; a Igreja,
bem cedo, imprimiu também a esta educação uma orientação ética, religiosa, católica. Como é sabido, o
feudalismo é uma organização social, política, econômica, militar, inicialmente baseada na força, segundo
o espírito dos bárbaros dominadores.

A Escolástica Pré-Tomista

Os Séculos IX e X:

Scoto Erígena e o Problema dos Universais

A história da filosofia escolástica começa propriamente com o nome de Scoto Erígena. João Scoto
Erígena nasceu na Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua céltica, donde o nome de Scoto Erígena.
Pelo ano de 874 é chamado à corte culta e brilhante de Carlos o Calvo, para presidir e lecionar na escola
palatina. Parece Ter falecido em França pelo ano 877. A sua obra principal é Da Divisão da Natureza
(847), em cinco livros; é um diálogo entre mestre e discípulo e se inspira no neoplatonismo do pseudo
Dionísio Areopagita, que Erígena traduziu do grego para o latim. Foi condenada pela Igreja (1225), e
pode-se dizer que representa a falência definitiva das tentativas de síntese entre neoplatonismo
emanatista e criacionismo cristão.
Erígena parte da revelação divina para, depois, penetrar os mistérios mediante a razão iluminada por
Deus. Tal pretensão de penetrar racionalmente os mistérios revelados devia acabar logicamente no
racionalismo e, por conseqüência, na supressão do sobrenatural, por mais ortodoxa que fosse a intenção
do autor.
Eminentemente neoplatônico é o esquema especulativo de Da Divisão da Natureza: a descida da Unidade
à multiplicidade, e retorno da multiplicidade à Unidade. De Deus desce-se às idéias supremas, aos
gêneros, às espécies, aos indivíduos, e vice-versa. Deste modo, a divisão da natureza, da realidade, fica
assim configurada:
1°. - A natureza que não é criada e cria (Deus Padre);
2°. - A natureza que é criada e cria (o Verbo de Deus, em que são contidas as idéias eternas, exemplares
e causas das coisas);
3°. - A natureza que é criada e não cria (as coisas, realizadas mediante o Espírito de Deus);
4°. - A natureza que não é criada e não cria (isto é, Deus, concebido, porém, como ômega, termo, fim
da realidade, e não como alfa, princípio). Como se vê, as fases primeira e Quarta coincidem (Deus = não
criado), bem como coincidem as fases Segunda e terceira (mundo = criado).
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O problema dos universais, isto é, do valor dos conceitos, das idéias, problema que tão cedo e tão
longamente interessou a escolástica, teve uma solução radical no pensamento escotista. Que valor têm
os conceitos, que são universais, em relação e enquanto representativos das coisas, que são, ao
contrário, particulares? O problema tem uma importância fundamental filosófica, não apenas lógica e
dialética, mas também gnosiológica e metafísica.
As soluções desse problema oferecidas pela escolástica são substancialmente, três: a solução chamada
do realismo transcendente (platônica); a solução do realismo moderado, imanente (aristotélica); a
solução nominalista.
Segundo a solução do realismo transcendente, o universal, a idéia de uma realidade em si, não existe
apenas fora da mente, mas também fora do objeto (universal ante rem): - é a solução platônica,
geralmente adotada pela escolástica incipiente. Segundo a solução do realismo moderado, imanente, o
universal tem em si uma realidade objetiva, fora da mente, mas é imanente nos objetos singulares de
que é essência, forma, princípio ativo (universal in re): - corresponde à posição aristotélica, com a
doutrina da forma que determina a matéria. A solução conceptualista-nominalista sustenta que o
universal não tem nenhuma existência objetiva, mas apenas mental (universal post rem), ou até
puramente nominal (nominalismo) - no mundo clássico esta posição é defendida pelos sofistas, estóicos,
epicuristas, céticos, isto é, pelas gnosiologias empirista e sensitista.

Os Séculos XI e XII:

Místicos e Dialéticos

Depois da decadência cultural que se seguiu à renascença carolíngia, começa e se manifesta nos séculos
XI e XII um renascimento especulativo. E isto não obstante a luta dos teólogos, dos místicos, contra a
ciência (a filosofia) por eles considerada um resíduo pagão, uma distração mundana, vaidade e orgulho;
e, portanto, contra os filósofos, e os dialéticos que a cultivavam. Os maiores representantes da corrente
mística são: São Pedro Damião no século XI, São Bernardo de Claraval no século XII; da corrente
dialética os maiores expoentes são: Santo Anselmo de Aosta no século XI e Pedro Abelardo no século
XII.
São Pedro Damião, cardeal e arcebispo ostiense, conselheiro do monge Hildebrando, mais tarde Papa
Gregório VII, escreveu Da Divina Onipotência. Nesta obra enaltece a onipotência de Deus, até colocá-la
acima de toda lei racional, inclusive o princípio de contradição; daí a vaidade da ciência, da filosofia para
entender Deus e as suas obras. São Bernardo de Claraval rejeita, asceticamente, o saber profano
como um perigo e um luxo. A verdadeira sabedoria consiste no conhecimento da própria miséria, na
compaixão para com a miséria do próximo, na contemplação de Deus, dos divinos mistérios, de Cristo
crucificado, e culmina no êxtase. O caminho da sabedoria é a humildade.
Santo Anselmo (1033-1109) nasceu em Aosta; foi monge prior e abade do mosteiro beneditino de Bec
na Normandia e, depois, arcebispo de Canterbury na Inglaterra. As suas obras principais são: O
Monologium, onde se propõe demonstrar a existência de Deus com um argumento simples e evidente,
capaz de convencer imediatamente o ateu. Anselmo de Aosta é o primeiro grande filósofo medieval, após
Scoto Erígena. Também ele é um platônico-agostiniano. O seu lema é: creio para compreender, o que
significa partir da revelação divina, da fé e não da razão; mas é preciso penetrar depois a fé mediante a
razão.
O nome de Anselmo de Aosta é ligado ao famoso argumento ontológico, a priori, para demonstrar a
existência de Deus; este argumento é contido no Proslogium. Pretende ele demonstrar a existência de
Deus, partindo do mero conceito de Deus. O conceito que temos de Deus é o de um ser perfeitíssimo e,
logo, Deus deve também existir realmente, do contrário não mais seria perfeitíssimo, faltando-lhe a
existência. Em realidade, o argumento ontológico não vale: porquanto não podemos, no nosso
conhecimento, passar da ordem lógica para a ordem ontológica, das idéias aos fatos, mas deve-se passar
das coisas às idéias, da ordem real à ordem ideal.
Pedro Abelardo (1097-1142), natural de Bretanha, estudante e, mais tarde, professor famoso em Paris,
centro cultural do mundo católico, tornou-se religioso e foi peregrinando por muitos mosteiros e cátedras,
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após uma aventura amorosa com Heloísa, que lhe acarretou trágicas conseqüências. Acusado de
heresia, foi condenado por dois concílios. Abelardo é uma das mais originais figuras do mundo medieval,
mesmo faltando-lhe a profundidade e a capacidade sistemática de Santo Anselmo. Em conclusão,
Abelardo é, ao mesmo tempo, filósofo e teólogo, grego e cristão, cético e sistemático, com um grande
pendor para a crítica e a dialética.
Escreveu as obras seguintes: História das Calamidades, conto biográfico da sua aventura com Heloísa;
Dialética; Conhece-te a ti mesmo; Sic et non. No ensaio ético Conhece-te a ti mesmo valoriza, na vida
moral, o elemento subjetivo, intencional, - elemento descurado na Idade Média - em confronto com o
elemento objetivo, legal. Reconhecendo embora que são necessários os dois elementos, a fim de que
haja ação plenamente moral, Abelardo sustenta ser mais moral um ato executado com reta intenção,
ainda que objetivamente mau, do que um ato executado conforme a lei, mas com intenção má. Também
interessante é a sua posição crítica na pesquisa filosófica: a dúvida nos leva para a investigação, a
investigação nos leva à ciência. Na obra Sic et non - coleção de sentenças contrastantes dos padres
sobre assuntos da Escritura e da teologia - Abelardo se integra nas fileiras dos sentenciários, isto é, dos
autores dos libri sententiarum entre os quais o mais famoso é Pedro Lombardo, (século XII), chamado
precisamente magister sententiarum. Os livros das sentenças eram coleções sistemáticas - mais ou
menos críticas - das doutrinas das Padres, ordenadas segundo o esquema: Deus, criação, queda,
redenção, meios de salvação. Preparam as grandes sumas medievais, especialmente as tomistas, que são
construções sistemáticas elaboradas criticamente.
Encerra-se assim o século XII e está nos albores o século XIII, o século de ouro da escolástica e do
pensamento filosófico cristão.

O Século XIII: O Triunfo de Aristóteles

A atividade filosófica da escolástica pré-tomista foi essencialmente lógico-dialética e, logo, formal. Esta
atividade formal, intensa e penetrante, esperava um conteúdo adequado, racional, filosófico. E tal
conteúdo lhe foi proporcionado pela descoberta do sistema aristotélico integral, que representa o ápice
do pensamento helênico. O mundo latino-cristão, escolástico, depois de conhecido Aristóteles através da
cultura árabe, apaixonou-se pela filosofia aristotélica, que estudou intensamente. Este movimento
cultural e filosófico se desenvolveu especialmente no âmbito das universidades, então surgidas e
organizadas eficientemente, graças aos pensadores pertencentes às ordens religiosas, os quais a tudo
renunciaram, salvo à ciência e à caridade.
A atitude do mundo latino-cristão perante Aristóteles foi tríplice: uma decidida aversão à filosofia que
queria constituir-se unicamente com meios racionais, e um retorno ao agostianismo (São Boaventura);
um culto idolátrico para com o Estagirita, que foi identificado com a própria razão humana e preferido, no
fundo, à revelação cristã, quando não concordava com a razão (averroísmo latino); uma aceitação e
valorização do sistema aristotélico, mas crítica e racional, pelo qual se chegou à construção de uma
filosofia distinta e autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé (Tomás de Aquino).
Como dissemos, foram os árabes - e secundariamente os hebreus - que levaram ao conhecimento do
mundo latino-cristão a filosofia de Aristóteles. Os árabes, após terem conquistado o oriente helenista,
entraram em contato com a cultura grega, especialmente na Síria. Em seguida, estendendo suas
conquistas até o ocidente europeu, trouxeram-lhe a própria cultura impregnada de aristotelismo. Os
árabes foram admiradores de Aristóteles e da sua filosofia, que salvaram das invasões bárbaras durante
as trevas medievais do Ocidente latino. E assim, originariamente bárbaros eles mesmos, os árabes, por
sua vez, foram civilizados pelo pensamento grego, aristotélico. Os maiores filósofos árabes conhecedores
de Aristóteles e que influíram profundamente sobre o Ocidente latino-cristão, foram Avicena e Averroés.
Avicena tentou harmonizar a filosofia aristotélica com a religião islâmica. Averroés, - o famoso
comentador de Aristóteles - afirmava ao invés a subordinação da religião a filosofia quando as
argumentações delas fossem contrastantes, e considerava a religião como uma filosofia simbólica para o
vulgo.
Era preciso traduzir do árabe para o latim as obras de Aristóteles e os comentários árabes. Foi o que fez,
nos meados do século XII, uma sociedade de homens cultos surgida em Toledo, na Espanha. Mais tarde
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sentiu-se a necessidade de traduzir diretamente do grego as obras de Aristóteles, e, por conselho de
Tomás de Aquino, Guilherme de Maerbeke (falecido em 1286) fez essa tradução, que proporcionou aos
latinos o conhecimento do genuíno pensamento do Estagirita.
Ao mesmo tempo se desenvolveram as universidades, as grandes universidades medievais, surgidas
geralmente das escolas episcopais; famosas mais que todas as outras, foram as universidades de Paris e
de Oxford. A universidade de Paris, a mais ilustre universidade da Idade Média, desenvolveu
especialmente a filosofia e a teologia, inspirando-se na mentalidade aristotélica, ao passo que a
universidade de Oxford dedicou-se especialmente às ciências naturais, inspirando-se na mentalidade
agostiniana. O conjunto dos professores e dos alunos da universidade de Paris, em princípios do século
XII, constituiu um corpo único, uma universitas única, e obteve das autoridades civis e religiosas
reconhecimento jurídico e grandes privilégios. Especialmente os papas protegeram a universidade de
Paris, devido à importância que tinha naquele estabelecimento do ensino superior universitário a teologia.
Desta sorte, tal universidade se tornou como que a cidadela cultural da ortodoxia católica, o seminário
dos filósofos e dos teólogos de todo mundo.
Nessas universidades recém-organizadas, bem cedo, contra a vontade dos leigos e por desejo dos papas,
entraram e tiveram preponderância professores pertencentes as duas ordens religiosas surgidas no
século XIII: os Dominicanos, fundados por São Domingos de Gusmão, espanhol, e os Franciscanos,
fundados por São Francisco de Assis, italiano. A característica nova e comum destas duas ordens
religiosas foi a pobreza individual e coletiva, donde o nome de mendicantes a elas atribuído, e também
certa liberdade a respeito das obrigações conventuais, para melhor facultar o cultivo do estudo e a
pregação apostólica entre o povo. Os dominicanos dedicaram-se mais ao estudo, à ciência, inspirando-se
no pensamento aristotélico, exercendo, destarte, sua maior influência entre as classes sociais elevadas;
os franciscanos, ao contrário, propuseram-se como finalidade principal a caridade ativa e tiveram uma
enorme influência sobre o povo, inspirando-se na mentalidade agostiniana.

Os Filósofos Franciscanos

Os filósofos franciscanos julgaram fosse mister dar uma forma teórica à atitude prática, afetiva,
sentimental do Pobrezinho de Assis que entrevia Deus e Jesus Cristo em todas as coisas. E julgaram os
filósofos franciscanos que, para tanto, se prestasse o agostinianismo, com o seu misticismo e
voluntarismo - julgando inapto para esse fim o racionalismo, o empirismo e o intelectualismo
aristotélicos.
O maior representante do agostinianismo antiaristotélico foi São Boaventura (1221-1274); nasceu na
Itália, estudou em Paris e, mais tarde, foi geral da sua ordem e depois cardeal de Albano. Suas obras
principais são: os Comentários a Pedro Lombardo, o Itinerário da Mente para Deus, sobre a Redução das
Artes à Teologia.
Segundo São Boaventura, a tarefa da filosofia não é teórica e racional, mas prática e religiosa, isto é, a
filosofia deve levar a Deus, que se atinge imediatamente em todas as coisas e se possui pela união
mística, como ele descreve no Itinerário. A gnosiologia de Boaventura inspira-se no iluminismo
agostiniano, que lhe sugeriu a prova intuitiva da existência de Deus, enquanto ele é imediatamente
presente ao espírito humano. A metafísica de Boaventura, pois, afirma três princípios diretamente
opostos ao aristotelismo tomista: a existência de uma matéria geral sem as formas específicas; a
pluralidade das formas em um mesmo ser, tantas quantas são as suas propriedades essenciais; a
universalidade da matéria fora de Deus, porque todos os seres são compostos de matéria e de forma,
inclusive as essências angélicas e as almas humanas. A psicologia de Boaventura, pois, sustenta que a
alma humana é uma substância completa independentemente do corpo, composta de forma e matéria,
auto-suficiente.
Diametralmente oposto a este aristotelismo agostiniano, é o aristotelismo exagerado averroísta, que
aceita o sistema aristotélico sem crítica nenhuma, e, por conseqüência, será inteiramente infecundo. Esta
orientação filosófica é chamada averroísta, porquanto admite - como admitia Averroés - que haja teses
filosóficas em contraste com o teísmo da religião, ainda que pareça limitar-se a sustentar a existência de
duas verdades paralelas e contrastantes, e não chegar até subordinar a religião à filosofia. O maior
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representante do averroísmo latino é Siger de Brabante (falecido pelo ano de 1284), professor na
universidade parisiense, condenado mais tarde pela Igreja. A sua obra principal é Da Alma Intelectiva. As
teses mais notáveis de Siger em contraste com o cristianismo são: a negação da providência divina; a
afirmação da eternidade do mundo; a afirmação da unidade do intelecto na espécie humana e a
conseqüente negação da imortalidade pessoal do homem. Entre estas duas posições extremadas - de
idolatria ou de irredutível hostilidade - a respeito de Aristóteles, medeia Tomás de Aquino, que realizará a
justificação da filosofia e da teologia.

A Escolástica Pós-Tomista

O tomismo era, talvez, um movimento excessivamente novo e arrojado, para poder súbita e
definitivamente impor-se no âmbito do pensamento cristão medieval. Houve, portanto, no mesmo século
XIII, logo depois de uma reação violenta contra o tomismo, um retorno especulativo ao agostinianismo,
que julgou encobrir o seu anacronismo, tentando uma superação do racionalismo tomista. Entretanto
esse movimento terminará nas posições fideístas do pré-tomismo, acentuadas e tornadas piores após a
poderosa construção crítica e racional do Aquinate; e terminará, consequentemente, na ruína da
metafísica, da filosofia, da ciência. A escolástica pós-tomista, contudo, sentiu profundamente o problema
da concretidade e da experiência, indubitavelmente negligenciado pela escolástica clássica, donde
surgirão a história e a ciência modernas - com suas técnicas - que constituem o valor do pensamento
moderno.
O centro desta escolástica pós-tomista é a universidade de Oxford, na Inglaterra, cujas características
tendências empiristas, experimentais, positivas, práticas, são conhecidas.

Rogério Bacon

Rogério Bacon (1210-1294), nascido na Inglaterra, entrou na ordem franciscana e estudou nas
universidades de Oxford e de Paris. Após Ter lecionado algum tempo em Oxford, foi obrigado a deixar a
cátedra. Estabeleceu-se então em Paris, onde levou uma vida agitada e foi condenado à prisão pelos
próprios superiores da sua ordem. Crítico agressivo das maiores autoridades da sua época, foi um
temperamento genial e original, enciclopédico e místico, cientista e supersticioso. A sua obra mais
importante é a chamada Obra Maior; publicou ainda a Obra Menor e a Terceira Obra.
Segundo Bacon, três são as fontes do saber: a autoridade, a razão, a experiência. A autoridade dá-nos a
crença, a fé não porém a ciência, porquanto não nos fornece a compreensão das coisas que formam o
objeto da crença. A razão proporciona essa compreensão, quer dizer, a ciência; no entanto, não
consegue distinguir o sofisma da demonstração verdadeira, se não achar fundamento e confirmação na
experiência. A ciência experimental constitui a fonte mais sólida da certeza. Conforme Bacon, todavia,
deve-se entender por experiência não apenas a que se alcança pelos sentidos externos e nos oferece o
mundo corpóreo, mas também a experiência proporcionada pela iluminação interior de Deus. É, como se
vê, um vestígio do agostinianismo tradicional. Do agostinianismo, Bacon aceita também a unidade entre
filosofia e teologia, que Tomás tinha distinguido.

João Duns Scoto

O maior expoente da escolástica pós-tomista é, sem dúvida, João Duns Scoto, o doutor sutil. Também
ele, inglês e franciscano, foi aluno e professor nas universidades de Oxford e de Paris. Faleceu em 1308.
Suas obras principais são: a Obra Oxoniense, isto é, o tradicional comentário das sentenças de Pedro
Lombardo; os Teoremas Sutilíssimos, as Questões Várias, a Obra Parisiense. Nestas obras revela-se um
crítico e um pensador de muito superior a São Boaventura.
O agostinianismo de Scoto manifesta-se, antes de tudo, no conceito de filosofia, entendida como
instrumento para entender a fé e não como obra autônoma do espírito, como julga Tomás de Aquino. E,
por sua vez, a teologia não é - segundo Scoto - disciplina essencialmente especulativa - como julga
Aquinate - mas unicamente prática, em conformidade com o espírito do voluntarismo agostiniano.
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A gnosiologia iluminista-intuicionista agostiniana firma-se no escotismo não tanto como participação
da inteligência humana na luz divina, quanto como sendo a espontaneidade e a independência do
intelecto com respeito ao sentido. Em todo caso, está contra o chamado empirismo aristotélico-tomista,
conforme o qual o nosso conhecimento começa pela sensibilidade. Scoto concede, em linha de fato, o
empirismo do nosso conhecimento; não o admite em linha de direito, como exige o tomismo. E isso seria
devido - segundo o doutor sutil - à escravidão da alma com respeito ao corpo, decorrente do pecado.
Pelo contrário, deveria a alma, por sua natureza, conhecer diretamente as essências, não só as materiais
mas também as espirituais.
Na teodicéia, Scoto (contra a corrente agostiniana e em harmonia com o tomismo) ensina que Deus não
é conhecido por intuição; a existência de Deus é demonstrável apenas com argumentos a posteriori,
embora procure também combinar esta demonstração com o argumento ontológico, a priori. Quanto à
natureza divina, o atributo essencial de Deus seria a infinidade.
Na psicologia escotista aparece ainda uma doutrina inspirada no agostinianismo. É a doutrina do
conhecimento intuitivo da essência da alma, princípio de todos os demais conhecimentos. E também
inspira-se no agostinianismo a doutrina de certa independência da alma com respeito ao corpo; seria a
alma, por natureza, uma substância completa.
Com efeito, segundo Scoto, todos os seres, mesmos os espirituais, são compostos de matéria e de forma.
A matéria não é mera potência, inexistente sem a forma, mas tem uma realidade sua própria; a forma
não é única, mas há multiplicidade de formas em cada indivíduo. A individuação não depende da matéria
(pelo que o indivíduo fica incognoscível intelectualmente), mas de um elemento formal individual,
chamado haecceitas (que se sobrepõe à matéria por si subsistente e à hierarquia das formas); destarte,
o indivíduo se tornaria intelectualmente cognoscível.
Contra o intelectualismo tomista, Scoto sustenta a primazia da vontade: a vontade não depende do
intelecto, mas o intelecto depende da vontade. A tarefa do homem é conhecer para querer e amar; na
vida eterna, Deus seria atingido, na visão beatífica, pela vontade, pelo amor e não pelo intelecto. Scoto
põe também em Deus esse primado de vontade sobre o intelecto. Desse modo, as coisas criadas por
Deus não dependem fundamentalmente da razão divina, e sim da vontade divina. E a própria ordem ética
não é intrinsecamente boa por motivo racional, mas unicamente porquanto é querida por Deus, que
poderia impor uma ordem moral oposta, em que, por exemplo, a mentira, o adultério, o furto, o
homicídio, etc., seriam ações morais, e imorais as ações opostas.

Guilherme de Occam

Guilherme de Occam é, ao mesmo tempo, um opositor e um discípulo de Scoto: discípulo, no sentido


de que desenvolve o individualismo de haecceitas escotista no nominalismo, que ele fez reviver no
ambiente experimental da universidade de Oxford, depois do realismo imanente aristotélico-tomista.
Guilherme nasceu em Occam na Inglaterra pouco antes do ano de 1300; fez-se franciscano, estudou e
lecionou na Universidade de Oxford. Processado por heresia pela Santa Sé, refugiou-se junto do
Imperador, então em luta contra o Papa, e escreveu várias obras para defender o imperador contra a
Santa Sé. Faleceu pelo ano 1350. Suas obras especulativas são, além do Comentário às Sentenças de
Pedro Lombardo: Sete Várias Questões, Suma de Toda a Lógica, Centilóquio Teológico.
Segundo Occam, o conhecimento sensível é superior ao conhecimento intelectual, porquanto o primeiro é
intuitivo, ao passo que o segundo é abstrato; o primeiro dá-nos a realidade, concreta e individual, ao
passo que o segundo nos dá apenas as semelhanças entre seres reais (as idéias gerais), e, por
conseguinte, um conhecimento vago e confuso deles, que não nos permite distingui-los um do outro. O
conhecimento sensível dá-nos as relações reais entre as coisas reais (o nexo causal, que se conhece só
pela experiência), ao passo que o conhecimento intelectual nos proporciona conhecer as relações lógicas
entre conceitos abstratos, sem nada nos dizer em torno da realidade das coisas. Em conclusão, a
sensação é o sinal de um objeto na alma; o conceito é sinal de mais objetos percebidos como
semelhantes. O conceito, pois, é um sinal natural, representado pelo nome que é, porém, um sinal
artificial, variável segundo as diversas línguas.
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Estamos na linha do experimentalismo inglês da Universidade de Oxford; desse experimentalismo
deriva o empirismo, e deste deriva logicamente a ruína do conceito e, conseqüentemente, da ciência, da
filosofia, da moral, etc. E deriva também a ruína das próprias noções de substância e causa,
indispensáveis à própria ciência natural, porquanto essas noções de substância e causa não são
experimentáveis. Pelo fato de a alma e Deus não serem sensíveis, segue-se que não são cognoscíveis.
Deus não se pode provar a posteriori mediante o princípio de causalidade, válido empiricamente; e
também não se pode provar - pela via de causalidade - a alma, de que é impossível demonstrar
cientificamente a imortalidade.
Dado que em torno de Deus nada conhecemos filosoficamente, e dado outrossim o voluntarismo divino
escotista, a vontade de Deus é absolutamente livre para criar uma moral mesmo oposta à presente, e
para estabelecer uma outra ordem sobrenatural (por exemplo, se Deus quisesse, o Verbo poderia Ter-se
encarnado num burro). Destarte, a ciência humana reduz-se à física, que nos faz conhecer os seres
materiais, sensíveis, a lógica que nos ilustra as relações entre os conceitos. Portanto, nenhuma
metafísica: o conhecimento de Deus, da alma, da moral, etc., é abandonado inteiramente à Revelação, à
fé (fideísmo). Esta absoluta divisão entre a razão e a fé, coloca o ocamismo em uma posição afim à do
averroísmo da dupla verdade. Com o diminuir da fé medieval e com o firmar-se do humanismo moderno,
bem cedo a razão se porá contra a fé e a substituirá. O ocamismo tem um êxito vasto e imediato nos
séculos XIV e XV; mas logo declina, degenerando num formalismo lógico. Com ele declina e,
historicamente, termina a escolástica medieval.

Tomás de Aquino

A Vida e as Obras

Após uma longa preparação e um desenvolvimento promissor, a escolástica chega ao seu ápice com
Tomás de Aquino. Adquire plena consciência dos poderes da razão, e proporciona finalmente ao
pensamento cristão uma filosofia. Assim, converge para Tomás de Aquino não apenas o pensamento
escolástico, mas também o pensamento patrístico, que culminou com Agostinho, rico de elementos
helenistas e neoplatônicos, além do patrimônio de revelação judaico-cristã, bem mais importante.
Para Tomás de Aquino, porém, converge diretamente o pensamento helênico, na sistematização
imponente de Aristóteles. O pensamento de Aristóteles, pois, chega a Tomás de Aquino enriquecido com
os comentários pormenorizados, especialmente árabes.
Nasceu Tomás em 1225, no castelo de Roccasecca, na Campânia, da família feudal dos condes de
Aquino. Era unido pelos laços de sangue à família imperial e às famílias reais de França, Sicília e Aragão.
Recebeu a primeira educação no grande mosteiro de Montecassino, passando a mocidade em Nápoles
como aluno daquela universidade. Depois de ter estudado as artes liberais, entrou na ordem dominicana,
renunciando a tudo, salvo à ciência. Tal acontecimento determinou uma forte reação por parte de sua
família; entretanto, Tomás triunfou da oposição e se dedicou ao estudo assíduo da teologia, tendo como
mestre Alberto Magno, primeiro na universidade de Paris (1245-1248) e depois em Colônia.
Também Alberto, filho da nobre família de duques de Bollstädt (1207-1280), abandonou o mundo e
entrou na ordem dominicana. Ensinou em Colônia, Friburgo, Estrasburgo, lecionou teologia na
universidade de Paris, onde teve entre os seus discípulos também Tomás de Aquino, que o acompanhou
a Colônia, aonde Alberto foi chamado para lecionar no estudo geral de sua ordem. A atividade científica
de Alberto Magno é vastíssima: trinta e oito volumes tratando dos assuntos mais variados - ciências
naturais, filosofia, teologia, exegese, ascética.
Em 1252 Tomás voltou para a universidade de Paris, onde ensinou até 1269, quando regressou à Itália,
chamado à corte papal. Em 1269 foi de novo à universidade de Paris, onde lutou contra o averroísmo de
Siger de Brabante; em 1272, voltou a Nápoles, onde lecionou teologia. Dois anos depois, em 1274,
viajando para tomar parte no Concílio de Lião, por ordem de Gregório X, faleceu no mosteiro de
Fossanova, entre Nápoles e Roma. Tinha apenas quarenta e nove anos de idade.
As obras do Aquinate podem-se dividir em quatro grupos:
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1. Comentários: à lógica, à física, à metafísica, à ética de Aristóteles; à Sagrada Escritura; a
Dionísio pseudo-areopagita; aos quatro livros das sentenças de Pedro Lombardo.
2. Sumas: Suma Contra os Gentios, baseada substancialmente em demonstrações racionais; Suma
Teológica, começada em 1265, ficando inacabada devido à morte prematura do autor.
3. Questões: Questões Disputadas (Da verdade, Da alma, Do mal, etc.); Questões várias.
4. Opúsculos: Da Unidade do Intelecto Contra os Averroístas; Da Eternidade do Mundo, etc.

O Pensamento: A Gnosiologia

Diversamente do agostinianismo, e em harmonia com o pensamento aristotélico, Tomás considera a


filosofia como uma disciplina essencialmente teorética, para resolver o problema do mundo. Considera
também a filosofia como absolutamente distinta da teologia, - não oposta - visto ser o conteúdo da
teologia arcano e revelado, o da filosofia evidente e racional.
A gnosiologia tomista - diversamente da agostiniana e em harmonia com a aristotélica - é empírica e
racional, sem inatismos e iluminações divinas. O conhecimento humano tem dois momentos, sensível e
intelectual, e o segundo pressupõe o primeiro. O conhecimento sensível do objeto, que está fora de nós,
realiza-se mediante a assim chamada espécie sensível. Esta é a impressão, a imagem, a forma do objeto
material na alma, isto é, o objeto sem a matéria: como a impressão do sinete na cera, sem a
materialidade do sinete; a cor do ouro percebido pelo olho, sem a materialidade do ouro.
O conhecimento intelectual depende do conhecimento sensível, mas transcende-o. O intelecto vê em a
natureza das coisas - intus legit - mais profundamente do que os sentidos, sobre os quais exerce a sua
atividade. Na espécie sensível - que representa o objeto material na sua individualidade, temporalidade,
espacialidade, etc., mas sem a matéria - o inteligível, o universal, a essência das coisas é contida apenas
implicitamente, potencialmente. Para que tal inteligível se torne explícito, atual, é preciso extraí-lo,
abstraí-lo, isto é, desindividualizá-lo das condições materiais. Tem-se, deste modo, a espécie inteligível,
representando precisamente o elemento essencial, a forma universal das coisas.
Pelo fato de que o inteligível é contido apenas potencialmente no sensível, é mister um intelecto agente
que abstraia, desmaterialize, desindividualize o inteligível do fantasma ou representação sensível. Este
intelecto agente é como que uma luz espiritual da alma, mediante a qual ilumina ela o mundo sensível
para conhecê-lo; no entanto, é absolutamente desprovido de conteúdo ideal, sem conceitos
diferentemente de quanto pretendia o inatismo agostiniano. E, ademais, é uma faculdade da alma
individual, e não noa advém de fora, como pretendiam ainda i iluminismo agostiniano e o panteísmo
averroísta. O intelecto que propriamente entende o inteligível, a essência, a idéia, feita explícita,
desindividualizada pelo intelecto agente, é o intelecto passivo, a que pertencem as operações racionais
humanas: conceber, julgar, raciocinar, elaborar as ciências até à filosofia.
Como no conhecimento sensível, a coisa sentida e o sujeito que sente, formam uma unidade mediante a
espécie sensível, do mesmo modo e ainda mais perfeitamente, acontece no conhecimento intelectual,
mediante a espécie inteligível, entre o objeto conhecido e o sujeito que conhece. Compreendendo as
coisas, o espírito se torna todas as coisas, possui em si, tem em si mesmo imanentes todas as coisas,
compreendendo-lhes as essências, as formas.
É preciso claramente salientar que, na filosofia de Tomás de Aquino, a espécie inteligível não é a coisa
entendida, quer dizer, a representação da coisa (id quod intelligitur), pois, neste caso, conheceríamos
não as coisas, mas os conhecimentos das coisas, acabando, destarte, no fenomenismo. Mas, a espécie
inteligível é o meio pelo qual a mente entende as coisas extramentais (é, logo, id quo intelligitur). E isto
corresponde perfeitamente aos dados do conhecimento, que nos garante conhecermos coisas e não
idéias; mas as coisas podem ser conhecidas apenas através das espécies e das imagens, e não podem
entrar fisicamente no nosso cérebro.
O conceito tomista de verdade é perfeitamente harmonizado com esta concepção realista do mundo, e é
justificado experimentalmente e racionalmente. A verdade lógica não está nas coisas e nem sequer no
mero intelecto, mas na adequação entre a coisa e o intelecto: veritas est adaequatio speculativa mentis
et rei. E tal adequação é possível pela semelhança entre o intelecto e as coisas, que contêm um elemento
inteligível, a essência, a forma, a idéia. O sinal pelo qual a verdade se manifesta à nossa mente, é a
107
evidência; e, visto que muitos conhecimentos nossos não são evidentes, intuitivos, tornam-se
verdadeiros quando levados à evidência mediante a demonstração.
Todos os conhecimentos sensíveis são evidentes, intuitivos, e, por conseqüência, todos os conhecimentos
sensíveis são, por si, verdadeiros. Os chamados erros dos sentidos nada mais são que falsas
interpretações dos dados sensíveis, devidas ao intelecto. Pelo contrário, no campo intelectual, poucos são
os nossos conhecimentos evidentes. São certamente evidentes os princípios primeiros (identidade,
contradição, etc.). Os conhecimentos não evidentes são reconduzidos à evidência mediante a
demonstração, como já dissemos. É neste processo demonstrativo que se pode insinuar o erro,
consistindo em uma falsa passagem na demonstração, e levando, destarte, à discrepância entre o
intelecto e as coisas.
A demonstração é um processo dedutivo, isto é, uma passagem necessária do universal para o particular.
No entanto, os universais, os conceitos, as idéias, não são inatas na mente humana, como pretendia o
agostinianismo, e nem sequer são inatas suas relações lógicas, mas se tiram fundamentalmente da
experiência, mediante a indução, que colhe a essência das coisas. A ciência tem como objeto esta
essência das coisas, universal e necessária.

A Metafísica

A metafísica tomista pode-se dividir em geral e especial. A metafísica geral - ou ontologia - tem como
objeto o ser em geral e as atribuições e leis relativas. A metafísica especial estuda o ser em suas grandes
especificações: Deus, o espírito, o mundo. Daí temos a teologia racional - assim chamada, para distingui-
la da teologia revelada; a psicologia racional (racional, porquanto é filosofia e se deve distinguir da
moderna psicologia empírica, que é ciência experimental); a cosmologia ou filosofia da natureza (que
estuda a natureza em suas causas primeiras, ao passo que a ciência experimental estuda a natureza em
suas causas segundas).
O princípio básico da ontologia tomista é a especificação do ser em potência e ato. Ato significa
realidade, perfeição; potência quer dizer não-realidade, imperfeição. Não significa, porém, irrealidade
absoluta, mas imperfeição relativa de mente e capacidade de conseguir uma determinada perfeição,
capacidade de concretizar-se. Tal passagem da potência ao ato é o vir-a-ser, que depende do ser que é
ato puro; este não muda e faz com que tudo exista e venha-a-ser. Opõe-se ao ato puro a potência pura
que, de per si, naturalmente é irreal, é nada, mas pode tornar-se todas as coisas, e chama-se matéria.

A Natureza

Uma determinação, especificação do princípio de potência e ato, válida para toda a realidade, é o
princípio da matéria e de forma. Este princípio vale unicamente para a realidade material, para o mundo
físico, e interessa portanto especialmente à cosmologia tomista. A matéria não é absoluto, não-ente; é,
porém, irreal sem a forma, pela qual é determinada, como a potência é determinada, como a potência é
determinada pelo ato. É necessária para a forma, a fim de que possa existir um ser completo e real
(substância). A forma é a essência das coisas (água, ouro, vidro) e é universal. A individuação, a
concretização da forma, essência, em vários indivíduos, que só realmente existem (esta água, este ouro,
este vidro), depende da matéria, que portanto representa o princípio de individuação no mundo físico.
Resume claramente Maritain esta doutrina com as palavras seguintes: "Na filosofia de Aristóteles e
Tomás de Aquino, toda substância corpórea é um composto de duas partes substanciais
complementares, uma passiva e em si mesma absolutamente indeterminada (a matéria), outra ativa e
determinante (a forma)".
Além destas duas causas constitutivas (matéria e forma), os seres materiais têm outras duas causas: a
causa eficiente e a causa final. A causa eficiente é a que faz surgir um determinado ser na realidade, é a
que realiza o sínolo, a saber, a síntese daquela determinada matéria com a forma que a especifica. A
causa final é o fim para que opera a causa eficiente; é esta causa final que determina a ordem observada
no universo. Em conclusão: todo ser material existe pelo concurso de quatro causas - material, formal,
108
eficiente, final; estas causas constituem todo ser na realidade e na ordem com os demais seres do
universo físico.

O Espírito

Quando a forma é princípio da vida, que é uma atividade cuja origem está dentro do ser, chama-se alma.
Portanto, têm uma alma as plantas (alma vegetativa: que se alimenta, cresce e se reproduz), e os
animais (alma sensitiva: que, a mais da alma vegetativa, sente e se move). Entretanto, a psicologia
racional, que diz respeito ao homem, interessa apenas a alma racional. Além de desempenhar as funções
da alma vegetativa e sensitiva, a alma racional entende e quer, pois segundo Tomás de Aquino, existe
uma forma só e, por conseguinte, uma alma só em cada indivíduo; e a alma superior cumpre as funções
da alma inferior, como a mais contém o menos.
No homem existe uma alma espiritual - unida com o corpo, mas transcendendo-o - porquanto além das
atividades vegetativa e sensitiva, que são materiais, se manifestam nele também atividades espirituais,
como o ato do intelecto e o ato da vontade. A atividade intelectiva é orientada para entidades imateriais,
como os conceitos; e, por conseqüência, esta atividade tem que depender de um princípio imaterial,
espiritual, que é precisamente a alma racional. Assim, a vontade humana é livre, indeterminada - ao
passo que o mundo material é regido por leis necessárias. E, portanto, a vontade não pode ser senão a
faculdade de um princípio imaterial, espiritual, ou seja, da alma racional, que pelo fato de ser imaterial,
isto é, espiritual, não é composta de partes e, por conseguinte, é imortal.
Como a alma espiritual transcende a vida do corpo depois da morte deste, isto é, é imortal, assim
transcende a origem material do corpo e é criada imediatamente por Deus, com relação ao respectivo
corpo já formado, que a individualiza. Mas, diversamente do dualismo platônico-agostiniano, Tomás
sustenta que a alma, espiritual embora, é unida substancialmente ao corpo material, de que é a forma.
Desse modo o corpo não pode existir sem a alma, nem viver, e também a alma, por sua vez, ainda que
imortal, não tem uma vida plena sem o corpo, que é o seu instrumento indispensável.

Deus

Como a cosmologia e a psicologia tomistas dependem da doutrina fundamental da potência e do ato,


mediante a doutrina da matéria e da forma, assim a teologia racional tomista depende - e mais
intimamente ainda - da doutrina da potência e do ato. Contrariamente à doutrina agostiniana que
pretendia ser Deus conhecido imediatamente por intuição, Tomás sustenta que Deus não é conhecido
por intuição, mas é cognoscível unicamente por demonstração; entretanto esta demonstração é sólida e
racional, não recorre a argumentações a priori, mas unicamente a posteriori, partindo da experiência, que
sem Deus seria contraditória.
As provas tomistas da experiência de Deus são cinco: mas todas têm em comum a característica de se
firmar em evidência (sensível e racional), para proceder à demonstração, como a lógica exige. E a
primeira dessas provas - que é fundamental e como que norma para as outras - baseia-se diretamente
na doutrina da potência e do ato. "Cada uma delas se firma em dois elementos, cuja solidez e evidência
são igualmente incontestáveis: uma experiência sensível, que pode ser a constatação do movimento, das
causas, do contingente, dos graus de perfeição das coisas ou da ordem que entre elas reina; e uma
aplicação do princípio de causalidade, que suspende o movimento ao imóvel, as causas segundas à causa
primeira, o contingente ao necessário, o imperfeito ao perfeito, a ordem à inteligência ordenadora".
Se conhecermos apenas indiretamente, pelas provas, a existência de Deus, ainda mais limitado é o
conhecimento que temos da essência divina, como sendo a que transcende infinitamente o intelecto
humano. Segundo o Aquinate, antes de tudo sabemos o que Deus não é (teologia negativa), entretanto
conhecemos também algo de positivo em torno da natureza de Deus, graças precisamente à famosa
doutrina da analogia. Esta doutrina é solidamente baseada no fato de que o conhecimento certo de Deus
se deve realizar partindo das criaturas, porquanto o efeito deve Ter semelhança com a causa. A doutrina
da analogia consiste precisamente em atribuir a Deus as perfeições criadas positivas, tirando, porém, as
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imperfeições, isto é, toda limitação e toda potencialidade. O que conhecemos a respeito de Deus é,
portanto, um conjunto de negações e de analogias; e não é falso, mas apenas incompleto.
Quanto ao problemas das relações entre Deus e o mundo, é resolvido com base no conceito de criação,
que consiste numa produção do mundo por parte de Deus, total, livre e do nada.

A Moral

Também no campo da moral, Tomás se distingue do agostinianismo, pois a moral tomista é


essencialmente intelectualista, ao passo que a moral agostiniana é voluntarista, quer dizer, a vontade não
é condição de conhecimento, mas tem como fim o conhecimento. A ordem moral, pois, não depende da
vontade arbitrária de Deus, e sim da necessidade racional da divina essência, isto é, a ordem moral é
imanente, essencial, inseparável da natureza humana, que é uma determinada imagem da essência
divina, que Deus quis realizar no mundo. Desta sorte, agir moralmente significa agir racionalmente, em
harmonia com a natureza racional do homem.
Entretanto, se a vontade não determina a ordem moral, é a vontade todavia que executa livremente esta
ordem moral. Tomás afirma e demonstra a liberdade da vontade, recorrendo a um argumento metafísico
fundamental. A vontade tende necessariamente para o bem em geral. Se o intelecto tivesse a intuição do
bem absoluto, isto é, de Deus, a vontade seria determinada por este bem infinito, conhecido
intuitivamente pelo intelecto. Ao invés, no mundo a vontade está em relação imediata apenas com seres
e bens finitos que, portanto, não podem determinar a sua infinita capacidade de bem; logo, é livre. Não é
mister acrescentar que, para a integridade do ato moral, são necessários dois elementos: o elemento
objetivo, a lei, que se atinge mediante a razão; e o elemento subjetivo, a intenção, que depende da
vontade.
Analisando a natureza humana, resulta que o homem é um animal social (político) e portanto forçado a
viver em sociedade com os outros homens. A primeira forma da sociedade humana é a família, de que
depende a conservação do gênero humano; a Segunda forma é o estado, de que depende o bem comum
dos indivíduos. Sendo que apenas o indivíduo tem realidade substancial e transcendente, se compreende
como o indivíduo não é um meio para o estado, mas o estado um meio para o indivíduo. Segundo Tomás
de Aquino, o estado não tem apenas função negativa (repressiva) e material (econômica), mas também
positiva (organizadora) e espiritual (moral). Embora o estado seja completo em seu gênero, fica, porém,
subordinado, em tudo quanto diz respeito à religião e à moral, à Igreja, que tem como escopo o bem
eterno das almas, ao passo que o estado tem apenas como escopo o bem temporal dos indivíduos.

Filosofia e Teologia

Em torno do problema das relações entre filosofia e teologia, ciência e fé, razão e revelação, e mais
precisamente em torno do problema da função da razão no âmbito da fé, Tomás de Aquino dá uma
solução precisa e definitiva mediante uma distinção clara entre as duas ordens. Com base no sólido
sistema aristotélico, é eliminada a doutrina da iluminação, agostiniana, que levava inevitavelmente a uma
confusão da teologia com a filosofia. Destarte, é finalmente conquistada a consciência do que é
conhecimento racional e demonstração racional, ciência e filosofia: é um lógico procedimento de
princípios evidentes para conclusões inteligíveis. E compreende-se, portanto, que não é possível
demonstração racional em matéria de fé, onde os princípios são, para nós, não evidentes, transcendentes
à razão, mistérios, e igualmente ininteligíveis suas condições lógicas.
Em todo caso, segundo o sistema tomista, a razão não é estranha à fé, porquanto procede da mesma
Verdade eterna. E, com relação à fé, deve a razão desempenhar os papéis seguintes:
1. A demonstração da fé, não com argumentos intrínsecos, de evidência, o que é impossível, mas com
argumentos extrínsecos, de credibilidade (profecias, milagres, etc.), que garantem a autenticidade divina
da Revelação.
2. A demonstração da não irracionalidade do mistério e da sua conveniência, mediante argumentos
prováveis.
110
3. A determinação, enucleação e sistematização das verdades de fé, pelo que a sacra teologia é
ciência, e ciência em grau eminente, porquanto essencialmente especulativa, ao passo que, para os
agostinianos, é essencialmente prática.
Tomás, portanto, não confunde  como faz o agostinianismo - nem opõe  como faz o averroísmo  razão e
fé, mas distingue-as e as harmoniza. De modo que nasce uma unidade dialética profunda entre a razão e
a fé; tal unidade dialética nasce da determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana;
esta determinação tomista do conceito metafísico de natureza humana tornou possível a averiguação das
reais, efetivas vulnerações da natureza humana; estas vulnerações são filosoficamente, racionalmente,
inexplicáveis. E demandam, por conseguinte, a Revelação e, precisamente, os dogmas do pecado original
e da redenção pela cruz.

O Tomismo

O tomismo afirma-se e caracteriza-se como uma crítica que valoriza a orientação do pensamento
platônico-agostiniano em nome do racionalismo aristotélico, que pareceu um escândalo, no campo
católico, ao misticismo agostiniano. Ademais, o tomismo se afirma e se caracteriza como o início da
filosofia no pensamento cristão e, por conseguinte, como o início do pensamento moderno, enquanto a
filosofia é concebida qual construção autônoma e crítica da razão humana.
Sabemos que, segundo a concepção platônico-agostiniana, o conhecimento humano depende de uma
particular iluminação divina; segundo esta doutrina, portanto, o espírito humano está em relação
imediata com o inteligível, e tem, de certo modo, intuição do inteligível. A esta gnosiologia inatista,
Tomás opõe francamente a gnosiologia empírica aristotélica, em virtude da qual o campo do
conhecimento humano verdadeiro e próprio é limitado ao mundo sensível. Acima do sentido há, sim, no
homem, um intelecto; este intelecto atinge, sim, um inteligível; mas é um intelecto concebido como uma
faculdade vazia, sem idéias inatas  é uma tabula rasa, segundo a famosa expressão  ; e o inteligível nada
mais é que a forma imanente às coisas materiais. Essa forma é enucleada, abstraída pelo intelecto das
coisas materiais sensíveis.
Essa gnosiologia é naturalmente conexa a uma metafísica e, em especial, a uma antropologia, assim
como a gnosiologia platônico-agostiniana era conexa a uma correspondente metafísica e antropologia.
Por isso a alma era concebida quase como um ser autônomo, uma espécie de natureza angélica, unida
extrinsecamente a um corpo, e a materialidade do corpo era-lhe mais de obstáculo do que instrumento.
Por conseguinte, o conhecimento humano se realizava não através dos sentidos, mas ao lado e acima
dos sentidos, mediante contato direto com o mundo inteligível; precisamente como as inteligências
angélicas, que conhecem mediante as espécies impressas, idéias inatas. Vice-versa, segundo a
antropologia aristotélico-tomista, sobre a base metafísica geral da grande doutrina da forma, a alma é
concebida como a forma substancial do corpo. A alma é, portanto, incompleta sem o corpo, ainda que
destinada a sobreviver-lhe pela sua natureza racional; logo, o corpo é um instrumento indispensável ao
conhecimento humano, que, por conseqüência, tem o seu ponto de partida nos sentidos.
Terceira característica do agostinianismo é o assim chamado voluntarismo, com todas as conseqüências
de correntes da primazia da vontade sobre o intelecto. A característica do tomismo, ao contrário, é o
intelectualismo, com a primazia do intelecto sobre a vontade, com todas as relativas conseqüências. O
conhecimento, pois, é mais perfeito do que a ação, porquanto o intelecto possui o próprio objeto, ao
passo que a vontade o persegue sem conquistá-lo. Esta doutrina é aplicada tanto na ordem natural como
na ordem sobrenatural, de sorte que a bem-aventurança não consiste no gozo afetivo de Deus, mas na
visão beatífica da Essência divina.

A Existência de Deus é Evidente?

Sobre a existência de Deus, três questões se colocam:


1. A existência de Deus é uma verdade evidente?
2. Ela pode ser demonstrada?
3. Deus existe?
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1.  Parece que a existência de Deus é evidente. Com efeito, chamamos verdades evidentes aquelas
cujo conhecimento está em nós naturalmente, como é o caso dos primeiros princípios. Ora, de acordo
com o que diz Damasceno: "O conhecimento da existência de Deus é inato em todos". Por conseguinte, a
existência de Deus é evidente.
2.  Por outro lado, são ditas evidentes as verdades que conhecemos desde que compreendamos os
termos que as exprimem. É o que o Filósofo (Últimos Analíticos, I, 3) atribui aos primeiros princípios da
demonstração. De fato, quando sabemos o significado de todo o significado da parte, sabemos, de
imediato, que o todo é maior que a parte. Ora, desde que tenhamos compreendido o sentido da palavra
"Deus", estabelece-se, de imediato, que Deus existe. De fato, essa palavra designa uma coisa de tal
ordem que não podemos conceber algo que lhe seja maior. Ora, o que existe na realidade e no
pensamento é maior do que o que existe apenas no pensamento. Daí resulta que o objeto designado
pela palavra Deus, que existe no pensamento, desde que se compreenda a palavra, também existe na
realidade. Por conseguinte, a existência de Deus é evidente.
3.  Além disso, a existência da verdade é evidente. Pois, aquele que nega a existência da verdade,
concorda que a verdade não existe. Mas se a verdade não existe, a não-existência da verdade é uma
afirmação verdadeira. E se alguma coisa há de verdadeira, a verdade existe. Ora, Deus é a própria
verdade, segundo o que diz São João, 14, 6: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida". Por conseguinte, a
existência de Deus é evidente.
Mas, em compensação, ninguém pode pensar o oposto do que é evidente, conforme nos mostra o
Filósofo (Metafísica, 4 e Últimos Analíticos, I, 10), a propósito dos primeiros princípios da demonstração.
Ora, o oposto da existência de Deus pode ser pensado, conforme diz o salmo 52, 1: "O insensato diz em
seu coração que não há Deus". Logo, a existência de Deus não é evidente.
Resposta  Temos duas maneiras para dizer que uma coisa é evidente. Ela o pode ser em si mesma e
não por nós; ela o pode ser em si mesma e por nós. De fato, uma proposição é evidente quanto o
atributo está incluído no sujeito, por exemplo: o homem é um animal. Animal, de fato, pertence à noção
de homem. Se, portanto, todos sabem o que são o sujeito e o atributo de uma proposição, essa
proposição será conhecida de todos. É verdadeiro, pelos princípios das demonstrações, que os termos
são coisas gerais que todos conhecem, como o ser e o não-ser, o todo e a parte, etc. Mas, se alguns não
sabem o que são o atributo e o sujeito de uma proposição, é certo que a proposição será evidente em si
mesma, mas não para aqueles que ignoram o que são sujeito e atributo. É por isso que Boécio diz:
"Certos juízos só são conhecidos pelos sábios, por exemplo, aquele segundo o qual os seres incorpóreos
não estão num mesmo lugar". Por conseguinte, eu afirmo que a proposição "Deus é", considerada em si
mesma, é evidente por si mesma, uma vez que o atributo é idêntico ao sujeito. Deus, de fato, é seu ser.
Mas como não sabemos o que é Deus, ela não é evidente para nós; tem necessidade de ser demonstrada
pelas coisas que, menos conhecidas na realidade, o são mais para nós, isto é, pelos efeitos.
À primeira objeção devemos responder que, em estado vago e confuso, o conhecimento da existência é
naturalmente inato em nós, uma vez que Deus é a felicidade do homem. De fato, o homem deseja
naturalmente a felicidade e, aquilo que ele deseja naturalmente, ele conhece naturalmente. Mas isto não
é, propriamente falando, conhecer a existência de Deus; exatamente como se pudéssemos saber que
alguém chega, sem conhecer Pedro, quando é o próprio Pedro que chega. Muitos, de fato, colocam o
supremo bem do homem nas riquezas, outros o colocam nos prazeres, outros alhures.
À segunda, podemos responder que aquele que ouve pronunciar a palavra Deus pode ignorar que essa
palavra designa uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior. Alguns, com efeito,
acreditaram que Deus fosse um corpo. Mesmo que sustentemos que todos entendem a palavra Deus
nesse sentido, isto é, no sentido de uma coisa tal que não se possa conceber algo que lhe seja maior,
isto não significa que todos representam a existência dessa coisa como real e não como representação da
inteligência. E não se pode concluir sua existência real salvo se se admite que essa coisa existe
realmente. Ora, isso não é admitido por aqueles que rejeitam a existência de Deus.
À terceira, devemos responder que a existência da verdade indeterminada é evidente por si mesma, mas
que a existência da primeira verdade não é evidente em si mesma para nós.
112
A Vontade Quer Necessariamente Tudo o Que Deseja?

Dificuldades: Isso parece exato; de fato Dionísio diz que o mal está fora do objeto da vontade. Por
conseguinte, ela tende necessariamente para o bem que lhe é proposto.
O objeto está para a vontade assim como o motor está para o móvel. Ora, o movimento do móvel segue,
necessariamente, o impulso do motor. Por conseguinte, o objeto da vontade move-a necessariamente.
Assim como o que é conhecido pelos sentidos é objeto da afetividade sensível, assim o que é conhecido
pela inteligência é objeto do apetite intelectual ou vontade. Mas o objeto dos sentidos move,
necessariamente, a afetividade sensível; segundo Santo Agostinho, os animais são arrastados pelo que
vêem. Por conseguinte, parece que o objeto conhecido pela inteligência move a vontade
necessariamente.
Entretanto: Santo Agostinho diz que a vontade é a faculdade pela qual pecamos ou vivemos segundo a
justiça. Desse modo, ela é capaz de desejar coisas contrárias. Por conseguinte, ela não quer, por
necessidade, tudo o que deseja.
Conclusão: Eis como podemos prová-lo. Assim como a inteligência adere, necessária e naturalmente,
aos primeiros princípios, assim a vontade adere ao fim último. Ora, existem verdades que não possuem
relação necessária com os primeiros princípios; tais são as proposições contingentes cuja negação não
implica na negação desses princípios. A inteligência não concede, necessariamente, seu assentimento a
tais verdades. Mas existem proposições necessárias que possuem esta relação necessária; tais são as
conclusões demonstrativas cuja negação significa a negação dos princípios. A estas últimas a inteligência
concede seu assentimento necessariamente, na medida em que reconhece a conexão das conclusões
com os princípios por meio de uma demonstração. Faltando isto, o assentimento não é necessário.
O mesmo acontece com relação à vontade. Existem bens particulares que não possuem relação
necessária com a felicidade, visto que se pode ser feliz sem eles. A tais bens, a vontade não adere
necessariamente. Mas existem outros bens que implicam nessa relação; são aqueles pelos quais o
homem adere a Deus, pois é só nele que se acha a verdadeira felicidade. Todavia, antes que essa
conexão seja demonstrada como necessária pela certeza da visão divina, a vontade não adere
necessariamente a Deus nem aos bens que a ele se relacionam. Mas a vontade daquele que vê Deus em
sua essência adere necessariamente a Ele, do mesmo modo como agora nós queremos,
necessariamente, ser felizes. Por conseguinte, é evidente que a vontade não quer, por necessidade, tudo
o que deseja.
Solução: A vontade não pode tender para nenhum objeto, se este não se lhe apresenta como um bem.
Mas como existe uma infinidade de bens, ela não é necessariamente determinada por um só.
A causa motora produz, necessariamente, o movimento do móvel, no caso em que a força dessa causa
ultrapassa de tal maneira o móvel que toda capacidade que este tem de agir fica submetida à causa. Mas
a capacidade da vontade, na medida em que se dirige para o bem universal e perfeito, não pode estar
inteiramente subordinada a qualquer bem particular. Desse modo, ela não é, necessariamente, acionada
por ele.

III - Latino

As Ciências Naturais da Idade Helenista

Como já salientamos, na idade helenista declina o vigor especulativo filosófico até ao ceticismo, e se
despedaça, tornando-se empírico nas ciências particulares. Concretiza-se nestas ciências o interesse
teorético da época, incentivado também pela descoberta de países novos, fenômenos e fatos novos,
graças às expedições de Alexandre, que chega até as Índias. As ciências particulares, por sua vez, vão
terminar fatalmente na prática, na técnica, para a satisfação das necessidades imediatas da vida
empírica, porquanto é impossível a consistência teórica dessas ciências sem a filosofia. O centro principal
dessa cultura científica é Alexandria - como Atenas foi o grande centro da especulação filosófica. Em
Alexandria congregavam-se, e daí partiam cientistas de todo o mundo civilizado, atingindo esta cidade
seu maior esplendor nos séculos III e II a.C. (Euclides, Arquimedes, Hiparco) e no II século d.C.
113
(Ptolomeu). Em Alexandria havia o famoso Museu, rico de recursos científicos - bibliotecas,
observatórios, gabinetes, jardins botânicos, jardins zoológicos, salas anatômicas, etc. - e que teve uma
longa e gloriosa vida desde o III século a.C. até o IV século d.C.
No presente parágrafo examinamos brevemente as principais ciências naturais cultivadas nesta época -
matemática, física, astronomia, geografia, ciências naturais, medicina - particularmente em relação com o
saber enciclopédico. A contribuição da filosofia clássica; tal contribuição limita-se essencialmente à
matemática, ciência no sentido estrito como a filosofia, e a um certo complexo de observações empíricas,
que serão valorizadas e sistematizadas na ciência moderna.
Dos dois ramos da matemática floresceu, no mundo antigo, primeiro a geometria - III e II séculos a.C. -
e depois a aritmética - séculos II e II d.C. Quanto à física, após um interesse teórico para com esta
ciência, prevaleceram interesses práticos, técnicos. Lembre-se a escola mecânica de Alexandria, já
famosa no III século a.C., em que foram inventados relógios de água, máquinas hidráulicas, máquinas de
guerra acionadas por ar comprimido, etc. A matemática e a física tiveram grandes cultores em Euclides e
Arquimedes.
Euclides viveu em Alexandria no III século a.C., onde passou a vida toda entre o ensino, a
sistematização das descobertas matemáticas de seus predecessores e as suas pesquisas originais. É o
autor dos afamados Elementos de Geometria, onde se trata com grande clareza e rigor científico de
geometria plana, aritmética e estereogrande matemático e físico. Natural de Siracusa, estudou em
Alexandria, voltando depois à pátria, aí dedicando-se por toda a vida a estudos e pesquisas de
matemática, geometria e mecânica. De suas descobertas aproveitou-se também para a construção de
máquinas de guerra, em defesa de Siracusa cercada pelos romanos durante a II guerra púnica. Apesar
de ter o cônsul Marcelo ordenado aos soldados poupar a vida ao grande sábio, durante o saque da
cidade foi morto por um soldado ignorante, repreendido pelo grande sábio porque perturbava seus
estudos. "Noli turbare circulos meos", teriam sido as suas últimas palavras.
Quanto à astronomia e à geografia, floresceu antes e mais viçosamente aquela do que esta. A geografia
começou a ser cultivada no seu aspecto astronômico-matemático; só com Estrabão afirmou-se o caráter
antrópico da geografia. Estrabão - 63 a.C. - 30 d.C., mais ou menos - nascido no Ponto, estudou em
Alexandria e em Roma. Escreveu uma grande obra de Geografia, onde descreve sistematicamente, em
dezessete livros, as regiões então conhecidas - Europa, Ásia, África - pondo especialmente em foco a
influência do clima sobre o temperamento e o caráter humanos e sobre a organização social e política.
A astronomia antiga conheceu a hipótese heliocêntrica, mas aderiu, em geral, ao geocentrismo. A
hipótese heliocêntrica é devida a Aristarco de Samos, pouco posterior a Aristóteles e de pouco anterior a
Arquimedes - III século a.C. O geocentrismo foi elaborado por Eudóxio de Cnido (408-355 a.C.) discípulo
de Platão, e por Aristóteles no sistema das esferas homocêntricas; o sistema astronômico era composto
de cinqüenta e seis esferas concêntricas. A seguir foi desenvolvido e corrigido por Apolônio de Perga
(260-200 a.C.), que ensinou em Alexandria e em Pérgamo e foi um grande geômetra da Antigüidade
juntamente com Euclides e Arquimedes; e também, mediante a teoria dos excêntricos, por Hiparco de
Nicéia do II século a.C., o qual viveu em Alexandria e em Rodes. Esta teoria desloca a terra do centro das
órbitas astrais para a circunferência, para poder explicar melhor e mais simplesmente os movimentos
celestes. Entretanto, o sistematizador definitivo do geocentrismo é Ptolomeu, vivido em Alexandria no II
século d.C., autor do assim chamado Almagesto, mediante o qual a astronomia antiga foi transmitida e
seguida até à Renascença. Ptolomeu julgou que devia integrar a astronomia com a astrologia, que seria o
estudo dos influxos astrais sobre os fenômenos terrestres e, particularmente, sobre as vicissitudes
humanas.
As ciências naturais propriamente ditas, já cultivadas por Aristóteles (zoologia) e Teofrasto (botânica),
tiveram incremento na idade helenista. Primeiro, por meio das expedições militares de Alexandre, as
quais levaram ao conhecimento da flora e da fauna das regiões novas, depois pelas grandes coleções do
Museu de Alexandria, dotada de jardins botânicos e zoológicos, como acima já dissemos. As ciências
naturais progrediram entretanto na idade helenista particularmente como ciências auxiliares da medicina
- anatomia e fisiologia - que, por sua vez, nesta época fez grandes progressos.
Ao lado da antiga escola de Hipócrates, a qual explicava o organismo animal mediante a relação dos
quatro humores fundamentais e é chamada escola dos dogmáticos, afirmam-se no século III a.C. em
114
Alexandria outras escolas, firmadas em princípios diferentes. Temos, por exemplo, a escola que tenta
explicar os fenômenos da vida pelas quatro forças fundamentais; esta escola fez descobertas importantes
sobre a circulação do sangue e sobre o sistema nervoso. Mais importante é a escola médica chamada
empírica que, em oposição à orientação teórica e especulativa das escolas precedentes, afirma o valor da
experiência direta, da observação dos sintomas do mal e do efeito dos remédios. Foi, inversamente,
eclético com tendências dogmáticas e hipocráticas Cláudio Galeno (131-210 d.C.), o maior médico da
Antigüidade. Natural de Pérgamo, viveu longamente em Roma na qualidade de médico imperial e deixou
numerosos escritos, que dominaram a cultura médica européia até além da Idade Média. Tenta ele
sintetizar a doutrina hipocrática dos quatro humores com a física aristotélica dos quatro elementos e das
quatro qualidades fundamentais da matéria - o calor, o frio, a secura, a umidade. Alicerça a medicina na
fisiologia e na anatomia; afirma uma fisiologia teleológica, finalista, para explicar a formação e o
funcionamento dos órgãos; reconhece a vis medicatrix como fator essencial da terapia, não podendo o
médico fazer outra coisa senão auxiliar esta força medicatrix. Tendo Galeno procurado coligar os fatos
particulares observados no mundo biológico aos princípios da física e da metafísica, segue-se que foi
também um filósofo. A sua filosofia é uma síntese do platonismo, estoicismo e, sobretudo, aristotelismo
.
Características Gerais

Julgamos seja preciso tratar do pensamento romano juntamente com a filosofia grega, porquanto
também o pensamento romano depende - em seus motivos teóricos, especulativos, metafísicos - da
filosofia grega; e precisamente depende da filosofia grega do terceiro período, de caráter pregmatista e
moral, que colimava com o temperamento prático dos romanos. Antes, dos dois quesitos fundamentais
da filosofia moral grega - que coisa é o sumo bem, e como se realiza - os romanos se interessaram
propriamente apenas pelo segundo.
O gênio romano é oposto ao gênio grego, apesar de ambos os povos se originarem do mesmo tronco
indo-europeu. O gênio romano cultua a primazia da prática, da atividade, do negotium (nos campos, nos
quartéis, no foro), considerando o estudo, a especulação, a contemplação - que, segundo os gregos,
representavam a mais alta tarefa da vida - como passatempos, lazeres, otia.
E como as obras primas do gênio grego foram a filosofia e a arte, que sobrevivem imperecíveis ao
acontecimento empírico da queda política da Grécia, base e germe de toda sólida construção especulativa
e de toda verdadeira obra artística, em oposição a todos os desvios passados e presentes, assim a obra-
prima do gênio romano é o jus, o direito, a idéia imperial, universal, que sobrevivem imperecíveis ao
empírico fim político do império romano - do Ocidente e do Oriente -, norma e fundamento de uma vida
civilizada ideal, humana, justa, razoável, de permeio a toda a barbárie antiga e moderna.
Após a conquista romana da Macedônia (168 a.C.), a Grécia tornava-se efetivamente parte do império
romano. Começa, portanto, a influência grega sobre o mundo romano. Com meios coativos, políticos, é
impedida pelos conservadores - estando à frente Catão, o Antigo - os quais justamente percebiam o
perigo da perversão dos costumes na vida romana, acelerada pelo contato com a refinada civilização
helenista. Um senatus-consulto, em 161 a.C., vedava a morada em Roma aos filósofos; é, porém, a
última vitória dos conservadores; Roma procede fatalmente para o Império. Entre Roma e a Grécia
estabelecem-se e desenvolvem-se intensas relações culturais, favorecidas pelo partido iluminado chefiado
por Cipião Emiliano, Quíncio Flamínio, Paulo Emílio. Os jovens mais conspícuos das famílias aristocráticas
romanas vão à Grécia e à Ásia Menor, Atenas e Rodes, para se aperfeiçoarem nos estudos, começados
geralmente na pátria sob direção de educadores gregos. E fazem isto não por interesses científicos, mas
porque o helenismo é considerado bom gosto, elegância, moda, elemento indispensável da alta cultura
romana.
Aliás, também a filosofia grega dirige-se para Roma. Antes de tudo, a famosa embaixada dos filósofos
gregos ao senado romano em 155 a.C., composta de Carnéades, acadêmico, juntamente com Critolaus,
peripatético e Diógenes, estóico, a qual segundo Plutarco, despertou grande contrariedade no velho
Catão. O epicurismo teve imediata, rápida e grande influência em Roma, o epicurista foi o primeiro
romano que nos deixou um escrito filosófico: Lucrécio Caro, autor de De rerum natura. É esta uma das
maiores obras da literatura latina, e, por conseqüência, testemunho do entusiasmo vivo e sincero com
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que foi aceito em Roma o epicurismo por um determinado grupo cultural - ainda que a obra
lucreciana seja desprovida de importância especulativa.

Ecletismo e Estoicismo

As duas correntes mais importantes do pensamento romano são o ecletismo e o estoicismo. Ambos
correspondem à índole prática do gênio romano: o primeiro condiz com o pragmatismo positivo, otimista,
da idade republicana; o segundo condiz com o pragmatismo negativo, pessimista, da idade imperial.
O mais destacado expoente da primeira corrente é Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.), jurista e homem
político literato e orador famoso. Não é, porém, igualmente ilustre no mundo filosófico. Carece de
interesse especulativo, de crítica e de sistema; o sistema filosófico de Cícero é uma forma de
pragmatismo eclético, sendo critério de verdade o útil moral. Seu mérito principal está no fato de que ele
fez ampla e eficazmente conhecer a Roma o pensamento helênico, traduzindo-o para a língua latina,
criando um verdadeiro dicionário filosófico latino. Cícero tem mérito também como historiador da filosofia
antiga, de que representa uma fonte essencial, às vezes a única fonte, dada a sua cultura vasta e
eclética. Em Atenas e em Rodes, Cícero foi discípulo de Filo, acadêmico, de Possidônio, estóico, e de
Fedro epicurista. O seu pensamento é, assim, um ecletismo com tendências acadêmicas e para
finalidades morais - conforme a segunda escola estóica grega.
O estoicismo romano difere do estoicismo grego, porquanto - segundo a índole prática do gênio romano -
limita-se quase exclusivamente aos problemas morais, que constituem o caráter essencial do estoicismo,
descuidando quase que completamente dos problemas teoréticos, que no estoicismo são resolvidos
segundo uma metafísica elementar e contraditória. Daí uma superioridade do estoicismo romano sobre o
estoicismo grego; a profunda praxe ascética do estoicismo recebe, aliás, uma confirmação de alto valor,
pela sua aceitação por parte de uma mentalidade positiva, realista, prática, qual era a mentalidade
romana. Os romanos, portanto, podem considerar-se quase naturalmente estóicos; pelo menos os
romanos da idade imperial, que fazem parte da oposição e se apegam à liberdade espiritual do
pensamento, aonde não pode chegar o poder exterior, jurídico, político, tendo renunciado a todo o resto.
Não é de admirar, por conseguinte, - deixando na sombra as questões teoréticas - terem os estóicos
romanos exercido uma função prática, moral, quase religiosa. Procurar-se-á um filósofo, como os cristãos
procurarão um padre; toda grande casa terá um filósofo, como mais tarde terá o seu capelão. Sêneca e
Epicteto pertencem a esta classe de diretores espirituais.
Entre os numerosos estóicos da idade imperial, apenas Sêneca, Musônio Rufo, Epicteto e Marco Aurélio -
pertencentes ao primeiro e segundo século d.C. -, têm uma personalidade própria. E, entre estes, Sêneca
é o maior como pensador, moralista e escritor epigramático.

Direito e Educação

O Direito Romano

A obra universal e imperecível, que no Oriente foi a religião, na Grécia a filosofia, em Roma foi o direito,
segundo a índole prática do gênio romano. O direito romano não é uma filosofia do direito, mas uma
sistematização jurídica; não é uma construção teórica, mas a codificação de uma longa e vasta prática.
Tal sistematização jurídica, todavia, implica numa concepção filosófica, numa filosofia do direito, num
direito natural, que o pensamento grego pode deduzir da sistematização jurídica romana. O pensamento
grego serviu à codificação do direito romano próprio e verdadeiro, se bem que os grandes jurisconsultos
romanos teriam chegado sozinhos a esta codificação, do mesmo modo que Roma sozinha construiu o seu
império.
Certamente, para chegar à construção de um direito universal, natural, racional, humano, Roma teve que
superar a própria nacionalidade. Instaurado o Império, Roma não desnatura o seu gênio político original,
mas realiza-o, desenvolve-o, valoriza-o, pois Roma era naturalmente feita para se tornar a capital do
mundo, caput mundi. E, paralelamente, o direito romano no corpus juris justiniano é o lógico
desenvolvimento do original germe jurídico, que, surgindo na família, expande-se através da cidade e do
116
estado, e culmina no Império. Do direito civil chega até ao direito das gentes, antes, até aquele
direito natural, a que chega a filosofia pelos caminhos da razão.

A Educação Romana

O espírito prático romano manifesta-se também na educação, que se inspirou, entre os romanos, nos
ideais práticos e sociais. Na história da educação romana podem-se distinguir três fases principais: pré-
helenista, helenista-republicana, helenista-imperial. A primeira e fundamental instituição romana de
educação é a família de tipo patriarcal, germe de uma sociedade mais vasta, que vai da cidade ao
império: os patres governam a coisa pública. Educador é o pai, que na sociedade familiar romana
desempenha também as funções de senhor e de sacerdote - paterfamilias. Nesta obra educativa
colaborava também a mãe, especialmente nos primeiros anos e no concernente aos primeiros cuidados
dos filhos, sendo, em Roma, mais considerada a mulher do que na Grécia, dadas as suas predominantes
qualidades práticas. O fim da educação é prático-social: a formação do agricultor, do cidadão, do
guerreiro - salus reipublicae suprema lex esto. Essencialmente práticos e sociais são os meios: o
exemplo, o treinamento ministrado pelo pai que faz o filho participar na sua atividade agrícola,
econômica, militar e civil, a tradição doméstica e política - mos maiorum; e a religião - pietas - entendida
como prática litúrgica, sendo a religião, em Roma, diversamente do que era na Grécia, sumamente pobre
de arte e de pensamento. E tudo isso sob uma disciplina severa. Enfim, prático-social era o próprio
conteúdo teorético da educação, a instrução propriamente dita, que se reduzia a uma aprendizagem
mnemônica de prescrições jurídicas, concisas e conceituosas - as leis das doze tábuas - que regulavam os
direitos e os deveres recíprocos naquela elementar mas forte sociedade agrícola-político-militar.
A educação romana sofreu necessariamente uma profunda modificação, quando o antigo estado-cidade,
desenvolvendo-se e expandindo-se para a nova forma do estado imperial - entre o terceiro e o segundo
século a.C. - veio em contato com a nova civilização helênica, cuja irresistível fascinação também Roma
sofreu. Sentiu-se então a exigência de um novo sistema educativo, em que a instrução, especialmente
literária, tivesse o seu lugar. Esta instrução literária partiu precisamente da cultura helênica. Primeiro são
traduzidas para o latim as obras literárias e poéticas gregas - por exemplo, a Odisséia -, depois estudam-
se os autores gregos no texto original, enfim se forma pouco a pouco uma literatura nacional romana
sobre o modelo formal da grega. E, deste modo, a princípio é a literatura grega que se difunde em Roma,
depois, mediante a literatura, é o pensamento grego que penetra e se difunde, e afinal, através do
pensamento, entra e se espalha a concepção grega da vida - porquanto estava pelo menos nas
possibilidades do caráter latino.
Evidentemente, a família não estava mais à altura de ministrar esta nova e mais elevada instrução. As
famílias das mais altas classes sociais hospedam em casa um mestre, geralmente grego - pedagogus ou
litteratus. E, para atender às exigências culturais e pedagógicas das famílias menos abastadas, vão-se,
aos poucos, constituindo escolas - ludi - de instituição privada sem ingerência alguma do estado. Essas
escolas são de dois graus: elementares - a escola do litterator onde se aprendia a ler, escrever e calcular;
médias - a escola do grammaticus - onde se ensinava a língua latina e a grega, se estudavam os autores
das duas literaturas, através das quais se aprendia a cultura helênica em geral. Um terceiro grau será,
enfim, constituído mediante as escolas de retórica, uma espécie de institutos universitários, que surgem
com uma diferenciação e uma especialização superior da escola de gramática.
A sua finalidade era formar o orador, porquanto a carreira política representava, para o espírito prático
romano, o ideal supremo. E, portanto, o ensino da eloqüência abrangia toda a cultura, do direito até à
filosofia. O orador romano será o tipo do homem de ação, do político culto, em que a cultura é
instrumento de ação - negotium e, logo, para os romanos, coisa muito séria, em relação com a seriedade
da ação, e não simples distração - otium. Na reação dos conservadores contra a helenização da vida
romana, os censores publicavam um decreto que condenava a escola latina de retórica (92 a.C.), por ser
"novidade contrária aos costumes e aos preceitos dos maiores", e é definida até como ludus impudentiae.
Acabam, todavia, por triunfar os inovadores, e a cultura helênica e os mestres gregos afluem a Roma
sempre mais numerosos e bem acolhidos, enquanto a elite dos jovens romanos vai se aperfeiçoar nos
centros de cultura helenista, especialmente em Atenas.
117
Juntamente com a organização do império organizam-se também as escolas romanas. Por certo,
vindo a faltar a liberdade, vem a faltar o interesse político da cultura; as escolas de retórica perdem a
função prática e social, transformando-se em meios de ornamento intelectual entre os lazeres de uma
aristocracia cultural, o que, absolutamente falando, representa uma purificação da cultura no sentido
especulativo, dianoético, grego; mas, relativamente ao espírito prático-social romano, significa uma
decadência para o diletantismo. Seja como for, o estado romano mostra agora apreciar a cultura.
Começam os imperadores romanos por conceder imunidade e retribuições aos mestres de retórica ainda
docentes em casas particulares; depois o estado passa a favorecer e promover a instituição de escolas
municipais de gramática e de retórica nas províncias; enfim são fundadas cátedras imperiais,
especialmente de direito, nos grandes institutos universitários.
Um dos principais motivos de interesse imperial pela cultura e a sua difusão foi o fato de se ver nela um
eficaz instrumento de romanização dos povos, um instrumento de penetração e de expansão da língua e
dos jus romano, um meio, em suma, para o engrandecimento do império. E o resultado foi fecundo
também para a cultura como tal, porquanto foi ela levada, embora modestamente, aqueles povos -
Espanha, Gália, Grã-Bretanha, Germânia, províncias danubianas, África setentrional - a que o helenismo
não pudera chegar. Tais escolas municipais foram tão vitais nas províncias, que muitas sobreviveram à
queda do império romano ocidental, transformando-se em escolas eclesiásticas graças ao monaquismo
cristão, e conservaram acesa na noite barbárica a chama da cultura clássica, preparadora dos
esplêndidos renascimentos posteriores.
O teórico da pedagogia romana pode ser considerado Quintiliano. Nasceu na Espanha no II século d.C.,
foi professor de retórica em Roma, o primeiro docente pago pelo estado, quando Vespasiano era
imperador. Na Instituição Oratória, em doze livros, expõe o processo de formação do orador - cuja figura
ideal já delineara Cícero no De Oratore. Faz Quintiliano uma exposição completa, propondo programas e
métodos que foram em grande parte adotados sucessivamente nas escolas do império. A instituição
escolástica compreende os dois graus tradicionais de gramática e retórica. No curso de gramática
ensinam-se a língua latina e a língua grega, a interpretação dos poetas - Vergílio e Homero - e as noções
necessárias para este fim. No curso de retórica ensinam-se a interpretação dos historiadores - Lívio - e
dos oradores - Cícero -, o direito e a filosofia, enquanto fornecem o conteúdo essencial à arte oratória.
Um lugar de destaque ocupam as normas e as exercitações de eloqüência, o fim supremo da educação
romana, segundo o espírito prático-político romana.

Período Religioso

Características Gerais

O quarto e último período do pensamento grego denomina-se religioso, porque o espírito humano
procura a solução integral do problema da vida na religião ou nas religiões. O problema da vida é
agudamente sentido, pelo fato de ser profundamente sentido o problema do mal. Deste problema não se
acha, racionalmente, uma explicação plena, e, por conseguinte, se recorre à concepção de uma queda
arcana, original, do espírito, de um conseqüente encarceramento do espírito no corpo, e de uma
purificação e libertação ascética e mística. A desconfiança do conhecimento racional impede à evasão
para um conhecimento supra-racional, imediato, intuitivo, místico, da realidade absoluta, para a
revelação, o êxtase. Assim, o pensamento grego, que partiu de uma religião - positiva -, e a demoliu
paulatina e criticamente nos grandes sistemas clássicos, volta, no seu término, para a religião. Já não se
trata, porém, da velha religião grega, olímpica, homérica, absolutamente incapaz, devido aos seus limites
naturalistas, humanistas, políticos, de resolver os grandes problemas transcendentes - do mal, da dor, da
morte, do pecado - que nem sequer se propõe. Trata-se, ao contrário, das religiões orientais, semitas,
místicas, misteriosóficas, especialmente propensas a estes problemas e fecundas em soluções do mais
vivo interesse.
No período religioso permanecem os problemas do período ético, mas singularmente acentuados;
procura-se-lhes a solução mediante uma metafísica completada pela religião. Tentar-se-á a síntese
filosófica do dualismo platônico, do racionalismo aristotélico, do monismo estóico, e mais precisamente
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do transcendente divino platônico, do logos racional aristotélico, da alma estóica do mundo, em uma
forma de triteísmo, em uma característica espécie de trindade divina. Nesta síntese metafísica prevalece
o platonismo, com a sua radical separação entre o mundo sensível e inteligível, com a sua extrema
transcendência da divindade, com a sua doutrina de uma queda original, com a sua religiosidade e o seu
misticismo. Mas na metafísica neoplatônica - obra-prima deste período religioso - tal transcendência,
característica do clássico dualismo grego, terminará no monismo emanatista.
O último período do pensamento grego abrange os primeiros cinco séculos da era vulgar:
substancialmente, a idade do império romano, de que a filosofia religiosa neoplatônica forma como que a
estruturação ideal; e também a idade da patrística cristã, com que o neoplatonismo tem contatos,
intercâmbio e polêmicas. O centro deste movimento filosófico é Alexandria do Egito, capital comercial,
cultural, religiosa do mundo cosmopolita helenista-romano, encruzilhada entre o Ocidente e o Oriente,
sede do famoso Museu.
O sistema metafísico predominante no período religioso é o neoplatonismo, e o seu maior expoente é
Plotino (III século d.C.), cuja vida e pensamento nos foram transmitidos pelo discípulo Porfírio. O
neoplatonismo, todavia, tem rumos precursores nos primeiros séculos da era vulgar: I - oriental, em Filo
de Alexandria, que tenta a síntese do pensamento grego com a revelação hebraica, interpretada à luz do
pensamento grego, mas a este supra-ordenada; II - ocidental, no novo pitagorismo, cujo maior
representante é Apolônio de Tiana, e no platonismo religioso, cujo maior expoente é Plutarco de
Queronéia. E também teve o neoplatonismo desenvolvimento nos últimos séculos do império romano:
1°. - na assim chamada escola siríaca, cuja mais notável expressão é Jâmblico, e exerceu também certa
influência política com o imperador Juliano Apóstata; 2°. - na chamada escola ateniense, cuja mais
notável expressão é Proclo, que sistematizou definitivamente e transmitiu aos pósteros o pensamento
neoplatônico. Com a escola ateniense acaba, também historicamente, o pensamento grego, pelo
encerramento dessa escola ordenado por Justiniano imperador (529 d.C.). Entretanto, o pensamento
grego - o pensamento platônico, pelo menos - já tinha sido assimilado pelo pensamento cristão patrístico,
e a sua parte vital tinha sido transfundida e valorizada no cristianismo.

IV - O Pensamento Moderno

Transcendência Cristã e Imanência Moderna

Achamos a característica específica do pensamento clássico na solução dualista do problema metafísico.


Existem o mundo e Deus, mas são separados entre si: Deus não conhece, não cria, não governa o
mundo. Tal dualismo não será negado, mas desenvolvido no pensamento cristão mediante o conceito de
criação, em virtude da qual é ainda afirmada a realidade e a distinção entre o mundo e Deus, mas Deus é
feito criador e regedor do mundo: o mundo não pode ter explicação a não ser em um Deus que
transcende o mundo. O pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma concepção monista-
imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o mundo são a mesma coisa, mas Deus é
resolvido num mundo natural e humano. Consequentemente, não se pode mais falar em transcendência
de valores teoréticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser" e "dever ser" são a mesma coisa, o "dever
ser" coincide com o "ser".
É evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à concepção teísta (cristã) é um
desenvolvimento lógico, que se manifesta especulativamente no desenvolvimento tomista de Aristóteles.
Pelo contrário, a passagem da concepção tradicional, teísta, à concepção moderna, imanentista,
representa teoricamente uma ruptura. O pensamento moderno, todavia, especialmente o pensamento da
Renascença, tem seu precedente lógico no panteísmo neoplatônico, que  após ter-se afirmado como
extrema expressão do pensamento clássico  permanece através de todo o pensamento cristão em
tentativas mais ou menos ortodoxas de síntese entre cristianismo e neoplatonismo (Pseudo Dionísio,
Scoto Erígena, Mestre Eckart, etc.). E, por outra parte, o pensamento tradicional, helênico-escolástico,
aristotélico-tomista, encontrará nos grandes valores da civilização moderna (a ciência natural, a técnica, a
história, a política) sua integração lógica.
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Não se julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à sua elementar e fantástica
ciência da natureza a ciência moderna com suas grandes aplicações técnicas, pois não é a ciência natural
 capaz apenas de resolver os problemas da vida material, mas incapaz de resolver os problemas máximos
da vida, espirituais, morais, religiosos  que pode decidir do valor de uma civilização. E a ciência natural da
Idade Média não está absolutamente em conexão com o pensamento filosófico medieval; o próprio
Tomás de Aquino julgava logicamente que a filosofia podia ser uma só, em adequação à realidade, ao
passo que admitia a possibilidade de uma ciência natural diversa daquela do seu tempo. Além disso, se,
de fato, a escolástica pós-tomista, decadente, alimentou suspeitas e combateu longamente contra a
nascente ciência moderna, a favor da velha ciência natural aristotélica, a nova escolástica, isto é, o novo
tomismo, não teve dificuldade alguma em aceitar toda a ciência natural moderna, e, como tal, porquanto
esta representa uma valor infra-filosófico, e, como tal, indiferente à filosofia, à metafísica.
O valor da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico, mas empírico e técnico. Tal era
também o pensamento do grande fundador da ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o objeto
da ciência não as essências metafísicas das coisas, e sim os fenômenos naturais, experimentalmente
provados e matematicamente conexos. E destes conhecimentos experimentais e matemáticos de
fenômenos naturais derivava ele as primeiras grandes aplicações técnicas da ciência moderna. Aplicações
técnicas que possuem também um valor espiritual, o do domínio natural do homem sobre a natureza:
contanto que o homem reconheça, naturalmente, acima de si e de tudo, Deus.
O que dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história. A historiografia medieval é, sem
dúvida, insuficiente, ingênua, descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso da
concretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a história verdadeira e própria. Mas a
concepção medieval da história, que é a cristã e já teve a sua expressão clássica na Cidade de Deus de
Agostinho é perfeitamente conciliável com a indagação histórica moderna, devendo esta última fornecer
à primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu profundo senso histórico, o seu interesse pela
concretidade.
Costuma-se inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado nacional concreto, orgânico, para
construir uma unidade política grandiosa, mas abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro Império
Romano. No entanto, isto não foi senão uma expressão exterior daquela estrutura profunda que se
chama a cristandade: equivalente civil da igreja católica, capaz de abraçar os mais diversos organismos
políticos. Nem se deve esquecer que precisamente na comuna medieval se encontra a primeira origem do
estado moderno, interiormente organizado e politicamente soberano. E é na Idade Média que se formam
as grandes nações modernas. Noutras palavras, é na Idade Média que se formou o Estado distinto da
Igreja, mas não leigo, imanentista, ateu, bem como o laicado distinto do clero e organizado civilmente
em graus de corporações, mas cristão, católico, romano.
Poder-se-ia fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do Estado (e do laicado) com
respeito à Igreja (e ao clero) foram alcançadas através de uma longa luta contra o predomínio e a
invasão destes últimos. Mas cumpre ter presente que, na alta Idade Média, no período bárbaro, nos
séculos de ferro, a igreja romana e o clero católico desempenharam funções também leigas e profanas,
como, por exemplo, a instrução cultural, a assistência hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o
comércio, as comunicações, etc., pelo fato de que ninguém estava em condições de fazê-lo. E é devido a
isso que a civilização não pereceu, e foi conservada para a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estava
apta e disposta  a prescindir-se das intenções dos homens e de suas fraquezas fatais  a livrar-se desses
cuidados estranhos gravosos e perigosos para o seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os
homens e os tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a atitude da Igreja,
praticamente liberal, compreensiva e ativa com respeito ao Estado, desde os comunas medievais até às
grandes monarquias européias do século XVII e ainda além.

Os Precedentes do Pensamento Moderno

Dada a ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o pensamento moderno, imanentista, não
se podem achar causas racionais dessa mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a
120
justificação teórica da nova atitude espiritual, que será constituída por todo o pensamento moderno
em seu desenvolvimento lógico.
O grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e civilização, teologia e filosofia, Igreja e
Estado, clero e laicado, estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi, de fato, destruído
pelo humanismo imanentista, que constitui o espírito característico do pensamento moderno. Este
pensamento começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais e terrenos, com o
conseqüente esquecimento dos interesses e ideais espirituais e religiosos; e torna-se completo com a
justificação dos primeiros e a exclusão dos segundos. É precisamente o que acontece com os homens
inteiramente entregues aos cuidados mundanos: primeiro se esquecem das coisas transcendentes, e, em
seguida, querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto, se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém, precedentes especulativos,
que, valorizados pela nova atitude espiritual, se tornarão fontes especulativas do próprio pensamento
moderno. Tais precedentes especulativos podem ser resumidos desta forma: o panteísmo neoplatônico, o
aristotelismo averroísta e o nominalismo ocamista, os quais foram-se afirmando contemporaneamente a
uma gradual decadência do genuíno pensamento escolástico (racional, teísta, cristão), especialmente
tomista, com que se acham em oposição. E tal decadência cultural é acompanhada, por sua vez, pela
decadência da Igreja e do Papado  o exílio avinhonês e o cisma do ocidente.
O panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação, no âmbito do cristianismo, com
Scoto Erígena. Tentará afirmar-se de novo na própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o
iniciador da mística alemã. E receberá uma nova original elaboração do Humanismo com Nicolau de Cusa,
que não pouco deve aos precedentes; e, sobretudo, com Giordano Bruno, o maior pensador da
Renascença, o qual depende, por sua vez, de Nicolau de Cusa. O averroísmo latino afirmara na Idade
Média a sua famosa doutrina das duas verdades: o que não é verdadeiro em filosofia pode ser verdadeiro
em religião e vice-versa. Em uma idade cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia Ter a
prevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé, como na Renascença, devia prevalecer uma
concepção anti-cristã, aristotélica ou não. O occamismo marca a conclusão lógica da decadente esolástica
pós-tomista, apesar de seus partidários se comprazerem em denominá-la via modernorum. E, ao mesmo
tempo, apresenta um elemento fundamental da filosofia moderna com o seu empirismo e nominalismo.
Nicolau de Cusa, Telésio, Bruno, Campanella serão também herdeiros do nominalismo empirista de
Occam, que se combina, nos sistemas deles, com uma metafísica aventurosa de cunho particularmente
neoplatônico.
Como é sabido, segundo Occam, o conhecimento humano é reduzido ao conhecimento sensível do
singular e, portanto, ao nominalismo. Conseqüência lógica e consciente é a destruição da metafísica, que
transcende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência, que é entretecida de conceitos,
impossíveis de nominalismo, de sorte que se esvai da teodicéia, porquanto não se pode provar
racionalmente a existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a psicologia racional, pelo mesmo
motivo. E, consequentemente, torna-se impossível a ética racional, porque  sendo desconhecida a
essência de Deus e destruída a do homem  a moral fica reduzida a um conjunto de preceitos arbitrários
de Deus, que o homem tem que observar por fé. Occam procurará salvar-se do ceticismo  conclusão do
seu sistema, com todas as conseqüências práticas  mediante a fé. Entretanto é uma posição
insustentável, porquanto a fé  não podendo mais ser um racional obséquio  torna-se uma adesão cega.
Em época de religiosidade ainda viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente ficar de pé. Mas ruirá
quando a fé vier a faltar, deixando o terreno livre ao empirismo, ao naturalismo, ao nominalismo, ao
ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que constituirão tão grande parte do pensamento da Renascença,
da Reforma e também do pensamento posterior.

Os Períodos do Pensamento Moderno

Este grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno, naturalmente não se manifesta na
sua significação imanentista senão na plenitude do seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se através
de uma série de períodos, que se podem historicamente (e dialeticamente) indicar assim:
121
1.  Antes de tudo a Renascença, em que a concepção imanentista, humanista ou naturalista, é
potentemente afirmada e vivida. Trata-se, porém, de uma afirmação ainda não plenamente consciente e
sistemática, em que o novo é misturado com o velho. Este, muitas vezes, prevalece, ao menos na
exterioridade da forma lógica e literária. A Renascença é preparada pelo Humanismo, e tem como seu
equivalente religioso a reforma protestante.
2.  A este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente, abrange os séculos XV e
XVI, se seguem o racionalismo e o empirismo, que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revolução
renascentista e protestante, sente-se a necessidade de uma séria indagação crítica, não para demolir
aquelas intuições revolucionárias, mas, ao contrário, para dar-lhes uma sistematização lógica. É o que
fará especialmente o racionalismo em relação ao conhecimento racional.
3.  E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento sensível. Empirismo e racionalismo são
tendências especulativas, gnosiológicas, opostas entre si, como a gnosiologia sensista está certamente
em oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto, concordam em um comum fenomenismo, pois, em
ambos, o sujeito é isolado do ser e fechado no mundo das suas representações. Não se conhecem as
coisas e sim o nosso conhecimento das coisas.
4.  Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa maturação, encontrarão uma saída
prática, social, política, moral, religiosa no iluminismo e, portanto, na revolução francesa (Segunda
metade do século XVIII); esta representa a concreta realização do pensamento moderno na civilização
moderna. Esse movimento começa na Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em seguida, na
Alemanha e na Itália.

Os Pensadores Renascentistas

Os Pensadores

Do fundo eclético-neoplatônico do pensamento da Renascença se destacavam algumas figuras de maior


vulto, cuja série começa com Nicolau de Cusa e termina com Giordano Bruno. É uma nova concepção
filosófica do mundo e da vida, ainda não bem claramente esboçada, de que seus próprios autores, às
vezes, não têm clara consciência. É uma época de transição, em que novo e velho se entretecem
mutuamente.
Os sistemas filosóficos da época conservam a linguagem (latim) e a estrutura (silogística) da idade
precedente. As intuições e afirmações naturalistas, humanistas e imanentistas estão ao lado das
profissões de fé católica, feitas por motivos práticos, éticos e utilitários. Entretanto, debaixo dessas
aparências, germina o pensamento moderno. É o crepúsculo que prenuncia a alvorada de um novo dia.

Nicolau de Cusa

Nicolau Krebs nasceu em 1401 em Cusa, de família modesta. Foi educado junto dos Irmãos da vida
comum em Deventer, onde sofreu a influência do misticismo alemão; em seguida estudou na
Universidade de Heidelberg, foco de nominalismo, e na de Pádua, onde aprendeu a matemática, o
direito, a astronomia. Ordenado padre, teve parte notável no concílio de Basiléia (1432); foi, a seguir,
legado pontifício, cardeal, bispo. Viveu seus últimos anos na Itália, onde faleceu em 1464.
As obras fundamentais de Nicolau de Cusa são três: De docta ignorantia, De conjecturis, Apologia doctae
ignorantiae. As fontes prediletas e principais são o misticismo alemão (Mestre Eckart), o platonismo e o
neoplatonismo cristão (Santo Agostinho, Pseudo Dionísio, Scoto Erígena, São Boaventura), e os autores
de tendência neoplatônica, em geral.
Nicolau de Cusa admite, acima dos sentidos, dois graus do saber humano; a ratio e o intellectus. A ratio 
ou intelecto discursivo  é a faculdade que abstrai das noções particulares os conceitos universais, e
forma, em seguida, os juízos e os raciocínios. O seu objeto próprio é o conhecimento da multíplice e do
finito. No entanto, também a coisas finitas são imperfeitamente representadas pela ratio, cujo
conhecimento se realiza mediante conceitos universais, ao passo que a realidade é constituída por seres
122
individuais. Deus, uno e infinito, não pode certamente ser conhecido pela ratio, cujo objeto é o
multíplice e o finito.
Acima da ratio está o intellectus, atividade supra-racional iluminada pela fé ou pela mística, cujo objeto
próprio é o Uno e o infinito, Deus. O agnosticismo de Nicolau de Cusa é, portanto, corrigido pelo fideísmo
e pelo misticismo. A docta ignorantia consiste precisamente na consciência dos limites e da relatividade
da ratio, cujas deficiências são supridas pelo intellectus. Entretanto, esta iluminação é sobrenatural e
nada tem que ver com a filosofia, nem é de modo nenhum fundamentada por Cusano. Admitindo, pois,
ele, que a razão não nos dá a realidade, segue-se logicamente que a sua filosofia deve finalizar no
agnosticismo gnosiológico, e no panteísmo metafísico.
Por certo, o piedoso cardeal foi, na intenção, ortodoxo, teísta, católico. Entretanto, o seu sistema encerra
fatalmente uma tendência para o panteísmo. De fato, foi ele acusado de panteísmo emanatista, quando
ainda vivia.

Bernardino Telésio

Mais claramente manifesta-se o imanentismo da Renascença  em seu aspecto naturalista  em


Bernardino Telésio. Nasceu em 1509 em Cosenza, estudou especialmente em Pádua e faleceu em
1588. A sua obra fundamental é De rerum natura iuxta propria principia. O pensamento de Telésio
representa uma sistematização do naturalismo da Renascença: a saber, uma tentativa para explicar a
natureza mediante os princípios universais imanentes à mesma natureza.
O mundo natural é constituído de matéria e de força. A matéria é homogênea, preenche o espaço (que
existe antes da matéria) e é por si mesma inerte. A força anima, penetra, move, transforma
continuamente toda a matéria.
O intelecto é reduzido aos sentidos, bem como o conceito universal é reduzido à sensação. Como é
naturalizado o pensamento, é também naturalizada a vontade, no sentido materialista e hedonista.
Entretanto, haveria no homem também uma alma que transcende a natureza e o mundo material, criada
e infundida por Deus. Por conseguinte, o homem pode pensar e querer o supra-sensível, o eterno, e
dominar com a vontade livre as tendências naturais. Desse modo, acima da ciência é posta e justificada a
fé e a revelação.

Giordano Bruno

Giordano Bruno é a maior expressão do imanentismo renascentista. Nasceu em Nola em 1548, entrou
na Ordem dos Dominicanos aos 15 anos. Acusado de heresia e afastado de sua ordem, iniciou uma vida
giróvaga através da Europa. De volta a Veneza, foi processado pelo tribunal da Inquisição e reconheceu
os seus erros. Entregue à Inquisição romana, foi de novo processado; mas, desta vez, recusou qualquer
retratação e foi condenado à morte, que lhe foi infligida em 1600.
As obras principais de Bruno são: De la causa principio e uno; De l'infinito, universo e mondi; Eroici
furori; De immenso et innumerabilibus. As fontes de Bruno são: o monismo eleático e heraclíteo; o
atomismo democríteo; o panteísmo estóico; o emanatismo neoplatônico; o naturalismo telesiano.
A metafísica de Bruno é decididamente monista, pampsiquista e pan-materialista. A realidade é una e
infinita, constituída por dois princípios fundamentais, ativo um  a alma do mundo  , passivo o outro  a
matéria. São dois aspectos da mesma substância. A alma do mundo é concebida como sendo inteligente,
ordenadora do mundo; mas não é transcendente, como o motor primeiro de Aristóteles e o Deus do
cristianismo, e sim imanente ao mundo, de que é precisamente a alma. O Deus de Bruno é, pois, esta
alma do mundo, concebida como imutável e infinita, gerando eternamente o mundo finito e que se acha
em perpétuo vir-a-ser. As almas particulares não passam de individuações passageiras dessa alma
cósmica. Acima desse Deus imanente, também Bruno afirma a existência de um Deus transcendente,
apreendido só por fé, trata-se, porém, de uma fé imanente naturalista, bem diversa da fé cristã.
Com a metafísica de Bruno estão em conexão a sua gnosiologia e a sua moral. Na sua teoria do
conhecimento Bruno distingue  neoplatonicamente  quatro graus, em ordem hierárquica ascendente. São
eles:
123
os sentidos, cujo objeto é o sensível, e a verdade que manifesta é mera aparência;
a razão, mediante a qual a verdade é atingida por processo dialético, discursivo, sucessivo;
o intelecto, que tem a intuição imediata da verdade;
a mente, que atinge a verdade na sua unidade e simplicidade absoluta.
Quanto à moral deve-se dizer o seguinte: na moral de Bruno aparece de um modo característico o
imanentismo e o humanismo do pensador. Bruno, em oposição à moral ascética e transcendente do
cristianismo, sustenta que o homem realiza a sua natureza, atinge a sua perfeição no furor heróico, a
saber, na sua imanente e jubilosa participação racional na vida do Todo-um. É, pois, natural, que Bruno
considere toda religião histórica, positiva (inclusive o cristianismo), como um saber infra-racional, mítico,
simbólico, útil para dirigir moralmente o vulgo ignorante, e não como uma revelação supra-racional de
um Deus transcendente. Pois não é isto possível no seu sistema imanentista.

Tomás Campanella

Tomás Campanella nasceu em Stilo, na Calábria, em 1568, e também ele entrou ainda moço na ordem
dos Dominicanos. É o maior continuador de Telésio. Várias vezes processado por heresia, foi, porém,
absolvido; entretanto, condenaram-no por motivos políticos e passou no cárcere 27 anos, sendo, enfim,
libertado. Suas obras principais são: Civitas solis; Universalis philosophia seu metaphisicarum rerum iuxta
propria dogmata partes tres; De sensu rerum et magia libri X.
As fontes principais do seu pensamento são: o naturalismo telesiano e o idealismo neoplatônico. Mais do
que os pensadores precedentes, Campanella parece oscilar entre imanentismo e catolicismo, devido ao
fato de que se acha ele já no clima espiritual da contra reforma católica. E como Giordano Bruno
prenuncia a Spinoza, assim Campanella prenuncia a Descartes, Malenbranche e Leibniz, marcando
destarte a passagem da Renascença à Idade Moderna.
Quanto à gnosiologia, Campanella diz o seguinte: Admite ele um sensus inditus e um sensus additus. O
primeiro oferece um conhecimento imediato de si mesmo; é um conhecimento fundamental, certíssimo,
visto que o objeto coincide com o sujeito. Entretanto, o conhecimento do eu, a consciência, revela
imediatamente as limitações do eu e, logo, a existência as coisas que limitam o eu. Estas coisas são
conhecidas pela percepção externa, isto é, pelo sensus additus que nos dá um conhecimento mediato das
coisas. Este, porém, não nos revela a natureza das coisas, e sim o sujeito modificado pelas coisas.
Ainda inferiores ao sensus additus, pela certeza, são o intelecto e a razão, porque ainda mais se afastam
do sensus inditus, da imediata intuição de si mesmo. A razão, a saber, o poder de inferir o semelhante do
semelhante, é um sentido imperfeito; o intelecto, a saber, o conhecimento do universal é um sentido
elanguescido, pois o universal é uma noção genérica e confusa, cujo valor é unicamente prático, cômodo
para resumir vários particulares. Campanella, como Telésio, desvaloriza a razão e o intelecto e admite, ao
lado e acima deles, um princípio divino, uma mente, o pensamento, que desempenha a função de
garantir o nosso conhecimento e libertar-nos do ceticismo.
Quanto à metafísica, salientamos que Campanella afirma de novo e acentua a animação universal, o
pampsiquismo telesiano. Propriamente, a metafísica de Campanella é a doutrina dos primeiros princípios
do ser; são eles o poder, a sabedoria, o amor. Tais princípios são absolutos e puros em Deus, relativos e
imperfeitos nas criaturas. Daí as coisas e o espírito serem uma mistura de ser e de não-ser (ser limitado),
ao passo que Deus é puro ser (ser infinito).
Sobre essa nossa limitação ontológica, Campanella alicerça a religião, que é aspiração do ser limitado
para o ser infinito. Para Campanella, a religião fundamental é a religião natural, racional; as religiões
positivas, históricas, seriam expressões empíricas da religião natural. A característica essencial da própria
revelação cristã e da igreja católica seria a restauração da religião natural, racional, universal,
obscurecida pela ignorância e pela concupiscência. Portanto, o cristianismo seria reduzido à religião
natural, a que a Renascença em geral aspira.
Tal concepção filosófico-religiosa de Campanella teve uma expressão prática, política e pedagógica, na
Cidade do Sol (Civitas solis), em que é exposta a sua utopia teocrático-comunista. Imagina ele uma
república ideal, professando uma religião natural, governada por leis universais, em que, à maneira de
Platão, o sábio é, ao mesmo tempo, monarca e sacerdote. Mais tarde, essa sua utopia teocrático-
124
filosófica tomará uma forma teocrático-católica, com o papa à frente. Entretanto, o papa é concebido
mais como chefe concreto de uma religião natural, do que como chefe de uma religião positiva e
sobrenatural, como o cristianismo. Campanella viveu longamente na prisão, afastado da vida real; suas
obras, escritas no cárcere, manifestam uma mentalidade fantástica, idealista, utópica, em que falta a
experiência de uma vida social-concreta. "Tumultuária e aventurosa em muitos pontos  escreve Leonel
Franca  a obra de Campanella encerra não poucas idéias aproveitáveis. Cabe-lhe a prioridade de várias
teorias, atribuídas depois a Descartes e Bacon".

Baruch Spinoza

Considerações Gerais

O pensamento de Descartes exercerá uma influência vasta no mundo cultural francês e europeu,
diretamente até Kant e indiretamente até Hegel. E exerceu tal influência não tanto como sistema
metafísico, quanto especialmente pelo espírito crítico, pelo método racionalista, implícito nas premissas
do sistema e realizado apenas parcialmente pelo filósofo.
O desenvolvimento lógico do cartesianismo é representado por alguns grandes pensadores originais:
Spinoza, Malebranche, Leibniz. Spinoza é a mais coerente e extrema expressão do racionalismo moderno
depois do fundador e antes de Kant; Malebranche e Leibniz encontram, ao contrário, nas suas
preocupações práticas, religiosas e políticas, limitações ao desenvolvimento lógico e despreocupado do
racionalismo.
Ladeia estes três pensadores uma turma numerosa de cartesianos mais ou menos ortodoxos,
particularmente na França na segunda metade do século XVII. Significativa é a influência que o criticismo
e o racionalismo cartesianos exerceram sobre a cultura do século de Luís XIV, o século de ouro da
civilização francesa; sobre a arte de Racine e de La Fontaine, sobre a poética de Boileau, a ética de La
Bruyère, o pensamento de Bayle.
Descartes teve seguidores também em determinados meios religiosos de orientação platônico-
agostiniana, mais ou menos ortodoxos. Os dois centros principais desse sincretismo são representados
pelo Jansenismo e pelo Oratório. Brás Pascal, porém (se bem que, em parte, jansenista), grande físico e
matemático, mas de um profundo sentimento religioso e cristão, parece ter tido intuição da falha da
filosofia cartesiana. À razão matemática, científica - espírito geométrico - que vale para o mundo natural
mas não chega até Deus, contrapõe a razão integral - esprit de finesse - que leva até o cristianismo.
Descartes teve numerosos adversários e críticos no campo filosófico, entre os quais Hobbes. Entretanto,
as oposições maiores contra o cartesianismo surgiram evidentemente no ambiente eclesiástico e político,
quer católico quer protestante. Nesses ambientes houve a intuição de um perigo revolucionário para a
religião e a ordem social, por causa do criticismo, mecanismo e infinidade do universo, próprios daquela
filosofia.
E, no entanto, o cartesianismo forjou a mentalidade (racionalista-matemática) dos maiores filósofos até
Kant. E também propôs os grandes problemas em torno dos quais girou a especulação desses filósofos, a
saber: a relação entre substância finita de um lado, e entre espírito e matéria do outro. Daí surgiram o
ontologismo e o ocasionalismo de Malebranche, a harmonia preestabelecida de Leibniz e o panteísmo
psicofísico de Spinoza.

Baruch Spinoza

O racionalismo cartesiano é levado a uma rápida, lógica, extrema conclusão por Spinoza. O problema das
relações entre Deus e o mundo é por ele resolvido em sentido monista: de um lado, desenvolvendo o
conceito de substância cartesiana, pelo que há uma só verdadeira e própria substância, a divina; de outro
lado introduzindo na corrente racionalista-cartesiana uma preformada concepção neoplatônica de Deus, a
saber, uma concepção panteísta-emanatista. O problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria
é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. Une
os dois na mesma substância segundo um paralelismo psicofísico, uma animação universal, uma forma
125
de pampsiquismo. Em geral, pode-se dizer que Descartes fornece a Spinoza o elemento
arquitetônico, lógico-geométrico, para a construção do seu sistema, cujo conteúdo monista, em parte
deriva da tradição neoplatônica, em parte do próprio Descartes.
Os demais racionalistas de maior envergadura da corrente cartesiana se seguem, cronologicamente,
depois de Spinoza; entretanto, logicamente, estão antes dele, pois não têm a ousadia - em especial
Malebranche - de chegar até às extremas conseqüências e conclusões racionalista-monista, exigidas
pelas premissas cartesianas, detidos por motivos práticos-religiosos e morais, que não se encontram em
Spinoza. Com isto não se excluem, por parte deles, desenvolvimentos em outro sentido. Por exemplo,
não se excluem os desenvolvimentos idealistas do fenomenismo racionalista por parte de Leibniz.

Vida e Obras

Baruch Spinoza nasceu em Amsterdam em 1632, filho de hebreus portugueses, de modesta condição
social, emigrados para a Holanda. Recebeu uma educação hebraica na academia israelita de Amsterdam,
com base especialmente nas Sagradas Escrituras. Demonstrando muita inteligência, foi iniciado na
filosofia hebraica (medieval-neoplatônico-panteísta) e destinado a ser rabino.
Mas, depois de se manifestar o seu racionalismo e tendo ele recusado qualquer retratação, foi
excomungado pela Sinagoga em 1656. Também as autoridades protestantes o desterraram como
blasfemador contra a Sagrada Escritura. Spinoza reitrou-se, primeiro, para os arredores de Amsterdam,
em seguida para perto de Leida e enfim refugiou-se em Haia. Aos vinte e cinco anos de idade esse
filósofo, sem pátria, sem família, sem saúde, sem riqueza, se acha também isolado religiosamente.
Os outros acontecimentos mais notáveis na formação espiritual especulativa de Spinoza são: o contacto
com Francisco van den Ende, médico e livre pensador; as relações travadas com alguns meios cristão-
protestantes. Van den Ende iniciou-o no pensamento cartesiano, nas línguas clássicas, na cultura da
Renascença; e nos meios religiosos holandeses aprendeu um cristianismo sem dogmas, de conteúdo
essencialmente moralista.
Além destes fatos exteriores, nada encontramos de notável exteriormente na breve vida de Spinoza,
inteiramente dedicada à meditação filosófica e à redação de suas obras. Provia pois às suas limitadas
necessidades materiais, preparando lentes ópticas para microscópios e telescópios, arte que aprendera
durante a sua formação rabínica; e também aceitando alguma ajuda do pequeno grupo de amigos e
discípulos. Para não comprometer a sua independência especulativa e a sua paz, recusou uma pensão
oferecida pelo "grande Condé" e uma cátedra universitária em Heidelberg, que lhe propusera Carlos
Ludovico, eleitor palatino.
Uma tuberculose enfraquecera seu corpo. Após alguns meses de cama, Spinoza faleceu aos quarenta e
quatro anos de idade, em 1677, em Haia. Deixou uma notável biblioteca filosófica; mas a sua herança
mal chegou para pagar as despesas do funeral e as poucas dívidas contraídas durante a enfermidade.
Um traço característico e fundamental do caráter de Spinoza é a sua concepção prática, moral, de
filosofia, como solucionadora última do problema da vida. E, ao mesmo tempo, a sua firme convicção de
que a solução desse problema não é possível senão teoreticamente, intelectualmente, através do
conhecimento e da contemplação filosófica da realidade.
As obras filosóficas principais de Spinoza são: a Ethica (publicada postumamente em Amsterdam em
1677), que constitui precisamente o seu sistema filosófico; o Tractatus theologivo-politicus (publicado
anônimo em Hamburgo em 1670), que contém a sua filosofia religiosa e política.
A princípio desconhecido e atacado, o pensamento de Spinoza acabou por interessar e influenciar
particularmente a cultura moderna depois de Kant (Lessing, Goethe, Schelling, Hegel, Schleiermacher,
etc.), proporcionando ao idealismo o elemento metafísico monista, naturalmente filtrado através da
crítica kantiana.

O Pensamento: Deus

A teologia de Spinoza é contida, substancialmente, no primeiro livro da Ethica (De Deo). Spinoza quereria
deduzir de Deus racionalmente, logicamente, geometricamente toda a realidade, como aparece pela
126
própria estrutura exterior da Ethica ordine geometrico demonstrata. Não nos esqueçamos de que o
Deus spinoziano é a substância única e a causa única; isto é, estamos em cheio no panteísmo. A
substância divina é eterna e infinita: quer dizer, está fora do tempo e se desdobra em número infinito de
perfeições ou atributos infinitos.
Desses atributos, entretanto, o intelecto humano conhece dois apenas: o espírito e a matéria, a cogitatio
e a extensio. Descartes diminuiu estas substâncias, e no monismo spinoziano descem à condição de
simples atributos da substância única. Pensamento e extensão são expressões diversas e irredutíveis da
substância absoluta, mas nela unificadas e correspondentes, graças à doutrina spinoziana do paralelismo
psicofísico.
A substância e os atributos constituem a natura naturans. Da natura naturans (Deus) procede o mundo
das coisas, isto é, os modos. Eles são modificações dos atributos, e Spinoza chama-os natura naturata (o
mundo). Os modos distinguem-se em primitivos e derivados. Os modos primitivos representam as
determinações mais imediatas e universais dos atributos e são eternos e infinitos: por exemplo, o
intellectus infinitus é um modo primitivo do atributo do pensamento, e o motus infinitus é um modo
primitivo do atributo extensão.
As leis do paralelismo psicofísico, que governam o mundo dos atributos, regem naturalmente todo o
mundo dos modos, quer primitivos quer derivados. Cada corpo tem uma alma, como cada alma tem um
corpo; este corpo constituiria o conteúdo fundamental do conhecimento da alma, a saber: a cada modo
de ser e de operar na extensão corresponde um modo de ser e de operar do pensamento. Nenhuma
ação é possível entre a alma e o corpo - como dizia também Descartes - e como Spinoza sustenta até o
fundo.
A lei suprema da realidade única e universal de Spinoza é a necessidade. Como tudo é necessário na
natura naturans, assim tudo também é necessário na natura naturata. E igualmente necessário é o liame
que une entre si natura naturans e natura naturata. Deus não somente é racionalmente necessitado na
sua vida interior, mas se manifesta necessariamente no mundo, em que, por sua vez, tudo é necessitado,
a matéria e o espírito, o intelecto e a vontade.

O Homem

Do primeiro livro da Ethica - cujo objeto é Deus - Spinoza passa a considerar, no segundo livro (De
mente), o espírito humano, ou, melhor, o homem integral, corpo e alma. A cada estado ou mudança da
alma, corresponde um estado ou mudança do corpo, mesmo que a alma e o corpo não possam agir
mutuamente uma sobre o outro, como já se viu.
Não é preciso repetir que, para Spinoza, o homem não é uma substância. A assim chamada alma nada
mais é que um conjunto de modos derivados, elementares, do atributo pensamento da substância única.
E, igualmente o corpo nada mais é que um complexo de modos derivados, elementares, do atributo
extensão da mesma substância. O homem, alma e corpo, é resolvido num complexo de fenômenos
psicofísicos.
Mesmo negando a alma e as suas faculdades, Spinoza reconhece várias atividades psíquicas: atividade
teorética e atividade prática, cada uma tendo um grau sensível e um grau racional.
A respeito do conhecimento sensível (imaginatio), sustenta Spinoza que é ele inteiramente subjetivo: no
sentido de que o conhecimento sensível não representa a natureza da coisa conhecida, mas oferece uma
representação em que são fundidas as qualidades do objeto conhecido e do sujeito que conhece e dispõe
tais representações numa ordem fragmentária, irracional e incompleta.
Spinoza distingue, pois, o conhecimento racional em dois graus: conhecimento racional universal e
conhecimento racional particular. A ordem oferecida pelo conhecimento racional particular nada mais é
que a substância divina; abrange ela, na sua unidade racional, os atributos infinitos e os infinitos modos
que a determinam. E desse conhecimento racional intuitivo, místico, derivam necessariamente a
felicidade e virtude supremas. Das limitações do conhecimento sensível decorrem o sofrimento e a
paixão, dada a universal correspondência spinoziana entre teorético e prático.
127
Visto o paralelismo psicofísico de Spinoza, é claro que o conhecimento, no sistema spinoziano, não é
constituído pela relação de adequação entre a mente e a coisa, mas pela relação de adequação da mens
do sujeito que conhece a mens do objeto conhecido.

A Moral

Como é sabido, Spinoza dedica ao problema moral e à sua solução os livros III, IV e V da Ethica. No livro
III faz ele uma história natural das paixões, isto é, considera as paixões teoricamente, cientificamente, e
não moralisticamente. O filósofo deve humanas actiones non ridere, non lugere, neque detestari, sed
intelligere; assim se exprime Spinoza energicamente no proêmio ao II livro da Ethica. Tal atitude
rigidamente científica, em Spinoza, é favorecida pela concepção universalmente determinista da
realidade, em virtude da qual o mecanismo das paixões humanas é necessário como o mecanismo físico-
matemático, e as paixões podem ser tratadas com a mesma serena indiferença que as linhas, as
superfícies, as figuras geométricas.
Depois de nos ter oferecido um sistema do mecanismo das paixões no IV livro da Ethica, Spinoza
esclarece precisamente e particularmente a escravidão do homem sujeito às paixões. Essa escravidão
depende do erro do conhecimento sensível, pelo que o homem considera as coisas finitas como absolutas
e, logo, em choque entre si e com ele. Então a libertação das paixões dependerá do conhecimento
racional, verdadeiro; este conhecimento racional não depende, entretanto, do nosso livre-arbítrio, e sim
da natureza particular de que somos dotados.
No V e último livro da Ethica, Spinoza esclarece, em especial, a condição do sábio, libertado da
escravidão das paixões e da ignorância. O sábio realiza a felicidade e a virtude simultânea e juntamente
com o conhecimento racional. Visto que a felicidade depende da ciência, do conhecimento racional
intuitivo - que é, em definitivo, o conhecimento das coisas em Deus - o sábio, aí chegado, amará
necessariamente a Deus, causa da sua felicidade e poder. Tal amor intelectual de Deus é precisamente o
júbilo unido com a causa racional que o produz, Deus. Este amor do homem para com Deus, é retribuído
por Deus ao homem; entretanto, não é um amor como o que existe entre duas pessoas, pois a
personalidade é excluída da metafísica spinoziana, mas no sentido de que o homem é idêntico
panteisticamente a Deus. E, por conseguinte, o amor dos homens para com Deus é idêntico ao amor de
Deus para com os homens, que é, pois, o amor de Deus para consigo mesmo (por causa precisamente
do panteísmo).
Chegado ao conhecimento e à vida racionais, o sábio vive já na eternidade, no sentido de que tem
conhecimento eterno do eterno. A respeito da imortalidade da alma, devemos dizer que é excluída
naturalmente por Spinoza como sobrevivência pessoal porquanto pessoa e memória pertencem à
imaginação. A imortalidade, então, não poderá ser entendida senão como a eternidade das idéias
verdadeiras, que pertencem à substância divina. De sorte que imortais, ou eternas, ou pela máxima parte
imortais, serão as almas ou os pensamentos dos sábios, ao passo que às almas e aos pensamentos dos
homens vulgares, como que limitados ao conhecimento e à vida sensíveis, é destinado o quase total
aniquilamento no sistema racional da substância divina.

A Política e a Religião

Spinoza tratou particularmente do problema político e religioso no Tractatus theologico-politicus.


Considera ele o estado e a igreja como meios irracionais para o advento da racionalidade. As ações feitas
- ou não feitas - em vista das penas ou dos prêmios temporais e eternos, ameaçados ou prometidos pelo
estado e pela igreja, dependem do temor e da esperança, que, segundo Spinoza, são paixões irracionais.
Elas, entretanto, servem para a tranquilidade do sábio e para o treinamento do homem vulgar.
No estado de natureza, isto é, antes da organização política, os homens se encontravam em uma guerra
perpétua, em uma luta de todos contra todos. É o próprio egoísmo que impede os homens a se unirem, a
se acordarem entre si numa espécie de pacto social, pelo qual prometem renunciar a toda violência,
auxiliando-se mutuamente. No entanto, não basta o pacto apenas: precisa o homem do arrimo da força
para sustentar-se. De fato, mesmo depois do pacto social, os homens não cessam de ser, mais ou
128
menos, irracionais e, portanto, quando lhes fosse cômodo e tivessem a força, violariam, sem mais, o
pacto. Nem há quem possa opor-se a eles, a não ser uma força superior, porquanto o direito sem a força
não tem eficácia. Então os componentes devem confiar a um poder central a força de que dispõem,
dando-lhe a incumbência e o modo de proteger os direitos de cada um. Só então o estado e
verdadeiramente constituído. Entretanto, o estado, o governo, o soberano podem fazer tudo o que
querem: para isso têm o poder e, portanto, o direito, e se acham eles ainda no estado de pura natureza,
do qual os súditos saíram.
O estado, porém, não é dominador supremo, porquanto não é o fim supremo do homem. Seu fim
supremo é conhecer a Deus por meio da razão e agir de conformidade, de sorte que será a razão a
norma suprema da vida humana. O papel do estado é auxiliar na consecução racional de Deus. Portanto,
se o estado se mantivesse na violência e irracionalidade primitivas, pondo obstáculos ao desenvolvimento
racional da sociedade, os súditos - quando mais racionais e, logo, mais poderosos do que ele - rebelar-
se-ão necessariamente contra ele, e o estado cairá fatalmente. Faltando-lhe a força, faltar-lhe-á também
o direito. E de suas ruínas deverá surgir um estado mais conforme à razão. E, assim, Spinoza deduz do
estado naturalista o estado racional.
O outro grande instituto irracional a serviço da racionalidade é, segundo Spinoza, a religião, que
representaria um sucedâneo da filosofia para o vulgo. O conteúdo da religião positiva, revelada, é
racional; mas é a forma que seria absolutamente irracional, pois o conhecimento filosófico de Deus
decairia em uma revelação mítica; a ação racional, que deveria derivar do conhecimento racional com a
mesma necessidade pela qual a luz emana do sol, decairia no mandamento divino heterônomo, a saber,
a religião positiva, revelada, representaria sensivelmente, simbolicamente, de um modo apto para a
mentalidade popular, as verdades racionais, filosóficas acerca de Deus e do homem; tais verdades podem
aproveitar ao bem desse último, quando encarnadas nos dogmas. Por conseguinte, o que vale nos
dogmas não seria a sua formulação exterior, e sim o conteúdo moral; nem se deveria procurar neles
sentidos metafísicos arcanos, porque o escopo dos dogmas é essencialmente prático a saber: induzir à
submissão a Deus e ao amor ao próximo, na unificação final de tudo e de todos em Deus.

De Aristóteles à Renascença

Quando Esparta bloqueou e derrotou Atenas em fins do século V a.C., a supremacia política saiu das
mãos da mãe da filosofia e da arte gregas, e o vigor e a independência da inteligência ateniense
decaíram. Quando, em 399 a.C., Sócrates foi executado, a alma de Atenas morreu com ele, sobrevivendo
apenas em seu orgulhoso discípulo, Platão. E quando Felipe da Macedônia derrotou os atenienses em
Queronéia em 388 a.C. e Alexandre incendiou a grande cidade de Tebas por completo três anos depois,
nem mesmo o fato de a casa de Píndaro ter sido ostensivamente poupada conseguiu encobrir a realidade
de que a independência ateniense, no que se referia a governo e pensamento, estava destruída de
maneira irrevogável. O domínio da filosofia grega pelo macedônio Aristóteles refletia a sujeição política da
Grécia pelos povos viris e mais jovens do norte.
A morte de Alexandre (323 a.C.) acelerou esse processo de decadência. O menino-imperador, ainda que
continuasse bárbaro depois de toda educação recebida de Aristóteles, havia aprendido a reverenciar a
rica cultura da Grécia e sonhara em divulgar essa cultura pelo Oriente, na onda de seus exércitos
vitoriosos. O desenvolvimento do comércio grego e a multiplicação dos postos de comercialização gregos
por toda a Ásia Menor haviam proporcionado uma base econômica para a unificação daquela região
como parte de um império helênico; e Alexandre tinha a esperança de que, a partir daqueles
movimentados postos, tanto o pensamento grego como os produtos gregos fossem irradiar-se e
conquistar o mundo. Mas ele subestimara a inércia e a resistência da mentalidade oriental, e a massa e a
profundidade da cultura oriental. Não passava de um sonho juvenil, afinal, supor que uma civilização tão
imatura e instável quanto a da Grécia pudesse ser imposta a uma civilização incomensuravelmente mais
dufundida e enraizada nas mais veneráveis tradições. A quantidade da Ásia mostrou-se demasiada para a
qualidade da Grécia. O próprio Alexandre, na hora de seu triunfo, foi conquistado pela alma do Oriente;
casou-se (dentre várias damas) com a filha de Dario; adotou o diadema e o manto de gala persas;
introduziu na Europa a idéia oriental do divino direito dos reis; e por fim assombrou uma Grécia cética ao
129
anunciar, num magnífico estilo oriental, que ele era um deus. A Grécia caiu na gargalhada; e
Alexandre bebeu até morrer.
Essa sultil infusão de uma alma asiática no corpo fatigado do senhor dos gregos foi seguida rapidamente
da abundante entrada de cultos e fés orientais na Grécia, pelas mesmas linhas de comunicação que o
jovem conquistador havia aberto; os diques rompidos deixaram o oceano do pensamento ocidental
inundar as terras baixas da ainda adolescente mente européia. As crenças místicas e supersticiosas que
haviam adquirido raízes entre os povos mais pobres de Hélade foram reforçadas e divulgadas; e o
espírito oriental de apatia e resignação encontrou um solo pronto na Grécia decadente e abatida. A
introdução da filosofia estóica em Atenas, pelo mercador fenício Zenon (cerca de 310 a.C.), foi apenas
uma das inúmeras infiltrações orientais. Tanto o estoicismo como o epicurismo - a apática aceitação da
derrota e o esforço para esquecer a derrota nos braços do prazer - eram teorias sobre como o indivíduo
ainda poderia ser feliz, embora subjugado ou escravizado; precisamente como o pessimista estoicismo
oriental de Schopenhauer e o desalentado epicurismo de Renan foram, no século XIX, os símbolos de
uma Revolução despedaçada e uma França quebrada.
Não que essas antíteses naturais da teoria ética fossem de todo novas para a Grécia. Nós a encontramos
no sombrio Heráclito e no "filósofo que ri", Demócrito; e vemos os discípulos de Sócrates dividindo-se em
cínicos e cirenaicos sob a chefia de Antístenes e Aristipo e exaltando, uma escola, a apatia, e a outra, a
felicidade. No entanto, mesmo naquela época tratava-se de modos quase exóticos de pensamento: a
Atenas imperial não aderiu a eles. Mas quando a Grécia havia visto Queronéia em sangue e Tebas em
cinzas, passou a ouvir Diógenes; e quando a glória havia partido de Atenas, ela estava no ponto para
Zenon e Epicuro.
Zenon ergueu sua filosofia da apatheia sobre um determinismo que um estóico posterior, Crisipo, achou
difícil distinguir do fatalismo oriental. Quando Zenon, que não acreditava na escravidão, estava batendo
num escravo seu por causa de algum delito, o escravo alegou como atenuante que, segundo a filosofia
de seu senhor, ele tinha sido destinado, por toda a aternidade, a cometer aquela falta; ao que Zenon
replicou, com a calma de um sábio, que, de acordo com a mesma filosofia, ele, Zenon, tinha sido
destinado a bater nele por causa dela. Assim como Schopenhauer achava inútil a vontade individual lutar
contra a vontade universal, os estóicos alegavam que a indiferença filosófica era a única atitude razoável
para com uma vida na qual a luta pela existência está tão injustamente condenada a uma derrota
inevitável. Se a vitória for inteiramente impossível, deve ser desdenhada. O segredo da paz não é tornar
nossas realizações iguais aos nossos desejos, mas baixar nossos desejos ao nível de nossas realizações.
"Se o que você possui lhe parece insuficiente, então, mesmo que você possua o mundo, ainda irá sentir-
se infeliz", disse o estóico romano Sêneca (m. 65 d.C.).
Um princípio desses bradava aos céus pelo seu oposto, e Epicuro, embora tão estóico em vida quanto
Zenon, forneceu-o. Epicuro, diz Fenelon, "comprou um belo jardim, que ele mesmo cultivava. Foi lá que
instalou sua escola, e ali vivia uma vida tranqüila e agradável com seus discípulos, aos quais ensinava
enquanto andava e trabalhava.(...) Era delicado e afável para com todos os homens... Afirmava que nada
havia de mais nobre do que uma pessoa dedicar-se à filosofia". Seu ponto de partida é uma convicção de
que a apatia é impossível, e que o prazer - embora não necessariamente o prazer sensual - é a única
finalidade concebível, e perfeitamente legítima, da vida e da atividade. "A natureza faz com que cada
organismo prefira o seu próprio bem a qualquer outro"; até mesmo o estóico sente um prazer sutil na
renúncia. "Não devemos evitar os prazeres, mas selecioná-los." Epicuro, então, não é epicurista; ele
exalta os prazeres do intelecto, mais do que os dos sentidos; previne contra os prazeres que excitem e
disturbem a alma, à qual, ao contrário, deveriam acalmar e tranqülizar. No fim, propõe que se procure
não o prazer no seu sentido usual, mas a ataraxia - tranqülidade, equanimidade, a paz do espírito; todos
os quais oscilam à beira da "apatia" de Zenon.
Os romanos, quando foram saquear Heléia em 146 a.C., encontraram essas escolas rivais dividindo o
campo filosófico; e, sem terem tempo nem sutileza para especulações, levaram de volta para Roma essas
filosofias, juntamente com outros produtos do seu saque. Os grandes organizadores, tanto quanto os
escravos inevitáveis, tendem a estados de espírito estóicos: é difícil ser senhor ou servo se a pessoa for
sensível. Por isso, a filosofia que Roma adotava era, em sua maioria, da escola de Zenon, seja em Marco
Aurélio, o imperador, ou em Epíteto, o escravo; e até Lucrécio difundia estoicamente o epicurismo (como
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o inglês de Heine, divertindo-se melancolicamente), e concluiu sua vigorosa pregação do prazer
cometendo suicídio. Sua nobre epopéia, Sobre a Natureza das Coisas, acompanha Epicuro em condenar o
prazer ao elogiá-lo sem entusiasmo. Quase contemporâneo de César e Pompéia, ele viveu em meio a
torverlinhos e alarmes; sua pena nervosa está eternamente compondo orações à tranqülidade e à paz.
Nós o imaginamos como uma alma tímida cuja juventude havia sido obscurecida por temores religiosos;
porque ele nunca se cansa de dizer a seus leitores que não existe inferno, exceto aqui, e que não existem
deuses, exceto deuses cavalheirescos, que vivem em um jardim de Epicuro nas nuvens e nunca se
intrometem nos negócios dos homens. Ao crescente culto do céu e do inferno entre o povo de Roma, ele
opõe um materialismo implacável. Alma e mente desenvolvem-se com o corpo, cresem com o seu
crescimento, sofrem com seus sofrimentos, e morrem com a sua morte. Nada existe a não ser átomos,
espaço e lei, e a lei das leis é a da evolução e da dissolução em toda parte
Coisa alguma perdura, mas todas as coisas fluem.
Fragmento se agarra a fragmento; as coisas crescem assim,
Até que ficamos conhecendo-as e lhes damos nomes. Aos poucos
Elas se dissolvem e já não são mais as coisas que conhecemos.
Englobados por átomos, caindo devagar ou depressa,
Vejo os sóis, vejo os sistemas erguerem
Suas formas; e até os sistemas e seus sóis
Irão voltar lentamente à eterna deriva.
Tu também, ó Terra - teus impérios, terras e mares -
A menor, com tuas estrelas, de todas as galáxias,
Englobada da deriva como aquelas, como aquelas também tu
Irás. Estás indo, a cada hora, como aquelas.
Nada perdura. Teus mares, em suave neblina,
Desaparecem; aquelas areias lunares abandonam seu lugar,
E onde estão, outros mares irão, por sua vez,
Cortar com suas alvas foices outras baías.
À evolução e à dissolução astronômicas, acrescentem a origem e a eliminação das espécies.
Muitos monstros também a Terra de antigamente tentou produzir, coisas de estranhas caras
e membros; (...) alguns sem pés, alguns sem mãos, outros sem bocas, outros mais sem
olhos. (...) Mais e mais monstros (...) desse tipo a Terra tentou produzir, mas em vão; porque
a natureza proibiu o aumento do número deles, eles não podiam alcançar a cobiçada flor da
idade, nem procurar comida, nem ser unidos em casamento; (...) e muitas raças de coisas
vivas devem ter se extinguido, ficado impossibilitadas de procriar e continuar e continuar a
linhagem. Porque no caso de todas as coisas que vós vedes respirando o sopro da vida, a
astúcia, a coragem ou a velocidade vêm desde o início protegendo e preservando cada raça.
(...) Aqueles aos quais a natureza não concedeu nenhuma dessas qualidades ficavam
expostos para servirem de vítima e presa de outros, até que a natureza extinguisse a sua
espécia.
Também as nações, como os indivíduos, crescem lentamente e, com toda certeza, morrem: "algumas
nações prosperam, outras decaem, e em pouco tempo as raças das coisas vivas são alteradas e, como
corredores, passam adiante a lâmpada da vida". Diante da guerra e da morte inevitável, não há
sabedoria a não ser a ataraxia - "encarar todas as coisas com serenidade de espírito". Aqui,
evidentemente, toda a velha alegria pagã de viver desapareceu, e um espírito quase exótico toca uma
lira quebrada. A história, que nada é a não ser humorista, nunca foi tão brincalhona como quando deu a
esse abstêmio e épico pessimista o nome de epicurista.
E se for esse o espírito do adepto de Epicuro, imaginem o inebriante otimismo de estóicos declarados
como Aurélio ou Epíteto. Nada, em toda a literatura, é tão deprimente quanto as Dissertações do
escravo, a menos que se trate das Meditações do imperador. "Não procure fazer com que as coisas
aconteçam segundo a sua preferência, mas prefira que elas aconteçam como têm de acontecer, e assim
viverá com prosperidade." Não há dúvida de que é possível assim, ditar o futuro e fingir que dominamos
o universo. Segundo consta o senhor de Epíteto, que o tratava com uma crueldade inalterável, certo dia
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decidiu torcer-lhe a perna para passar o tempo. "Se continuar", disse Epíteto com calma, "vai
quebrar a minha perna." O senhor continuou, e a perna se quebrou. "Eu não lhe disse", observou Epíteto
mansamente, "que o senhor iria quebrar minha perna?" No entanto, há uma certa nobilidade mística
nessa filosofia, como na tranqülia coragem de um pacifista dostoievskiano. "Nunca diga, de qualquer
modo, 'perdi isso assim, assim'; e sim, 'eu restituí tal coisa'. Tua filha morreu? Foi restituída. Tua mulher
morreu? Foi restituída. Perdeste os teus bens? Também não foram restituídos?" Em trechos assim,
sentimos a proximidade do cristianismo e seus intrépidos mártires; de fato, não eram a ética cristã da
abnegação, o ideal político cristão de uma fraternidade quase comunista do homem, e a escatologia
cristã da conflagração final do mundo inteiro, fragmentos da doutrina estóica flutuando na corrente do
pensamento? Em Epíteto, a alma greco-romana perdeu o seu paganismo e está pronta para uma nova fé.
Seu livro teve a distinção de ser adotado como manual religioso pela primitiva Igrja Cristã. Dessas
Dissertações e das Meditações de Aurélio há apenas um passo para A Imitação de Cristo.
Enquanto isso, o ambiente histórico derretia-se para formar cenas mais novas. Há um notável trecho em
Lucrécio que descreve a decadência da agricultura no Estado romano e a atribui à exaustão do solo. Seja
qual for a causa, a riqueza de Roma transformou-se em pobreza, a organização em desintegração, o
poder e o orgulho em decadência e apatia. Cidades voltaram a fundir-se com o interior sem distinção; as
estradas ficaram sem manutenção e já não ecoavam a agitação do comércio; as pequenas famílias dos
romanos de instrução eram ultrapassadas, em número, pelos vigorosos alemães sem instrução que
cruzavam, ano após ano, a fronteira; a cultura pagã cedeu aos cultos orientais; e, quase que
imperceptivelmente, o império se transformou em papado.
A Igreja, apoiada nos primeiros séculos pelos imperadores cujos poderes ela absorveu aos poucos, teve
um aumento rápido no número de adeptos, na riqueza e no raio de influência. No século XIII, já possuía
um terço do solo da Europa, e seus cofres estavam inchados com donativos de ricos e pobres. Durante
mil anos, ela uniu, com a magia de uma crença invariável, a maior parte dos povos de um continente;
nunca houve, antes ou depois, uma organização tão difundida e tão pacífica. Mas essa unidade exigia,
como pensava a Igreja, uma fé comum exaltada por sanções sobrenaturais acima das mudanças e das
corrosões do tempo; portanto, o dogma, definitivo e definido, foi colocado como uma concha sobre a
mentalidade adolescente da Europa medieval. Era dentro dessa concha que a filosofia escolástica se
deslocava acanhadamente entre fé e razão e vice-versa, num desconcertante circuito de pressupostos
não criticados e conclusões pré-ordenadas. No século XIII, toda a cristandade ficou assustada e
estimulada por traduções árabes e judaicas de Aristóteles; mas o poder da Igreja ainda era suficiente
para garantir, através de Tomás de Aquino e outros, a transformação de Aristóteles em um teólogo
medieval. O resultado foi a sutileza, mas não a sabedoria. "A inteligência e a mentalidade do homem",
como disse Bacon, "se trabalharem com a matéria, trabalham segundo a substância desta e por ela
ficarão limitados; mas se trabalharem consigo mesmo, serão intermináveis e produzirão realmente teias
de saber, admiráveis pela delicadeza do fio e do trabalho, mas sem substância ou proveito." Mais cedo ou
mais tarde, o intelecto da Europa iria irromper de dentro dessa concha.
Depois de mil anos de cultivo, o solo voltou a florescer; os bens se multiplicaram, criando excedentes que
levaram ao comércio; e o comércio em suas encruzilhadas voltou a construir grandes cidades nas quais
os homens podiam cooperar para estimular a cultura e reconstruir a civilização. As Cruzadas abriram os
caminhos para o Oriente e permitiram a entrada de uma torrente de artigos de luxo e heresias que
condenaram à morte e ascetismo e o dogma. O papel, agora, chegava barato do Egito, substituindo o
caro pergaminho que tornara o saber um monopólio dos sacerdotes; a imprensa, que durante muito
tempo esperava por um meio barato, estourou como um explosivo libertado e espalhou sua influência
destruidora e esclarecedora por toda parte. Bravos navegantes, armados agora de bússolas,
aventuraram-se na imensidão dos mares e conquistaram a ignorância do homem a respeito da Terra;
observadores pacientes, armados de telescópios, aventuraram-se para além dos confins do dogma e
conquistaram a ignorância do homem quanto ao céu. Aqui e ali, em universidades, mosteiros e retiros
escondidos, homens deixaram de disputar e começaram a investigar; por via indireta, graças aos esforços
no sentido de transformar metais inferiores em ouro, a alquimia foi transformada em química; da
astrologia, os homens foram tateando com tímida ousadia para a astronomia; e das fábulas dos animais
que falavam veio a ciência da zoologia. O despertar começou com Roger Bacon (m. 1294); aumentou
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com o ilimitado Leonardo (1452-1519); alcançou sua plenitude na astronomia de Copérnico (1473-
1543) e Galileu (1564-1642), nas pesquisas de Gilbert (1544-1603) sobre magnetismo e eletricidade, de
Vesálio (1514-1564) em anatomia, e de Harvey (1578-1657) sobre a circulação do sangue. À medida que
aumentava o conhecimento, diminuía o medo; os homens pensavam menos em adorar o desconhecido, e
mais em dominá-lo. Todo espírito vital foi estimulado por uma nova confiança; barreiras foram
derrubadas; não havia limites, agora, para o que o homem poderia fazer. "O fato de pequenos navios,
como os corpos celestes, navegarem à volta do mundo inteiro, é a felicidade da nossa era. Esta época
pode usar, com toda justiça, plus ultra" (mais além) "onde os antigos usavam non plus ultra." Foi uma
era de realizações, esperança e vigor; de novos começos e empreendimentos em todos os campos; era
uma era que esperava por uma voz, uma alma sintética para resumir o seu espírito e decidir. Foi Francis
Bacon, "a mais poderosa inteligência dos tempos modernos, que tocou a sineta que reuniu as
inteligências" e anunciou que a Europa havia atingido a maioridade.

René Descartes

Deus, a Ciência e o Livre-arbítrio

Para Descartes, o Deus criador transcende radicalmente a natureza. Deus Foi "inteiramente indiferente
ao criar as coisas que criou". Não se submeteu a nenhuma verdade prévia. Em virtude do poder de seu
livre-arbítrio, criou as verdades. Eis por que Deus quer que a soma dos ângulos de um triângulo seja
igual a dois ângulos retos.
Acrescentemos que, para Descartes, Deus criou o mundo instante por instante (é a "criação contínua"). O
tempo é descontínuo e a natureza não tem nenhum poder próprio. As leis da natureza só são o que são a
cada momento, em virtude da vontade do criador. É importante compreender que essa transcendência
radical de Deus possui duas conseqüências fundamentais. O livre-arbítrio humano e a independência da
ciência.
1.°  O homem não é uma parte de Deus. A transcendência do criador afasta qualquer panteísmo. O
homem, simples criatura ultrapassada por seu criador (concebo Deus porque descubro em mim a marca
de sua infinitude, mas não o compreendo), recebo, assim, uma autonomia que será perdida no sistema
panteísta de Spinoza. O homem é livre, pode dizer sim ou não às ordens de Deus. É certo que, na Quarta
Meditação, Descartes fala da liberdade esclarecida, dessa liberdade que não pode tratar da verdade ou
do bem, dessa liberdade que é antes um estado de libertação do que uma decisão pura, situada além de
todas as razões. Mas nos Princípios e sobretudo nas cartas ao Pe. Mesland, de 2 de maio de 1644 e 9 de
fevereiro de 1645, Descartes afirma radicalmente o livre-arbítrio, o poder de recusar a Verdade e o Bem
até mesmo na presença da evidência que se manifesta. Esses textos esclarecem a teoria do juízo
presente na Quarta meditação. O entendimento concebe a verdade e é a vontade que dá as costas a ou
afirma essa verdade. Deus propõe e o homem, por intermédio de seu livre-arbítrio, dispõe. Desse modo,
Deus não é o culpado dos meus erros nem dos meus pecados. Sou eu que me engano, sou eu que peco.
Meu livre-arbítrio me faz merecedor ou culpado.
2.°  Do mesmo modo, a transcendência de Deus vai tornar possível uma ciência puramente racional e
mecanicista da natureza.
a) A natureza, segundo Descartes, já o vimos, não possui dinamismo próprio. Todo dinamismo pertence
ao criador. Na medida em que a natureza é despojada de toda profundidade metafísica, Descartes pode
eliminar as noções aristotélicas e medievais de forma, alma, ato e potência. Toda finalidade desaparece e
a natureza é reduzida a um mecanicismo inteiramente transparente para a linguagem matemática. A
natureza nada tem de divino, é um objeto criado, situado no mesmo plano da inteligência humana, e, por
conseguinte, inteiramente entregue à sua exploração. Isto consiste, ao mesmo tempo, na rejeição de
todo naturalismo pagão (a natureza não é uma deusa) e na fundamentação metafísica do racionalismo
científico.
b) Nem tudo tem o mesmo valor na obra científica de Descartes. Se sua ótica e suas considerações sobre
a expressão algébrica das curvas (ele é, juntamente com Fermat, o inventor da geometria analítica)
constituem incontestável contribuição científica, sua física (dada, aliás, mais como uma possibilidade
133
racional do que como a verdade certa) não passa de um romance. Mas o espírito dessa física e da
fisiologia cartesiana  que não passa de um capítulo da física  nada mais é do que o espírito do
mecanicismo. Quando Descartes declara que os animais são máquinas, ele coloca, em princípio, que é
possível explicar as funções fisiológicas por intermédio de mecanismos semelhantes àqueles que fazem
mover os autômatos que vemos "nos jardins de nossos reis". O detalhe das explicações não passa de um
sonho. Mas a direção tomada é a ciência moderna. Para Descartes, o mundo físico não possui mistérios.
As coisas se determinam reciprocamente (leis do choque), por contato direto, num espaço em que não
existe o vazio.

O Problema do Homem: a Moral

1.°  No Discurso dobre o Método, Descartes adota uma moral provisória  pois a ação não pode
esperar que a filosofia cartesiana engendre uma nova moral! Recordemos seus três preceitos:
a) Submeter-se aos usos e costumes de seu país.
b) Antes mudar os próprios desejos que a ordem do mundo e vencer-se a si próprio do que à fortuna.
c) Ser sempre firme e resoluto em suas ações; saber decidir-se mesmo na ausência de toda evidência, à
semelhança do viajante perdido na floresta que, ao invés de ficar fazendo voltas, adota uma direção
qualquer e nela se mantém! (O cartesianismo, antes de ser uma filosofia da inteligência, é uma filosofia
da vontade).
2.°  É certo que a moral definitiva de Descartes não apresenta uma unidade perfeita. Influências
estóicas, epicuristas e cristãs estão presentes nela. Mas, na realidade, essa complexidade reflete a
própria complexidade da condição humana. Na plano das idéias claras e distintas, Descartes separa
claramente as duas substâncias, alma e corpo: a essência da alma é pensar; a do corpo é ser um objeto
no espaço. E no entanto, o pensamento está preso a esse fragmento de extensão. A alma age sobre o
corpo e este age sobre ela. (Para Descartes, o ponto de aplicação da alma ao corpo é a glândula pineal,
isto é, a epífise.) Mas isso não esclarece a união da alma e do corpo, que é um fato de experiência,
puramente vivido e ininteligível.
Na medida em que Descartes considera o homem no que ele tem de essencial, enquanto espírito, ou
quando se ocupa do composto humano, sua moral assume aspectos diferentes:
a) Consideremos o homem enquanto espírito, enquanto liberdade: o valor supremo é a generosidade. "A
verdadeira generosidade que faz com que um homem se estime, no ponto máximo em que ele pode
legitimamente estimar-se, consiste, em parte, na consciência de que nada lhe pertence verdadeiramente,
exceto essa livre disposição de suas vontades... e em parte no sentimento de uma firme e constante
resolução de bem usá-la, isto é, de nunca lhe faltar vontade para empreender e executar todas as coisas
que julgar melhores, o que é seguir a virtude perfeitamente".
b) Se considerarmos o homem enquanto espírito unido a um corpo, somos obrigados a levar em conta as
paixões, isto é, a afetividade em sentido amplo. Paixão é, para Descartes, tudo o que o corpo determina
na alma. E Ele, que nada tem de asceta, acha que devemos antes dominá-las do que desenvolvê-las.
Isso porque ele se coloca do ponto de vista da felicidade. O bom funcionamento do corpo, as ligações
harmoniosas entre os espíritos animais e os pensamentos humanos são altamente desejáveis. A moral
surge, então, como uma técnica de felicidade e, nessa técnica, a medicina desempenha importante
papel. A moral surge aqui como uma aplicação direta ao mecanicismo cartesiano.

O Programa Cartesiano

"De acordo com o prefácio dos Princípios"

Gostaria de explicar aqui a ordem que, parece-me, devemos seguir para que nos instruamos.
Primeiramente, o homem que ainda só possui conhecimento vulgar e imperfeito, deve, antes de tudo,
encarregar-se de formar uma moral que seja suficiente para ordenar as ações da vida, porque isso não
deve ser adiado e porque devemos sobretudo procurar viver bem. Após isso, também deve estudar
lógica, não a da Escola  pois ela nada mais é do que uma dialética que ensina os meios para fazer
134
entender a outrem as coisas que já se sabe ou então de emitir opiniões, sem julgamento, sobre as
que não se sabe; desse modo, ela antes corrompe o bom-senso do que o desenvolve  mas aquela que
ensina a bem conduzir a razão na descoberta de verdades que se ignora. E porque ela depende muito do
uso, é bom que ele se exercite, por muito tempo, na prática de regras pernitentes a questões fáceis e
simples como as da matemática. Depois, quando já tiver adquirido o hábito de encontrar a verdade
nessas questões, ele deve começar a aplicar-se à verdadeira filosofia cuja primeira parte é a metafísica,
que contém os princípios do conhecimento, entre as quais está a explicação dos principais atributos de
Deus, da imaterialidade de nossas almas e de todas as noções claras e simples que estão em nós. A
segunda é a física, na qual, após ter encontrado os verdadeiros princípios das coisas materiais,
examinamos em geral como o universo é composto; depois, em particular, qual a natureza da terra e de
todos os corpos que se encontram mais comumente em torno dela como o ar, a água, o fogo, o ímã e
outros minerais. Após o que também é necessário examinar em particular a natureza das plantas, dos
animais e, sobretudo, do homem, a fim de que se seja capaz de, depois, encontrar as outras ciências que
lhe são úteis. Desse modo, a filosofia é como uma árvore cujas raízes são a metafísica, o tronco a física e
os ramos que daí saem todas as outras ciências, que se reduzem a três principais, a saber: a medicina, a
mecânica e a moral; eu acho que a mais elevada e mais perfeita moral, que pressupõe inteiro
conhecimento das outras ciências, é o último grau da sabedoria.
Ora, assim como não é das raízes nem do tronco que colhemos os frutos, mas da extremidade dos
ramos, assim a principal utilidade da filosofia depende das utilidades de suas partes, as quais só podemos
aprender por último. Mas, embora eu as ignore quase todas, o zelo que sempre tive no sentido de
prestar algum serviço ao público levou-me a publicar, há uns dez ou doze anos, alguns ensaios sobre as
coisas que me parecera ter aprendido. A primeira parte desses ensaios foi um discurso sobre o método
de bem conduzir a razão e procurar a verdade nas ciências, na qual apresentei sumariamente as
principais regras da lógica e de uma moral imperfeita que pode ser seguida provisoriamente, enquanto
ainda não se estabelece algo de melhor. As outras partes foram três tratados: um da Dióptrica, outro
dos Meteoros e o último da Geometria. Pela Dióptrica, pretendi mostrar que se pode avançar
bastante em filosofia para se chegar, por seu intermédio, ao conhecimento das artes que são úteis à vida
e porque a invenção das lunetas de aproximação, que eu aí explico, é uma das mais difíceis das que já
foram procuradas. Pelos Meteoros, procurei fazer com que se reconhecesse a diferença existente entre
a filosofia que eu cultivo e aquela ensinada nas escolas em que se tem o hábito de tratar da mesma
matéria. Finalmente, pela Geometria, pretendi demonstrar que eu descobrira várias coisas ignoradas
até então e, desse modo, fazer acreditar que ainda podemos, nesse campo, descobrir várias outras,
incitando, dessa forma, todos os homens a procurarem a verdade. Depois disso, prevendo a dificuldade
que muitos teriam para conceber os fundamentos da metafísica, procurei explicar seus pontos principais
num livro de Meditações que não é grande, mas cujo volume foi aumentado e cuja matéria foi muito
clarificada pelas objeções que várias pessoas muito doutas me enviaram sobre o assunto e pelas
respostas que lhes dei. Finalmente, quando me pareceu que esses tratados procedentes haviam
preparado bem o espírito dos leitores para receber os Princípios da Filosofia, eu os publiquei então;
dividi o livro em quatro partes, das quais a primeira contém os princípios do conhecimento e que
podemos denominar filosofia primeira ou metafísica. Eis por que, a fim de bem compreendê-la, é preciso
ler antes as Meditações que escrevi sobre o mesmo assunto. As outras três partes contêm tudo o que há
de mais geral na física, a saber, a explicação das primeiras leis ou princípios da natureza e a maneira pela
qual os céus, as estrelas fixas, os planetas, os cometas e o universo em geral são compostos; depois, em
particular, a natureza desta terra, do ar, da água, do fogo e do ímã  que são os corpos que podemos
encontrar mais comumente em torno dela  e de todas as qualidades que observamos nesses corpos
como o são a luz, o calor, o peso e semelhantes; por meio disso, penso ter começado a explicar toda a
filosofia ordenadamente, sem ter admitido nenhuma das coisas que devem preceder as últimas sobre as
quais escrevi.

O Empirismo - Bacon

Francis Bacon
135

O iniciador do empirismo é Francis Bacon. Enalteceu ele a experiência e o método dedutivo de tal modo,
que o transcendente e a razão acabam por desaparecer na sombra. Falta-lhe, no entanto, a consciência
crítica do empirismo, que foram aos poucos conquistando os seus sucessores e discípulos até Hume.
Ademais, Bacon continua afirmando - mais ou menos logicamente - o mundo transcendente e cristão;
antes, continua a considerar a filosofia como esclarecedora da essência da realidade, das formas,
sustentáculo e causa dos fenômenos sensíveis. É uma posição filosófica que apela para a metafísica
tradicional, grega e escolástica, aristotélica e tomista. Entretanto, acontece em Bacon o que aconteceu a
muitos pensadores da Renascença, e o que acontecerá a muitos outros pensadores do empirismo e do
racionalismo: isto é, a metafísica tradicional persiste neles todos histórica e praticamente ao lado da nova
filosofia, tanto mais quanto esta é menos elaborada, acabada e consciente de si mesma.

Vida e Obras

Francis Bacon nasceu no dia 22 de janeiro de 1561 na York House, Londres, residência de seu pai sir
Nicholas Bacon, que nos primeiros vinte anos do reinado de Elizabeth tinha sido o Guardião do Sinete. "A
fama do pai", diz Maucaulay, "foi ofuscada pela do filh". Mas sir Nicholas não era um homem comum." A
mãe de Bacon foi lady Anne Cooke, cunhada de sir William Cecil, lorde Burghley, que foi tesoureiro-mor
de Elizabeth e um dos homens mais poderosos da Inglaterra. O pai dela tinha sido o tutor-chefe do rei
Eduardo VI; ela mesma era lingüista e teóloga, e não tinha dificuldade em se corresponder em grego
com bispos. Tornou-se instrutora do filho e não poupou esforços para que ele tivesse instrução. Bacon
freqüentou a Universidade de Cambridge, e viveu também em Paris. Começou a sua carreira de homem
político e jurista, antes sob a rainha Isabel, e, depois, sob Jaime I, subindo até aos mais altos cargos:
advogado geral em 1613, membro do Conselho particular em 1616, chanceler do reino em 1618. Foi
agraciado por Jaime I com os títulos de Barão de Verulamo e Visconde de S. Albano. Entretanto foi
acusado de concussão e condenado pelo Parlamento a uma multa avultuada. Perdoado pelo rei, retirou-
se para as suas terras, dedicando-se inteiramente aos estudos. Faleceu em 1626. Teve uma inteligência
muito esclarecida, convencido da sua missão de cientista, segundo o espírito positivo e prático da
mentalidade anglo-saxônia.
A obra principal de Bacon é a Instauratio magna scientiarum, vasta síntese que deveria ter compreendido
seis grandes partes. Mas terminou apenas duas, deixando sobre o resto esboços e fragmentos. As duas
partes acabadas são precisamente: I - De dignitate et argumentis scientiarum; II - Novum organum
scientiarum. Como se vê pelos títulos, e mais ainda pelo conteúdo, trata-se de pesquisas gnosiológicas,
críticas e metodológicas, para lançar as bases lógicas da nova ciência, da nova filosofia, que deveria dar
ao homem o domínio da realidade.

Os Ensaios

Sua ascensão parecia tornar realidade os sonhos de Platão de um rei-filósofo. Porque, passo a passo com
a sua subida para o poder político, Bacon estivera escalando os píncaros da filosofia. É quase
inacreditável que o imenso saber e as realizações literárias desse homem fossem apenas os incidentes e
as digressões de uma turbulenta carreira política. Era seu lema que se vivia melhor na vida oculta - bene
vixit qui bene latuit. Não conseguia chegar a uma conclusão sobre se gostava mais da vida contemplativa
ou da ativa. Sua esperança era de ser filósofo e estadista, também, como Sêneca; embora desconfiasse
de que essa dupla direção de sua vida fosse encurtar o seu alcance e reduzir suas realizações. "É difícil
dizer", escreve ele, e "se a mistura de contemplações com uma vida ativa ou o retiro inteiramente
dedicado a contemplações é o que mais incapacita ou prejudica a ment." Achava que os estudos não
podiam ser um fim ou a sabedoria por si sós, e que o conhecimento não aplicado em ação era uma
pálida vaidade acadêmica. "Dedicar-se em demasia aos estudos é indolência; usá-los em demasia como
ornamento é afetação; fazer julgamentos seguindo inteiramente suas regras é o capricho de um scholar.
(...) Os homens astutos condenam os estudos, os homens simples os admiram, e os homens sábios se
utilizam deles, obtida graças à observação." Eis uma nova nota que marca o fim da escolástica - isto é, o
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divórcio entre o conhecimento e o uso e a observação - e coloca aquela ênfase na experiência e nos
resultados que distingue a filosofia inglesa, e culmina no pragmatismo. Não que Bacon tivesse, por um
instante, deixado de amar os livros e a meditação; em palavras que lembram Sócrates, ele escreve: "sem
filosofia, não quero viver", e descreve a si mesmo como, afinal de contas, "um homem naturalmente
mais propenso à literatura do que a qualquer outra coisa, e levado por algum destino, contra a inclinação
de seu gênio" (isto é caráter), "a vida ativa". Quase que a sua primeira publicação recebeu o título de O
Elogio do Conhecimento (1592); o entusiasmo do trabalho pela filosofia nos obriga a uma citação.
"Meu elogio será dedicado à própria mente. A mente é o homem, e o conhecimento é a mente; um
homem é apenas aquilo que ele sabe. (...) Não são os prazeres das afeições maiores do que os prazeres
dos sentidos, e não são os prazeres do intelecto maiores do que os prazeres das afeições? Não se trata,
apenas, de um verdadeiro e natural prazer do qual não há saciedade? Não é só esse conhecimento que
livra a mente de todas as perturbações? Quantas coisas existem que imaginamos não existirem? Quantas
coisas estimamos e valorizamos mais do que são? Essas vãs imaginações, essas avaliações
desproporcionadas, são as nuvens do erro que se transformam nas tempestades das perturbações.
Existirá, então, felicidade igual à possibilidade da mente do homem elevar-se acima da confusão das
coisas de onde ele possa ter uma atenção especial para com a ordem da natureza e o erro dos homens?
De contentamento e não de benefício? Será que não devemos perceber tanto a riqueza do armazém da
natureza quanto a beleza de sua loja? Será estéril a verdade? Não poderemos, através dela, produzir
efeitos dignos e dotar a vida do homem com uma infinidade de coisas úteis?"
Sua mais bela produção literária, os Ensaios (1597-1623), mostram-no ainda indeciso entre dois amores,
a política e a filosofia. No Ensaio sobre a Honra e a Reputação, ele dá todos os graus de honra a
realizações políticas e militares, nenhum a literárias e filosóficas. Mas no ensaio Da Verdade, ele escreve:
"A indagação da verdade, que é namorá-la ou cortejá-la; o conhecimento da verdade, que é o elogio a
ela; e a crença na verdade, que é gozá-la, são o bem soberano das naturezas humanas." Nos livros,
"conversamos com os sábios, como na ação conversamos com tolos". Isto é, se soubermos escolher os
nossos livros. "Certos livros são para serem provados", outros para serem engolidos, e alguns poucos
para serem mastigados e digeridos"; todos esses grupos formam, sem dúvida, uma porção infinitesimal
dos oceanos e cataratas de tinta nos quais o mundo é diariamente banhado, envenenado e afogado.
Não há dúvida de que os Ensaios devem ser incluídos entre os poucos livros que merecem ser
mastigados e digeridos. Raramente se encontrará uma refeição tão substanciosa, tão admiravelmente
preparada e temperada, em um prato tão pequeno. Bacon abomina os recheios e detesta desperdiçar
uma palavra; ele nos oferece uma infinita riqueza numa pequena frase; cada um desses ensaios fornece,
em uma ou duas páginas, a destilada sutileza de uma mente de mestre sobre um importante aspecto da
vida. É difícil dizer o que é mais excelente, se a matéria ou o estilo; porque ali se acha uma linguagem de
tão alta qualidade na prosa quanto é a de Shakespeare em verso. É um estilo como o do vigoroso Tácito,
compacto mas refinado; e na verdade uma parte de sua concisão se deve a uma habilidosa adaptação do
idioma e do frasear latinos. Mas a sua riqueza no que se refere a metáforas é caracteristicamente
elizabetana e reflete a exuberância da Renascença; nenhum homem, na literatura inglesa, é tão fértil em
comparações significativas e substanciosas. A excessiva sucessão dessas comparações constitui o único
defeito do estilo de Bacon: as intermináveis metáforas, alegorias e alusões caem como chicotes sobre os
nossos nervos e acabam por nos exaurir. Os Ensaios são como um alimento rico e pesado, que não pode
ser digerido em grandes quantidades de uma só vez; mas tomados quatro ou cinco de cada vez,
constituem o melhor alimento intelectual.
No ensaio "Da Juventude e da Idade" ele condensa um livro em um parágrafo. "Os jovens são mais
aptos para inventar do que para julgar, mais aptos para a execução do que para o assessoramento, e
mais aptos para novos projetos do que para atividades já estabelecidas; porque a experiência da idade
em coisas que estejam ao alcance dessa idade os dirige; mas em coisas novas, os maltrata. (...) Os
jovens, na conduta e na administração dos atos, abraçam mais do que podem segurar, agitam mais do
que podem acalmar; voam para o fim sem consideração para com os meios e os graus; perseguem
absurdamente alguns princípios com que toparam por acaso; não se importam em "(isto é, em como)"
inovar, o que provoca transtornos desconhecidos. (...) Os homens maduros fazem objeções demais,
demoram-se demais em consultas, arriscam-se muito pouco, arrependem-se cedo demais e raramente
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levam o empreendimento até o fim, mas se contentam com uma mediocridade de sucesso. Não há
dúvida de que é bom forçar o emprego de ambos (...), porque as virtudes de qualquer um deles poderão
corrigir os defeitos dos dois." Bacon acha, apesar de tudo, que a juventude e a infância podem ter uma
liberdade demasiada e, assim, crescer desordenadas e relaxadas. "Que os pais escolhem cedo as
vocações e os cursos que pretendem que seus filhos sigam, pois é nessa fase que eles são mais flexíveis;
e que não se concentrem demais no pensor dos filhos, pensando que estes irão dedicar-se melhor àquilo
para que estejam mais inclinados. É verdade que se os pendores ou a aptidão dos filhos forem
extraordinários, é bom não contrariá-los; mas em geral, é bom o preceito" dos pitagóricos: "Optimum
lege, suave et facile illud faciet consuetudo" - escolha o melhor; o hábito irá torná-lo agradável e fácil.
Porque "o hábito é o principal magistrado da vida do homem."
A política dos Ensaios prega um conservantismo natural em que aspira ao governo. Bacon quer um forte
poder central. A monarquia é a melhor forma de governo; e em geral, a eficiência de um Estado varia
com a concentração do poder. "Deve haver três pontos essenciais nas atividades" do governo: "a
preparação; o debate, ou exame; e a conclusão" (ou execução). "Se quiserdes presteza, que só o do
meio fique a cargo de muitos, com o primeiro e o último ficando a cargo de uns poucos." Ele é um
militarista confesso; deplora o crescimento da indústria por considerar que isso deixa os homens
despreparados para a guerra, e lamenta uma paz prolongada, por aplacar o guerreiro que existe no
homem. Apesar disso, reconhece a importância das matérias-primas: "Sólon disse a Creso (quando, por
ostentação, Creso lhe mostrou o seu ouro): "Senhor, se chegar qualquer outro que tenha melhor ferro do
que vós, ele será dono de todo esse ouro."
Tal como Aristóteles, Bacon dá alguns conselhos para se evitarem revoluções. "O meio mais seguro de
evitar sedições (...) é afastar a causa; porque se o combustível estiver preparado, é difícil dizer de onde
virá a fagulha que irá atear-lhe fogo. (...) Tampouco se segue que a supressão dos rumores" (isto é, da
discussão) "com demasiada severidade deva ser o remédio para os problemas; porque muitas vezes o
desprezo é a melhor forma de contê-los, e as providências para reprimi-los só fazem dar vida longa à
especulação. (...) A substância da sedição é de dois tipos: muita pobreza e muito descontentamento. (...)
As causas e motivos das sedições são as inovações na religião; os impostos; as modificações de leis e
costumes; o cancelamento de privilégios; a opressão generalizada; o progresso de pessoas indignas,
estranhas, as privações; soldados desmobilizados; facções desesperadas; e tudo aquilo que, ao ofender
um povo, faz com que ele se una em uma casa comum." A sugestão de todos os líderes, claro, é dividir
seus inimigos e unir os amigos. "De modo geral, é dividir e enfraquecer todas as facções (...) contrárias
ao Estado, e colocá-las longe uma das outras, ou pelo menos semear a desconfiança entre elas, não é
um dos piores remédios; porque é desesperador o caso em que aqueles que apóiam o governo estão
cheios de discórdia e cisões, e os que estão contra ele estão inteiros e unidos." Uma receita melhor para
evitar as revoluções é uma distribuição eqüitativa da riqueza: "O dinheiro é como o esterco, só é
bom se for espalhado." Mas isso não significa socialismo ou, mesmo, democracia; Bacon não confia no
povo, que na sua época praticamente não tinha acesso à educação; "a mais baixa das lisonjas é a
lisonja do homem do povo", e "Fócion compreendeu bem quando, ao ser aplaudido pela multidão,
perguntou o que tinha feito de errado." O que Bacon quer é, primeiro, uma pequena burguesia de
proprietários rurais; depois, uma aristocracia para a administração; e acima de todos, um rei-filósofo.
"Quando não há exemplos de que um governo não tenha prosperado com governos cultos." Ele cita
Sêneca, Antonio Pio e Aurélio; tinha a esperança de que aos nomes deles a posteridade acrescentasse o
seu.

O Pensamento: A "Instauratio Magna"

A Instauratio magna scientiarum deveria ter precisamente representado a reforma do saber, deveria ter
constituído a summa philosophica dos tempos novos, e lançado o fundamento do regnum hominis, tão
audazmente iniciado pela ciência e pela política da Renascença. Essa obra deveria ter abraçado a
enciclopédia das ciências e compreendido também as técnicas, segundo o novo ideal humano e prático e
imanentista. Começa-se, portanto, com a classificação geral das disciplinas humanas, baseada no
respectivo predomínio das três faculdades que presidem à organização do saber: memória, fantasia,
138
razão. Essa classificação é baseada não no objeto do conhecimento, e sim no sujeito que conhece.
1) História tanto civil quanto natural, que registra (memória) os dados de fato; 2) Poesia, elaboração
imaginativa desses dados; 3) Ciência ou filosofia, isto é, conhecimento racional de Deus, do homem e da
natureza.
A teologia natural de Bacon não exclui, mas prescinde da revelação cristã e da religião positiva. A ciência
do homem divide-se em ciência do homem individual (philosophia humanitatis), e em ciência da
sociedade humana (philosophia civilis). A primeira diz respeito ao homem todo, espírito e matéria. A
segunda diz respeito à arte de governar e às relações sociais e aos negócios. A filosofia natural ou física,
divide-se em especulativa e operativa. A primeira, por sua vez, se divide em física especial ("que procura
a causa eficiente e material"), e em metafísica ("que procura a causa final e a forma"). Pertencem pois à
física operativa as artes mecânicas. Acima das ciências filosóficas particulares, Bacon põe uma ciência
filosófica comum, denominando-a philosophia prima. Esta não é a ontologia tradicional, a ciência do ser
em geral, mas a ciência dos princípios comuns às várias ciências.

O "Novum Organum"

Entretanto, o que interessa mais a Bacon não é esta ciência dos princípios comuns, e sim a ciência da
natureza, e, portanto, o Novum organum, que deveria conter precisamente as regras para a construção
da ciência da natureza. Como é sabido, Bacon reivindica, contra Aristóteles e a Escolástica, o método
indutivo. Aristóteles e Tomás de Aquino afirmaram claramente este método, e até o reconheceram como
único procedimento inicial do conhecimento humano; entretanto a eles interessavam muito mais as
causas do que a experiência, o que transcende a experiência do que a experiência; muito mais a
metafísica do que a ciência.
Segundo Bacon, o verdadeiro método da indução científica compreende uma parte negativa ou crítica, e
uma parte positiva ou construtiva. A parte negativa consiste, antes de tudo, em alertar a mente contra os
erros comuns, quando procura a conquista da ciência verdadeira. Na sua linguagem imaginosa Bacon
chama as causas destes erros comuns, fantasmas - idola - e os divide em quatro grupos fundamentais.
1) Idola tribus, a saber, os erroa da raça humana "fundamentados em a natureza como tal" (não se
sabe, pois, o verdadeiro porquê);
2) Idola specus (por alusão à caverna de Platão) determinados pelas disposições subjetivas de cada um;
3) Idola fori, erros da praça, provenientes do comércio social ou da linguagem imperfeita;
4) Idola theatri, isto é, os erros provenientes das escolas filosóficas, que substituem o mundo real por
um mundo fantástico, por um jogo cênico.
Desembaraçado o terreno destes erros, Bacon passa a tratar da natureza positiva, construtiva, da
genuína interpretação da natureza para dominá-la. Mas, para tanto, é mister conhecer as que Bacon
chama de formas, isto é, os princípios imanentes, causa e lei da ação e da ordem das naturezas. As
naturezas são precisamente os fenômenos experimentais, objeto da física especial (luz, calor, pêso, etc.);
as formas são leis genéticas e organizadoras das naturezas, as essências ou causas formais, objeto da
metafísica de Bacon.
Esta pesquisa, esta passagem das naturezas às formas, dos fenômenos às essências - bem conhecida
pela filosofia tradicional - é determinada por Bacon, segundo um método preciso, desconhecido dos
predecessores, nas famosas tabulae baconianas. Para determinar de um modo certo as causas e as leis
dos fenômenos - isto é, as formas das naturezas - Bacon recolhe, antes de tudo, o maior número possível
de exemplos, em que um determinado fenômeno aparece; depois enumera os casos que mais se
assemelham às primeiras, em que, porém, o mesmo fenômeno não aparece. Enfim registra o aumentar
ou o diminuir do fenômeno em questão, quer no mesmo objeto, quer em objetos diferentes. Têm-se,
desta maneira, três espécies de registros ou tabelas: 1) tabelas de presença; 2) tabelas de ausência; 3)
tabelas de gradações. É evidente que nos casos onde uma determinada natureza ou fenômeno
aparecem, aí se encontrará também a sua causa e lei; nos casos em que o fenômeno não se manifesta,
aí faltará também a sua causa e lei; e nos casos onde o fenômeno aumenta ou diminui, aí aumentará ou
diminuirá também a sua causa e lei. A causa (forma) dos fenômenos (naturezas) será procurada,
portanto, com base nos fenômenos presentes na primeira tabela; não sendo fácil, a princípio, ter-se
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tabelas completas e isolar as naturezas simples, e desta maneira pôr em evidência a causa, é mister
estabelecê-la por hipótese, que será, em seguida, averiguada pelas experimentações.
Essa gnosiologia, metodologia (empírica) é baseada em uma metafísica, uma física materialista e, mais
precisamente, atomista, bastante semelhante à de Demócrito. O mundo material é constituído de
corpúsculos, qualitativamente idênticos, diversos apenas por grandeza, forma e posição. Estes
corpúsculos são animados por uma força, em virtude da qual se agrupam em determinados complexos,
que constituem as formas baconianas.

O Empirismo - Locke

John Locke

Sobre a linha do desenvolvimento do empirismo, Locke representa um progresso em confronto com os


precedentes: no sentido de que a sua gnosiologia fenomenista-empirista não é dogmaticamente
acompanhada de uma metafísica mais ou menos materialista. Limita-se a nos oferecer, filosoficamente,
uma teoria do conhecimento, mesmo aceitando a metafísica tradicional, e do senso comum pelo que
concerne a Deus, à alma, à moral e à religião. Com relação à religião natural, não muito diferente do
deísmo abstrato da época; o poder político tem o direito de impor essa religião, porquanto é baseada na
razão. Locke professa a tolerância e o respeito às religiões particulares, históricas, positivas.
Locke viajou fora da Inglaterra, especialmente em França, onde ampliou o seu horizonte cultural, entrou
em contato com movimentos filosóficos diversos, em especial com o racionalismo. Tornou-se mais
consciente do seu empirismo, que procurou completar com elementos racionalistas (o que, entretanto,
representa um desvio na linha do desenvolvimento do empirismo, procedente de Bacon até Hume).

Vida e Obras

João Locke nasceu em Wrington, em 1632. Estudou na Universidade de Oxford filosofia, ciências
naturais e medicina. Em 1665 foi enviado para Brandenburgo como secretário de legação. Passou, em
seguida, ao serviço de Loed Ashley, futuro conde de Shaftesbury, a quem ficou fiel também nas
desgraças políticas. Foi, portanto, para a França, onde conheceu as personalidades mais destacadas da
cultura francesa do "grand siècle". Em 1683 refugiou-se na Holanda, aí participando no movimento
político que levou ao trono da Inglaterra Guilherme de Orange. De volta à pátria, recusou o cargo de
embaixador e dedicou-se inteiramente aos estudos filosóficos, morais, políticos. Passou seus últimos anos
de vida no castelo de Oates (Essex), junto de Sir Francisco Masham. Faleceu em 1704.
As suas obras filosóficas mais notáveis são: o Tratado do Governo Civil (1689); o Ensaio sobre o Intelecto
Humano (1690); os Pensamentos sobre a Educação (1693). As dontes principais do pensamento de
Locke são: o nominalismo escolástico, cujo centro famoso era Oxford; o empirismo inglês da época; o
racionalismo cartesiano e a filosofia de Malebranche.

O Pensamento: A Gnosiologia

Locke julga, como Bacon, que o fim da filosofia é prático. Entretanto - diversamente de Bacon, que
julgava fim da filosofia o conhecimento da natureza para dominá-la (fim econômico) - Locke pensa que o
fim da filosofia é essencialmente moral; quer dizer: a filosofia deve proporcionar uma norma racional
para a vida do homem. E, como os seus predecessores empiristas, ele sente, antes de mais nada, a
necessidade de instituir uma investigação sobre o conhecimento humano, elaborar uma gnosiologia, para
achar um critério de verdade. Podemos dizer que a sua filosofia se limita a este problema gnosiológico,
para logo passar a uma filosofia moral (e política, pedagógica, religiosa), sem uma adequada e
intermédia metafísica.
Locke não parte, realisticamente, do ser, e sim, fenomenisticamente, do pensamento. No nosso
pensamento acham-se apenas idéias (no sentido genérico das representações): qual é a sua origem e o
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seu valor? Locke exclui absolutamente as idéias e os princípios que deles se formam, derivam da
experiência; antes da experiência o espírito é como uma folha em branco, uma tabula rasa.
No entanto, a experiência é dúplice: externa e interna. A primeira realiza-se através da sensação, e nos
proporciona a representação dos objetos (chamados) externos: cores, sons, odores, sabores, extensão,
forma, movimento, etc. A segunda realiza-se através da reflexão, que nos proporciona a representação
das próprias operações exercidas pelo espírito sobre os objetos da sensação, como: conhecer, crer,
lembrar, duvidar, querer, etc. Nas idéias proporcionadas pela sensibilidade externa, Locke distingue as
qualidades primárias, absolutamente objetivas, e as qualidades secundárias, subjetivas (objetivas apenas
em sua causa).
As idéias ou representações dividem-se em idéias simples e idéias complexas, que são uma combinação
das primeiras. Perante as idéias simples - que constituem o material primitivo e fundamental do
conhecimento - o espírito é puramente passivo; pelo contrário, é ele ativo na formação das idéias
complexas. Entre estas últimas, a mais importante é a substância: que nada mais seria que uma coleção
constante de idéias simples, referida pelo espírito a um misterioso substrato unificador. O espírito é
também ativo nas sínteses que são as idéias de relação, e nas análises que são as idéias gerais. Às idéias
de ralação pertencem as relações temporais e espaciais e de idéias simples dos complexos a que
pertencem e da universalização da idéia assim isolada, obtendo-se, desse modo, a idéia abstrata (por
exemplo, a brancura). Locke é, mais ou menos, nominalista: existem, propriamente, só indivíduos com
uma essência individual, e as idéias gerais não passam de nomes, que designam caracteres comuns a
muitos indivíduos. Entretanto, os nomes que designam uma idéia abstrata, isto é, uma propriedade
semelhante em muitas coisas, têm um valor e um escopo práticos: auxiliar os homens a se conduzirem
na vida.
Dado o nominalismo de Locke, compreende-se como, para ele, é impossível a ciência verdadeira da
natureza, considerada como conhecimento das leis universais e necessárias. Locke julga também
inaplicável à natureza a matemática - reconhecendo-lhe embora o caráter de verdadeira ciência - isto é,
não acredita na físico-matemática, à maneira de Galileu. Entretanto, mesmo que a ciência da natureza
não nos desse senão a probabilidade, a opinião, seria útil enquanto prática.
Até aqui foram analisados e descritos os conteúdos de consciência. É mister agora propor a questão do
seu valor lógico. Costuma-se dizer que as idéias são "verdadeiras ou falsas"; melhor seria chamá-las
"justas ou erradas", porque, propriamente, "a verdade e a falsidade pertencem às proposições", em que
se afirma ou se nega uma relação entre duas idéias. E esta relação, afirmada ou negada, pode ser
precisamente falsa ou verdadeira. O conhecimento da relação positiva ou negativa entre as idéias é,
segundo Locke, de dois tipos: intuitivo e demonstrativo. No primeiro caso a relação é colhida intuitiva,
imediata e evidentemente. Por exemplo: 3 = 2 + 1. No segundo caso a relação é colhida mediatamente,
recorrendo às idéias intermediárias, ao raciocínio. Por exemplo: a existência de Deus demonstrada pela
nossa existência e pelo princípio de causalidade. Naturalmente, a demonstração é inferior à intuição.

Idéias Metafísicas

Estamos, porém, ainda fechados no mundo subjetivo, fenomênico; de fato, tratou-se, até agora, de
relações positivas ou negativas, concordes ou desacordes com as idéias. Podemos nós sair desse mundo
subjetivo e atingir o mundo objetivo, isto é, podemos conhecê-lo imediatamente ou mediatamente na sua
existência e na sua natureza? Locke afirma-o, sem mostrar, entretanto, como este conhecimento do
mundo externo possa concordar com a sua geral (fenomenista) concepção e definição do conhecimento.
É a sólita posição de um fenomenismo ainda não plenamente consciente de si mesmo. Corta as relações
com o ser e vai para o fenomenismo absoluto, mas tem ainda saudade desse ser do qual se isolou.
Em todo caso, Locke acredita poder atingir, antes de tudo, o nosso ser, depois o de Deus, e, finalmente,
o das coisas. O nosso ser seria intuitivamente percebido através da reflexão. A existência de Deus seria
racionalmente demonstrada mediante o princípio de causa, partindo do conhecimento imediato de uma
outra existência (a nossa). A existência das coisas, alfim, seria sentida invencivelmente, porque nos
sentimos passivos em nossas sensações, que deveriam ser causadas por seres externos a nós.
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Entretanto, pelo que diz respeito ao nosso ser, é mister ter presente que nós não conhecemos
intuitivamente a substância da alma, e sim as suas atividades. Pelo que diz respeito a Deus, a prova da
sua existência vale, se vale absolutamente o princípio de causa - o que Locke não demonstrou. Enfim,
pelo que diz respeito às coisas externas, mesmo admitida a prova aduzida por Locke - segundo a
confissão do próprio filósofo - tal prova vale apenas pelo que concerne à existência das coisas, e não pelo
que concerne à natureza delas. De fato, segundo a filosofia de Locke, não sabemos se as idéias da
natureza das coisas correspondem à realidade das coisas.

Moral e Política

Locke não admite, naturalmente, idéias e princípios inatos nem sequer no campo da moral. A sua moral,
todavia, é muito mais intelectualista do que empirista, pois ele lhe reconhece o caráter de verdadeira
ciência, universal e necessária.
Entretanto, não basta ter construído uma moral em abstrato, embora racional. É preciso torná-la
praticamente eficaz, isto é, faz-se mister uma obrigação moral, que se imponha à nossa vontade. Ora,
visto que é natural, no homem, a tendência para o próprio bem-estar, é natural que ele seja atingido
pelas penas, pelas sanções, que precisamente lhe impedem tal realização. Que parte tem a liberdade da
vontade em tudo isto? Locke nega, propriamente, o livre arbítrio, porquanto nós nos inclinamos
necessariamente para um bem determinado e devemos desejar o bem maior.
Quanto à política, Locke deriva a lei civil da lei natural, racional, moral, em virtude da qual todos os
homens - como seres racionais - são livre iguais, têm direito à vida e à propriedade; e, entretanto na vida
política, não podem renunciar a estes direitos, sem renunciar à própria dignidade, à natureza humana.
Locke admite um originário estado de natureza antes do estado civilizado. Não, porém, no sentido brutal
e egoísta de inimizade universal, como dizia Hobbes; mas em um sentido moral, em virtude do qual cada
um sente o dever racional de respeitar nos outros a mesma personalidade que nele se encontra.
Também Locke admite a passagem do estado de natureza ao estado civilizado, porquanto, no primeiro,
falta a certeza e a regularidade da defesa e da punição, que existe no segundo, graças à autoridade do
superior. Entretanto, estipulando este contrato social, os indivíduos não renunciam a todos os direitos,
porquanto os direitos que constituem a natureza humana (vida, liberdade, bens), são inalienáveis; mas
renunciam unicamente ao direito de defesa e de fazer justiça, para conseguir que os direitos inalienáveis
sejam melhor garantidos. Antes, se o estado violasse esses direitos inalienáveis, os indivíduos teriam o
direito e o dever de a ele resistir e de se revoltar contra o poder usurpador. A doutrina política de Locke,
contida no seu Tratado sobre o Governo Civil, é a expressão teórica do constitucionalismo liberal inglês,
em contraste com a doutrina do absolutismo naturalista de Hobbes.

Idéias Pedagógicas

Com respeito à religião, Locke toma uma atitude racionalista moderada. Admite uma religião natural,
exigível também politicamente, porquanto fundamentada na razão. E professa a tolerância a respeito das
religiões particulares, históricas, positivas.
Locke interessou-se especialmente pelos problemas pedagógicos, escrevendo os Pensamentos sobre a
Educação. Aí afirma a nossa passividade, pois nascemos todos ignorantes e recebemos tudo da
experiência; mas, ao mesmo tempo, afirma a nossa parte ativa, enquanto o intelecto constrói a
experiência, elaborando as idéias simples.
Afirma-se que todos nascemos iguais, dotados de razão; mas, ao mesmo tempo, todos temos
temperamentos diferentes, que devem ser desenvolvidos de conformidade com o temperamento de cada
um. Esta educação individual não exclui, mas implica a educação, a formação social, para ampliar,
enriquecer a própria personalidade. Tem muita importância a obra do educador, mas é fundamental a
colaboração do discípulo, pois trata-se da formação do intelecto, da razão, que é, necessariamente,
autônoma. A formação educacional consiste, portanto, fundamentalmente, no desenvolvimento do
intelecto mediante a moral, precisamente pelo fato de que se trata de formar seres conscientes, livres,
senhores de si mesmos. Por conseguinte, a educação deve ser formativa, desenvolvendo o intelecto, e
142
não informativa, erudita, mnemônica. Igualmente Locke é fautor de educação física, mas como o
meio para o domínio de si mesmo.

O Empirismo - Berkeley

Jorge Berkeley

Uma etapa ulterior do fenomenismo empirista é representada por Berkeley. Ele suprime, criticamente, as
qualidades primárias, as sensações objetivas de Locke, evidenciando que são semelhantes às secundárias
e, logo, também elas subjetivas. E suprime também, definitivamente, o conceito lockiano de substância
material, que deveria ter sido a causa misteriosa de nossas sensações, objetivas, visto que, no
empirismo, a substância não passa de um nome. Isto não impede que Berkeley - por motivos práticos,
morais e religiosos - incoerentemente, conserve ainda no seu empirismo os conceitos de substância,
causa e espírito, isto é, os conceitos de substância e causa espiritual. Este resíduo realista e
transcendente será definitivamente eliminado pela crítica radical e coerente de Hume, o último e o maior
dos empiristas prá-kantianos.

Vida e Obras

Jorge Berkeley nasceu em 1685 perto de Dysert Castle, na Irlanda, de uma família de origem inglesa.
Estudou no Trinity College em Dublin, formando-se mestre em artes em 1707. Ordenado pela Igreja
anglicana, a princípio ensina grego (sua obra, um dia, assumirá um tom platônico), em seguida hebreu e
teologia no Trinity College. Entre 1702 e 1710, podemos seguir, em seu caderno de anotações
(Commonplace book), a formação de seu pensamento. Desde 1709 ele escreve sua Nova teoria da Visão.
Seu Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano é publicado em 1710. As intenções
apologéticas de sua obra aparecem claramente nos artigos polêmicos, que escreveu em 1713, no jornal
The Guardian, contra as idéias de um célebre livre-pensador, Arthur Collins. Em 1713, igualmente,
aparece os Diálogos entre Hylas e Philonous. Berkeley então viaja pela França e pela Itália; em seguida
se decide a propagar o pensamento cristão nas possessões americanas da Inglaterra, partindo para as
Bermudas, onde sonha fundar um colégio, idéia à qual deve renunciar, posto que o governo inglês não
lhe envia os fundos prometidos. Nessa época, ele lê Plotino sobretudo. Ao retornar, é nomeado bispo
anglicano de Cloyne. Publica uma nova obra contra os livres-pensadores, "Alciphrom ou o filosofúsculo"
(Alciphrom or the minute philosopher). Em 1740, sobrevém uma epidemia na Irlanda, que o improvisa
como médico; cuida de suas ovelhas com água de alcatrão (receita que conheceu na América), na qual
vê um remédio universal, o que o leva a uma cadeia (seiris, em grego) de reflexões muito platônicas
sobre a natureza, a Providência e Deus, que ele nos oferece em sua última obra, "Síris ou Reflexões e
pesquisas filosóficas concernentes às virtudes da água de alcatrão e diversos outros temas conexos entre
si e originados um do outro" (1744). Na Teoria da Visão, Berkeley parte do seguinte problema (colocado
pelo físico Molyneux): Como podemos ver a distância de um objeto? O raio luminoso, orientado
perpendicularmente ao olho, só projeta um ponto que invariavelmente é o mesmo, quer a distância seja
longa ou curta. Por conseguinte, falando estritamente, não vemos a distância. Um cego de nascença,
afirma Berkeley, ao qual fosse dado ver repentinamente, teria a impressão de que todos os objetos
tocavam seus olhos (vinte anos após o obra de Berkeley, o cirurgião Cheselden publicará, nas
Philosophical Transactions of the Royal Society, a observação de um menino de quatorze anos, operado
de catarata, que parece confirmar o ponto de vista de Berkeley. Voltaire, em sua Filosofia de Newton,
1741, torna conhecida essa experiência que Condillac e Diderot discutirão em sua Carta sobre os cegos
para uso dos que vêem).
Para Berkeley, a distância, portanto, não é percebida, mas julgada a partir de signos tais como a
grandeza aparente ou da luminosidade mais ou menos viva dos objetos. Esse homem pequenino e pouco
visível está longe de mim, porque a experiência mostra que quando um homem tem essa grandeza
aparente, deve andar por alguns momentos a fim de o tocar. Por conseguinte, a experiência me ensina a
interpretar aparências visuais como o sinal da distância maior ou menor dos objetos.
143
Dessa análise psicológica, Berkeley tira conclusões importantes:
a) Não existe espaço objetivo, espaço "em-si", para Berkeley. O espaço não é o "sensível-comum",
simultaneamente percebido pela visão e pelo tato, como dizia a filosofia escolástica, nem a extensão
geométrica, tão cara aos cartesianos. Existem dois espaços distintos: um visual, relativo ao sentido da
visão, e o que possui apenas duas dimensões, e um espaço tátil (a exploração tátil me revela, na origem,
as distâncias dos objetos), o que me ensina a decifrar as correspondências entre esses dois tipos de
sensações (visuais e táteis).
b) As correspondências existentes entre os dados visuais e a distância dos objetos não podem ser
previstas a priori. É a experiência, e só ela, que me faz conhecer a ligação entre uma mudança de
claridade e uma mudança de distância, exatamente como a experiência, isto é, a aprendizagem da língua
natal me faz conhecer a ligação convencional entre os objetos e as palavras que os designam.
Compreendemos bem que, para Berkeley, o cubo que vejo e aquele em que toco não são um só e
mesmo objeto!! Não mais existem relações entre um e outro, exceto a que existe entre o cubo em que
toco e a palavra de quatro letras com que o designo. É por preconceito que acredito na existência de
"objetos". Tudo o que a experiência me fornece é uma multidão de sensações diversas entre as quais
existem correspondências. Os dados visuais são o signo dos dados táteis. Ora, toda linguagem é a
instituição de um espírito, por conseguinte, uma linguagem universal da natureza (como aquela que faz
dos dados visuais o signo das experiências táteis) só pode ser obra de um Espírito universal. As
correspondências entre o atlas tátil e o atlas visual simplesmente manifestam a Providência de Deus.

Nominalismo de Berkeley

a) Ele declara não compreender o que seja uma idéia abstrata. Por isso ele se aproxima de Locke e do
ponto de vista de todos os outros empiristas ingleses. Por exemplo: que é a idéia abstrata de Homem?
Um nome, uma simples palavra (uma imagem concreta, lida ou ouvida), pois, quando represento
mentalmente um homem, é preciso que essa imagem seja a de um homem particular, grande ou
pequeno, disforme ou bem proporcionado, etc.
b) Todavia, se Berkeley nega a idéia abstrata, ele admite a idéia geral. Por exemplo, essa palavra
"homem" que pronuncio não passa, em suma, de uma imagem sonora concreta. Mas essa imagem
sonora, eu a faço corresponder a um sem-número de imagens visuais (as de todos os homens que posso
ver). A imagem concreta se torna geral quando se transforma em signo, em substituto de outras imagens
concretas. Uma imagem concreta, uma idéia concreta (para Berkeley, idéia e imagem são a mesma
coisa; a palavra idéia significa representação mental) é o símbolo de outras idéias concretas. No universo
de Berkeley, os "signos" desempenham um grande papel. Pensar não é, para ele, aprender uma essência
abstrata, mas passar de uma imagem a outra graças à função simbólica.

O Imaterialismo

É a outra doutrina fundamental de Berkeley que facilmente vemos estar ligada ao seu nominalismo. Para
ele, toda abstração é ilegítima. E, por exemplo, não tenho o direito de dizer, como Descartes, que a
extensão existe objetivamente, ao passo que a cor é subjetiva, pois todos os objetos me são dados
simultaneamente como extensos e coloridos. De um modo mais geral, nada me autoriza a imaginar, por
abstração, a existência de pretensos objetos materiais fora de meus estados de consciência. "Não posso
representar em meus pensamentos uma coisa sensível ou um objeto isolados da sensação que deles
tenho; o objeto e a sensação são idênticos e não podem ser abstraídos um do outro." Eis uma porta alta
e sólida, pintada de verde e contra a qual me choco dolorosamente. Não é verdadeiramente uma coisa
material que existe como tal, fora de minhas sensações! Absolutamente, responde Berkeley. Esta porta
nada mais é do que uma soma de representações mentais, um conjunto de "idéias". Sua forma e a
extensão que ela ocupa são sensações; sua cor verde uma sensação visual, o contato de minha mão com
ela uma sensação tátil e a própria dor que sinto após o choque é um estado de consciência. Não possuo
mais o direito de dizer que tenho uma ou várias idéias da porta, posto que ela não passa de um conjunto
de idéias. Não tenho a menor razão de abstrair da realidade sensível que é a dos meus estados de
144
consciência, pretensas coisas materiais que, misteriosamente, existiriam além de minhas percepções.
A única realidade das coisas é serem percebidas, "Esse est percipi". É certo que o ser não se reduz ao
que é passivamente percebido e que eu, que ativamente percebo, também existo. Para Berkeley,
portanto, ser é ser percebido ou perceber: "Esse est percipi vel percipere". Não há no mundo
senão idéias e espíritos. É o que, nos célebres diálogos, o imaterialista Philonous (esse nome, em grego,
significa amigo do espírito), porta-voz de Berkeley, demonstra a Hylas (cujo nome, em grego, significa
matéria).

Realismo ou Idealismo?

O que Berkeley rejeita é a realidade de uma substância material que seria o suporte misterioso, invisível,
impalpável, das qualidades sensíveis. O que ele não admite é a coisa que estaria oculta sob nossas
representações, é um além material que transcenderia o percebido. Sua filosofia, segundo a qual a
realidade se reduz ao que nos é dado concretamente, quer nos libertar daquilo que Nietzche, mais tarde,
chamará de "a ilusão dos além-mundos". Como diz Bergson muito bem: "O que o idealismo de Berkeley
significa é que a matéria é coextensiva à nossa representação, que ela não tem interior, não tem suporte,
que ela nada oculta, nada envolve, que se estende superficialmente e que se coloca inteira a todo
instante no que ela dá". Berkeley não nega, portanto, a existência das coisas sob a condição de que se
aceite que existir é "ser percebido" e nada mais.Dado esse detalhe, Berkeley reclama o bom-senso
popular e se ri de Descartes que duvidava de seus sentidos. Berkeley recusa todo ceticismo e aceita o
dado tal qual é: "O cavalo está na cocheira e os livros estão na biblioteca como antes"; o chamado
idealismo de Berkeley não passa de um realismo ingênuo. A aparência é que é a verdadeira realidade. O
mundo visual tem realmente as cores que aparenta ter, o mundo da audição é verdadeiramente sonoro,
etc. Como Philonous declara a Hylas: "Você se engana, não quero transformar as coisas em idéias, quero
antes transformar as idéias em coisas, pois os objetos imediatos da percepção que, segundo você, são
apenas as aparências das coisas, eu os considero coisas reais".
A filosofia de Berkeley, portanto, é a filosofia do realismo concreto levada às suas últimas conseqüências:
o que existe é o que vemos e tocamos. O que não vemos e não tocamos não existe. Por
conseguinte, Berkeley rejeita todas as "abstrações" dos matemáticos e dos físicos. Não aceita a
"extensão inteligível" de Malebranche e só admite um espaço sensível. As novas matemáticas do
infinitesimal, portanto, serão falsas a seus olhos. O espaço dado aos sentidos não pode ser divisível ao
infinito, uma vez divisível ao infinito seria admitir que um fragmento de extensão existe sem ser
percebido. Do mesmo modo, Berkeley - antes de Bergson - rejeita como ficção o tempo abstrato,
homogêneo e mensurável dos físicos. O único tempo real é o tempo concretamente percebido; "mais
longo na dor do que no prazer".

Imaterialismo e Teologia

a) Tal como expusemos, o imaterialismo de Berkeley suscita uma dificuldade. Se não há nenhuma
transcendência das coisas, se o objeto nada mais é do que a representação que dele tenho, como é
possível que vários espectadores vejam juntos, no mesmo lugar, a mesma coisa? Por exemplo, as
pessoas que neste momento se encontram em meu escritório podem dizer que aí existe uma poltrona de
couro. Se - como pensava Hylas - a poltrona de couro existe materialmente e nossas sensações a
refletem, não há dificuldade. Mas, se como pensa Philonous-Berkeley, nossas sensações não remetem a
um objeto exterior, como é que todas as pessoas presentes podem pretender ver a mesma coisa?
b) Berkeley responde a isso, fazendo com que Deus intervenha. Deus já estava encarregado de explicar
as admiráveis correspondências entre dados táteis e visuais, era ele o autor dessa linguagem universal e
benfazeja da natureza. E agora Berkeley nos diz que Deus é quem nos envia, numa ordem harmoniosa,
nossas "idéias", isto é , nossas percepções. A ordem de minhas "idéias", sua admirável concordância com
as "idéias", isto é, com as percepções dos outros espíritos, estão erigidas como prova do poder e da
bondade do Criador.
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c) Por que dizer, com efeito, que Deus criou a matéria e que o homem a conhece por meio de
"idéias"? Não se pode fazer economia dessa entidade misteriosa? Basta pensar que o espetáculo do
universo, longe de ressaltar de maneira ininteligível uma matéria opaca, é diretamente imprimido pelo
Criador na consciência das criaturas. O mundo é uma mensagem de Deus. É um "discurso que Deus faz
aos Homens"; ele me fala diretamente quando decifro o mundo sensível. Quando as metafísicas
materialistas falam de substância, de força, de extensão abstrata, colocam uma tela de pesadas ficções
entre Deus e essa palavra cotidiana de Deus que é o mundo. Bergson apreende efetivamente o que há
de essencial na doutrina de Berkeley quando a comenta nos seguintes termos: "A matéria seria uma
língua em que Deus nos fala. As metafísicas da matéria, tornando espessa cada sílaba, dando-lhe um
destino, erigindo-a em entidade independente, afastariam nossa atenção do sentido do som e nos
impediriam de acompanhar a palavra divina".
Em todo caso, vemos, por tudo isso, o alcance apologético que Berkeley pretende dar a seu
imaterialismo. Aos materialistas, aos ateus que proclamam: Deus não existe, a alma não existe, Berkeley
responde: "É a matéria que não existe. Só Deus e os espíritos existem".

O Problema da Evolução em Berkeley

a) Em Siris, Berkeley enriquece seu imaterialismo com uma dimensão nova. A Providência - de quem as
virtudes terapêuticas da água de alcatrão lhe recordam a benevolência ativa - surge-lhe, desde então, à
maneira dos neoplatônicos, que lera na América, como um fogo sutil que circula através do Universo,
como um fluido vital que o penetra inteiramente.
b) Por outro lado, inspirado pelos platônicos que pregam a libertação quanto aos sentidos e insistem no
conhecimento das realidades espirituais, Berkeley aprofunda sua reflexão sobre o conhecimento dessas
realidades. Da primeira à segunda edição de seus Princípios do Conhecimento, seguimos facilmente o
aprofundamento de seu pensamento. Na primeira edição, Berkeley mostra que as idéias, isto é, as
representações mentais, são essencialmente passivas. É Deus quem nos fornece nossas "idéias", mas
não temos idéia do próprio Deus, posto que ele é atividade suprema. Como, então, podemos conhecê-lo?
A segunda edição traz uma resposta a esse problema e Siris vem explicitar essa resposta: temos uma
noção de Deus. Este último que, nas primeiras obras, era um Deus cartesiano, criador das idéias em
nossas consciências, torna-se um Deus malebranchiano, não apenas causa das idéias, mas morada das
Idéias. Entre ele e nossas representações sensíveis surgem (como nas filosofias neoplatônicas)
intermediários, arquétipos em que Deus se fundamenta para produzir nossas representações.
Berkeley então nos propõe uma espécie de síntese muito original entre as filosofias de Locke e de
Malebranche, com uma evolução cada vez mais acentuada em sua velhice para o malebranchismo, como
sublinhou Gueroult. "Curiosa síntese, diz muito bem F.-J. Thonnard, entre empirismo e espiritualismo,
entre gosto pelo sensível e aversão pela matéria." Todavia, Berkeley nunca seguirá Malebranche até o
fim. Se, no fundo, aceita a teoria das causas ocasionais na matéria (a idéia visível não é a causa, mas o
signo da idéia tangível que Deus produz em mim), se finalmente recai no tema da visão de Deus, se
chega mesmo a ir mais além de Malebranche ao negar a existência das coisas materiais (que
Malebranche aceita de acordo com o testemunho da Bíblia), Berkeley não aceita que a vontade das
criaturas seja uma simples causa ocasional. Ele atribui à pessoa humana uma verdadeira "eficácia", uma
liberdade real, recaindo, assim, no espiritualismo tradicional.

Jean-Jacques Rosseau

O Iluminismo Francês

Voltaire traz o iluminismo da Inglaterra para a França, já bem disposta para assimilá-lo e valorizá-lo,
escrevendo as famosas Lettres sur les Anglais. E logo se desperta na França uma verdadeira anglomania:
pelo constitucionalismo inglês, pelo livre pensamento, pela ciência nova, por Locke e Newton. Assim, se a
terra de origem do iluminismo é a Inglaterra, a sua terra clássica é a França. Aí assumirá aquele caráter
extremado e difusivo pelo qual o iluminismo ficará definitivamente individuado.
146
O traço específico do iluminismo francês é o culto da razão, a deusa razão da revolução francesa. A
razão (humana) deve dominar acima de tudo e acima de todos, déspota absoluta. Daí a guerra a
qualquer atividade e instituição que não sejam puramente racionais, à fantasia, ao sentimento, à paixão;
às desigualdades sociais, porque a razão é universal; ao estado, quando conculca os direitos naturais do
indivíduo; às divisões nacionais e à guerra; à história e à tradição em geral, em que a razão certamente
não domina. No campo social, econômico, político, religioso, tudo isto levará à demolição, à destruição da
ordem constituída. É o que fez desabusadamente e desapiedadamente a revolução francesa.
Se o iluminismo demole toda a história, julga, todavia, realizado o seu ideal racional no começo da
humanidade, no homem primitivo para o qual se deverá, ou mais ou menos, voltar. E se ele demole toda
religião positiva, inclusive o cristianismo, e, em definitivo, também a religião natural de um Deus
transcendente, substitui, todavia, a esta religião a religião humanista e imanentista da razão, cujo reino,
porém, se encontra neste mundo e na vida terrena.

Os Homens e os Problemas

A obra fundamental do iluminismo francês e europeu, em geral, é a Enciclopédia: Enciclopédie ou


dictionaire des sciences, des arts et des métiers. Foi publicada entre 1751 e 1780, em 34 volumes. Foi
dirigida por João D'Alembert (1717-1783), autor do famoso Discours préliminaire, e por Denis Diderot
(1713-1784) autor também de alguns escritos filosóficos - Pensées sur l'interprétation de la nature
(1754), etc. Entretanto colaboraram na enciclopédia os iluministas mais famosos, chamados por isso
enciclopedistas. Entre eles Voltaire e Rosseau. O movimento dos enciclopedistas foi um poderoso meio
para a difusão e vulgarização das idéias iluministas, na França e no estrangeiro.
A figura dominante do iluminismo francês é Francisco Maria Arouet, dito Voltaire (1694-1778). Viveu em
Londres entre 1726 e 1729, e aí escreveu as famosas Lettres sur les Anglais, trazendo para a França o
iluminismo. Caído na desgraça do Rei e da Corte da França, foi acolhido (1750-1753) por Frederico II, em
1755, retirou-se para Ferney, perto de Genebra, daí dominando o mundo da cultura européia. Entre as
suas obras, as que mais interessam à filosofia, são: Lettres sur les Anglais (1734); Métaphysique de
Newton (1740); Éléments de la Philosophie de Newton (1741); Candide ou de L'optimisme (1756);
Dictionnaire Philosophique (1764); Réponse ou Système de la nature (1777).
Pelo que diz respeito ao problema filosófico em geral, o iluminismo francês adere ao empirismo de Locke
desenvolvido no sensismo de Condillac, ou até no ceticismo. Pertence a esta última tendência Pedro
Bayle (1647-1706), autor do Dictionnaire Historique et Critique, meio eficaz de difusão do iluminismo
antes da grande enciclopédia. Bayle propagou a incredulidade pela Europa toda, sustentando a
irracionalidade da Revelação: mesmo contra a própria intenção do autor, que pretendia mostrar a
necessidade de se apoiar na Fé em face dos máximos problemas, sendo a razão humana impotente para
solucioná-los.
Assim, o mecanismo (empirista e racionalista) é levado até o materialismo por La Mettrie e D'Holbach,
atacados por Voltaire.
Julião Offrai de La Mettrie (1709-1751) é o autor do famoso livro L'homme machine; o barão Teodorico
D'Holbach (1723-1789), um alemão que viveu em Paris, é o autor do não menos famoso Système de la
nature, onde o materialismo se manifesta em cheio.
Acerca do problema religioso, a atitude iluminista é decididamente hostil à igreja católica e se propõe a si
mesma esmagá-la (écraser l'infâme): quer admita uma religião natural, com a crença em Deus, na
imortalidade da alma, nas sanções ultraterrenas, como sendo necessárias para a conservação da ordem
moral e política, segundo o ideal deísta (Voltaire); quer chegue até ao ateísmo e ao hedonismo, como,
por exemplo, a corrente iluminista chefiada por Cláudio Helvetius (1715-1771), autor do livro De l'Esprit.
Pelo que concerne aos problemas sociais e políticos, enfim, para os quais o iluminismo tinha
naturalmente um interesse especial, manifestam-se também duas atitudes: a do assim chamado
despotismo iluminado, isto é, do absolutismo racional, para o bem dos povos e da humanidade -
acredita-se na razão, mas não no povo que se quer elevar. Daí a necessidade da força a serviço da razão.
A outra atitude ou tendência é a que deriva do liberalismo constitucional. Esta corrente, pelo contrário,
manifesta confiança no povo ou, melhor, na burguesia, desejosa e capaz de liberdade. Característica
147
desta concepção política é a divisão absoluta dos poderes supremos: legislativo, executivo e
juduciário. O maior expoente dessa corrente é Carlos de Secondat, Barão de Montesquieu (1689-1755).
É o autor das Lettres persanes, das Considérations sur les causes de la grandeur des Romains et de leur
décadence, e do Esprit des lois. Nestes escritos se manifesta um racionalismo iluminista temperado,
desenvolvido em sentido historicista, concreto, pelo sentido de variedade das leis em relação às
condições dos povos.

Jean-Jacques Rosseau

A obra de Rosseau (1712-1778) que foi mal compreendida e que ainda o é nos meios do catolicismo
tradicional, na realidade representa uma reação espiritualista contra a filosofia das luzes e o otimismo dos
enciclopedistas, desses filósofos do "conventículo holbáquico" que ele destacava e pelos quais era odiado.
Em seu primeiro livro, Discurso sobre as Ciências e as Artes, ele escreve para responder a uma questão
que a Academia de Dijon colocara em concurso: Rosseau declara-se inimigo do progresso. Para ele, o
progresso das ciências e das artes tornou o homem vicioso e mau, corrompendo sua natureza íntima.
Freqüentemente se resume a tese de Rosseau aos seguintes termos: o homem é bom por natureza, a
sociedade o corrompeu. Não se fará, no Emílio, o campeão de uma pedagogia naturalista que confia
nas tendências espontâneas da criança, que atende às suas necessidades mais profundas, ao invés de
submetê-la a constrangimentos difíceis? (Nesse sentido, a pedagogia da chamada Escola Nova, fundada
nas tendências e nos centros de interesse espontâneos da criança, é uma pedagogia rousseauniana:
"Toda lição, dirá Dewey em nossos dias, deve ser uma resposta").
Mas seria uma grave erro confundir o "naturalismo" de Rosseau com o dos filósofos das luzes. Na
realidade, a moral e a filosofia de Rosseau, tais como se encontram em seu romance A Nova Heloísa
(1761) e na Profissão de fé do Vigário saboiano, peça mestra do Emílio (1762), recaem nos temas do
espiritualismo mais tradicional. É certo que a profissão de fé do Vigário suscitou as iras dos poderes
públicos e das igrejas constituídas. A obra será solenemente queimada, um mês apenas após sua
publicação, em Paris e em Genebra. O arcebispo de Paris condena-lo-á em célebre ordenação
(perseguido por toda parte, Rosseau só encontra refúgio na Inglaterra, junto a Hume, com quem, aliás,
se desentenderá pouco depois). É censurado por escolher a religião natural (aquela que o homem
encontra no próprio coração) e rejeitar a religião revelada. Não há dúvida de que ele declara que todas
as religiões são boas e que cada crente pode conseguir a salvação na sua (o que é contrário ao que, na
época, era pensado nas igrejas católicas e protestantes). Também é certo que ele desconfia das
interpretações que a Igreja possa dar dos Evangelhos ("quantos homens entre mim e Deus!"). No
entanto, prende-se ao ensinamento de Jesus, cujos atos, diz, são melhores atestados do que os da vida
de Sócrates. Rosseau adota o dualismo moral popular. "Somos tentados pelas paixões e detidos
pela consciência", essa consciência moral que, segundo ele, é uma exigência inata em nós e não,
como dizia Montaigne, o reflexo do costume. Para Rosseau, os maus triunfam neste mundo, ao passo
que o justo é infeliz. Todavia, a justiça divina recompensará os bons ("a vida da alma só começa com
a morte do corpo") e punirá os maus que são culpados de serem assim ("dependia deles não se
tornarem maus"). A Nova Heloísa apresenta-se como uma apologia da religião e da moral, dessa "lei
divina do dever e da virtude" em nome da qual a paixão amorosa se sacrifica heroicamente.
A teoria política de Rosseau, exposta no Contrato Social, aproxima-se bastante, aparentemente ao
menos, das idéias dos filósofos racionalistas. Nessa obra, Rosseau pesquisa as condições de um Estado
social que fosse legítimo, que não mais corrompesse o homem. O problema que ele coloca recai no de
Locke ou de d'Holbach: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda força comum
a pessoa e os bens da cada associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, porém,
senão a si próprio e permaneça tão livre quanto antes; ete, o problema fundamental cuja solução é dada
pelo contrato social". Todavia, o pacto social não tem por fim conciliar todos os interesses egoístas, mas
antes depreender (o que é possível com a maioria das vozes, nos debates do povo reunido) uma vontade
geral. Esta última faz abstração dos interesses divergentes e das paixões de cada um para só cuidar do
bem comum. Entenda-se bem: "cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular
contrária ou dessemelhante da vontade geral que ele tem como cidadão". Por conseguinte,
148
nessa vontade geral descobriremos outra coisa que não o interesse, o desejo de felicidade, etc.
Encontraremos aí, no fundo, a regra da consciência, esse juízo inato do bem e do mal que cada um
descobre em si mesmo, quando dissipa seus desejos egoístas "no silêncio das paixões".

A Consciência segundo Rosseau


(Profissão de Fé do Vigário Saboiano)

Não tiro dessas regras, os princípios de uma alta filosofia, mas as encontro, no fundo do meu coração,
escritas pela natureza em caracteres indeléveis. Basta-me consultar-me sobre o que quero fazer; tudo o
que sinto ser bem é bem e tudo o que sinto ser mal é mal: o melhor de todos os casuístas é a
consciência; e só quando se comercia com ela é que se recorre às sutilezas do raciocínio. O primeiro de
todos os cuidados é o consigo mesmo: todavia, quantas vezes a voz interior nos diz que, ao fazer nosso
bem a expensas de outrem, fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e lhe resistimos,
escutando o que ela diz dos nossos sentidos, desprezamos o que diz aos nossos corações; o ser ativo
obedece e o ser passivo ordena. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. É
espantoso que muitas vezes essas duas linguagens se contradigam? A qual delas se deve ouvir? A razão
freqüentemente nos engana, não temos senão o direito de recusá-la; mas a consciência nunca engana; é
o verdadeiro guia do homem: ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo(¹); quem a
segue, obedece a natureza e não teme se perder. Este ponto é importante, proseguiu meu benfeitor,
vendo que eu ia interrompê-lo: esperai que eu me detenha um pouco mais a esclarecê-lo.
A moralidade de nossas ações está no juízo que delas fazemos. Se é verdade que o bem seja bem, ele o
deve ser tanto no fundo de nossos corações quanto em nossas obras, e o maior prêmio da justiça é
sentir que a praticamos. Se a bondade moral concorda com nossa natureza, o homem não poderia ser
são de espírito, nem bem constituído, se não fosse bom. Se não concorda, então o homem é
naturalmente mau e não o pode deixar de ser sem se corromper; a bondade não seria senão um vício
contra a natureza. Feito para prejudicar seus semelhantes, assim como o lobo para devorar sua presa, o
homem humano seria um animal tão depravado quanto um lobo desprezível; e a virtude só nos deixaria
remorsos.
Penetremos em nós mesmos, oh, meu jovem amigo! Examinemos, deixando à parte qualquer interesse
pessoal, para onde nossas tendências nos conduzem. Qual o espetáculo que mais nos envaidece, o dos
tormentos ou o da felicidade de outrem? Que é que nos é mais doce fazer e que nos deixa agradável
impressão após o ter feito, um ato benfazejo ou um ato malfazejo? Por quem vos interessais mais em
vossos teatros? É com a maldade que vos divertis? É com seus autores punidos que derramais lágrimas?
Tudo nos é indiferente, dizem eles, exceto nosso interesse; quando, ao contrário, as doçuras da amizade
humana nos consolam em nossas penas; e mesmo em nossos prazeres, estaríamos demaisados sós e
seríamos demasiados miseráveis se não tivéssemos com quem os dividir. Se nada existe de moral no
coração do homem, de onde, então, provêm esses transportes de admiração pelas ações heróicas, esses
transportes de amor pelas grandes almas. Esse entusiasmo da virtude, qual a relação que ele tem com
nosso interesse privado? Por que eu preferiria ser Catão, que rasga as entranhas, do que César
triunfante? Tirai de nossos corações esse amor ao belo, que tirareis todo o encanto da vida. Aquele cujas
paixões vis sufocaram esses sentimentos deliciosos em sua alma estreita; aquele que, à força de se
concentrar dentro de si, acaba por amar apenas a si mesmo, não mais tem transportes e seu coração
congelado não mais palpita de alegria, assim como uma doce trnura nunca umedece seus olhos; não
goza mais nada; o infeliz não sente mais, não vive mais, já está morto.
(¹) A filosofia moderna, que só admite o que explica, não deixa de admitir essa obscura faculdade
chamada instinto que parece guiar os animais, sem qualquer conhecimento adquirido, no sentido de
algum fim. O instinto, segundo um de nossos mais sábios filósofos (Condillac), nada mais é do que um
hábito privado de reflexão, mas adquirido por reflexão; a maneira pela qual ele explica esse progresso
obriga-nos a concluir que as crianças refletem mais do que os adultos, paradoxo muito estranho para
valer a pena ser examinado. Sem entrar aqui nessa discussão, pergunto que nome devo dar ao ardor
com que meu cão faz guerra às toupeiras que não come, à paciência com que as guarda, jogando-as por
terra no momento em que saltam, matando-as em seguida para deixá-las ali, sem que jamais alguém o
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tenha dirigido para essa caça ou lhe ensinado que existem toupeiras. Pergunto ainda, e isso é mais
importante, por que, na primeira vez em que ameacei esse mesmo cão, ele se atirou de costas no chão,
as patas dobradas, numa atitude suplicante e mais própria para me comover, postura em que não
permaneceria se, sem me deixar dobrar, eu lhe batesse. Quê?! meu cão, pequenino, mal acabado de
nascer, já teria adquirido idéias morais? Sabia o que era clemência e generosidade? Em virtude de que
luzes adquiridas esperava me acalmar, abandonando-se assim à minha discrição? Todos os cães do
mundo fazem quase o mesmo no mesmo caso, e nada falo aqui que não possa ser verificado por todos.
Que os filósofos, que tão desdenhosamente rejeitam o instinto, queiram explicar esse fato apenas pelo
jogo das sensações e dos conhecimentos que elas nos fazem adquirir; que o expliquem de maneira
satisfatória para todo homem sensato; então não teria mais nada a dizer e não mais falarei de instinto.
(Nota de Rosseau)

Leibniz

Vida e Obra

Gottfried Wilhelm Leibniz nasceu em Leipzig, a 1° de julho de 1646, filho de um professor de filosofia
moral. Desde muito cedo, teve contato, na biblioteca paterna, com filósofos e escritores antigos, como
Platão (428-347 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.) e Virgílio (c. 70-19 a.C.), e com a filosofia e a teologia
escolásticas. Aos quinze anos começou a ler Bacon (1561-1626), Hobbes (1588-1679), Galileu (1564-
1642) e Descartes (1596-1650), passando a dedicar-se às matemáticas. Ainda aluno da Universidade de
Leipzig, escreveu, em 1663, um trabalho sobre o princípio da individuação; depois foi para Iena, a fim de
seguir os cursos do matemático Ehrard Wigel. Desde essa época, Leibniz se preocupou em vincular a
filosofia às matemáticas escrevendo uma Dissertação Sobre a Arte Combinatória. Nesse trabalho
procurou encontrar para a filosofia leis tão certas quanto as matemáticas e esboçou as premissas do
cálculo diferencial, que inventaria ao mesmo tempo que Newton. Por outro lado, no estudo da lógica
aristotélica, Leibniz encontrou os elementos que o levaram à idéia de uma análise combinatória filosófica,
vislumbrando a possibilidade de cria um alfabeto dos pensamentos humanos, com o qual tudo poderia
ser descoberto.
Nos anos seguintes, doutorou-se em direito na Universidade de Altdorf e, em Nuremberg, filiou-se à
Sociedade Rosa-Cruz. O ingresso nessa Sociedade valeu-lhe uma pensão e, ao que tudo indica, permitiu
que ele se iniciasse na vida política.
A partir de então, a vida de Leibniz, segundo o historiador Windelband, apresenta muitas semelhanças
com a de Bacon: Leibniz sabia mover-se agilmente em meio às intrigas da corte a fim de realizar seus
grandes planos, sendo dotado também daquela "ardente ambição que levara Bacon à ruína".
Em 1667, Leibniz dedicou ao príncipe-eleitor de Mogúncia um trabalho no qual mostrava a necessidade
de uma filosofia e uma aritmética do direito e uma tabela de correspondência jurídica. Por causa desse
trabalho, foi convidado para fazer a revisão do "corpus juris latini".
Em 1670, foi nomeado conselheiro da Alta Corte de Justiça de Mogúncia. Com esse título, Leibniz foi
encarregado de uma missão em Paris, em 1672. Pretendia convencer o rei Luís XIV a conquistar o Egito,
aniquilando, assim, a Turquia e protegendo a Europa das invasões "bárbaras". Esperava, desse modo,
desviar as atenções do rei e evitar que ele utilizasse sua potência militar contra a Alemanha. Seu projeto
foi rejeitado, mas os três anos de estada em Paris não lhe foram inúteis. Entrou em contato com alguns
dos mais conhecidos intelectuais da época: Arnauld (1612-1694), Huygens (1629-1695). Em 1676,
Leibniz descobriu o cálculo diferencial, situando-se entre os maiores matemáticos da época.
Fora, no entanto, precedido por Newton, que, desde 1665, já inventara, embora sob ponto de vista
diferente, um novo método de cálculo, o método das fluxões. Em Newton, as variações das funções são
comparadas ao movimento dos corpos, sendo, portanto, a idéia de velocidade que fundamentava seu
cálculo. Leibniz, ao contrário, parte de uma colocação metafísica, introduzindo a noção de quantidades
infinitamente pequenas, o que o leva a empregar o algoritmo.
Em 1676, Leibniz encontra-se em Amsterdam com Espinosa, com quem discute problemas metafísicos.
No mesmo ano torna-se bibliotecário-chefe em Hanôver, cidade na qual passaria ao restantes quarenta
150
anos de sua vida. Saiu de Hanôver apenas para percorrer, durante três anos, a Alemanha e a Itália,
realizando pesquisas em bibliotecas e arquivos destinadas a fundamentar suas missões diplomáticas.
Em 1711, viajou para a Rússia a fim de propor ao czar Pedro, o Grande, um plano de organização civil e
moral para o país. Em seguida, esteve em Viena, onde conheceu o príncipe Eugênio de Savóia, ao qual
dedicaria a Monadologia. Nessa época, realizou seus principais trabalhos filosóficos.
De volta a Hanôver, Leibniz encontrou diminuído seu prestígio, com a morte de sua protetora, a princesa
Sofia, apesar de ter sido um dos maiores responsáveis para que Hanôver se transformasse em eleitorado
e para que fosse criada a Academia de Ciências de Berlim. Relativamente esquecido e isolado dos
assuntos públicos, Leibniz veio a falecer a 14 de novembro de 1716.

Racionalismo e Finalismo

Apesar de sua intensa e agitada vida pública, Leibniz deixou uma obra extensa, em que trata de quase
todos os assuntos políticos, científicos e filosóficos de seu tempo. Dentre seus escritos destacam-se:
Sobre a Arte Combinatória, Monadologia, Discurso de Metafísica, Novos Ensaios Sobre o Entendimento
Humano, Sobre a Origem Radical das Coisas, O que é Idéia, Cálculo Diferencial e Integral, Característica
Universal, Correspondência com Arnauld, Correspondência com Clarke, Sobre o Verdadeiro Método em
Filosofia e Teologia, Sobre as Noções de Direito e de Justiça, Ensaio de Teodicéia, Considerações Sobre o
Princípio da Vida, Sobre a Sabedoria, Sobre a Liberdade e Correspondência com Padre Bosses.
Parte considerável da obra de Leibniz e constituída por escritos de circunstância, com os quais – segundo
muitos historiadores – tentava apenas obter favores dos governantes, fazendo todas as conciliações
possíveis. Dilthey, ao contrário, considera que Leibniz perseguia um sincero ideal de síntese de todos os
conhecimentos e das diferentes confissões religiosas de seu tempo. Outra parte (a volumosíssima
correspondência e os trabalhos publicados somente após sua morte) revela – segundo Russel e outros –
um pensador bastante diferente do Leibniz público Acrescentando-se a essa dupla face de seus escritos o
fato de que muitos deles sequer foram concluídos, torna-se bastante difícil uma interpretação da filosofia
leibniziana que não dê margem a dúvida e não suscite polêmica.
De qualquer modo – e embora Leibniz tenha criado um amplo sistema de idéias dotado de "múltiplas
entradas" –, pode-se tomar para ponto de partida da compreensão da sua filosofia dois temas
provenientes de fontes distintas: um da filosofia de Descartes, outro de Aristóteles e da escolástica
medieval.
Descartes forneceu-lhe o ideal de uma explicação matemática do mundo; a partir dessa idéia, Leibniz
pretendia lançar as bases de uma combinatória universal, espécie de cálculo filosófico que lhe permitiria
encontrar o verdadeiro conhecimento e desvendar a natureza das coisas. De Aristóteles e da escolástica,
Leibniz conservou a concepção segundo a qual o universo está organizado de maneira teleológica, ou
seja, tudo aquilo que acontece, acontece para cumprir determinados fins.
As duas doutrinas foram sintetizadas pela filosofia de Leibniz, aparecendo unificadas na concepção de
Deus. Para Leibniz, a vontade do Criador (na qual se fundamenta o finalismo) submete-se ao Seu
entendimento (racionalismo); Deus não pode romper Sua própria lógica e agir sem razões, pois estas
constituem Sua natureza imutável. Conseqüentemente, o mundo criado por Deus estaria impregnado de
racionalidade, cumprindo objetivos propostos pela mente divina.
Essa síntese entre o racionalismo cartesiano e o finalismo aristotélico apresenta como núcleo uma série
de princípios de conhecimento, dos quais se poderiam deduzir uma concepção do mundo e uma ética
dotada inclusive de implicações políticas.
O primeiro desses princípios é o de razão. O princípio de razão consiste em submeter toda e qualquer
explicação ou demonstração a duas exigências. A primeira funda-se no caráter não-contraditório daquilo
que é explicado ou demonstrado; é a razão necessária ou princípio de não-contradição. A Segunda
exigência consiste em que, além de explicado ou demonstrado não ser contraditório (e sendo, portanto,
possível sua existência), a coisa em questão também existe realmente; é a razão suficiente. O princípio
de razão afirma, portanto, que uma coisa só pode existir necessariamente se, além de não ser
contraditória, houver uma causa que a faça existir.
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Para Leibniz, além da causa eficiente que produz as coisas segundo o princípio de razão (não-
contadição e suficiência), intervém também nessa produção a causa final. A primeira é de tipo
matemático e mecânico, a Segunda é dinâmica e moral. O fim da produção das coisas é a vontade justa,
boa e perfeita de Deus, que deseja essa produção. O finalismo é que sustenta o princípio do melhor:
Deus calcula vários mundos possíveis, mas faz existir o melhor desses mundos. O critério do melhor é
sobretudo moral; com ele Leibniz pretende demonstrar que o mal é a simples sombra necessária do bem.
O finalismo sustenta, desse modo, o otimismo leibniziano do melhor dos mundos possíveis.
Além dos princípios de razão (não-contadição e suficiência) e do princípio do melhor, que dão conta da
produção das coisas, Leibniz faz com que intervenham também os princípios da continuidade e dos
indiscerníveis.
O princípio da continuidade afirma que a natureza não dá saltos; assim como não há vazios no espaço,
assim também não existem descontinuidades na hierarquia dos seres. Leibniz afirma, por exemplo, que
as plantas não passam de animais imperfeitos.
O princípio dos indiscerníveis daria conta da multiplicidade e individualidade das coisas existentes. Leibniz
afirma que não há no universo dois seres idênticos e que sua diferença não é numérica nem espacial ou
temporal, mas intrínseca, isto é, cada ser é em si diferente de qualquer outro. A diferença é de essência
e manifesta-se no plano visível das próprias coisas.
Os princípios do melhor, da não-contradição, da razão suficiente, da continuidade e dos indiscerníveis são
considerados, por Leibniz, constitutivos da própria razão humana e, portanto, inatos, embora apenas
virtualmente. Nos Novos Ensaios Sobre o Entendimento Humano, Leibniz rejeita a teoria empirista de
Locke (1632-1704), segundo a qual a origem das idéias encontra-se na experiência, apenas uma "tabula
rasa", uma folha de papel em branco. Para Leibniz, ao contrário, a experiência só fornece a ocasião para
o conhecimento dos princípios inatos ao intelecto: "Não se deve imaginar que se possa ler na alma, sem
esforços e sem pesquisa, essas eternas leis da razão, como o édito do pretor é lido em seu caderno; mas
é bastante que as descubramos em nós por um esforço de atenção, uma vez que as ocasiões são
fornecidas pelos sentidos". Os empiristas teriam razão ao afirmar que as idéias surgem do contato com o
mundo sensível, mas errariam ao esquecer o papel do espírito. Por isso, Leibniz completa a fórmula de
Locke – "Nada há no intelecto que não tenha passado primeiro pelos sentidos" – com o adendo "a não
ser o próprio intelecto".

Os Fundamentos da Monadologia

Os princípios do conhecimento formulados por Leibniz levaram-no a uma concepção do mundo oposta à
cartesiana. Enquanto Descartes formula uma concepção geométrica e mecânica dos corpos, Leibniz
constrói uma concepção dinâmica. Nesse sentido, explica os seres não como máquinas que se movem,
mas como forças vivas: "Os corpos materiais, por sua resistência e impenetrabilidade, revelam-se não
como extensão mas como forças; por outro lado, a experiência indica que o que se conserva num ciclo
de movimento não é – como pensava Descartes – a quantidade do movimento, mas a quantidade de
força viva". A partir da noção de matéria como essencialmente atividade, Leibniz chega à idéia de que o
universo é composto por unidades de força, as mônadas, noção fundamental de sua metafísica. Essa
noção, contudo, não se esgota na adição do atributo força ao conceito da matéria, formulado por
Descartes. Leibniz chega também à noção de mônada mediante a experiência interior que cada indivíduo
tem de si mesmo e que o revela como uma substância ao mesmo tempo una e indivisível.
As notas que caracterizam as mônadas leibnizianas são a percepção, a apercepção, a apetição e a
expressão. Pela percepção as mônadas representam as coisas do universo; cada uma de per si espelha o
universo todo. A apercepção é a capacidade que a mônada espiritual tem de auto-representar-se, isto é,
de refletir; a mônada é a consciência. A apetição consiste na tendência de cada mônada de fugir da dor e
desejar o prazer, passando de uma percepção para outra. Finalmente, as mônadas, não tendo "portas
sem janelas", não recebem seus conhecimentos de fora, mas têm o poder interno de exprimir o resto do
universo, a partir de si mesmas; a mônada é um ponto de vista.
Cada representação por parte das mônadas é um reflexo obscuro, jamais havendo consciência clara de
todas as impressões. Isto se deve ao fato de que o universo é múltiplo e infinito, enquanto toda a
152
substância, isto é, toda mônada, com exceção de Deus, é necessariamente finita. Portanto, não é
possível "que nossa alma (mônada superior) possa atingir tudo em particular". O corpo humano, para
Leibniz, é afetado, de alguma forma, pela mudança de todos os outros; todos os seus movimentos
correspondem certas "percepções" ou pensamentos mais ou menos confusos da alma. Assim, a alma
também tem algum pensamento de todos os movimentos do universo. "É verdade", diz Leibniz, "que não
nos apercebemos distintamente de todos os movimentos de nosso corpo, como por exemplo o da linfa
(...), mas é preciso que eu tenha alguma percepção do movimento de cada vaga de um rio, a fim de
poder me aperceber daquilo que resulta de seu conjunto, isto é, esse grande ruído que se escuta perto
do mar".
A percepção consciente (apercepção) resulta do conjunto das "pequenas percepções", como o ruído do
choque de duas gotas de água, que se deve ouvir mesmo sem ter consciência. Isso explicaria a
conservação das lembranças, o trabalho da imaginação nos "bastidores da consciência", assim como a
realidade dos sonhos, mesmo quando esquecidos no estado de vigília. Dessa forma, os estados
sucessivos da alma estariam ligados uns aos outros e a todo universo.
O inconsciente seria inerente a todas as substâncias criadas e seus diferentes graus seriam paralelos aos
graus de perfeição dessas substâncias; a continuidade existente entre os seres não anula a diferença de
natureza entre as simples mônadas e os espíritos. Leibniz afirma ainda que existem dois tipos de
inconscientes: o inconsciente de percepção, próprio das simples mônadas enquanto são apenas "espelhos
do universo", e o inconsciente da imitação, pertencente apenas aos espíritos enquanto não são apenas
espelhos, mas espelhos dotados de reflexão. A razão dessa diferença, encontra-se no fato de que as
mônadas não possuem o mesmo grau de perfeição: acima das "mônadas nuas" (corpos brutos que só
têm percepções inconscientes e apetições cegas) existem "mônadas sensitivas" (animais dotados de
apercepções e desejos) e as "mônadas racionais", com consciência e vontade.

O Melhor dos Mundos Possíveis

O racionalismo leibniziano tende à constituição de um saber globalizador, de uma mathesis universalis.


Do ponto de vista lógico, o sistema de Leibniz estrutura-se como um conjunto de múltiplas séries que
convergem e se entrecruzam; cada ponto de uma das séries é definido, dentro da complexa teia, por seu
lugar, sua posição; por conseguinte, o conjunto todo organiza-se numa topologia. A noção de ordem, em
Leibniz, assume feição diferente da que possuía em Descartes: desliga-se da de nexo linear e passa a se
vincular à noção de "situação" (as situações resultantes das diversas séries que se entrecruzam). O
sistema todo, assim estruturado, conduz à possibilidade de tradução de uma ordem em outra. O
pluralismo das séries convergentes que constituem o universo pode assim apresentar-se como pluralismo
conciliado e harmônico. Em Leibniz, revive o modelo estóico: o universo é concebido à semelhança de um
organismo pleno, cujas partes convivem numa harmonia natural e onde tudo é análogo a tudo.
Para Leibniz, os atos de cada mônada foram antecipadamente regulados de modo a estarem adequados
aos atos de todas as outras; isso constituiria a harmonia preestabelecida.
A doutrina leibniziana da harmonia preestabelecida sustenta que Deus cria as mônadas como se fossem
relógios, organiza-os com perfeição de maneira a marcarem sempre a mesma hora e dá-lhes corda a
partir do mesmo instante, deixando em seguida que seus mecanismos operem sozinhos. Assim, Deus
teria colocado em cada mônada, no instante da criação, todas as suas percepções, criando-as de tal
modo que cada uma se desenvolve como se estivesse só; seu desenvolvimento, todavia, corresponde, a
cada instante, exatamente ao de todas as outras. Graças a essa harmonia preestabelecida, os pontos de
vista de cada mônada sobre o universo concordariam entre si. Ao mesmo tempo, Deus escolhe o melhor
dos mundos dentre todos aqueles que se apresentam como possíveis. Coloca-se então a questão: como
explicar a presença do mal no mundo?
Leibniz tentou responder a esse problema, afirmando inicialmente que o mal se manifesta de três modos:
metafísico, físico e moral. O mal metafísico seria a fonte do mal moral, e deste decorreria o mal físico.
O mal metafísico é a imperfeição inerente à própria essência da criatura, pois se ela não fosse imperfeita,
seria o próprio Deus. A imperfeição metafísica original de definiria, assim, apenas como uma não-
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perfeição, metafísica original se definiria, assim, apenas como uma não-perfeição, um não-ser,
retomando Leibniz a concepção neoplatônica e agostiniana.
O mal metafísico é a raiz do mal moral, pois aquilo que é perfeito pode contemplar o Bem, sem
possibilidade de erro, mas uma substância imperfeita não é capaz de aprender o todo, tem percepções
inadequadas e se deixa envolver pelo confuso. Não se deveria, contudo, responsabilizar o criador pela
existência do mal, porque Deus proporciona a todos as mesmas graças, mas cada um pode se beneficiar
delas de acordo com sua limitação original. Leibniz afirma que, assim como a correnteza é a causa do
movimento do barco, mas não de seu atraso, assim também Deus é a causa da perfeição da Natureza,
mas não de seus defeitos. Ao produzir o mundo tal como ele é, Deus escolheu o menor dos males, de tal
forma que o mundo comporta o máximo de bem e o mínimo de mal. Na própria origem das coisas, diz
Leibniz, exerce-se uma certa matemática divina, ou mecânica metafísica, responsável pela determinação
do máximo de existência, tão rigorosa quanto as dos máximos e mínimos matemáticos ou as leis do
equilíbrio.
O mal físico é entendido por Leibniz como conseqüência do mal moral, podendo ser considerado, ao
mesmo tempo, uma conseqüência física da limitação original e uma conseqüência ética, isto é, punição
do pecado. Em decorrência da harmonia preestabelecida, a dor física seria expressão da dor metafísica,
que a alma experimenta por causa de sua imperfeição. Segundo Leibniz, Deus autoriza o sofrimento
porque este é necessário para a produção de um Bem Superior: "Experimenta-se suficientemente a
saúde, sem nunca se ter estado doente? Não é preciso que um pouco de Mal torne o Bem sensível, isto
é, Maior?"
A teoria do Mal, formulada por Leibniz, concluiria assim sua tentativa de síntese sistemática de uma
filosofia que concebe o mundo como rigorosamente racional e como o melhor dos mundos possíveis.
Algumas passagens das obras do próprio Leibniz, contudo, deixam uma réstia de dúvida sobre seu
otimismo: "Pode-se duvidar se o mundo avança sempre em perfeição ou se avança e recua por períodos.
(...) Pode-se pois questionar se todas as criaturas avançam sempre, ao menos no final de seus períodos,
ou se existem também aquelas que perdem e recuam sempre, ou, enfim, se existem aquelas que
realizam períodos no final dos quais percebem não ter ganho nem perdido; da mesma forma que existem
linhas que avançam sempre, como a reta, outras que voltam sem avançar ou recuar, como a circular,
outras que voltam e avançam ao mesmo tempo, como a espiral, outras, finalmente, que recuam depois
de terem avançado, ou avançam depois de terem recuado, como as ovais".

A Renascença

Características Gerais

A Renascença é uma poderosa afirmação, particularmente no campo da prática, de humanismo e de


imanentismo, o que é manifestado pelo seu individualismo, pelo seu estetismo, pelo seu ardente
interesse pelo mundo a conquistar, dominar, gozar com meios humanos; pelo seu naturalismo que
diviniza o homem material - como já aconteceu no paganismo antigo, para o qual o Humanismo, de fato,
apela, e de que parece um retorno. Entretanto, falta ao Humanismo moderno a espontaneidade e a
serenidade do paganismo antigo: o Humanismo moderno não descansará em um tranqüilo gozo da vida,
mas procurará alimento no ativismo agitado e sem meta, característico da idade moderna.
O Humanismo pode, com razão, definir-se pela palavra: o homem potenciado, celebrado, exaltado até à
divindade, livre de si mesmo, dominador da natureza, senhor do mundo. É, logo, um paganismo ainda
mais radical que o antigo, porquanto espiritual e interior. Dar uma documentação formal desse caráter
pagão, imanentista, do Humanismo e da Renascença não é coisa fácil, pois trata-se de um período inicial,
em que se entretecem motivos multíplices, e, sobretudo, o velho persiste ao lado do novo, dando origem
àquela duplicidade especulativa e prática, tão característica dos homens da época.
Mas o início do Humanismo e da Renascença é rico de todos os germes que se desenvolverão no
sucessivo período moderno, imanentista, em que se poderá claramente conhecer a árvore pelos frutos. É
uma multiplicidade de motivos indiscutivelmente dominada pelo espírito panteísta do neoplatonismo, que
atravessou toda a Idade Média; entretanto, na Idade Média, tal espírito era corrigido, religiosamente,
154
pela teologia católica e, racionalmente, pela escolástica tomista. É uma dualidade composta de velho
e de novo, em que não será difícil separar o elemento interior do elemento exterior: se se considerar, em
geral, o ideal da vida daquela época, que chamava virtude a força, e enaltecia não o Pobrezinho de Assis
e sim o Príncipe Valentino; se se tiver presente Nicolau Machiavelli, que - sem possuir uma metafísica
consciente - está persuadido de que o Estado, mera obra do homem, é o vértice da humanidade, estando
acima da religião e da moral transcendente, e prefere o paganismo ao cristianismo; se se pensar em
Giordano Bruno, o maior filósofo da época, o qual parece reconhecer a obscuridade e a incoerência do
seu pensamento, mas tem consciência de que a sua doutrina - racionalista, monista e humanista - é um
crepúsculo preludiando o dia e não a noite.
Essa é a alma, o significado, não o valor, do Humanismo e da Renascença: uma alma pagã. Não há, ao
lado do humanismo pagão, um humanismo cristão, que seria uma contradição em termos. Esses
elementos são essencialmente formais e estéticos porque a grande valorização cristã da civilização
clássica - do pensamento grego e do jus romano - era já um fato consumado. E os elementos novos do
humanismo - a ciência, a técnica, a história, a política - não se podem dizer imanentistas antes que
cristãos, pois, em si mesmos, são infrafilosóficos, e, portanto, indiferentes a qualquer concepção da
realidade.
O renascimento cristão, a unidade real e potencial dos grandes valores da civilização no valor sumo da
religião, não é obra dos séculos XV e XVI, mas do século que se abre com Inocêncio III e se encerra com
Dante, e viu Francisco de Assis e Antonio de Lisboa, Domingos de Gusmão e Tomás de Aquino.

O Renovamento das Antigas Escolas Filosóficas

Uma das manifestações características da Renascença é o renovamento das antigas escolas filosóficas,
clássicas, gregas. Na Idade Média o pensamento clássico foi bem conhecido e valorizado. No entanto, tal
conhecimento e valorização diziam respeito aos maiores filósofos gregos, em especial a Aristóteles.
Na Renascença, ao contrário, volta-se à sancta antiquitas, em oposição ao espírito cristão. E valorizam-se
as antigas escolas filosóficas, realçando-lhes o conteúdo de humanidade, presente em todas elas, não
obstante a variedade de suas orientações. Naturalmente não são, nem podiam ser, as escolas filosóficas
clássicas em sua espontaneidade original, pois, entre a classicidade e a Renascença, medeiam quinze
séculos, profundamente influenciados pela mensagem cristã. E, após o aparecimento da Cruz, já não é
mais possível o retorno à serenidade clássica de Aristóteles ou ao ascetismo imanentista dos estóicos.
Na Renascença são representadas, mais ou menos, todas as escolas filosóficas antigas: o platonismo, o
aristotelismo, o estoicismo, o epicurismo, o ceticismo e o ecletismo. Especialmente as duas primeiras e,
entre estas, precipuamente a primeira. O aristotelismo da Renascença exclui, naturalmente, a
interpretação de Aristóteles dada por Tomás de Aquino, e sustenta ou a interpretação naturalista de
Alexandre de Afrodísia, ou a panteísta de Averroés. O platonismo é, mais propriamente, neoplatonismo:
já porque assim se tinha fixado na antigüidade e neste sentido influenciara toda a Idade Média (pseudo
Dionísio Areopagita, Scoto Erígena, Mestre Eckart); já porque a sua fundamental concepção panteísta e o
seu potenciamento do espírito humano podiam melhor corresponder ao imanentismo e humanismo da
Renascença.

O Platonismo

O ídolo da Renascença é Platão: artista e dialético, teórico do amor e da beleza, iniciador da ciência
matemática da natureza. Em 1404 Leonardo Bruni aretino (1369-1440) publicava a primeira tradução
parcial de Platão, iniciando, destarte, a renascença platônica. Em 1429 o camaldulense frei Ambrósio
Traversari, de volta de Constantinopla, levava para a Itália o conjunto completo dos escritos platônicos.
Entretanto foi o Concílio de Florença (1439) que deu um impulso decisivo aos estudos platônicos na Itália
¾ bem como aos estudos aristotélicos e dos filósofos clássicos, em geral. Esse Concílio foi convocado
para a união da igreja grega com a igreja latina, e chamou para a Itália vários doutores orientais,
conhecedores profundos de Platão. Outros vieram pouco depois, devido à queda de Constantinopla
155
(1453) em mãos dos turcos. Famoso é Jorge Gemistos Pleton (1355-1450), autor da obra Sobre a
Diferença da Filosofia Platônica e Aristotélica, que, realmente, é uma polêmica antiaristotélica.
Esse escrito provocou uma resposta violenta ao aristotélico Jorge de Trebizonda (Comparatio Platonis et
Aristotelis). Este filósofo - apelando também para Tomás de Aquino - sustenta a superioridade de
Aristóteles sobre Platão pelo seu espírito científico, pela sua doutrina em torno de Deus e da alma, e pela
conseqüente possibilidade de concordar a sua filosofia com o cristianismo.
Da parte platônica, replicou contra Jorge de Trebizonda o seu concidadão Basílio Bessarione (1403-1472)
com o escrito In calumniatorem Platonis. Bessarione, eminente prelado da igreja oriental, veio para a
Itália com o séqüito do imperador João VII Paleólogo, para tratar da unificação da igreja grega com a
igreja latina. Foi feito cardeal pelo Papa Eugênio IV e permaneceu na Itália, cooperando eficazmente para
o incremento do ressuscitado helenismo.
Depois desse platonismo de importação oriental, na Segunda metade do século XV surge e firma-se um
platonismo italiano. O centro foi precisamente Florença, onde foi celebrado o famoso Concílio. Seu
principal representante foi Marsílio Ficino, animador da célebre academia platônica florentina. Esta
academia nasceu graças a um cenáculo de literatos, artistas e pensadores, amigos da casa De Médicis.
Fizeram parte deste cenáculo Poliziano, Pulci, João Pico della Mirandola e o próprio Lourenço, o
Magnífico.
Marcílio Ficino nasceu em 1433 em Figline Valdarno. Protegido por Cosme De Médices, que o
presenteou com uma Quinta, onde teve sua sede a academia platônica, pode consagrar toda a sua vida
aos prediletos estudos filosóficos. Em 1473 foi ordenado padre e a sua vida foi muito austera no meio de
Florença do século XV. Faleceu em 1499.
Sua atividade principal foi traduzir. Traduziu elegantemente, para o latim, Platão (1477) e Plotino (1485),
além de outros neoplatônicos. Expôs o seu pensamento em uma grande obra (Theologia platonica de
immortalitate animorum - 1491), em que procura concordar o platonismo, de que era entusiasta, com o
cristianismo, em que acreditava seriamente. Entretanto não foi um metafísico, mas um eclético e suas
finalidades eram morais. Sua idéia animadora é a exaltação do homem como microcosmo, síntese do
universo: conceito antigo, neoplatônico, mas que teve no humanismo do Renascimento um valor e um
significado particulares. Outra idéia sua inspiradora é o conceito de uma continuidade do
desenvolvimento religioso, que vai desde os antigos sábios e filósofos - Zoroastro, Orfeu, Pitágoras,
Platão - até o cristianismo: expressão do universalismo religioso da Renascença.
Depois de Marsílio Ficino, o mais famoso platônico pode ser considerado João Pico della Mirandolla
(1463-1494), autor de De dignitate hominis, que professa verdadeiramente um ecletismo baseado no
platonismo e no cabalismo. Dotado da mais vasta e heterogênea cultura, após várias peregrinações,
estabeleceu-se em Florença junto de Lourenço, o Magnífico. Aí entrou em contato com Marsílio Ficino,
que influiu no seu temperamento exuberante e passional, equilibrando-o filosófica e religiosamente.
"Blasonava de poder disputar de omni rescibili - escreve Franca - e foi tido por seus contemporâneos
como um prodígio de memória. Aos 18 anos sabia 22 línguas"!

O Aristotelismo

Não é sempre fácil distinguir o aristotelismo do platonismo da Renascença, porquanto, freqüentemente,


aparecem confusos no sincretismo neoplatônico, que é a tendência especulativa dominante na época.
Também o aristotelismo, como o platonismo, teve impulso, graças aos sábios gregos vindos para a Itália,
tradutores de Aristóteles e dos seus comentadores, entre os quais lembramos, no século XV, Teodoro de
Gaza e o já mencionado Jorge de Trebizonda.
Como já foi dito, o aristotelismo da Renascença se distingue em duas correntes principais: a naturalista
inspirando-se em Alexandre Afrodísio, e a panteísta-neoplatônica, inspirando-se em Averroés, ambas
contrárias à interpretação tomista-cristã. Prevalece a escola alexandrina, cujo imanentismo naturalista é
mais conforme ao espírito do Renascimento. A escola averroísta, entretanto, considerando o intelecto
humano como sendo a atividade de uma essência transcendente e divina, contrasta o humanismo
imanentista da mesma Renascença.
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O mais famoso entre esses novos aristotélicos é Pedro Pomponazzi, alexandrista, nascido em
Mântua em 1462, professor de filosofia nas universidades de Pádua, Ferrara e Bolonha, onde faleceu em
1525. É célebre o seu opúsculo Sobre a Imortalidade da Alma, publicado em Bolonha em 1516. Neste
opúsculo conclui em favor da mortalidade da alma, sustentando que esta realiza o seu fim último na vida
terrena. Para conciliar, pois, esse seu racionalismo com a religião cristã, recorre a certas distinções que
relembram a velha teoria averroísta das duas verdades: a religião é, no fundo, justificada como sendo a
filosofia do vulgo, para finalidade prática e pedagógica.
Respondiam a Pomponazzi, Nifo (averroísta) e Contarini (tomista) com dois ensaios tendo o mesmo título
(Sobre a Imortalidade da Alma); e Pomponazzi replica como uma Apologia (contra Contarini) e com um
Defensorium (contra Nifo). Nem a morte pôs termo àquela polêmica.
O aristotelismo teve, na Renascença, uma fortuna especial no campo da estética, da poética, em torno
de que se disputou longa e fervidamente, em especial por parte dos literatos. Parte-se da Poética de
Aristóteles, cuja primeira tradução remonta ao ano de 1498, por obra de Jorge Valla. Aristóteles
sustentara ser a arte - bem como a história - uma imitação da realidade. Entretanto, a arte é superior à
história, porquanto tem como objeto o universal, o necessário, a essência das coisas; ao passo que a
história tem como objeto o particular, o contingente, o acidental. Em torno deste tema se travam as
disputas mais variadas.

O Estoicismo

O espírito autônomo da Renascença devia provar viva simpatia para o sábio estóico, impassível,
Dominador das coisas e dos eventos. O estoicismo não foi apenas objeto de admiração cultural, literária,
mas tornou-se ideal de vida moral em lugar do cristianismo, escola de energia e de conforto.
O estoicismo da Renascença, porém, é preso pela ação, diversamente do estoicismo clássico, negador da
ação, considerada causa de perturbação. O estoicismo renascentista enaltece o homem, a vida, o mundo,
contra a concepção transcendente e ascética cristã. Seja como for, a moral estóica, mais ou menos
ajustada ao cristianismo, desfrutou de grande favor junto dos filósofos das mais diferentes tendências
nos séculos XVI e XVII. O estóico mais notável da Renascença foi o belga Justo Lípsio (1547-1606),
professor em Lovaina, autor de De Constantia, e de Manuductio ad stoicam philosophiam.

O Epicurismo

O epicurismo, melhor do que o estoicismo, condizia com o espírito humanista, imanentista e mundano da
Renascença, em especial na vida gozadora e requintada, voluptuosa e artística da cortes esplêndidas da
época, e também na literatura e no pensamento. João Boccaccio, autor do Decamerone, em o século
XIV, e Lourenço, o Magnífico, no século XV, são duas expressões práticas desse espírito epicurista.
O expoente mais notável dessa tendência epicurista é Lourenço Valla (1407-1459), autor do famoso
livro De voluptate ac de vero bono, onde o autor compara a moral estóica e a epicurista, simpatizando,
naturalmente, com esta última. Quanto à vida futura, Valla oscila entre a sua negação e uma
representação no sentido hedonista, e tente, uma certa conciliação entre epicurismo e cristianismo; mas
fica decididamente hostil ao ascetismo, quer cristão, quer estóico.

O Ceticismo

Também o ceticismo da Renascença foi inspirado pelo ceticismo clássico. E também este novo ceticismo
renascentista surgiu mais por fins práticos do que por motivos teoréticos. Os motivos mais específicos
que deram origem ao ceticismo da Renascença foram: a sede do individual, da concretidade; a paixão
pela observação detalhada própria do pensamento moderno em geral, em oposição ao pensamento
antigo e medieval, voltados para o universo e o abstrato; a variedade e o contraste das diversas escolas
e tradições (filosóficas e religiosas); a mentalidade literária da época, apaixonada pela estética, e incapaz
de levantar grandes construções sistemáticas; a religiosidade persistente, que julgava salvar a fé
deprimindo a razão, tendo esta atacado, freqüente e violentamente, a religião; o contraste entre a
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exigência religiosa e o paganismo da vida que surgia de novo. O ceticismo da Renascença tem seus
maiores expoentes fora da Itália, e o maior é Montaigne.
Miguel de Montaigne (1533-1592), francês, é o autor dos famosos Essais: "Que sais-je"? O seu
interesse é voltado para o estudo do eu, não como substância espiritual, e sim como caráter, centro
unitário das mais variadas experiências humanas. Tudo o mais lhe parece incerto: os sentidos enganam-
nos, a razão perde-se num labirinto infindo, a moral varia conforme os tempos e os lugares. Daí a
necessidade da fé, mas de uma fé em que Deus serve ao homem. Este - como já pensavam os céticos
antigos - atinge a paz abandonando-se à diretriz da natureza. O que especialmente emerge em
Montaigne é o individualismo da Renascença.

A Renascença

A Política Nova e a Ciência Nova

A prescindir da arte e da literatura, o grande valor, a maior conquista do pensamento da Renascença,


está na história humana, e na ciência natural. Daí derivam, em seguida, a ciência política e a técnica
científica (ciência aplicada) que tiveram, na Renascença, o seu grande início. É o fruto do vivo interesse e
da penetrante observação da experiência e da concretidade, quase que desconhecidos do pensamento
clássico e do pensamento medieval, inteiramente absorvidos pelo universal e pela transcendência.
Estas duas grandes conquistas  história e ciência  embora se apresentem em conexão com a filosofia
imanentista, humanista, naturalista da época, de direito são dela independentes, como, aliás, são
independentes de qualquer filosofia: porquanto, ficando no âmbito da experiência, história e ciência, não
resolvem, nem podem resolver o problema filosófico, cuja solução, necessariamente, tem que
transcender o próprio campo da experiência.
A expressão clássica da nova ciência política é Nicolau Machiavelli, não filósofo, e sim teórico da técnica
política, ainda que o seu pensamento seja alicerçado na metafísica do humanismo e do imanentismo
renascentista. E a maior expressão da ciência nova é Galileu Galilei. Ele também não foi filósofo, mas
teórico e técnico da renovada ciência da natureza, mesmo que tenha veleidades e faça afirmações de
alcance metafísico.

Nicolau Machiavelli

Nicolau Machiavelli nasceu em Florença em 1469. Foi secretário e historiador da república florentina.
Destituído e exilado, voltou ainda à pátria, chamado pelos amigos. Faleceu em 1527, obscuro e
abandonado. Entre seus escritos têm particular interesse filosófico Il Principe e os Discorsi sopra la prima
deca di Tito Livio.
Machiavelli propõe-se o problema: como constituir um estado, partindo do terreno realista da experiência
e prescindindo de qualquer valor espiritual e transcendente, ético e religioso. A experiência histórica lhe
diz que a natureza do homem é profundamente egoísta e malvada. Ele tem do homem uma concepção
pessimista, semelhante à cristã, mas sem a explicação (o pecado original) e sem o remédio (a redenção
pela cruz), que o cristianismo oferece. Então é preciso organizar naturalisticamente e subordinar
mecanicamente um complexo de paixões e de egoísmos a um egoísmo maior, o do príncipe e do estado.
É preciso constituir uma ciência política sobre a base de um utilitarismo rigoroso.
Daí a máxima famosa: o fim justifica os meios. O fim último é o estado, a que tudo deve ser
subordinado, tanto os indivíduos como todos os valores, até os morais e religiosos. Indivíduos e valores
devem servir unicamente como instrumentos de governo, e podem ser aniquilados pelo estado. A este
propósito é característica e intuitiva a comparação que Machiavelli faz entre o cristianismo católico e o
paganismo antigo, concluindo em favor da superioridade (política) do segundo. Precisamente pelo fato de
que o paganismo representa uma concepção e uma praxe humanistas, mundanas, em que tudo é
subordinado ao estado, ao passo que o cristianismo é uma concepção e uma praxe transcendentes e
ascéticas, e não reconhece poder algum humano superior a ele.
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A política de Machiavelli foi acusada, muitas vezes, de imoralidade, o que é verdade, se se confrontar
com uma concepção transcendente e ascética do mundo e da vida, como é a teísta e a cristã, e sim
transcendentes (como todos os valores absolutos), não é o estado e sim Deus; e os meios para atingir o
fim último não são substancialmente variáveis conforme as circunstâncias dos tempos e dos lugares,
porquanto a moralidade, na sua essência, deriva da natureza racional do homem, essencialmente
imutável. Entretanto, a política de Machiavelli não está em contraste com uma ética humanista e
imanentista, que não tem fins transcendentes e leis morais estáveis.
A doutrina política de Machiavelli todavia, conserva um grande valor também para a concepção
transcendente do mundo e da vida, pois o estado, para a concretização dessa concepção transcendente
da vida, é indispensável a fim de que o homem realize a sua natureza racional: é ético o estado, embora
receba de Deus a sua eticidade transcendente, como de Deus, aliás, dependem todos os valores e todo o
ser. Entretanto, o estado, ainda que deva mirar a um ideal superior e imutável, tem que ter os pés sobre
a terra, pisar na realidade concreta, variável, histórica. Deve organizar, disciplinar, valorizar os homens
efetivamente egoístas e inclinados ao mal. Por isso, deverá ser leão ou raposa  no dizer de Machiavelli;
terá de agir com força decidida e com refinada prudência, com base na profunda experiência humana. E,
por vezes, será preciso subordinar um princípio moral a outro princípio superior da moral (como, aliás,
acontece também na moral individual no caso do assim chamado conflito dos deveres).
Neste sentido conceberá a política o piemontês João Botero (1540-1617) na sua obra Della ragione di
stato, de conformidade com o espírito católico e concreto da Contra-Reforma. Nesta obra, por exemplo
aconselha ele ao Príncipe ocultar prudentemente suas fraquezas eventuais, para conservar a reputação
real; aconselha-o a respeitar plenamente a religião (católica), instrumento precioso, indispensável para
tornar politicamente dóceis os homens, inclinados profundamente para o mal; bem como o aconselha a
encaminhar para a milícia e para a guerra, a instintiva ferocidade humana.

Galileu Galilei

As ciências físicas e naturais, em geral, têm na Renascença a sua maior expressão em Leonardo da Vinci
e, sobretudo em Galileu Galilei; pelo que diz respeito em especial à astronomia, em Copérnico e Kepler.
Leonardo da Vinci, nascido perto de Florença em 1452, exercitou a sua profissão de artista e técnico em
Milão, em Florença, em Roma e na França onde faleceu em 1519. Não nos interessa como artista, mas
como cientista, técnico e teórico da ciência. Leonardo não deixou obras sistemáticas e editadas, e sim
uma grande quantidade de apontamentos e bosquejos preciosos, publicados mais tarde, em que se
revela um gênio soberano e um teórico genial. Aplicou ele imediatamente à técnica, ao domínio da
natureza, seus princípios teóricos, em harmonia com os ideais e as conquistas da idade nova.
Leonardo fez uma notável quantidade de pesquisas e de invenções preciosas no campo das ciências: em
matemática, física, mecânica, astronomia, geologia, botânica, anatomia, fisiologia, etc. Aplicou a
matemática à física, convencido de que era mister partir da experiência, para chegar à razão, isto é, à
matemática, que seria a razão que governa o mundo natural.
Entretanto, o grande metodólogo da ciência natural é Galileu Galilei, nascido em Tosacana (Pisa) em
1564. Ensinou nas universidades de Pisa e de Pádua; as seguir, em Florença, como matemático e
filósofo. Pela sua defesa do sistema astronômico de Copérnico (heliocêntrico) foi para Roma onde foi
processado pelo Santo Ofício, que condenou aquele sistema (1616). Galileu, tendo defendido com
persistência o supradito sistema, foi processado e condenado novamente em 1633. Passou seus últimos
anos de vida na vila de Arcetri, perto de Florença, onde faleceu em 1642. Entre suas obras são famosas:
O Saggiatore (1623), livro polêmico contra os aristotélicos; o Diálogo sopra i due massimi sistemi del
mondo (1632), que foi causa do segundo processo; e o Diálogo delle scienze nuove (1638).
Como Aristóteles e Tomás de Aquino, Galileu está convencido de que o conhecimento humano deve
firmar-se na experiência; mas, diversamente daqueles dois filósofos que partem da experiência para
transcendê-la e construir uma metafísica geral e especial, Galileu fica no âmbito da própria experiência;
Galileu estuda o mundo não para conhecê-lo metafisicamente, isto é, para colher as essências imutáveis
das coisas, mas fisicamente, isto é, para colher os fenômenos e suas leis. Tais leis julga Galileu sejam as
matemáticas; pois, o livro da natureza é escrito com caracteres que são "triângulos, quadrados, círculos,
159
esferas, cones, pirâmides e outras figuras matemáticas muito aptas para tal leitura". Daí a explicação
da matemática à física, resultando assim a físico-matemática: o que constituirá o elemento
verdadeiramente racional, universal e necessário da ciência moderna, e será tão fecundo em resultados
práticos, técnicos.
Para constituir a ciência, portanto, é mister a experiência e a razão, sentido e discurso, como diz Galileu.
Quanto ao procedimento metódico e particular para construir a ciência, Galileu distingue três momentos
principais: a) a observação; b) a hipótese; c) a experimentação, que é a verificação da hipótese. Esta,
quando confirmada experimentalmente, transforma-se em lei.
A ciência galileiana é, por conseguinte, quantitativa, a saber, o seu princípio racional é matemático: é
físico-matemática, mecânica. O que é irredutível à quantidade é considerado como subjetivo, escapando
ao alcance da físico-matemática. Galileu considera objetivas as propriedades geométrico-mecânicas: a
figura, o tamanho, a posição, o movimento, o número - que serão mais tarde chamadas qualidades
primárias; ao passo que considera subjetivas (transformação das objetivas por obra dos nossos órgãos
sensoriais) as propriedades qualitativas: a cor, o som, o sabor, o frio, o calor - que serão mais tarde
chamadas qualidades secundárias.
Como é sabido, a doutrina astronômica heliocêntrica chama-se copernicana, sendo seu verdadeiro
fundador Copérnico. Nicolau Copérnico nasceu em Thorn, na Polônia, em 1473. Estudou em vários
lugares, especialmente na Itália. De volta à pátria, retirou-se para Frauenburg, onde era cônego, e
dedicou-se às meditações astronômicas, cujo resultado publicou na famosa obra De obrium coelestium
revolutionibus, publicada em 1543 e dedicada ao papa. O seu sistema astronômico pode ser assim
resumido: o mundo é esférico, finito; todos os corpos celestes são esféricos; o movimento dos
corpos celestes é circular e uniforme; o Sol está imóvel no centro do sistema e giram-lhe em
volta os planetas e também a Terra que tem duplo movimento: diurno em volta do próprio
eixo, anual em volta do Sol. Ele também segue o princípio de que a natureza é governada por leis
matemáticas: ubi materia, ibi geometria. Caberá mais tarde a Newton completar o sistema com a grande
lei da gravitação universal, que explica o equilíbrio dos corpos celestes.

A Ciência Nova e a Metafísica Tradicional

O atomismo mecânico, que Galileu pressupôs para a sua gnosiologia empirista-matemática, está
evidentemente em contraste com o seu fenomenismo, porquanto constitui sempre uma filosofia da
natureza, contrariamente ao afirmado agnosticismo galileiano sob este aspecto cientificamente fecundo.
E tal atomismo mecânico está logicamente em contraste com a convicção religiosa de Galileu, pois o
atomismo mecânico implica evidentemente uma concepção materialista da realidade.
Com Galileu começa a tendência da filosofia moderna - que se manifestará claramente no racionalismo
de Descartes, Spinoza, Leibniz, etc. - de reduzir a metafísica à física, pela pretensão de explicar tudo
matematicamente e considerar a ordem matemática como a ordem ideal da realidade. Pretensão
evidentemente infundada, porquanto não se podem reduzir à quantidade o espirito, Deus, a alma nem
sequer o elemento qualitativo da realidade empírica. Será mister, portanto, que a ciência moderna,
mesmo no seu aspecto racional-matemático, adquira consciência da sua limitação, permanecendo entre
os limites da experiência, e não pretenda tornar-se metafísica. E destarte será ela inteiramente
valorizável e conciliável com a metafísica tradicional aristotélico-tomista. Esta, por sua parte, terá de se
libertar de igualmente infundada pretensão de que também a ciência natural seja filosofia, metafísica.
Deste modo, poderá logicamente separar-se da física aristotélica e da astronomia ptolemaica, com que
estava de fato, e se julgava de direito, ligada, liame este que, historicamente, sobremaneira prejudicou à
metafísica tradicional na idade moderna, como ficou evidente também pelo famoso processo de Galileu.
Neste processo não há duvidar da boa fé de Galileu, católico convicto, nem da dos seus juizes, entre os
quais se destaca São Roberto Belarmino. Em todo caso devemos prescindir de tais questões práticas,
pessoais, que não concernem à história da filosofia, cujo objeto próprio são as idéias, os sistemas, e não
os homens e suas intenções. Temos, de um lado, uma sólida filosofia, que se julgava, sem razão, conexa
necessariamente com a ciência da época, cuja ruína, julgava-se erroneamente, acarretaria consigo a
ruína da filosofia, que constituía a base racional da religião. E temos, do outro lado, uma ciência
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prodigiosa, que, erradamente, se punha em contradição com a filosofia tradicional e em conexão
com a nova filosofia humanista e imanentista. Tenha-se, acima de tudo, presente a tese geral do
matematismo universal, com suas inevitáveis conseqüências materialistas, e a outra tese da infinidade
dos mundos, que, erradamente, se julgava derivar do sistema copernicano, heliocêntrico. Acrescenta-se a
tudo isso, por parte da igreja católica, o temor da crítica demolidora, que teve tão grave manifestação no
livre exame protestante - temor confirmado pela veleidade de interpretação da Sagrada Escritura, por
parte de Galileu, para ajustá-la à nova astronomia. E se compreenderá então historicamente o processo e
a condenação de Galileu.
A oposição entre sistema ptoleimaco e sistema copernicano, entre a filosofia tradicional e a ciência nova,
cessaria no dia em que se adquirisse consciência da natureza infrafilosófica, afilosófica, indiferente, da
ciência, se permanecer nos limites da experiência - como deve ser - e se tivesse consciência da sua
relatividade. A ciência, portanto, não pode vir a estar em contraste com a filosofia e a teologia, cujo
objeto é metafísico; conseqüentemente pode-se e deve-se compor a filosofia tradicional com a ciência
nova.

O Cartesianismo

Nicolau Malebranche

Com Spinoza, o racionalismo cartesiano entra em síntese com o panteísmo neoplatônico. Com
Malebranche, o cartesianismo entra em síntese com o agostinianismo, sobre a base de um inicial
platonismo comum. Mas, ao mesmo tempo, sofre um regresso sobre a linha do seu lógico
desenvolvimento panteísta e racionalista, devido ao teísmo e ao cristianismo que Malebranche se esforça
por conciliar com o cartesianismo.
Dos dois problemas fundamentais deixados em herança por Descartes (relações entre Deus e mundo,
entre espírito e matéria), Spinoza resolvera o primeiro mediante o seu rígido monismo da substância; o
segundo, mediante o famoso paralelismo dos atributos extensão e pensamento na substância.
Malebranche, pelo que diz respeito ao primeiro problema, chega a conceber Deus como causa única,
entretanto não ousa afirmá-lo como substância única; pelo que diz respeito ao segundo, nega também
ele - como Descartes e Spinoza - toda interação entre espírito e matéria, e também ele recorre a Deus
para explicar as relações entre o espírito e a matéria.

Vida e Obras

Nicolau Malebranche nasceu em Paris em 1638. Estudou filosofia no colégio "De la Marche" e teologia
na Sorbona. Entrando jovem na Congregação do Oratório, em 1660, foi ordenado padre em 1664. Foi
profundamente influenciado pelo agostinianismo dominante no Oratório, e pelo cartesianismo. Estas são
as duas fontes principais do seu pensamento, procurando conciliá-las no seu sistema filosófico. Faleceu
em 1715.
As obras de Malebranche tiveram grande êxito e levaram-no a várias polêmicas. As principais obras são:
Recherche de la vérité (1674-1675); Méditations chrétiennes et métaphysiques (1683); Traité de morale
(1684); Entretiens sur la métaphysique et sur la religion (1688).

O Pensamento: A Gnosiologia

Como Descartes e o conseqüente racionalismo, a gnosiologia de Malebranche desvaloriza o conhecimento


sensível, especialmente os sentidos externos e atribui às idéias todo o valor do conhecimento. Pisando as
pegadas de Agostinho e de Descartes, declara as idéias eternas e imutáveis, claras e distintas e,
portanto, verdadeiras objetivamente. Visto essas idéias serem necessárias e universais, não só não
podem derivar da sensação, mas nem sequer ser produzidas pelo espírito humano, como a sensação, é
particular e contingente. As idéias, pois, nada mais são que o próprio objeto inteligível presente ao nosso
pensamento: são idéias ontológicas, exteriores ao sujeito que conhece, a saber, são os arquétipos
161
eternos e imutáveis, necessários e universais, das coisas; tais idéias estão na mente de Deus e nele
nós temos a intuição delas (ontologismo). Esta visão é possível porque Deus está intimamente presente
ao nosso espírito e lhe pode revelar a sua essência porquanto é comunicável. Noutras palavras: nós
vemos, não propriamente a Deus, mas apenas o que há nele de imitável.

A Metafísica

Se bem que malebranche afirme que Deus está intimamente presente ao nosso espírito como revelador
das idéias, sente ele a necessidade de provar a existência de Deus na sua realidade subsistente e de
determinar-lhe a natureza. Para demonstrar a existência de Deus, Malebranche recorre substancialmente
ao sólito argumento ontológico, caro aos platônicos e aos agostinianos. A respeito da natureza de Deus,
julga ele que seja essencialmente incognoscível, pois nós não temos uma idéia clara e distinta do infinito.
A única idéia clara e distinta que temos é a de extensão inteligível (e de seus modos); isto é, vemos a
extensão inteligível em Deus, e tal idéia se torna representativa de Deus pelo seu caráter de infinidade. A
respeito das relações entre Deus e o mundo, Malebranche teística e cristãmente afirma Deus criador dos
espíritos e da matéria: quer dizer, admite uma pluralidade de substância. Diversamente afirma a unidade
da causa, porquanto não há causas segundas. Deus opera diretamente em todas as criaturas; ele só é
causa e atividade, e as assim chamadas causas segundas não passam de ocasiões para o operar da
causa única divina (ocasionalismo).
Como não temos uma idéia clara de Deus, assim não temos uma idéia clara da nossa alma, quer dizer,
da sua natureza. Temos uma intuição da sua existência, um sentimento, que - ao contrário das idéias - é
racionalmente confuso, mas, em todo caso, ele só atinge a existência contingente, o que as idéias não
podem fazer.
Acontece o contrário a respeito do mundo físico, material. Temos dele uma idéia clara, porque temos a
idéia clara de extensão inteligível. Temos, porém, um sentimento confuso da existência atual do mundo
material; trata-se de uma percepção sensível inferior à da existência do espírito, tanto assim que é mister
a revelação cristã, que nos diz ter Deus criado o mundo, para que estejamos propriamente certos da sua
existência.
As relações - a interação entre as coisas materiais de um lado e os espíritos humanos do outro, isto é,
entre alma e corpo - dependem de Deus e são produzidas diretamente por ele segundo a doutrina do
ocasionalismo. Malebranche baseia esta doutrina em duas teses de origem cartesiana: em física, inércia
natural da extensão, único elemento constitutivo das coisas materiais; em psicologia, a impossibilidade de
uma interação entre corpo e alma, espírito e matéria. Não há, logo, causalidade ativa nem dos corpos
entre si, nem da alma sobre o corpo, nem do corpo sobre a alma. Toda energia produtora de ser e de
atividade pertence propriamente a Deus.

A Moral

Malebranche procura conciliar essa atividade universal divina com o live arbítrio humano. O homem é
livre não no sentido de que seja capaz de fazer, produzir alguma coisa, mas no sentido de que é capaz
de suspender a ação divina em si: suspensão (antes de que produção) de efeitos. Dessa maneira, a
vontade, livre embora, não é causa produtora.
Aspecto característico da moral de Malebranche é o apelo para o cristianismo e, precisamente, para o
pecado original, a fim de explicar plena e verdadeiramente o homem na sua realidade atual. A desordem
das paixões, bem como o erro no conhecimento, encontram só no pecado original a causa única que os
explica. Sem o pecado haveria perfeita harmonia entre corpo e espírito, sensibilidade e pensamento,
impulso e vontade. Assim, os filósofos "são obrigados à religião (revelada), pois só ela pode tirá-los do
embaraço em que se encontram".
162
Guilherme Leibniz

Spinoza tentara a síntese do racionalismo cartesiano com o panteísmo neoplatônico; Malebranche tentara
a síntese do racionalismo com o platonismo agostiniano; Leibniz tentará uma síntese mais vasta, a do
pensamento aristotélico-tomista com o empirismo moderno. Diversamente de Spinoza e de acordo com
Malebranche, procurará compor a necessidade racionalista-matemática com a contingência e a liberdade.
E chegará também à negação da realidade material, da res extensa, resolvendo a realidade material em
uma aparência fenomênica do espírito. O resultado é que a necessidade universal permanece, e, logo,
também o panteísmo; e que, com a supressão do mundo físico, o racionalismo abre as portas ao
idealismo.

Vida e Obras

Guilherme Leibniz nasceu em Leipzig, em 1646. Seu pai era um jurista, professor de moral na
universidade. Foi um autodidata desejoso de tudo conhecer; estudou filosofia e história da filosofia,
matemática e jurisprudência, formando-se em direito em Altorf em 1666-1667. O barão de Boinebourg -
convertido ao catolicismo - iniciou-o no conhecimento da igreja católica e introduziu-o na Corte eleitoral
de Mogúncia.
Entre 1672 e 1676, chefiou uma missão diplomática junto de Luís XIV, para induzir o Rei Sol a dirigir
contra os turcos a sua atividade de expansão, que constituía um perigo contínuo contra a Alemanha. A
missão fracassou. Entretanto, Leibniz travou relações com os maiores filósofos e cientistas da época.
Entre outros, tomou contacto com Malebranche. Durante uma viagem a Londres, conheceu também
Newton, inventor, como ele, do cálculo infinitesimal.
Em 1676 foi convidado por João Frederico de Brunschwig para a corte ducal de Hannover, como
conselheiro áulico e bibliotecário. Indo de Paris para a sua nova sede, parou na Holanda e visitou
Spinoza. Ficou até à morte naquele emprego, ocupando-se com escrever a história da casa Brunschwig
foi à Itália, visitando Veneza, Pádua, Florença, Roma e Nápoles. Realizou outras viagens a Viena e Berlim,
onde fundou a Sociedade das Ciências, chamada, em seguida, Academia Prussiana. Fez tentativas para a
união das igrejas protestante e católica e para a federalização política das nações cristãs,
correspondendo-se com Bossuet para este fim. Faleceu em Hannover em 1716.
As fontes culturais e filosóficas de Leibniz são muitas e várias, também antigas e medievais, que ele
fundiu em um ecletismo superior. Entre os filósofos antigos preferiu Platão e Plotino; Aristóteles influiu
nele sobretudo pelo que diz respeito à lógica. Estudou Suarez e Tomás de Aquino, para os quais teve
estima no que concerne ao pensamento, criticando entretanto a forma deles.
Conheceu certamente o pensamento da Renascença, em especial o neoplatonismo renascentista.
Estudou também o empirismo, escrevendo contra o Ensaio sobre o Intelecto Humano de Locke os seus
Novos Ensaios sobre o Intelecto Humano. Entretanto foi o cartesianismo o sistema filosófico que influiu
mais profundamente sobre Leibniz, devido sobretudo ao racionalismo matemático, que ele procurou
conciliar com uma concepção dinâmica da realidade. Também Malebranche influenciou profundamente
Leibniz, tanto assim que do ocasionalismo de Malebranche surgirá a harmonia preestabelecida de Leibniz.
Mais profundamente ainda, Spinoza influiu sobre Leibniz, que pode ser considerado spinoziano de fato se
não de intenção. Seu sistema é uma afirmação do monismo spinoziano, ainda que sobre um plano mais
rico e superior.
As obras de Leibniz, escritas pela maior parte em francês e em latim, não constituem uma elaboração
sistemática e completa do seu pensamento. São ensaios ocasionais e esporádicos, mas de grande
penetração e agudeza crítica. Eis as principais: Novos Ensaios sobre o Intelecto Humano (crítica ao
Ensaio de Locke, composta em 1701, mas publicada postumamente em 1765); Teodicéia, escrita para
resolver o problema do mal e publicada em 1710; Monadologia, escrita em francês para o príncipe
Eugênio de Sabóia em 1714 e publicada postumamente. Deve-se ainda acrescentar uma copiosa
correspondência filosófica.
163
O Pensamento: A Gnosiologia

A gnosiologia de Leibniz é fundamentalmente representada pela ciência geral ou lógica universal; esta
deve proporcionar o método para inventar e demonstrar todas as ciências. A realidade apresenta-se
indiscutivelmente sob dois aspectos: um idêntico, universal, necessário, e o outro diverso, particular,
contingente. Leibniz distingue, portanto, as verdades de razão (juízos necessários de essência), que
colheriam o primeiro aspecto da realidade, e as verdades de fato (juízos da existência contingente), que
colheriam o segundo aspecto.
As verdades de razão fundamentam-se sobre o princípio de indentidade, imediatamente evidente, isto é,
tais verdades reduzíveis a juízos, em que o predicado tem identidade com o sujeito, se pode ser tirado
analiticamente dele. As verdades de fato seriam representadas por juízos de experiência, em que o
predicado não se pode extrair analiticamente do sujeito; teria, porém, um fundamento, o princípio de
razão suficiente na realidade criada.
Entretanto, estes juízos escapam às pretensões da necessidade racionalista. Então Leibniz procura
conciliar a necessidade do racionalismo com as exigências da contingência: as verdades de fato seriam
contingentes quoad nos, com respeito a nós, devido à nossa ignorância. Mas, de um ponto de vista
absoluto, quoad se, seriam necessárias como as outras. Isto quer dizer, também as proposições
contingentes verdadeiras seriam racionais e demonstráveis, porque o predicado é contido na noção
adequada do sujeito. A definição do sujeito, para quem a penetrasse até o fundo, seria verdadeiramente
o antecendente lógico infalível de cada um dos predicados.

A Metafísica

A Metafísica de Leibniz é a doutrina das mônadas (monadologia). Os elementos primeiros, fundamentais,


da realidade, Leibniz chama-os mônadas; e são concebidos como átomos espirituais dotados de
atividade, substâncias-forças. "A substância é um ser capaz de ação". A natureza das mônadas é
espiritual, representativa: cada uma representa, reflete todo o universo de um determinado ponto de
vista. Não apenas o homem é um microcosmo, mas cada ser é um microcosmo. Conforme o seu
conteúdo representativo, mais ou menos elevado, as mônadas são dotadas de propriedade de perceber
(pampsiquismo); entretanto, nem todas percebem conscientemente.
As mônadas são eternas, inúmeras, não há duas mônadas perfeitamente iguais, a sua imensa série se
dispõe em escala hierárquica ascendente, contínua, da ínfima mônada até à suprema, Deus. Elas não
têm relações recíproca: "as mônadas são sem janelas" - diz Leibniz. "Nesta escala, Leibniz distingue
quatro grandes ordens: 1.ª) mônadas nuas, que constituem o reino mineral e as plantas, dotadas de
representação insconsciente (pampsiquismo); 2.ª) mônadas sensitivas, capazes de representação
consciente ou apercepção; constituem as almas dos brutos; 3.ª) mônadas racionais, ou almas humanas,
enriquecidas de conhecimento científico e consciência reflexa; 4.ª) mônada suprema, ou Deus,
absolutamente perfeita, causa eficiente de todas as outras". A ordem entre elas é explicada pela
harmonia preestabelecida, que Deus introduziu na criação.
Afirma Leibniz, mais ou menos, o conceito tradicional de Deus. Deus seria a mônada suprema, criadora e
ordenadora de todas as outras. Este Absoluto - realidade única informada por uma alma côsmica -
recorda a tão combatida Substância spinoziana, feita por Leibniz dinâmica, ativa, desenvolvendo-se não
apenas matematicamente, mas também finalisticamente.
O homem, o indivíduo humano, seria um conjunto de mônadas de grau diverso. A uma mônada central,
consciente, dotada de percepção, constituindo a alma, unem-se mônadas subconscientes e mônadas
inconscientes, que constituem o corpo. Este todo é regulado pela harmonia preestabelecida, em virtude
da qual a uma modificação física corresponde uma modificação psíquica e vice-versa, pois o corpo não
atua diretamente sobre a alma, nem esta sobre o corpo.
Para Leibniz, o mundo físico, a matéria, não tem existência real. A matéria, a corporeidade, é um
fenômeno, uma aparência da psiquicidade. Negada às mônadas a faculdade de agirem transitivamente,
uma sobre as outras, como explicar a ordem do universo? Leibniz responde com a célebre teoria da
harmonia preestabelecida. Deus, ab aeterno, regularizou todas as ações das mônadas de tal forma que
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se correspondessem como se realmente houvesse entre elas um influxo mútuo de causalidade
recíproca. "Assim, um hábil relojoeiro constrói dois relógios, que, sem se influenciarem mutuamente,
marcam ao mesmo tempo as mesmas horas".

A Moral

A moralidade é reconduzida à atividade, que, no homem, é consciente e racional. No campo da moral,


Leibniz interessou-se especialmente pelo problema do mal e da liberdade. Afirma ele a liberdade; e, por
certo, no seu sistema subsiste a liberdade metafísica, a espontaneidade racional. Mas vem fenecer o livre
arbítrio, a livre escolha, devido à sua tese da ação necessariamente dirigida para o melhor, quer no
homem quer em Deus.
Pelo que diz respeito à solução do problema do mal, Leibniz - como é sabido - distingue o mal em
metafísico, moral e físico. O primeiro não é verdadeiro mal, porquanto constitui a limitação necessária
dos seres criados; pois a natureza destes seres é necessariamente limitada, enquanto são criados. Sem
esta limitação não haveria sequer o mundo.
O mal moral, ao contrário, é devido à resistência voluntária dos entes criados, humanos, à ação de Deus.
Também o mal moral é uma privação de ser, como o mal metafísico: tem uma causa deficiente e não
eficiente, na resistência humana à ação de Deus.
Leibniz explica o mal físico mediante a estética. O mal dos vários seres se torna um bem para o conjunto;
as desarmonias particulares realçam a harmonia do todo. Entretanto, esta explicação não serve no caso
do homem, pois cada homem não é um meio e sim um fim, sendo um ser racional.

Cristiano Wolff

O racionalismo moderno toma uma sistematização rígida, formal, com Cristiano Wolff, vulgarizador do
pensamento de Leibniz. Em Wolff, o racionalismo moderno manifesta explicitamente o seu caráter
fenomenista abstrato. A filosofia, a metafísica deveria ser construída a priori, partindo dedutivamente,
analiticamente, da idéia inata de ser.
Compreende-se, portanto, a reação kantiana e a acusação de dogmatismo movida contra essa orientação
filosófica, que pretendia ser válido para a realidade concreta um sistema construído a priori: um mundo
de idéias para um mundo de coisas, sem uma relação real entre as duas ordens. A reação é facilmente
compreensível, se se considerar que os manuais de Wolff invadiram a cultura alemã da época, e Kant
lecionava na universidade servindo-se da Metaphysica de Baumgarten, que tinha condensado e ordenado
em mil parágrafos o prolixo sistema de Wolff.
Dado esse caráter apriorístico, racionalista-matemático, do pensamento de Wolff, compreende-se como
ele se diferencia profundamente da escolástica clássica, aristotélico-tomista, a qual concebe, sim, a
ciência como uma dedução necessária de elementos e princípios primeiros, mas estes se baseiam no
terreno sólido da experiência. Se é que Wolff teve algum conhecimento particular da escolástica
aristotélico-tomista, certamente não compreendeu o espírito íntimo desse sistema.

Vida e Obras

Cristiano Wolff nasceu em Breslau em 1679. Dedicou-se aos problemas morais e religiosos, estudando
também matemática. Formou-se em filosofia em Leipzig em 1703. Entrou, desde logo, em relações com
Leibniz, graças ao qual teve em 1707 uma cátedra de matemática e filosofia na Universidade de Halle. O
seu ensino claro e metódico, racionalista, sistemático teve um êxito imenso. No entanto, em 1723, foi
demitido sob acusação de ateísmo em religião e determinismo em moral. A primeira acusação tem um
fundamento na afirmação de Wolff de que a moral estaria de pé igualmente, mesmo prescindindo da
existência de Deus. A segunda explica-se pela sua adesão ao determinismo racionalista de Leibniz, em
que a liberdade de Deus e do homem vêm fornecer, porquanto ambos atuam necessariamente, do modo
melhor. Wolff retirou-se então para a Universidade de Marburgo, voltando, em seguida, para a
Universidade de Halle, aí ensinando até à morte (1754).
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As obras filosóficas de Wolff são constituídas por duas séries de manuais, uma em latim, e a outra
em alemão. A série dos manuais em latim, compreende precisamente: Philosophia rationalis sive logica;
Philosophia prima seu ontologia; Cosmologia generalis; Psychologia empirica; Psychologia rationalis;
Psychologia practica universalis; Jus naturae; Jus gentium; Philosophia moralis seu ethica; Oeconomia.
Tais manuais tiveram um grande êxito.

O Pensamento

Wolff divide a filosofia em lógica, especulativa e prática. A filosofia especulativa é, fundamentalmente, a


metafísica, abrangendo a ontologia, a cosmologia geral, a psicologia, a teologia natural. A filosofia prática
abrange, antes de tudo, a filosofia prática geral e o direito natural e, logo, a ética, a política, a economia.
É notável o critério de verdade segundo Wolff: a verdade consiste exclusivamente na coerência entre as
idéias. É a revelação completa so fenomenismo racionalista, pelo qual não há relação entre pensamento
e ser. É bem diverso o critério de verdade do sistema aristotélico-tomista, pelo qual a verdade é, ao
contrário, a adequação especulativa da mente com a coisa.
Quanto à idéia de ética, Wolff diz justamente que a lei moral não pode depender ao arbítrio divino; mas é
absoluta, necessária, primitiva (isto é, diríamos, tomisticamente, derivante da própria natureza de Deus e
das coisas por ele criadas). Diversamente, admite a obrigação absoluta da lei moral, mesmo no caso do
ateísmo (como se a negação de Deus não implicasse necessariamente na negação de todos os valores).
Em todo caso, Wolff não nega Deus, nem a religião natural. Separa, porém, a filosofia que conhece a
religião natural, da religião positiva, ou revelada. Desta o filósofo prescinde.
Wolff é o pai do Aufklärung, do iluminismo racionalista alemão, que sustenta o divórcio entre a religião
natural e a religião positiva, e finaliza na negação desta última.

A Filosofia de Descartes

Sua Vida

René Descartes, nascido em 1596 em La Haye  não a cidade dos Países-Baixos, mas um povoado da
Touraine, numa família nobre  terá o título de senhor de Perron, pequeno domínio do Poitou, daí o
aposto "fidalgo poitevino".
De 1604 a 1614, estuda no colégio jesuíta de La Flèche. Aí gozará de um regime de privilégio, pois
levanta-se quando quer, o que o leva a adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida:
meditar no próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara, no "Discurso sobre o
Método", decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado: a filosofia escolástica não conduz a
nenhuma verdade indiscutível, "Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute". Só as
matemáticas demonstram o que afirmam: "As matemáticas agradavam-me sobretudo por causa da
certeza e da evidência de seus raciocínios". Mas as matemáticas são uma exceção, uma vez que ainda
não se tentou aplicar seu rigoroso método a outros domínios. Eis por que o jovem Descartes,
decepcionado com a escola, parte à procura de novas fontes de conhecimento, a saber, longe dos livros
e dos regentes de colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade me permitiu
sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não
procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do
mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com
pessoas de diversos temperamentos e condições".
Após alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa com equitação e
esgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima, hoje perdido), vamos encontrá-lo na Holanda
engajado no exército do príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa qualquer
soldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se declara menos um "ator" do que um
"espectador": antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-se
sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem cerca de 23 anos) que data
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sua misteriosa divisa "Larvatus prodeo". Eu caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Descartes
quer apenas significar que é um jovem sábio disfarçado de soldado.
Em 1619, ei-lo a serviço do Duque de Baviera. Em virtude do inverno, aquartela-se às margens do
Danúbio. Podemos facilmente imaginá-lo alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido por
um desses fogareiros de porcelana cujo uso começa a se difundir, servido por um criado e inteiramente
entregue à meditação. A 10 de novembro de 1619, sonhos maravilhosos advertem que está destinado a
unificar todos os conhecimentos humanos por meio de uma "ciência admirável" da qual será o inventor.
Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em latim, as "Regras para a direção do
espírito" (Regulae ad directionem ingenii). A idéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidade
do espírito humano (qualquer que seja a diversidade dos objetos da pesquisa) deve permitir a invenção
de um método universal. Em seguida, Descartes prepara uma obra de física, o Tratado do Mundo, a cuja
publicação ele renuncia visto que em 1633 toma conhecimento da condenação de Galileu. É certo que ele
nada tem a temer da Inquisição. Entre 1629 e 1649, ele vive na Holanda, país protestante. Mas
Descartes, de um lado é católico sincero (embora pouco devoto), de outro, ele antes de tudo quer fugir
às querelas e preservar a própria paz.
Finalmente, em 1637, ele se decide a publicar três pequenos resumos de sua obra científica: A Dióptrica,
Os Meteoros e A Geometria. Esses resumos, que quase não são lidos atualmente, são acompanhados por
um prefácio e esse prefácio foi que se tornou famoso: é o Discurso sobre o Método. Ele faz ver que o seu
método, inspirado nas matemáticas, é capaz de provar rigorosamente a existência de Deus e o primado
da alma sobre o corpo. Desse modo, ele quer preparar os espíritos para, um dia, aceitarem todas as
conseqüências do método  inclusive o movimento da Terra em torno do Sol! Isto não quer dizer que a
metafísica seja, para Descartes, um simples acessório. Muito pelo contrário! Em 1641, aparecem as
Meditações Metafísicas, sua obra-prima, acompanhadas de respostas às objeções. Em 1644, ele publica
uma espécie de manual cartesiano. Os Princípios de Filosofia, dedicado à princesa palatina Elisabeth, de
quem ele é, em certo sentido, o diretor de consciência e com quem troca importante correspondência.
Em 1644, por ocasião da rápida viagem a Paris, Descartes encontra o embaixador da frança junto à corte
sueca, Chanut, que o põe em contato com a rainha Cristina.
Esta última chama Descartes para junto de si. Após muitas tergiversações, o filósofo, não antes de
encarregar seu editor de imprimir, para antes do outono, seu Tratado das Paixões  embarca para
Amsterdã e chega a Estocolmo em outubro de 1649. É ao surgir da aurora (5 da manhã!) que ele dá
lições de filosofia cartesiana à sua real discípula. Descartes, que sofre atrozmente com o frio, logo se
arrepende, ele que "nasceu nos jardins da Touraine", de ter vindo "viver no país dos ursos, entre
rochedos e geleiras". Mas é demasiado tarde. Contrai uma pneumonia e se recusa a ingerir as drogas dos
charlatões e a sofrer sangrias sistemáticas ("Poupai o sangue francês, senhores"), morrendo a 9 de
fevereiro de 1650. Seu ataúde, alguns anos mais tarde, será transportado para a França. Luís XIV
proibirá os funerais solenes e o elogio público do defunto: desde 1662 a Igreja Católica Romana, à qual
ele parece Ter-se submetido sempre e com humildade, colocará todas as suas obras no Index.

O Método

Descartes quer estabelecer um método universal, inspirado no rigor matemático e em suas "longas
cadeias de razão".
1.  A primeira regra é a evidência: não admitir "nenhuma coisa como verdadeira se não a reconheço
evidentemente como tal". Em outras palavras, evitar toda "precipitação" e toda "prevenção"
(preconceitos) e só ter por verdadeiro o que for claro e distinto, isto é, o que "eu não tenho a menor
oportunidade de duvidar". Por conseguinte, a evidência é o que salta aos olhos, é aquilo de que não
posso duvidar, apesar de todos os meus esforços, é o que resiste a todos os assaltos da dúvida, apesar
de todos os resíduos, o produto do espírito crítico. Não, como diz bem Jankélévitch, "uma evidência
juvenil, mas quadragenária".
2.  A segunda, é a regra da análise: "dividir cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas
forem possíveis".
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3.  A terceira, é a regra da síntese: "concluir por ordem meus pensamentos, começando pelos
objetos mais simples e mais fáceis de conhecer para, aos poucos, ascender, como que por meio de
degraus, aos mais complexos".
4.  A última á a dos "desmembramentos tão complexos... a ponto de estar certo de nada ter omitido".
Se esse método tornou-se muito célebre, foi porque os séculos posteriores viram nele uma manifestação
do livre exame e do racionalismo.
a) Ele não afirma a independência da razão e a rejeição de qualquer autoridade? "Aristóteles disse" não
é mais um argumento sem réplica! Só contam a clareza e a distinção das idéias. Os filósofos do século
XVIII estenderão esse método a dois domínios de que Descartes, é importante ressaltar, o excluiu
expressamente: o político e o religioso (Descartes é conservador em política e coloca as "verdades da fé"
ao abrigo de seu método).
b) O método é racionalista porque a evidência de que Descartes parte não é, de modo algum, a
evidência sensível e empírica. Os sentidos nos enganam, suas indicações são confusas e obscuras, só as
idéias da razão são claras e distintas. O ato da razão que percebe diretamente os primeiros princípios é a
intuição. A dedução limita-se a veicular, ao longo das belas cadeias da razão, a evidência intuitiva das
"naturezas simples". A dedução nada mais é do que uma intuição continuada.

A Metafísica

No Discurso sobre o Método, Descartes pensa sobretudo na ciência. Para bem compreender sua
metafísica, é necessário ler as Meditações.
1.°  Todos sabem que Descartes inicia seu itinerário espiritual com a dúvida. Mas é necessário
compreender que essa dúvida tem um outro alcance que a dúvida metódica do cientista. Descartes
duvida voluntária e sistematicamente de tudo, desde que possa encontrar um argumento, por mais frágil
que seja. Por conseguinte, os instrumentos da dúvida nada mais são do que os auxiliares psicológicos, de
uma ascese, os instrumentos de um verdadeiro "exército espiritual". Duvidemos dos sentidos, uma vez
que eles freqüentemente nos enganam, pois, diz Descartes, nunca tenho certeza de estar sonhando ou
de estar desperto! (Quantas vezes acreditei-me vestido com o "robe de chambre", ocupado em escrever
algo junto à lareira; na verdade, "estava despido em meu leito").
Duvidemos também das próprias evidências científicas e das verdades matemáticas! Mas quê? Não é
verdade  quer eu sonhe ou esteja desperto  que 2 + 2 = 4? Mas se um gênio maligno me enganasse, se
Deus fosse mau e me iludisse quanto às minhas evidências matemáticas e físicas? Tanto quanto duvido
do Ser, sempre posso duvidar do objeto (permitam-me retomar os termos do mais lúcido intérprete de
Descartes, Ferdinand Alquié).
2. °  Existe, porém, uma coisa de que não posso duvidar, mesmo que o demônio queira sempre me
enganar. Mesmo que tudo o que penso seja falso, resta a certeza de que eu penso. Nenhum objeto de
pensamento resiste à dúvida, mas o próprio ato de duvidar é indubitável. "Penso, cogito, logo existo,
ergo sum". Não é um raciocínio (apesar do logo, do ergo), mas uma intuição, e mais sólida que a do
matemático, pois é uma intuição metafísica, metamatemática. Ela trata não de um objeto, mas de um
ser. Eu penso, Ego cogito (e o ego, sem aborrecer Brunschvicg, é muito mais que um simples acidente
gramatical do verbo cogitare). O cogito de Descartes, portanto, não é, como já se disse, o ato de
nascimento do que, em filosofia, chamamos de idealismo (o sujeito pensante e suas idéias como o
fundamento de todo conhecimento), mas a descoberta do domínio ontológico (estes objetos que são as
evidências matemáticas remetem a este ser que é meu pensamento).
3. °  Nesse nível, entretanto, nesse momento de seu itinerário espiritual, Descartes é solipsista. Ele só
tem certeza de seu ser, isto é, de seu ser pensante (pois, sempre duvido desse objeto que é meu corpo;
a alma, diz Descartes nesse sentido, "é mais fácil de ser conhecida que o corpo").
É pelo aprofundamento de sua solidão que Descartes escapará dessa solidão. Dentre as idéias do meu
cogito existe uma inteiramente extraordinária. É a idéia de perfeição, de infinito. Não posso tê-la tirado
de mim mesmo, visto que sou finito e imperfeito. Eu, tão imperfeito, que tenho a idéia de Perfeição, só
posso tê-la recebido de um Ser perfeito que me ultrapassa e que é o autor do meu ser. Por conseguinte,
eis demonstrada a existência de Deus. E nota-se que se trata de um Deus perfeito, que, por conseguinte,
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é todo bondade. Eis o fantasma do gênio maligno exorcizado. Se Deus é perfeito, ele não pode ter
querido enganar-me e todas as minhas idéias claras e distintas são garantidas pela veracidade divina.
Uma vez que Deus existe, eu então posso crer na existência do mundo. O caminho é exatamente o
inverso do seguido por São Tomás. Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-me
pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e que só têm um valor de sinal para os instintos
do ser vivo). Só posso crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe
verdadeiramente é o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento). Alguns acham que
Descartes fazia um circulo vicioso: a evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência! Mas
não se trata da mesma evidência. A evidência ontológica que, pelo cogito, me conduz a Deus
fundamenta a evidência dos objetos matemáticos. Por conseguinte, a metafísica tem, para Descartes,
uma evidência mais profunda que a ciência. É ela que fundamenta a ciência (um ateu, dirá Descartes,
não pode ser geômetra!).
4. °  A Quinta meditação apresenta uma outra maneira de provar a existência de Deus. Não mais se trata
de partir de mim, que tenho a idéia de Deus, mas antes da idéia de Deus que há em mim. Apreender a
idéia de perfeição e afirmar a existência do ser perfeito é a mesma coisa. Pois uma perfeição não-
existente não seria uma perfeição. É o argumento ontológico, o argumento de Santo Anselmo que
Descartes (que não leu Santo Anselmo) reencontra: trata-se, ainda aqui, mais de uma intuição, de uma
experiência espiritual (a de um infinito que me ultrapassa) do que de um raciocínio.

René Descartes

A Dúvida, Exercício Espiritual

1.ª Meditação Descartes resolve duvidar de todas as suas opiniões:


Mas não basta ter feito essas observações, é preciso ainda que eu cuide de não me esquecer delas; pois
essas antigas e comuns opiniões freqüentemente revivem em meu pensamento, a longa e familiar
convivência que tiveram comigo, o que lhes dá o direito de ocupar o meu espírito sem que eu o queira e
de quase se tornarem senhoras de minha crença. E nunca me desacostumarei a essa aquiescência e a
confiar nelas, enquanto eu as considerar tais como efetivamente são, isto é, de certo modo duvidosas,
como acabei de provar, e, no entanto, muito prováveis, de maneira que se tenha mais razão em acreditar
nelas do que em negá-las. Eis por que penso que as utilizarei mais prudentemente se, tomando um
partido contrário, empregar todos os esforços no sentido de enganar-me a mim mesmo, fingindo que
todos esses pensamentos são falsos e imaginários; até que, tendo de tal modo avaliado meus
preconceitos, eles não possam fazer com que minha opinião tenda mais para um lado do que para outro,
e meu julgamento não mais seja, daqui por diante, dominado por maus usos e afastado do caminho reto
que o pode conduzir ao conhecimento da verdade. Pois estou certo de que, no entanto, não pode haver
perigo nem erro nesse caminho e de que eu hoje não poderia conceder muito à minha desconfiança,
uma vez que, no momento, não se trata d agir, mas somente de meditar e de conhecer.
Suporei, então, que há, não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da verdade, mas certo gênio
maligno, não menos ardiloso e enganador do que poderoso, que empregou toda sua indústria em
enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons, e todas as coisas exteriores
que vemos não passam de ilusões e enganos de que ele se serve para surpreender minha credulidade.
Considerar-me-ei a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem sangue, como não
tendo nenhum dos sentidos, mas acreditando falsamente possuir todas essas coisas. Permanecerei
obstinadamente apegado a esse pensamento; e, se por esse medo, não estiver em meu poder atingir o
conhecimento, de nenhuma verdade, pelo menos estará em meu poder fazer a suspensão de meu juízo.
Eis por que cuidarei zelosamente de não receber em minha crença nenhuma falsidade, e prepararei tão
bem meu espírito em face de todos os ardis desse grande enganador que, por mais poderoso e astucioso
que seja, nunca poderá impor-me coisa alguma.
Mas esse desígnio é árduo e trabalhoso, e certa preguiça arrasta-me insensivelmente para o ritmo de
minha vida comum. E, exatamente como o escravo que se comprazia no sonho de uma liberdade
imaginaria e que, quando começa a suspeitar que essa liberdade é apenas um sonho, teme ser
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despertado e conspira com essas agradáveis ilusões para ser mais longamente enganado, assim eu,
por mim mesmo, retorno invisivelmente às minhas antigas opiniões e receio despertar dessa sonolência,
temendo que as vigílias laboriosas que se sucederiam à tranqüilidade de tal repouso, ao invés de
propiciarem alguma luz ou alguma clareza no conhecimento da verdade, não fossem suficientes para
aclarar as trevas das dificuldades que acabam de ser tratadas.

Eu Sou Uma Coisa Que Pensa


2.ª Meditação

Eu me persuadi de que nada existia no mundo, que não havia nenhum céu, nenhuma terra, espíritos
alguns, corpos alguns; também não me persuadi de que eu não existia? É certo que não, eu existia sem
dúvida, se é que me persuadi ou somente pensei alguma coisa. Mas há um não sei quem, enganador
muito poderoso e astucioso, que emprega toda a sua indústria em enganar-me sempre. Por conseguinte,
não há a menor dúvida de que sou, se ele me engana; e, por mais que ele queira enganar-me, nunca
poderá fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De maneira que, após ter
pensado bastante nisto e ter cuidadosamente examinado todas as coisas, há que concluir finalmente e
ter por constante que esta proposição, "Eu sou, eu existo", é necessariamente verdadeira, todas as
vezes em que a enuncio ou em que a concebo em meu espírito.
Mas ainda não conheço bastante o que sou, eu, que estou certo de que sou; de maneira que, de agora
em diante, é preciso que eu atente cuidadosamente, para não tomar imprudentemente alguma outra
coisa por mim e assim não me equivocar nesse conhecimento que sustento ser mais certo e mais
evidente do que todos os que tive até o momento.
Eis por que considerarei de novo o que acreditava ser, antes de penetrar nesses últimos pensamentos; e
de minhas antigas opiniões abolirei tudo o que pode ser combatido pelas razões que há pouco aleguei,
de maneira a só permanecer precisamente o que é inteiramente indubitável. Por conseguinte, que é que
eu acreditava ser até aqui? Sem dificuldade, eu pensei que era um homem. Mas que é um homem? Direi
que é um animal racional? Não, certamente; pois seria necessário que em seguida pesquisasse o que é
animal e o que é racional e assim, de uma só questão, cairíamos insensivelmente numa infinidade de
outras mais difíceis e embaraçosas, e eu não gostaria de abusar do pouco tempo e do lazer que me
resta, empregando-o em desvendar semelhantes sutilezas.
Mas, antes, deter-me-ei em considerar aqui os pensamentos que anteriormente nasciam por si mesmos
em meu espírito e que eram inspirados apenas por minha natureza quando eu me empenhava na
consideração de meu ser. Considerava-me, primeiramente, como tendo um rosto, mãos, braços e toda
essa máquina composta de osso e carne, tal como ela aparece num cadáver e a qual eu designava pelo
nome de corpo. Por outro lado, considerava que eu me alimentava, que andava, que sentia e que
pensava, relacionando todas essas ações à alma; mas não me detinha em pensar o que era essa alma
ou, então, se aí me demorava, imaginava que ela era algo de extremamente raro e sutil, como um vento,
uma chama ou um ar muito tênue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes mais
grosseiras. No que se referia ao corpo, eu não duvidava de modo algum de sua natureza; pois eu
pensava conhecê-la mui distintamente e, se quisesse explicá-la segundo as noções que tinha dela, tê-la-
ia descrito da seguinte maneira: por corpo, entendo tudo o que pode ser limitado por alguma figura; que
pode ser compreendido em qualquer lugar e preencher um espaço de tal maneira que todo outro corpo
seja dela excluído; que pode ser sentido pelo tato, ou pela visão, ou pela audição, ou pelo paladar, ou
pelo olfato; que pode ser movido por diversas maneiras, não por si mesmo, mas por algo alheio pelo qual
seja tocado e do qual se pudesse atribuir à natureza corpórea vantagens como a de ter o poder de
mover-se a si própria; ao contrário, espantava-me antes ao ver que semelhantes faculdades se
encontravam em certos corpos.
Mas eu, que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dize-
lo, malicioso e astucioso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me?
Poderei ter a certeza de possuir a menor de todas as coisas que acima atribuí à natureza corpórea?
Detenho-me a pensar nisso em meu espírito, e não encontro nenhuma que possa dizer que existe em
mim. Não é necessário que me demore a enumerá-las. Por conseguinte, passemos aos atributos da alma
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e vejamos se há alguns que existam em mim. Os primeiros são alimentar-me e andar; mas se é
verdade que não tenho corpo algum, também é verdade que não posso andar nem me alimentar. Um
outro é sentir; mas não se pode sentir também sem o corpo; além disso, outrora eu pensei sentir várias
coisas durante o sono e verifiquei, ao despertar, que não as sentira efetivamente. Um outro é pensar; e
constato aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de
mim. Eu sou, eu existo; isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu
penso; pois poderia ocorrer que, se eu deixasse de pensar, eu deixaria ao mesmo tempo de ser ou de
existir. Agora eu nada admito que não seja necessariamente verdadeiro: portanto, eu não sou,
precisamente falando, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão,
que são termos cuja significação me era desconhecida anteriormente. Ora, eu sou uma coisa verdadeira
e verdadeiramente existente; mas que coisa? Já o disse: uma coisa que pensa. E que mais? Excitarei
ainda minha imaginação, para verificar ainda se não sou algo mais. Eu não sou essa reunião de membros
que se chama corpo humano; não sou um ar tênue e penetrante, disseminado por todos esses membros;
não sou um vento, um sopro, um vapor nem nada que possa fingir e imaginar, uma vez que supus que
tudo isso não era nada e que, sem modificar tal suposição, constato que não deixo de estar certo de que
sou alguma coisa.

O Pedaço De Cera
3.ª Meditação

Comecemos pelas considerações das coisas mais comuns e que julgamos compreender mais
distintamente, e saber, os corpos que tocamos e que vemos. Não pretendo falar dos corpos em geral,
uma vez que essas noções gerais comumente são mais confusas, mas de qualquer corpo em particular.
Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da colmeia: ele ainda não perdeu a
doçura do mel que continha, ainda retém algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura
e sua grandeza são evidentes: ele é duro e frio quando o tocamos e, se nele batermos, produzirá algum
som. Enfim, todas as coisas que podem distintamente fazer conhecer um corpo, encontram-se neste.
Mas eis que, enquanto falo, alguém o aproxima do fogo: o que nele restava de sabor, exala-se, o odor se
desvanece, sua cor se modifica, sua figura se perde, sua grandeza aumenta, ele se torna líquido,
esquenta-se, mal podemos tocá-lo, e, ainda que batamos nele, não produzirá som algum. A mesma cera
permanece após essa transformação? Cumpre confessar que sim; e ninguém o pode negar. Que é,
então, que conhecíamos nesse pedaço de cera com tanta distinção? Certamente não pode ser nada do
que observei nela por intermédio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que se apresentavam ao
paladar, ou ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição se encontram modificadas e, no entanto, a
mesma cera permanece. Talvez fosse o que penso a atualmente, a saber, que a cera não era essa doçura
do mel, nem esse agradável perfume das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse som,
mas apenas um corpo que, pouco antes, se apresentava sob essas formas e que agora se faz notar sob
outras. Mas o que será, precisamente falando, que eu imagino quando a concebo dessa maneira?
Consideremo-la atentamente e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que
resta. É certo que não permanece senão algo de extenso, de flexível e mutável. Ora, que é isso: flexível e
mutável? Não estarei imaginando que esta cera, sendo redonda, é capaz de se tornar quadrada e de
passar do quadrado para uma figura triangular? É certo que não, não é isso, uma vez que a concebo
capaz de receber uma infinidade de transformações semelhantes e, no entanto, eu não poderia percorrer
essa infinidade com minha imaginação e, consequentemente, essa concepção que tenho da cera não se
realiza pela faculdade de imaginar.
E, agora, que é essa extensão? Não será também desconhecida, visto que na cera que se funde ela
aumenta e fica ainda maior quando aquela está inteiramente fundida e muito mais ainda quando o calor
aumenta mais? E eu não conceberia claramente, e segundo a verdade, o que é a cera; se não pensasse
que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão do que nunca imaginei. Por conseguinte, é
preciso que eu concorde que não poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera, e que só
meu entendimento é quem o concebe.
171
A Liberdade
4.ª Meditação

O que existe unicamente é a vontade que sinto ser tão grande em mim, que não concebo de modo
algum a idéia de nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de maneira que é ela, principalmente que
me faz conhecer que trago a imagem e a semelhança de Deus. Pois, ainda que ela seja
incomparavelmente maior em Deus do que em mim, seja em virtude do conhecimento e do poder - que,
encontrando-se juntos aí, a tornam mais firme e mais eficaz - seja em virtude do objeto, na medida em
que ela se dirige e se estende infinitamente a mais coisas; ela não me parece todavia maior se eu a
considero formal e precisamente em si mesma. Pois ela consiste somente em que podemos fazer uma
coisa ou deixar de fazê-la (isto é, afirmar ou negar, perseguir ou fugir), ou, antes, somente em que, para
afirmar ou negar, perseguir ou fugir as coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal modo que
não sentimos de maneira alguma força exterior que nos obrigue a isso.
Pois, para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente na escolha de um ou outro dos dois
contrários; mas, antes, quanto mais eu tender para um, seja porque eu conheça evidentemente que o
bem e o verdadeiro aí se encontram, seja porque Deus disponha assim o interior do meu pensamento,
tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei. É certo que a graça divina e o conhecimento natural,
bem longe de diminuírem minha vontade, antes a aumentam e a fortalecem. De modo que essa
indiferença que sinto, quando não sou de maneira alguma impelido mais para um lado do que para outro
pelo peso de alguma razão, é o mais baixo grau de liberdade, e faz antes parecer uma carência de
conhecimento do que uma perfeição na vontade; pois, se eu sempre conhecesse claramente o que é
verdadeiro e o que é bom, nunca teria dificuldade em deliberar qual juízo e qual escolha deveria fazer; e,
assim, eu seria inteiramente livre, sem nunca ser indiferente.

O Argumento Ontológico
5.ª Meditação

Ora, agora, se do simples fato de que posso tirar de meu pensamento a idéia de alguma coisa, segue-se
que tudo o que eu reconheço pertencer clara e distintamente a essa coisa, pertence-lhe efetivamente,
não posso tirar daí um argumento e uma prova demonstrativa da existência de Deus? É certo que não
encontro menos em mim sua, isto é, a idéia de um ser soberanamente perfeito, do que a idéia de
qualquer figura ou de qualquer número que seja. E não conheço menos clara e distintamente que uma
atual e eterna existência pertence à sua natureza do que conheço que tudo o que posso demonstrar de
qualquer figura ou de qualquer número pertence verdadeiramente à natureza dessa figura ou desse
número. E, portanto, ainda o que tudo que concluí nas Meditações precedentes não fosse absolutamente
verdadeiro, a existência de Deus deve apresentar-se em meu espírito pelo menos como tão certa quanto
considerei até aqui todas as verdades da matemática, que só dizem respeito aos números e às figuras: se
bem que, na verdade, isso, de início, não pareça inteiramente manifesto, que se afigure com alguma
aparência de sofisma. Pois, estando habituado em todas as outras coisas a fazer distinção entre
existência e essência, persuado-me facilmente de que a existência pode ser separada da essência de
Deus e que, assim, se possa conceber Deus como não existindo atualmente. Todavia, quando penso
nisso com mais atenção, verifico claramente que a existência não pode ser separada da essência de um
triângulo retilíneo não pode ser separada a grandeza de seus três ângulos iguais a dois retos ou, da idéia
de uma montanha, a idéia de um vale; de maneira que não há menos repugnância em conceber um
Deus (isto é, um ser soberanamente perfeito) ao qual falta a existência (isto é, ao qual falta alguma
perfeição) do que em conceber uma montanha que não tenha um vale.
Mas, ainda que efetivamente eu não possa conceber um Deus sem existência, assim como uma
montanha sem vale, todavia, como do simples fato de eu conceber uma montanha com um vale não se
segue que haja qualquer montanha no mundo, do mesmo modo, embora eu conceba Deus com
existência, parece que isso não implica em que haja algum Deus existente; pois, meu pensamento não
impõe necessidade alguma às coisas; e como só depende de mim imaginar um cavalo alado, embora não
exista nenhum dotado de asas, assim eu talvez pudesse atribuir existência a Deus, ainda que Deus
172
nenhum existisse. Mas não é assim, pois aqui há um sofisma escondido sob a aparência dessa
objeção; pois, do fato de eu não poder conceber uma montanha sem vale, não se segue que haja no
mundo montanha alguma, nem vale algum, mas apenas que a montanha e o vale, quer existam, quer
não existam, não podem, de maneira alguma, estar separados um do outro; ao passo que, do simples
fato de eu não poder conceber Deus sem existência, segue-se que a existência lhe é inseparável, e que,
portanto, ele existe verdadeiramente; não que meu pensamento possa fazer com que isso seja assim e
que ele imponha alguma necessidade às coisas; mas, ao contrário, porque a própria coisa, a saber, a
existência de Deus, determina meu pensamento a concebê-lo dessa maneira. Pois, não está em minha
liberdade conceber um Deus sem existência (isto é, um ser soberanamente perfeito sem uma soberana
perfeição), como me é dada a liberdade de imaginar um cavalo com ou sem asas.

O Empirismo - Hume

David Hume

David Hume nasceu na Escócia, em Edimburgo em 1711. Hume pertencia a uma família abastada. Fez
bons estudos no colégio de Edimburgo - um dos melhores da Escócia, em seguida transformado em
universidade -, cujo professor de "filosofia", isto é, de física e ciências naturais, Stewart, era um cientista
discípulo de Newton. O jovem Hume, que sonha tornar-se homem de letras e filósofo célebre,
rapidamente renuncia aos estudos jurídicos e comerciais, passa alguns anos na França, notadamente em
La Flèche, onde compõe, aos vinte e três anos, seu Tratado da Natureza Humana, editado em Londres,
em 1739. A obra, diz-nos o autor, "já nasceu morta para a imprensa". Esse fracasso deu a Hume a idéia
de escrever livros curtos, brilhantes, acessíveis ao público mundano. Seus Ensaios Morais e Políticos
(1742) conhecem vivo sucesso. Hume se esforça por simplificar e vulgarizar a filosofia de seu tratado e
publica então os Ensaios Filosóficos sobre o Entendimento Humano (1748), cujo título definitivo surgirá
em edição seguinte (1758): Investigação (Inquiry) sobre o Entendimento Humano. A obra obtém
sucesso, mas não deixa de inquietar os cristãos, e Hume vê lhe recusarem uma cadeira de filosofia na
Universidade de Glasgow. Ele acabará por fazer uma bela carreira na diplomacia. De 1763 a 1765 ele é
secretário da Embaixada em Paris e festejado no mundo dos filósofos. Em 1766 ele hospeda Rosseau na
Inglaterra, indispondo-se com ele em seguida. Em 1768, ele é Secretário de Estado em Londres. Nesse
meio tempo, publicou uma Investigação sobre os Princípios Morais (1751), uma volumosa História da
Inglaterra (1754-1759) e uma História Natural da Religião (1757). Somente após sua morte (1776) é que
foram publicados, em 1779, seus Diálogos sobre a Religião Natural.

O Método de Hume

Hume quis ser o Newton da psicologia. O subtítulo de seu Tratado da Natureza Humana é, nesse sentido,
bastante esclarecedor: "Uma tentativa de introdução do método de raciocínio experimental nas ciências
morais. A análise psicológica do entendimento operada por Hume parece, à primeira vista, muito próxima
da de Locke. Ele parte do princípio de que todas as nossas "idéias" são ópias das nossas "impressões",
isto é, dos dados empíricos: impressões de sensação, mas, também, impressões de reflexão (emoções e
paixões). Não é este o ponto de vista tradicional do empirismo que vê na experiência a fonte de todo
saber?
Na realidade, o método de Hume pode ser apresentado de maneira mais moderna. Sua filosofia coloca,
sob o nome de "impressões", aquilo que Bergson mais tarde denominará os dados imediatos da
consciência e que os fenomenologistas denominarão a intuição originária ou o vivido. Ao falar de
fenomenologia contemporânea, Gaton Berger escrevia: "É preciso ir dos conceitos vazios, pelos quais
uma idéia é apenas visada, à intuição direta e concreta da idéia, exatamente como Hume nos ensina a
retornar das idéias para as impressões". Para Hume, ir da idéia à impressão consiste em apenas
perguntar qual é o conteúdo da consciência que se oculta sob as palavras. Fala-se de substância, de
princípios, de causas e efeitos etc. Que existe verdadeiramente no pensamento quando se discorre sobre
isso? As quais impressões vividas correspondem todas essas palavras? Aquilo que Hume chama de
173
impressão e que ele caracteriza pelos termos "vividness", "liveliness" é o pensamento atual, vivo,
que se precisa redescobrir sob as palavras (no empirismo de Hume, diz Laporte, há que ver "antes o ódio
ao verbalismo do que o preconceito do sensualismo").

A Análise da Idéia de Causa

Aos olhos de Hume, a noção de causalidade é muito enigmática porque, em nome desse princípio de
causalidade, a todo momento afirmamos mais do que vemos, não cessamos de ultrapassar a experiência
imediata. Por exemplo, em nome do princípio de causalidade (as mesmas causas produzem os mesmos
efeitos ou o aquecimento da água é causa da ebulição), afirmo que a água que acabo de pôr no fogo vai
ferver; prevejo a ebulição dessa água, portanto, tiro "de um objeto uma conclusão que o ultrapassa".
Todo raciocínio experimental, pelo qual do presente se conclui o futuro (a água vai ferver, a barra de
metal vai se dilatar, amanhã fará dia etc.), repousa nesse princípio de causalidade.
De onde me vem esse princípio? A qual impressão corresponde essa idéia? A "investigação" filosófica vai
se apresentar aqui como uma pesquisa em todas as direções:
"Nós devemos proceder como essas pessoas que, ao procurarem um objeto que lhes está oculto e
quando não o encontram no lugar que esperavam, vasculham todos os lugares vizinhos sem visão nem
propósitos determinados, na esperança de que sua boa sorte irá orientá-las no sentido do objeto de suas
buscas". Vejamos para onde nos conduzirá essa busca filosófica.
Hume não encontrará, em nenhum setor da experiência, uma impressão concreta de causalidade que
torne legítima essa idéia de causa que pretendemos ter:
a) Consideremos, de início, a experiência externa: vejo que o movimento de uma bola de bilhar é
seguido do movimento de outra bola com que a primeira se chocou, assim como vejo que o aquecimento
é seguido da ebulição: vejo, então, que o fenômeno A é seguido do fenômeno B. Mas o que não vejo é o
porquê dessa sucessão. É certo que posso repetir a experiência e que, cada vez em que a repito, o
fenômeno B se segue ao fenômeno A. Mas isto não esclarece nada. A repetição constante de um enigma
não é o mesmo que sua solução. Vejo bem que, entre os fenômenos A e B, há uma conjunção
constante, mas não vejo conexão necessária. Constato que A se mostra e que, depois, B aparece. Mas
não constato que B aparece porque A se mostra. A experiência externa apenas me fornece o e depois,
não me dá a origem do porquê.
b) Examinemos agora essa experiência, simultaneamente interna e externa, que faço a todo momento
em que sinto o poder da minha consciência sobre meu corpo. Não terei aqui a chave do princípio de
causalidade. Se quero levantar o braço, levanto-o. Não é evidente que minha vontade é a causa do
movimento de meu corpo? Mas, se refletirmos bem, essa experiência não é menos clara do que a
precedente. Constato duas coisas: inicialmente, que quero levantar o braço, em seguida, que ele se
levanta. Não sei absolutamente por meio de que engrenagem neuromuscular complexa se opera o
movimento de meu braço. Um paralítico, como eu, quer levantar o braço e, para surpresa sua, constata
que nenhum movimento se segue ao seu desejo.
E eu, cuja língua ou cujos dedos se movem segundo minha vontade, não tenho o menor poder sobre
meu coração ou sobre meu fígado. Lembramo-nos como a sucessão de meu querer e de meus
movimentos espantava Malebranche a tal ponto que ele via em minha vontade apenas uma ocasião a
partir da qual Deus produzia o movimento de meu corpo. Aos olhos de Hume, filósofo do século XVIII,
essa hipótese é extravagante, mas ele retém a análise psicológica do grande filósofo francês. Ainda aqui,
constato com surpresa que quero efetuar certos movimentos e depois que esses movimentos se
realizam. Mas não constato o porquê, não tenho experiência de uma conexão necessária. Permanece
enigmática a ação da alma sobre o corpo: "Se tivéssemos o poder de afastar as montanhas ou
controlar os planetas, esse poder não seria mais extraordinário".
c) Quer dizer enfim da esperiência puramente interior da sucessão de minhas próprias idéias? Deve
admitir que minha reflexão atenta é causa das idéias que me ocorrem? Mas, de saída, segundo os casos
ou os momentos, as idéias ocorrem ou não. Pela manhã, elas ocorrem melhor do que à tarde (em
alguns) e melhor antes da refeição do que após. Ainda aqui constato a existência de uma sucessão entre
meu esforço de atenção e minhas idéias, mas não vejo conexão necessária entre os dois fatos.
174
Por conseguinte, a conclusão se impõe. Não existe nenhuma impressão autêntica da causalidade. O
que acontece é que eu acredito na causalidade e Hume explica essa crença, partindo do hábito e da
associação das idéias. Por que será que espero ver a água ferver quando a aqueço? É porque, responde
Hume, aquecimento e ebulição sempre estiveram associados em minha experiência e essa associação
determinou um hábito em mim. Coloco a água no fogo e afirmo, em virtude de poderoso hábito: vai
ferver. Se estabeleço "uma conclusão que projeta no futuro os casos passados de que tive experiência", é
porque a imaginação, irresistivelmente arrastada pelo peso do costume, resvala de um evento dado
àquele que comumente o acompanha. Aparento antecipar a experiência quando, na verdade, cedo a uma
tendência criada pelo hábito. Por conseguinte, a necessidade causal não existe realmente nas coisas. "A
necessidade é algo que existe no espírito, não nos objetos."

O Ceticismo de Hume

O empirismo de Hume surge então como um ceticismo; explicar psicologicamente a crença no princípio
de causalidade é recusar todo valor a esse princípio. De fato, não existe, na idéia de causalidade, senão o
peso do meu hábito e da minha expectativa. Espero invencivelmente a ebulição da água que coloquei no
fogo. Mas essa expectativa não tem fundamento racional. Em suma, poderia ocorrer - sem contradição -
que essa água aquecida se transformasse em gelo! "Qualquer coisa, diz Hume, pode produzir
qualquer coisa." No domínio das proposições lógicas, A não pode ser não-A. Mas nas "matters of
fact", tudo pode acontecer. Aquele rei de Sião, que condenara à morte o embaixador norueguês em sua
corte (porque este último zombara dele ao afirmar que em seu país, no inverno, os rios se tornavam tão
duros que se podia fazer deslizar trenós sobre os mesmos!!), errara muito ao negar um fato contrário à
sua experiência. O princípio de causalidade, inteiramente explicado por uma ilusão psicológica, não tem o
menor valor de verdade. Pascal, que já esboçara essa análise psicológica da indução, dizia em fórmula
surpreendente: "Quem reduz o costume a seu princípio, anula-o".
O ceticismo de Hume, portanto, surge-nos, dirá Hegel mais tarde, como um ceticismo absoluto. Para
Hegel, ao ceticismo antigo, que duvida sobretudo dos sentidos para preparar a conversão do espírito ao
mundo das verdades eternas, opõe-se um ceticismo moderno - de que Hume seria o corifeu - que nega
apenas as afirmações da metafísica e fundamenta, solidamente, as verdades da ciência experimental. Na
realidade, o ceticismo de Hume, ao abolir o princípio de causalidade, lança a suspeita em toda ciência
experimental. Em todos os princípios do conhecimento ele descobre as ilusões da imaginação e do
hábito. Até a unidade do eu - que se nos apresenta ingenuamente como uma evidência - é ilusória para
ele. Segundo Hume, é também a imaginação que identifica o eu com o que ele possui ou, como dizemos,
o ser e o ter. Em última instância, eu tenho reputação e mesmo lembranças, idéias e sonhos do mesmo
modo que tenho esta roupa ou esta casa. É simplesmente a imaginação, hábil em mascarar a
descontinuidade de todas as coisas, que facilmente desliza de um estado psíquico a outro e constrói o
mito da personalidade, coleção de haveres heteróclitos que é dado como um ser. Pois, ou eu sou meus
"estados" e minhas "qualidades" e não sou eu mesmo, ou então sou eu mesmo e nada mais.
Só que Hume é o primeiro a reconhecer que seu ceticismo, por mais absoluto que seja, é artificial. Hume,
como todo mundo, quando coloca a água no fogo, está persuadido de que ela vai ferver. Quando reflete
como filósofo, em seu gabinete, ele é cético. Quando mergulha na vida corrente, suas "conclusões
filosóficas parecem desvanecer-se como os fantasmas da noite ao nascer do dia". Se, diz ele
curiosamente, "após três ou quatro horas de diversão, eu quisesse retornar às minhas especulações,
estas me pareceriam tão frias, tão forçadas e ridículas que não poderia encontrar coragem e retomá-las
por pouco que fosse". A crença no princípio de causalidade, absurda no plano da reflexão, é natural,
instintiva. A teoria de Hume, por conseguinte, é simultaneamente um dogmatismo instintivo e um
ceticismo reflexivo. Ceticismo e dogmatismo não se apresentam nele segundo os domínios do saber, mas
segundo os níveis do pensamento. Ninguém mais do que ele separou filosofia e vida. Ele filosofa
ceticamente segundo uma reflexão rigorosa e dissolvente. Podemos então qualificar, de certo modo,
como "humorístico" o ceticismo desse filósofo inglês que, por outro lado, ousou dizer que convinha a um
cavalheiro pensar como os whigs... e votar como os tories.
175
Hume e o Problema da Religião

Essa complexidade da filosofia de Hume torna mais difícil a elucidação de sua filosofia religiosa.
Consideremos, por exemplo, o célebre Ensaio Sobre os Milagres. Ele parece ter sido escrito sob a ótica da
filosofia das luzes: o milagre é impossível porque contraria a experiência, as leis da natureza. Em
compensação, a crença popular nos milagres - perfeitamente explicável pelas leis que governam a
imaginação crédula dos homens - é muito natural!
"A velhacaria e a idiotice humanas são fenômenos tão correntes, que eu antes acreditaria que os
acontecimentos mais extraordinários nascem do seu concurso, ao invés de admitir uma inverossímil
violação das leis da natureza". Em suma, Hume se apóia no determinismo físico para rejeitar a realidade
do milagre e no determinismo psicológico para explicar sua ilusão tenaz. Mas como Hume pode apoiar-se
no determinismo, uma vez que sua crítica da causalidade fez desse próprio determinismo uma ilusão
psicológica? Pascal, fundamentava-se precisamente numa crítica análoga à de Hume para afirmar a
possibilidade do milagre. Ressuscitar, dizia, não é mais misterioso do que nascer. "O costume torna um
fácil, sua falta torna o outro impossível: popular maneira de julgar" Quando Hume rejeita o milagre, não
estará pensando ao nível da imaginação e do costume, não estará julgando "popularmente"? Seu
combate pelas luzes situar-se-ia então no plano da reflexão filosófica que justamente anula o prestígio do
costume e do bom-senso indutivo.
Os Diálogos sobre a Religião Natural são difíceis de interpretar porque se trata de verdadeiros diálogos,
em que cada personagem sustenta seu ponto de vista com argumentos sérios; o próprio Hume afirma ter
"querido evitar esse erro vulgar que consiste em só colocar absurdos na boca dos adversários". Os três
personagens são: um deísta racionalista, Cleanto, que demonstra a existência de Deus partindo das
maravilhas do universo; Demea, místico anti-racionalista, e o cético Filon. Ao fim da obra, Hume afirma
que está mais próximo de Cleanto. Mas, numa carta de 1751 a Gilbert Elliot of Minto, ele declara que, no
momento da redação de seus Diálogos, o papel de Filon e Demea estão sempre de acordo quando se
trata de demolir o racionalismo, o antropomorfismo e o otimismo de Cleanto. Enquanto muitos filósofos
do século das luzes reservam sua ironia crítica para a religião revelada e encontram na ordem do mundo,
na finalidade, argumentos para a religião natural, tem-se a impressão de que Hume multiplica suas
críticas "céticas" à religião natural. A noção de um Deus-Providência parece-lhe pouco compatível com os
sofrimentos e os males de que os homens são vítimas neste mundo. Por outro lado, observa Hume
sutilmente, se a verdade do sofrimento humano é, para o filósofo, um argumento decisivo contra a
Providência, é precisamente esse sofrimento que conduz o povo a buscar as consolações da religião. O
mesmo fato, que para o filósofo é uma objeção maior à religião, surge, no povo, como a forca essencial
da crença! Finalmente, a crítica da razão teológica tem, portanto, em Hume, o mesmo sentido que a
crítica da razão experimental. Em ambos os casos, ele substitui a pesquisa de um fundamento lógico -
que se apresenta impossível - pela pesquisa de origem psicológica da crença. O ceticismo de Hume é um
psicologismo.

Textos de Hume

O Problema da Causalidade
(Segundo a Investigação sobre o Entendimento)

Não temos necessidade de temer que esta filosofia, na medida em que tenta limitar nossas pesquisas à
vida corrente, nunca destrua os raciocínios de vida corrente e leve suas dúvidas tão longe a ponto de
destruir toda ação como toda especulação. A natureza sempre manterá seus direitos e, no fim,
prevalecerá sobre os raciocínios abstratos. Mesmo que concluamos, por exemplo, que em todos os
raciocínios tirados da experiência o espírito dá um passo que não é sustentado por nenhum progresso do
entendimento, não há nenhum perigo que esses raciocínios, dos quais depende quase todo
conhecimento, sejam afetados por tal descoberta. Se o espírito não está obrigado a dar esse passo por
meio de um argumento, ele deve ser conduzido por outro princípio igual em peso e em autoridade; tal
176
princípio conservará sua influência por tanto tempo que a natureza humana permanecerá a mesma.
A natureza desse princípio bem merece que nos entrguemos ao esforço de investigar sobre ela.
Suponha-se que um homem, dotado das mais poderosas faculdades de razão e de reflexão, seja
subitamente transportado por este mundo; certamente ele observaria de imediato uma contínua
sucessão de objetos, um acontecimento seguir-se a outro; mas seria incapaz de descobrir outra coisa. De
saída, ele seria incapaz, por meio de algum raciocínio, de atingir a idéia de causa e efeito, pois os
poderes particulares que concretizam todas as operações naturais nunca se apresentam aos sentidos; e
não é razoável concluir, unicamente porque um acontecimento precede outro em um único caso, que um
seja a causa e o outro o efeito. Sua formação pode ser arbitrária e acidental. Não existe razão para se
inferir a existência de um pela aparição do outro. Numa palavra, aquele homem, sem mais experiência,
nunca faria conjecturas ou raciocínios sobre qualquer questão de fato; só estaria certo do que está
imediatamente presente em sua memória e em seus sentidos.
Suponha-se ainda que este homem tenha adquirido mais experiência e que tenha vivido por muito tempo
no mundo para que tenha observado a conjugação constante de objetos e de acontecimentos familiares;
que resulta dessa experiência? Ele imediatamente infere a existência de um dos objetos pela aparição do
outro. Todavia, ele não adquiriu, com toda sua experiência, nenhuma idéia, nenhum conhecimento do
poder oculto pelo qual um dos objetos produz o outro; e não é por nenhum progresso de raciocínio que
ele é obrigado a chegar a esta conclusão. Mas ele sempre se acha determinado a tirá-la; e, mesmo que o
convencêssemos que seu entendimento de modo algum participa na operação, ele continuaria a ter o
mesmo pensamento. Existe um outro princípio que o determina a estabelecer tal conclusão.
Esse princípio é o costume, o hábito. Pois, todas a vezes que a repetição de uma operação ou de um ato
particular produz uma tendência no sentido de renovar o mesmo ato ou a mesma operação sem o
impulso de qualquer raciocínio ou progresso do entendimento, dizemos sempre que essa tendência é o
efeito do costume. Ao empregar esta palavra não pretendemos ter dado a razão última de tal tendência.
Apenas designamos um princípio de natureza humana, universalmente reconhecido e bem conhecido por
seus efeitos.

O Problema do Mal
(Discurso de Filon nos Diálogos sobre a Religião Natural, capítulo XI)

Se todas as criaturas vivas fossem incapazes de sofrer ou se o mundo fosse administrado por volições
particulares, o mal nunca teria acesso ao universo; e se os animais fossem dotados de uma ampla
provisão de forças e de faculdades. se as diversas forças e princípios do universo fossem exatamente
construídos para sempre conservar o temperamento justo e o justo meio, necessariamente teria havido
muito pouco mal em comparação ao de que nos ressentimos efetivamente. Que diremos então nesta
ocasião? Diremos que tais circunstâncias não são necessárias e que facilmente poderiam ter sido
mudadas no arranjo do universo? Tal decisão parece demasiado presunçosa para criaturas tão cegas e
ignorantes como nós. Sejamos mais modestos em nossas conclusões. Convenhamos que, se a bondade
divina - entendo uma bondade tal qual a do homem - pudesse ser estabelecida por razões a priori
admissíveis, esses fenômenos, por mais deploráveis que fossem, não bastariam para perturbar o dito
princípio, mas poderiam facilmente, de algum modo desconhecido, se conciliar com ele. Todavia,
afirmamos que, como essa bondade não é previamente estabelecida, mas deve ser inferida segundo os
fenômenos, não pode haver nenhum motivo em favor de tal inferência, quando existem tantos males no
universo, e que teria sido tão fácil remediar isto para tanto que o entendimento humano possa ser
admitido a julgar em tal assunto. Sou suficientemente cético para convir que as más aparências, não
obstante todos os meus raciocínios, podem ser compatíveis com tais atributos. Tal conclusão não poderia
resultar do ceticismo: é preciso que ela provenha dos fenômenos e de nossa confiança nos raciocínios
que deles deduzimos.
Vejam este universo em torno de vocês. Que imensa profusão de seres animados e organizados,
sensíveis e agentes! Vocês admiram esta variedade e esta fecundidade prodigiosa. Mas examinem um
pouco mais de perto essas existências vivas, as únicas que vale a pena considerar. Como são hostis e
destruidoras umas para as outras! Como são insuficientes, tanto quanto são, para sua própria felicidade!
177
Quão desprezíveis ou odiosas para o espectador! O todo só suscita a idéia de uma natureza cega,
impregnada por um princípio vivificante e que deixa cair de seu regaço, sem discernimento nem cuidados
maternos, seus filhos estropiados e abortados!
Aqui o sistema maniqueu se apresenta como uma hipótese adequada para resolver a dificuldade; e, sem
dúvida, num certo sentido, ele é mais especioso e apresenta mais probabilidades do que a hipótese
comum, na medida em que dá uma explicação plausível da estranha mistura de bem e de mal que surge
na vida. Mas, por outro lado, se considerarmos a uniformidade e a concordância perfeitas das partes do
universo, não descobriremos aí qualquer marca do combate de um ser malfazejo contra um ser
benfazejo. É certo que existe uma oposição entre dores e prazeres nas afecções das criaturas sensíveis;
mas todas as operações da natureza não se realizam por uma oposição de princípios como quente e frio,
úmido e seco, leve e pesado! A verdadeira conclusão é que a fonte original de todas as coisas é
inteiramente indiferente a todos esses princípios e prefere tanto o bem ao mal quanto o quente ao frio, o
seco ao úmido ou o leve ao pesado.
Existem quatro hipóteses possíveis no que se refere às primeiras causas do universo: que são dotadas de
perfeita bondade, que possuem perfeita maldade, que são opostas e ao mesmo tempo possuem bondade
e maldade e que não possuem bondade nem maldade. Fenômenos mistos nunca poderiam provar os dois
primeiros princípios, que são isentos de mistura. A uniformidade e a firmeza das leis gerais parecem se
opor ao terceiro. Por conseguinte, o quarto parece muito mais provável.

O Empirismo - Hobbes
Tomás Hobbes

Tomás Hobbes nasceu em Westport, em 1588. Filho de clérigo, Hobbes, em 1608, sai da Universidade de
Oxford e se torna preceptor do filho de Lord Cavendish. Durante toda sua vida, ele será o amigo
devotado dos Stuarts. Antes mesmo da revolução de 1648, que vai suprimir o poder real, ele foge da
Inglaterra, onde se sente ameaçado por causa de suas convicções monarquistas. Viajará por diversos
países da Europa, notadamente pela Itália (encontrará Galileu em Florença) e sobretudo pela França
(encontrará o padre Mersenne em Paris). Retornará à Inglaterra por ocasião da restauração de Carlos II
em 1660.
Em 1642, ele publica em Paris o De Cive e, em 1651, faz publicar em Londres o Leviatã ou matéria,
forma e autoridade de uma comunidade eclesiástica e civil. O Leviatã será traduzido para o latim em
1688, em Amsterdam, mas nunca foi integralmente traduzido para o francês.
Hobbes é um empirista inglês e nele encontramos os temas fundamentais que serão sempre os da
escola. A origem de todo conhecimento é a sensação, princípio original do conhecimento dos próprios
princípios: a imaginação é um agrupamento inédito de fragmentos de sensação e a memória nada mais é
do que o reflexo de antigas sensações.
Todavia, Hobbes crê na possibilidade de uma lógica pura, de um raciocínio demonstrativo muito rigoroso.
Ao lado de uma indução empírica aproximativa, que da experiência passada conclui, sem prova decisiva,
o que se passará amanhã (e que não tem outro fundamento além da associação de idéias, the trayan of
imagination), Hobbes admite a existência de uma lógica pura, perfeitamente racional. Mas a essa lógica
só concernem símbolos, palavras (Hobbes é nominalista). Se definirmos rigorosamente as palavras e as
regras do emprego dos signos, podemos chegar a conclusões rigorosas, isto é, idênticas aos princípios de
que partimos. Mas trata-se de um jogo do pensamento, estranho às realidades concretas.
A filosofia de Hobbes é materialista e mecanicista. Assim como a percepção é explicada mecanicamente a
partir das excitações transmitidas pelo cérebro, assim a moral se reduz ao interesse e à paixão. Na fonte
de todos os nossos valores, há o que Hobbes denomina endeavour, em inglês, e conatus, em latim, isto
é, o instinto de conservação ou, mais exatamente, de afirmação e de crescimento de si próprio; esforço
próprio a todos os seres para unir-se ao que lhes agrada e fugir do que lhes desagrada (esse tema do
conatus será reencontrado no spinozismo).
É partindo de tais fundamentos psicológicos que Hobbes elabora sua justificação do despotismo. O
absolutismo da época de Hobbes geralmente se apóia na teologia (Deus teria investido os reis de seu
poder absoluto). Hobbes, ao justificar o poder absoluto do soberano, descobre-lhe uma origem natural.
178
Para ele, o direito, em todos os casos, reduz-se à força; mas distingue dois momentos na história da
humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por
seu poder real; cada um tem exatamente tanto de direito quanto de força e todos só pensam na própria
conservação e nos interesses pessoais. Para Hobbes, o homem se distingue dos insetos sociais, como as
abelhas e as formigas; por isso, o homem não possui instinto social. Ele não é sociável por natureza e só
o será por acidente.
Para compreender como o homem se resolve a criar a instituição artificial do governo, basta descrever o
que se passa no estado natural; o homem, por natureza, procura ultrapassar todos os seus semelhantes:
ele não busca apenas a satisfação de suas necessidades naturais, mas sobretudo as alegrias da vaidade
(pride). O maior sofrimento é ser desprezado. Assim sendo, o ofendido procura vingar-se, mas - observa
Hobbes, antecipando aqui os temas hegelianos - comumente não deseja a morte de seu adversário e
deseja seu cativeiro a fim de poder ler, em seu olhar atemorizado e submisso, o reconhecimento de sua
própria superioridade.
É claro que esse estado, em que cada um procura senão a morte, ao menos a sujeição do outro, é um
estado extremamente infeliz. As expressões pelas quais Hobbes o descreve são célebres: "Homo homini
lupus", o homem é o lobo do homem; "Bellum omnium contra omnes", é a guerra de todos contra todos.
Não pensemos que mesmo os homens mais robustos desfrutem tranqüilamente as vitórias que sua força
lhe assegura. Aquele que possui grande força muscular não está ao abrigo da astúcia do mais fraco. Este
último - por maquinação secreta ou a partir de hábeis alianças - sempre é o suficientemente forte para
vencer o mais forte. Por conseguinte, ao invés de uma desigualdade, é uma espécie de igualdade dos
homens no estado natural que faz sua infelicidade. Pois, em definitivo, ninguém está protegido; o estado
natural é, para todos, um estado de insegurança e de angústia.
Assim sendo, o homem sempre tem medo de ser morto ou escravizado e esse temor, em última instância
mais poderoso do que o orgulho, é a paixão que vai dar a palavra à razão. (Essa psicologia da vaidade e
do medo é, em Hobbes, uma espécie de laicização da oposição teológica entre o orgulho espiritual e o
temor a Deus ou humildade.) É o medo, portanto, que vai obrigar os homens a fundarem um estado
social e a autoridade política.
Os homens, portanto, vão se encarregar de estabelecer a paz e a segurança. Só haverá paz concretizável
se cada um renunciar ao direito absoluto que tem sobre todas as coisas. Isto só será possível se cada um
abdicar de seus direitos absolutos em favor de um soberano que, ao herdar os direitos de todos, terá um
poder absoluto. Não existe aí a intervenção de uma exigência moral. Simplesmente o medo é maior do
que a vaidade e os homens concordam em transmitir todos os seus poderes a um soberano. Quanto a
este último, notemo-lo bem, ele é o senhor absoluto desde então, mas não possui o menor compromisso
em relação a seus súditos.
Seu direito não tem outro limite que seu poder e sua vontade. No estado de sociedade, como no de
natureza, a força é a única medida do direito. No estado social, o monopólio da força pertence ao
soberano. Houve, da parte de cada indivíduo, uma atemorizada renúncia do seu próprio poder. Mas não
houve pacto nem contrato, o que houve, como diz Halbwachs, foi "uma alienação e não uma delegação
de poderes". O efeito comum do poder consistirá, para todos, na segurança, uma vez que o soberano
terá, de fato, o maior interesse em fazer reinar a ordem se quiser permanecer no poder. Apesar de tudo,
esse poder absoluto permanece um poder de fato que encontrará seus limites no dia em que os súditos
preferirem morrer do que obedecer. Em todo caso, esta á a origem psicológica que Hobbes atribui ao
poder despótico. Ele chama de Leviatã ao seu estado totalitário em lembrança de uma passagem da
Bíblia (Jó XLI) em que tal palavra designa um animal monstruoso, cruel e invencível que é o rei dos
orgulhosos.
Finalmente, o totalitarismo de Hobbes submete - apesar de prudentes reservas - o poder religioso ao
poder político. Assim é que ele exclui o "papismo" e o "presbiterianismo" por causa "dessa autoridade
que alguns concedem ao papa em reinos que não lhe pertencem ou que alguns bispos, em suas
dioceses, querem usurpar".
179
O Estado Natural e o Pacto Social
Leviatã, 1.ª parte: Do Homem

Cap. XIII

... O Estado de natureza, essa guerra de todos contra todos tem por conseqüência o fato de nada ser
injusto. As noções de certo e errado, de justiça e de injustiça não têm lugar nessa situação. Onde não há
Poder comum, não há lei; onde não há lei, não há injustiça: força e astúcia são virtudes cardeais na
guerra. Justiça e injustiça não pertencem à lista das faculdades naturais do Espírito ou do Corpo; pois,
nesse caso, elas poderiam ser encontradas num homem que estivesse sozinho no mundo (como acontece
com seus sentidos ou suas paixões). Na realidade, justiça e injustiça são qualidades relativas aos homens
em sociedade, não ao homem solitário. A mesma situação de guerra não implica na existência da
propriedade... nem na distinção entre o Meu e o Teu, mas apenas no fato de que a cada um pertence
aquilo que for capaz de o guardar. Eis então, e por muito tempo, a triste condição em que o homem é
colocado pela natureza com a possibilidade, é bem verdade, de sair dela, possibilidade que, por um lado,
se apóia na Paixões e, por outro, em sua Razão. As paixões que inclinam o homem para a paz são o
temor à morte violenta e o desejo de tudo o que é necessário a uma vida confortável... E a Razão sugere
artigos de paz convenientes sobre os quais os homens podem ser levados a concordar.

Cap. XIV

... O direito natural que os escritores comumente chamam de Jus naturale é a Liberdade que tem cada
um de se servir da própria força segundo sua vontade, para salvaguardar sua própria natureza, isto é,
sua própria vida. E porque a condição humana é uma condição de guerra de cada um contra cada um...
daí resulta que, nessa situação, cada um tem direito sobre todas as coisas, mesmo até o corpo dos
outros... Enquanto dura esse direito natural de cada um sobre tudo e todos, não pode existir para
nenhum homem (por mais forte ou astucioso que seja) a menor segurança...

Cap. XV

... Antes que se possa utilizar das palavras justo e injusto, é preciso que haja um Poder constrangedor;
inicialmente, para forçar os homens a executar seus pactos pelo temor de uma punição maior do que o
benefício que poderiam esperar se os violassem, em seguida, para garantir-lhes a propriedade do que
adquirem por Contrato mútuo em substituição e no lugar do Direito universal que perdem. E não existe
tal poder constrangedor antes da instituição de um Estado. É o que também resulta da definição que as
Escolas dão geralmente da justiça, a saber, que a justiça é a vontade de atribuir a cada um o que lhe
cabe pertencer; pois, quando nada é próprio, ou seja, quando não há propriedade, não há injustiça; e
onde não há Poder Constrangedor estabelecido, em outras palavras, onde não há Estado, não há
Propriedade e cada homem tem direito a todas as coisas. Por conseguinte, enquanto não há Estado,
nada há que seja Injusto.

O Iluminismo Francês

O Iluminismo Francês

Entre os grandes sistemas do século XVII, como os de Spinoza, Malebranche, Leibnitz, e os do século XIX
- doutrinas de Hegel ou de Augusto Comte - a filosofia do século XVIII ocupa um lugar original; ela
ignora as grandes sínteses, as grandes "visões do mundo", possantes e originais, e marca o triunfo da
inteligência crítica.
A substância doutrinal de quase todos os filósofos desse século provém de sistemas anteriores; segundo
d'Alembert, por exemplo, "Newton criou a física e Locke a metafísica".
180
a) Já na metade do século, a física de Newton destrona a de Descartes. Newton não faz o romance
da matéria, mas exprime os fatos realmente dados na linguagem rigorosa da matemática; ele explica o
movimento dos planetas, a gravidade, as marés. A matemática do infinitesimal descreve adequadamente
as variações contínuas dos fenômenos. Podemos dizer que a física de Newton contribuiu largamente para
a formação do espírito moderno, simultaneamente racionalista e experimental, ao relatar os fatos reais
em linguagem matemática, ao descrever o "como" dos fenômenos, renunciando a imaginar o longínquo
"por que" metafísico. "Hypotheses non fingo", não forjo imagens metafísicas, dizia Newton.
b) Locke passa por ser o criador da "metafísica", isto é, da ciência do espírito humano. O século XVIII
caracteriza-se por uma tendência empírica e analítica: procura-se explicar as idéias complexas a partir
das simples e as idéias a partir dos fatos.
c) Sem dúvida, há que acrescentar a influência capital de Spinoza. De sua doutrina evidenciar-se-á
sobretudo o naturalismo, a idéia de que o motor de todos os sêres é o desejo, "o esforço de perseverar
em seu ser", a idéia de que o homem não é "um império num império", mas que é regido pelas leis de
todo o universo. Deus é identificado com a natureza - Deus sive natura - e as leis ditas eventos
sobrenaturais, milagres, prodígios, profecias, encontram, na trapaça de uns e na credulidade de outros,
explicação suficiente e perfeitamente natural. Com as idéias de Newton, de Locke, de Spinoza, e também
de Descartes (cuja "visão"metafísica é rejeitada, mas cujo método racionalista é bem acolhido), os
pensadores do século XVIII farão suas armas: eles são, dir-se-ia hoje, filósofos engajados. Consideram-
se os artífices da felicidade humana e se empenham na destruição dos preconceitos e na difusão das
"luzes". (É o século das luzes, Aufklärung, isto é, do racionalismo.) Daí o tom particular desses filósofos
que fazem panfletos contra o poder, contra a Igreja, e que querem criar movimentos de opinião: a ironia
e a clareza do estilo adquirem eficácia particular para tais empreendimentos.

Condillac (1715-1780)

O filósofo mais notável do iluminismo francês é Estevão Bannot de Condillac (1715-1780). Ele
desenvolveu o empirismo de Locke num sentido francamente sensista, derivando da mera sensação -
sem reflexão - toda a experiência. Condillac exerceu uma influência particular sobre a cultura italiana,
orientando-a paa o sensismo, devido ao fato de ter ele sido, durante um decênio (1758-1767), preceptor,
na corte de Parma, de Fernando de Bourbon, herdeiro daquele trono. A obra filosófica mais importante
de Condillac é o Traité des sensations, em que desenvolve a sua concepção sensista.
Condillac imagina o homem como uma estátua, privada de toda sensação (tabula rasa) e que, em dado
momento, começa a ter uma sensação de olfato. A sensação odorosa (de uma rosa) torna-se memória,
quando, afastada a primeira sensação e sobrevindo outra, a primeira permanece com uma intensidade
atenuada. Uma lembrança vivaz torna-se imaginação. Tem-se, deste modo, uma série de três graus de
atenção, de atividade do espírito, constituindo a sensação o primeiro grau, a memória o segundo, a
imaginação o terceiro. Comparando a sensação atual com a sensação lembrada, nasce a distinção entre
presente e passado; a distinção entre atividade (na memória) e passividade (na sensação); a consciência,
o eu, que é uma coleção de sensações atuais e lembradas; o juízo, que é comparação entre sensações
presentes e passadas; a reflexão, isto é, a direção voluntária de atenção sobre uma determinada
sensação - idéia ou relação, juízo - em uma série de idéias e juízos; a abstração, isto é, a separação de
uma idéia de outra; e a generalização, isto é, a capacidade de noções gerais. Paralelamente ao
desenvolvimento teórico do espírito procede o desenvolvimento prático. Da sensação (agradável ou
dolorosa) nasce o sentimento (de prazer ou de dor). A lembrança de sensações agradáveis e a
comparação com as presentes, tornam-se desejo; o desejo preponderante torna-se paixão; o desejo
estável torna-se vontade.
O espírito adquire, assim, mediante um só sentido, o olfato, que é o mais pobre dos sentidos, o exercício
de todas as suas faculdades. O espírito, contudo, mediante o tato, adquire consciência do mundo físico,
do próprio corpo e dos demais corpos, pela resistência que o nosso esforço encontra no mundo externo.
Isto não prova, entretanto, a existência, a realidade, do mundo externo, porquanto se trata sempre de
sensações; o mundo externo é afirmado dogmaticamente, de sorte que, filosoficamente, estamos perante
um ceticismo metafísico.
181

Montesquieu (1689-1755)

A política de Montesquieu, exposta no Espírito das Leis (1748), surge como essencialmente racionalista.
Ela se caracteriza pela busca de um justo equilíbrio entre a autoridade do poder e a liberdade do cidadão.
Para que ninguém possa abusar da autoridade, "é preciso que, pela disposição das coisas, o poder
detenha o poder". Daí a separação entre poder legislativo, poder executivo e poder judiciário.
Montesquieu, porém, possui sobretudo concepção racionalista das leis que não resultam dos caprichos
arbitrários do soberano, mas são "relações necessárias que derivam da natureza das coisas". Assim é que
cada forma de governo determina, necessariamente, este ou aquele tipo de lei, esta ou aquela psicologia
para com os cidadãos: a democracia da cidade antiga só é viável em função da "virtude", isto é, pelo
espírito cívico da população. A monarquia tradicional repousa num sistema hierárquico de suseranos e
vassalos que só funciona a partir de uma moral da honra, ao passo que o despotismo só subsiste com a
manutenção, em toda parte, da força do medo. Não vemos como na Inglaterra a liberdade política
conduz à existência de leis particulares que não encontramos em outros regimes? As leis obedecem a um
determinismo racional. Como diz muito bem Brehier, "a variável aqui é a forma de governo de que as
legislações políticas, civil e outras são as funções". Todavia, as "relações necessárias", de que fala
Montesquieu, são muito menos a expressão de um determinismo sociológico de tipo materialista do que
a afirmação de uma ligação ideal, harmônica, entre certos tipos de governo e certas leis possíveis, sendo
que as melhores pertencem a este ou aquele governo, cabendo ao legislador descobri-las e aplicá-las.
Montesquieu, por exemplo, nunca afirmou que o clima determina, necessariamente, estas ou aquelas
instituições. Só os maus legisladores favorecem os vícios do clima. É preciso encontrar em cada clima, em
cada forma de governo, em cada circunstância em que se está colocado, quais as leis melhor adaptadas,
quais aquelas que, na situação considerada, realizarão o conjunto mais justo, mais harmonioso. O "direito
natural", a justiça ideal preexistem às leis escritas, uma vez que lhes servem de guia. "A verdadeira lei
da humanidade é a razão humana enquanto governa todos os povos da terra; dizer que só o
que as leis positivas ordenam ou proíbem é que constitui o que há de justo e injusto,
significa dizer que, antes que se tivesse traçado os círculos, todos os raios eram desiguais".

Voltaire (1694-1778)

Voltaire, de certo modo, é o tipo acabado do "filósofo" do século XVIII.


As idéias filosóficas de Voltaire, tirada de Locke e de Newton, não são originais. O próprio espírito
voltairiano teve seus precursores. Fontenelle (1657-1757) mostrou, antes de Voltaire, que a história se
explica mais pelo jogo das paixões humanas do que pelo decreto da Providência. E Fontenelle já colocara
(Conversações sobre a pluralidade dos mundos) a nova astronomia ao alcance dos marqueses. Pierre
Bayle (1647-1707), protestante francês exilado em Roterdam, possuía a arte de, antes de Voltaire, opor
os sistemas metafísicos entre si, a fim de ressaltar de suas contradições a necessidade da tolerância (o
Dicionário histórico e crítico de Bayle, 1697, é uma prodigiosa colocação de teses que testemunha sua
incomparável erudição e que será possuído por todos os intelectuais do século XVIII). Em seus
Pensamentos sobre o cometa, Bayle já apresenta ardis tipicamente voltairianos para comprometer, em
sua crítica aos prodígios e superstições populares, a fé nos milagres do cristianismo.
Voltaire, inimigo encarniçado do cristianismo, é um deísta convicto: a organização do mundo, sua
finalidade interna, só se explicam pela existência de um Criador inteligente ("Este mundo me espanta e
não posso imaginar / Que este relógio exista e não tenha relojoeiro"). Criticou Leibnitz e seu "melhor dos
mundos possíveis" que, após o terremoto de Lisboa, permanece otimista; contra Pascal, "misantropo
sublime", ele acha que o homem, reduzido apenas aos seus recursos, pode estabelecer uma certa justiça
sobre a terra e alcançar uma certa felicidade. Apesar de negar o pecado original, Voltaire, no entanto,
mantém o princípio de um Deus justiceiro. É certo que esse Deus policial é sobretudo requisitado para
manter a ordem social e as vantagens econômicas aproveitadas por Voltaire e os outros grandes
burgueses. O célebre verso de Voltaire "Se Deus não existisse precisaria ser inventado" deve, para
ser bem compreendido, ser citado com seu comentário: "e teu novo arrendatário / Por não crer em Deus,
182
pagar-te-á melhor?" É certo, no entanto, que Voltaire crê na ordem do mundo, numa finalidade
providencial. Para ele, a estrutura geográfica da terra, as espécies vivas são fixas; em nome desse
finalismo estático, ele rejeita as idéias evolucionistas que começam a se difundir. Recusa-se a crer nos
fósseis de animais marinhos descobertos nas montanhas por aquela época. Admitir que as montanhas
outrora estiveram submersas, seria negar a estabilidade e a finalidade da ordem atual do mundo. (Ele
também teme que esses fósseis marinhos nas montanhas só sirvam para os cristãos provarem a história
do dilúvio!).

Blaise Pascal

Vida e Obras

Nascido em Clermont-Ferrand, a 19 de junho de 1623, Blaise Pascal era filho de Étienne Pascal,
presidente da Corte de Apelação, e de Antoinette Bégon. Segundo sua irmã e biógrafa, Gilberte Périer,
Pascal revelou desde cedo um espírito extraordinário, não só pelas respostas que dava a certas questões,
mas sobretudo pelas questões que ele próprio levantava a respeito da natureza das coisas. Perdeu a mãe
aos três anos de idade; era o único filho do sexo masculino. Assim, o pai apegou-se muito a ele e
encarregou-se de sua instrução, nunca o enviando a colégios. Mesmo quando, em 1631, a família Pascal
mudou-se para Paris, a educação de Blaise permaneceu ao encargo do pai. A irmã Gilberte escreverá
mais tarde: "A máxima dessa educação consistia em manter a criança acima das tarefas que lhe eram
impostas; por esse motivo só deixou que aprendesse latim aos doze anos, para que aprendesse com
maior facilidade. Durante esse intervalo não o deixou ocioso, pois o ocupava com todas as coisas de que
o julgava capaz. Mostrava-lhe de um modo geral o que eram as línguas; ensinou-lhe como haviam sido
reduzidas as gramáticas sob certas regras, que tais regras tinham exceções assinaladas com cuidade, e
que por esses meios todas as línguas haviam podido ser comunicadas de um país para outro. Essa idéia
geral esclarecia-lhe o espírito e fazia-o compreender o motivo das regras da gramática, de sorte que
quando veio a aprendê-las sabia o que fazia e dedicava-se aos aspectos que lhe exigiam maior
dedicação".
Além das línguas, Étienne Pascal ensinava outras coisas ao filho: dava-lhe rudimentos sobre as leis da
natureza e sobre as técnicas humanas. Tudo isso aguçava ainda mais a curiosidade do menino, que
queria saber a razão de todas as coisas e não se satisfazia diante de explicações incompletas ou
superficiais. Diante de uma explicação insuficiente, passava a pesquisar por conta própria até encontrar
uma resposta satisfatória e, quando se defrontava com um problema, não o largava até resolvê-lo
plenamente. Aos onze anos, suas experiências sobre os sons levaram-no a escrever um pequeno tratado,
considerado muito bom para sua idade.
Étienne Pascal era matemático e sua casa era muito freqüentada por geômetras. Como queria que Blaise
estudasse línguas e, sabendo como a matemática é apaixonante e absorvente, evitou por muito tempo
que o filho a conhecesse, prometendo-lhe que a ensinaria quando ele já soubesse grego e latim. Essa
precaução serviu apenas para aumentar a curiosidade de Blaise, que passou a se divertir com as figuras
geométricas que o pai lhe havia mostrado. Procurava tracá-las corretamente; depois passou a buscar as
proporções entre elas e, afinal, depois de propor axiomas relativos às figuras, dedicou-se a fazer
demonstrações exatas. Com isso chegou até a 32ª proposição do livro I de Euclides. Estarrecido, o pai
verificou que o filho descobrira sozinho a matemática. A partir de então, Blaise recebeu os livros dos
Elementos de Euclides e pôde dedicar-se à vontade ao estudo da geometria. Os avanços foram rápidos:
aos dezesseis anos escreveu Tratado Sobre as Cônicas, que, no entanto, por sua própria vontade, não
foi impresso na época.

Entre a Ciência e a Religião

Não apenas na matemática revelou-se o gênio precoce de Pascal. Nas demais ciências realizou
surpreendentes progressos e aos dezenove anos inventou a máquina aritmética, que permitia que se
fizesse nenenhuma operação sem lápis nem papel, sem que se soubesse qualquer regra de aritmética,
183
mas com segurança infalível. O invento de Pascal foi considerado uma verdadeira revolução, pois
transformava uma máquina em ciência, ciência que reside inteiramente no espírito. A construção da
máquina, foi, todavia, muito complicada e Pascal levou dois anos trabalhando com os artesãos. Essa
fadiga comprometeu definitivamente sua saúde, que se tornou muito frágil daí por diante.
Aos 23 anos, tomou conhecimento da experiência de Torricelli (1608-1647) referente à pressão
atmostérica e realizou uma outra, denominada "a experiência do vácuo", provando que os efeitos
comumente atribuídos ao vácuo eram, na verdade, resultantes do peso do ar. Mais tarde - a partir de
1652 -, passou a sse interessaar pelos problemas matemáticos relacionados aos jogos de dados. As
pesquisas que fez a esse respeito conduziram-no à formulação do cálculo das probabilidades, que ele
denominou Aleae Geometria (Geometria do Acaso). O chamado Triângulo de Pascal foi um dos resultados
dessas pesquisas sobre jogos de azar: trata-se de uma tabela numérica que, entre outras propriedades,
permite calcular as combinações possíveis de m objetos agrupados n a n.
Um dos últimos trabalhos científicos de Pascal nesse período é o Tratado Sobre as Potências
Numéricas, em que aborda a questão dos "infinitamente pequenos". A essa questão voltará mais uma
vez em 1658, num derradeiro estudo científico sobre a área de ciclóide, curva descrita por um ponto da
circunferência que rola sem deslizar sobre uma reta. O método aplicado por Pascal para estabelecer essa
área abriu caminho à descoberta, do cálculo integral, realizada por Leibniz (1646-1716) e Newton (1642-
1727).
Em Ruão, para onde se havia mudado a família Pascal, Blaise conheceu Jacques Forton, senhor de Saint-
Ange-Montcard, com quem teve as primeiras discussões a respeito da Bíblia, dos dogmas e da Igreja
católica e da teologia em geral. Blaise e outros jovens, seus amigos, logo consideraram Saint-Ange-
Montcard um herético pernicioso. Começa então a fase apologética da obra de Pascal, quando ele se une
aos jansenistas do Port-Royal, sob a influência de sua irmã, Jacqueline Pascal, que havia entrado para o
convento. Segundo o relato de Gilberte, Jacqueline conseguiu persuaadir o irmão de que "a salvação
devia ser preferível a todas as coisas e que era um erro atentar para um bem passageiro do corpo
quando se tratava do bem eterno da alma". Pascal tinha então trinta anos, quando "resolveu desistir dos
compromissos sociais. Começou mudando de bairro e, para melhor romper com seus hábitos, foi morar
no campo, onde tanto fez para abandonar o mundo que o mundo afinal o abandonou".
Assim, depois do período em que procurou a verdade científica e a glória humana no domínio da
natureza e da razão, Pascal dirigiu seu interesse para as questões da Igreja e da Revelação, acalentando
o projeto de reunir a sociedade laica e a cristã e de combater a corrupção que teria sido causada pela
evolução dos últimos séculos. Nesse período escreve o Memorial, obra mística, e os trabalhos de cunho
apologético Colóquios com o Senhor de Saci Sobre Epicteto e Montaigne e as Províncias.
Na verdade, Pascal foi decisivamente marcado por um acontecimento, que determinou a mudança de sua
trajetória espiritual: o "milagre do Santo Espinho". O fato é narrado pela irmã de Pascal, Gilberte Périer:
"Foi por esse tempo que aprouve a Deus curar minha filha de uma fístula lacrimal que a afligia havia três
anos e meio. Essa fístula era maligna e os maiores cirurgiões de Paris consideravam incurável; e enfim
Deus permitiu que ela se curasse tocando o Santo Espinho que existe em Port-Royal, e esse milagre foi
atestado por vários cirurgiões e médicos, e reconhecido pelo juízo solene da Igreja". A cura de sua
sobrinha e afilhada repercuriu profundamente em Pascal: "... ele ficou emocionado com o milagre porque
nele Deus era gloorificado e porque ocorria num tempo em que a fé da maioria era medíocre. A alegria
que experimentou foi tão grande que se sentiu completamente penetrado por ela, e, como seu espírito
ocupava-se de tudo com muita reflexão, esse milagre foi a ocasião para que nele se produzissem muitos
pensamentos importantes sobre milagres em geral".
As análises sobre o milagre são fundamentais no pensamento de Pascal, pois determinam o centro de
todas as suas reflexões religiosas e filosóficas: a figura de Cristo, mediador entre o finito (as criaturas) e
o infinito (Deus criador). Em função de Cristo, Pascal estabelece a verdadeira relação entre os
dois Testamentos: o Antigo revelaria a justiça de Deus, perante a qual todos os homens
seriam culpados pela transmissão do pecado original; o Novo revelaria a misericórdia de
Deus, que o leva a descer entre os homens por intermédio de seu Filho, cujo sacrifício
infunde a graça santificante no coração dos homens e os redime. A idéia central de Pascal
184
sobre o problema religioso é, portanto, a de que sem Cristo o homem está no vício e na
miséria; com Cristo, está na felicidade, na virtude e na luz.
A figura de Cristo permite ainda a Pascal distinguir os pagãos, os judeus e os cristãos: os pagãos (isto é,
os filósofos) seriam aqueles que acreditam num Deus que é si mplesmente o autor das verdade
geométricas e da ordem dos elementos; os judeus seriam os que acreditam num Deus que exerce sua
providência sobre a vida e os bens dos homens a fim de dar-lhes um seqüência de anos felizes; já os
cristãos seriam os que crêem num Deus de amor e de consolação, que faz com que eles sintam
interiormente a miséria em que vivem e a infinita misericórdia de quem os criou. Somente aquele que
chega ao fundo da miséria e da indignidade e que sabe do mediador (Cristo), chegando por intermédio
dele a conhecer o verdadeiro Deus, pois só o mediador poderia reparar a miséria do homem.

Jansenismo e Monarquia Absoluta

Com o intuito de reformular globalmente a vida cristã, o holandês Cornélio Jansênio (1585-1638) deu
início a um movimento que abalou a Igreja caatólica durante os séculos XVII e XVIII. Descontente com o
exagerado raacionalismo dos teólogos escolásticos, Jansênio - doutor em teologia pela universidade de
Louvain e bispo de Ypres - uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne, futuro abade de Saint-Cyran, que
também pretendia o retorno so catolicismo à disciplina e à moral religiosa dos primórdios do cristianismo.
Os jansenistas dedicaram-se particularmente à discussão do problema da graça, buscando nas obras de
Santo Agostinho (354-430) elementos que permitissem conciliar as teses dos partidários da Reforma com
a doutrina católica.
Jansênio, na obra Augustinus, declarava que a razão filosófica era "a mãe de todas as heresias".
Baseando em Santo Agostinho sua doutrina do dúplice amor, sustentava que Adão, antes de pecar, era
livre; pelo pecado perdeu a liberdade e tornou-se escravo da concupiscência, que o arrastou para o mal.
Em conseqüência disso, o homem não pode deixar de pecar, a não ser que intervenha a caridade (amor
celeste), que o orienta infalivelmente para o bem. Submetidos à lei férrea desse dúplice amor, os seres
humanos tornaram-se escravos da Terra ou do Céu, arrastados para a condenação ou para a salvação.
Desse modo, independentemente das ações que comete, o homem estaria predestinado para o céu ou
para o inferno.
O jansenismo expandiu-se principalmente na França, graças à atuação do abade de Saint-Cyran e de
Antoine Arnauld (1612-1694), que, juntamente com outros intelectuais, instalaram-se em Port-Royal. Ali
o jansenismo assumiu forma ascética e polêmica, apresentando-se como um verdadeiro cisma, que logo
foi atingido pelos anátemas do papa.
Era uma época de profundas transformações políticas na França. A monarquia, em sua evolução, passava
de monarquia temperada do Antigo Regime (caracterizada pela primazia da realeza sobre os senhores,
graças ao apoio do Terceiro Estado, do corpo de legistas, de adminstradores e de oficiais) à monarquia
absoluta, na qual as atribuições dos oficiais e das cortes são transferidas para o corpo de comissários do
rei. Os indicadores do movimento jansenista na França - Saint-Cyran, Arnauld d'Andilly, Antoine Le Maître
- pertenciam à nobreza togada e em especial a um grupo desses nobres que esperavam passar à
condição de comissários do rei. E a ideologia que vai diversificar o interior desse grupo apresenta como
núcleo a afirmação da impossibilidade radical de se realizar uma vida válida neste mundo; isso leva
homens e mulheres não apenas a abandonar a vida mundana, no sentido corrente do termo, mas a
abandonar toda e qualquer função social.
Antes do início dpo movimento, os mais destacados integrantes do grupo de Port-Royal eram amigos e
companheiros do cardeal Richelieu, embora dele discordassem quanto a alguns pontos importantes:
preconizavam uma aliança com a Espanha católica e luta mortal contra os huguenotes, que estivessem
dentro ou fora do país.
Até 1637, a oposição entre o grupo e Richilieu não consistia em indagar se a vida cristã era ou não
compatível com a política, mas sim qual era a política cristã. A vitória de Richilieu desencadeou a ruptura
com o grupo e um de seus membros (Saint-Cyran) permaneceu, durante dez anos, na prisão do castelo
de Vincennes. A partir de então é que nasce o jansenismo propriamente dito: afirmação de que
é impossível para o verdadeiro cristão e para o verdadeiro eclesiástico participar da vida
185
política e social. A vanguarda jansenista era constituída por advogados e suas famílias, que se
incompatibilizaram com a política de Richilieu; os simpatizantes do movimento eram, em geral, oficiais,
advogados e membros das cortes supremas, desgostosos com o poder dos comissários do rei, que
passaram a exercer as antigas funções dos oficiais e das cortes. Deve-se notar que o pai de Pascal era
membro da Corte Suprema de Clermont-Ferrand.
A oposição dos jansenistas constituía apenas uma das modalidades de oposição que se fazia, na época, à
monarquia e que contará com maior número de adeptos depois da Fronda (sublevação contra o primeiro-
ministro Mazarin, que se estendeu de Paris às províncias, de 1648 a 1652). Mas jansenismo aapresentou
duas vertentes: uma preconizava o retiro completo, a segunda optava pela militância religiosa. Esta
última é que terá maior sucesso depois da Fronda e é ela que prossegue, no século XVIII, a luta contra a
monarquia absoluta. Pascal participa de ambas as correntes, em momentos diversos de sua vida.

Da Militância ao Recolhimento

O jansenismo podia propor uma atitude abstencionista em relação à política porque estava constituído
por pessoas que pertenciam a um grupo social cuja base econômica dependia diretamente do Estado.
Enquanto nobreza togada, os oficiais, os membros das Cortes, dependiam economicamente do Estado,
embora, ideologicamente, dele se afastassem e a ele se opusessem. A situação dos jansenistas é, assim,
paradoxal: exprime o descontentamento em face da monarquia absoluta, sem, contudo, poder desejar
sua destruição ou sua transformação radical. Os jansenistas são trágicos porque vivem uma situação
trágica - e por isso afirmam tragicamente a vaidade essencial do mundo e a salvação pelo retiro e pela
solidão.
O centro da trajetória espiritual de Pascal reside no seu encontro com o jansenismo, que lhe permitiu
exprimir melhor sua sede de absoluto e de transcendência. A vocação religiosa de Pascal encontra no
jansenismo o solo favorável para sua expansão. O "milagre do Santo Espinho" reforçou-lhe a tendência
mística e a certeza de que "há alguma coisa acima daquilo que chamamos natureza" - como escreve sua
irmã Gilberte. Até o encontro com o jansenismo havia na vida de Pascal uma contradição entre a
primazia atribuída, em princípio, à religião, e a realidade prática de uma vida consagrada ao mundo. Esse
encontro permite a Pascal estabelecer o acordo entre a consciência e a vida, através da militância
religiosa que procura o triunfo da verdade (ciência) na Igreja e o triunfo da fé (religião na sociedade
laica. Esse acordo, porém, não se manterá. Todavia, será ainda entre os jansenistas que Pascal chegará
à conclusão de que é importante retirar-se definitivamente do mundo e até mesmo da militância
religiosa. Pascal transita, assim, entre as duas atitudes que já existiam entre os próprios jansenistas da
militância (Arnauld, Nicole) passa ao retiro (Barcos, Jacqueline Pascal). À fase apologética daas
Proncinciais segue-se então a fase dos Pensamentos.
Essa mudança é determinada pela condenação do jansenismo pelo papa Alexandre VI. Pascal acaba
submetendo-se ao poder papal - e isso significa que a militância religiosa não mais pode ser efetuada.
Nessa terceira fase de sua vida, Pascal volta a dedicar-se à ciência (estudos sobre a ciclóide e sobre a
roleta, seguidos de discussões com vários sábios da época), mas seus escritos religiosos perdem o tom
apologético para se tornar trágicos. Os Pensamentos revelam ser os escritos de um homem a quem "o
silêncio eterno dos espaços infinitos apavora".
Na fase final de sua vida e de sua obra, Pascal exprime uma só certeza: a de que a única verdadeira
grandeza do homem reside na consciência de seus limites e de suas fraquezas. " Pascal
descobre a tragédia", escreve Lucien Goldmann, "a incerteza radical e certa, o paradoxo, a
recusa intramundana do mundo e o apelo de Deus. E é estendendo o paradoxo até o próprio
Deus - que para o homem é certo e incerto, presente e ausente, esperança e risco - que
Pascal pôde escrever os Pensamentos e abrir um capítulo novo na história do pensamento
filosófico".
Pascal morreu em 29 de agosto de 1662, à uma hora da madrugada. Tinha 39 anos de idade.
186

V - Contemporâneo

Emmanuel Kant

Vida e Obras

Kant nasceu, estudou, lecionou e morreu em Koenigsberg. Jamais deixou essa grande cidade da Prússia
Oriental, cidade universitária e também centro comercial muito ativo para onde afluíam homens de
nacionalidade diversa: poloneses, ingleses, holandeses. A vida de Kant foi austera (e regular como um
relógio). Levantava-se às 5 horas da manhã, fosse inverno ou verão, deitava-se todas as noites às dez
horas e seguia o mesmo itinerário para ir de sua casa à Universidade. Duas circunstâncias fizeram-no
perder a hora: a publicação do Contrato Social de Rosseau, em 1762, e a notícia da vitória francesa em
Valmy, em 1792. Segundo Fichte, Kant foi "a razão pura encarnada".
Kant sofreu duas influências contraditórias: a influência do pietismo, protestantismo luterano de
tendência mística e pessimista (que põe em relevo o poder do pecado e a necessidade de regeneração),
que foi a religião da mãe de Kant e de vários de seus mestres, e a influência do racionalismo: o de
Leibnitz, que Wolf ensinara brilhantemente, e o da Aufklärung (a Universidade de Koenigsberg mantinha
relações com a Academia Real de Berlim, tomada pelas novas idéias). Acrescentemos a literatura de
Hume que "despertou Kant de seu sono dogmático" e a literatura de Russeau, que o sensibilizou em
relação do poder interior da consciência moral.
A primeira obra importante de Kant - assim como uma das últimas, o Ensaio sobre o mal radical -
consagra-o ao problema do mal: o Ensaio para introduzir em filosofia a noção de grandeza negativa
(1763) opõe-se ao otimismo de Leibnitz, herdeiro do otimismo dos escoláticos, assim como do da
Aufklärung. O mal não é a simples "privatio bone", mas o objeto muito positivo de uma liberdade
malfazeja. Após uma obra em que Kant critica as ilusões de "visionário" de Swedenborg (que pretende
tudo saber sobre o além), segue-se a Dissertação de 1770, que vale a seu autor a nomeação para o
cargo de professor titular (professor "ordinário", como se diz nas universidades alemãs).
Nela, Kant distingue o conhecimento sensível (que abrange as instituições sensíveis) e o conhecimento
inteligível (que trata das idéias metafísicas). Em seguida, surgem as grandes obras da maturidade, onde
o criticismo kantiano é exposto. Em 1781, temos a Crítica da Razão Pura, cuja segunda edição, em 1787,
explicará suas intenções "críticas" (um estudo sobre os limites do conhecimento). Os prolegômenos a
toda metafísica futura (1783) estão para a Crítica da Razão Pura assim como a Investigação sobre o
entendimento de Hume está para o Tratado da Natureza Humana: uma simplificação brilhante para o uso
de um público mais amplo. A Crítica da Razão Pura explica essencialmente porque as metafísicas são
voltadas ao fracasso e porque a razão humana é impotente para conhecer o fundo das coisas. A moral de
Kant é exposta nas obras que se seguem: o Fundamento da Metafísica dos Costumes (1785) e a Crítica
da Razão Prática (1788). Finalmente, a Crítica do Juízo (1790) trata das noções de beleza (e da arte) e
de finalidade, buscando, desse modo, uma passagem que una o mundo da natureza, submetido à
necessidade, ao mundo moral onde reina a liberdade.
Kant encontrara proteção e admiração em Frederico II. Seu sucessor, Frederico-Guilherme II, menos
independente dos meios devotos, inquietou-se com a obra publicada por Kant em 1793 e que, apesar do
título, era profundamente espiritualista e anti-Aufklärung: A religião nos limites da simples razão. Ele fez
com que Kant se obrigasse a nunca mais escrever sobre religião, "como súdito fiel de Sua Majestade".
Kant, por mais inimigo que fosse da restrição mental, achou que essa promessa só o obrigaria durante o
reinado desse príncipe! E, após o advento de Frederico-Guilherme III, não hesitou em tratar, no Conflito
das Faculdades (1798), do problema das relações entre a religião natural e a religião revelada! Dentre
suas últimas obras citamos A doutrina do direito, A doutrina da virtude e seu Ensaio filosófico sobre a paz
perpétua (1795).
187
A Ciência e a Metafísica

O método de Kant é a "crítica", isto é, a análise reflexiva. Consiste em remontar do conhecimento às


condições que o tornam eventualmente legítimo. Em nenhum momento Kant duvida da verdade da física
de Newton, assim como do valor das regras morais que sua mãe e seus mestres lhe haviam ensinado.
Não estão, todos os bons espíritos, de acordo quanto à verdade das leis de Newton? Do mesmo modo
todos concordam que é preciso ser justo, que a coragem vale mais do que do que a covardia, que não se
deve mentir, etc... As verdades da ciência newtoniana, assim como as verdades morais, são necessárias
(não podem não ser) e universais (valem para todos os homens e em todos os tempos). Mas, sobre que
se fundam tais verdades? Em que condições são elas racionalmente justificadas? Em compensação, as
verdades da metafísica são objeto de incessantes discussões. Os maiores pensadores estão em
desacordo quanto às proposições da metafísica. Por que esse fracasso?
Os juízos rigorosamente verdadeiros, isto é, necessários e universais, são a priori, isto é independentes
dos azares da experiência, sempre particular e contigente. À primeira vista, parece evidente que esses
juízos a priori são juízos analíticos. Juízo analítico é aquele cujo predicado está contido no sujeito. Um
triângulo é uma figura de três ângulos: basta-me analisar a própria definição desse termo para dizê-lo.
Em compensação, os juízos sintéticos, aqueles cujo atributo enriquece o sujeito (por exemplo: esta régua
é verde), são naturalmente a posteriori; só sei que a régua é verde porque a vi. Eis um conhecimento
sintético a posteirori que nada tem de necessário (pois sei que a régua poderia não ser verde) nem de
universal (pois todas as réguas não são verdes).
Entretanto, também existem (este enigma é o ponto de partida de Kant) juízos que são, ao mesmo
tempo, sintéticos e a priori! Por exemplo:a soma dos ângulos de um triângulo equivale a dois retos. Eis
um juízo sintético (o valor dessa soma de ângulos acrescenta algo à idéia de triângulo) que, no entanto,
é a priori. De fato eu não tenho necessidade de uma constatação experimental para conhecer essa
propriedade. Tomo conhecimento dela sem ter necessidade de medir os ângulos com um transferidor.
Faço-o por intermédio de uma demonstração rigorosa. Também em física, eu digo que o aquecimento da
água é a causa necessária de sua ebulição (se não houvesse aí senão uma constatação empírica, como
acreditou Hume, toda ciência, enquanto verdade necessária e universal, estaria anulada). Como se
explica que tais juízos sintéticos e a priori sejam possíveis?
Eu demonstro o valor da soma dos ângulos do triângulo fazendo uma construção no espaço. Mas por que
a demonstração se opera tão bem em minha folha de papel quanto no quadro negro... ou quanto no solo
em que Sócrates traçava figuras geométricas para um escravo? É porque o espaço, assim como o tempo,
é um quadro que faz parte da própria estrutura de meu espírito. O espaço e o tempo são quadros a
priori, necessários e universais de minha percepção (o que Kant mostra na primeira parte da Crítica da
Razão Pura, denominada Estética transcendental. Estética significa teoria da percepção, enquanto
transcendental significa a priori, isto é, simultaneamente anterior à experiência e condição da
experiência). O espaço e o tempo não são, para mim, aquisições da experiência. São quadros a priori de
meu espírito, nos quais a experiência vem se depositar. Eis por que as construções espaciais do
geômetra, por mais sintéticas que sejam, são a priori, necessárias e universais. Mas o caso da física é
mais complexo. Aqui, eu falo não só do quadro a priori da experiência, mas, ainda, dos próprios
fenômenos que nela ocorrem. Para dizer que o calor faz ferver a água, é preciso que eu constate. Como,
então, os juízos do físico podem ser a priori, necessários e universais?
É porque, responde Kant, as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos esparsos na
experiência, são exigências a priori do nosso espírito. Os fenômenos, eles próprios, são dados a
posteriori, mas o espírito possui, antes de toda experiência concreta, uma exigência de unificação dos
fenômenos entre si, uma exigência de explicação por meio de causas e efeitos. Essas categorias são
necessárias e universais. O próprio Hume, ao pretender que o hábito é a causa de nossa crença na
causalidade, não emprega necessariamente a categoria a priori de causa na crítica que nos oferece?
"Todas as intuições sensíveis estão submetidas às categorias como às únicas condições sob as quais a
diversidade da intuição pode unificar-se em uma consciência". Assim sendo, a experiência nos fornece a
matéria de nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu
quadro espacio-temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe
188
ordem e coerência por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica
transcendental). Aquilo a que denominamos experiência não é algo que o espírito, tal como cera mole,
receberia passivamente. É o próprio espírito que, graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do
universo. Tudo o que nos aparece bem relacionado na natureza, foi relacionado pelo espírito humano. É
a isto que Kant chama de sua revolução copernicana. Não é o Sol, dissera Copérnico, que gira em torno
da Terra, mas é esta que gira em torno daquele. O conhecimento, diz Kant, não é o reflexo do objeto
exterior. É o próprio espírito humano que constrói - com os dados do conhecimento sensível - o objeto do
seu saber.
Na terceira parte de sua Crítica da Razão Pura, na dialética transcendental, Kant se interroga sobre o
valor do conhecimento metafísico. As análises precedentes, ao fundamentar solidamente o conhecimento,
limitam o seu alcance. O que é fundamentado é o conhecimento científico, que se limita a por em ordem,
graças às categorias, os materiais que lhe são fornecidos pela intuição sensível.
No entanto, diz Kant, é por isso que não conhecemos o fundo das coisas. Só conhecemos o mundo
refratado através dos quadros subjetivos do espaço e do tempo. Só conhecemos os fenômenos e não as
coisas em si ou noumenos. As únicas intuições de que dispomos são as intuições sensíveis. Sem as
categorias, as intuições sensíveis seriam "cegas", isto é, desordenadas e confusas, mas sem as intuições
sensíveis concretas as categorias seriam "vazias", isto é, não teriam nada para unificar. Pretender como
Platão, Descartes ou Spinoza que a razão humana tem intuições fora e acima do mundo sensível, é
passar por "visionário" e se iludir com quimeras: "A pomba ligeira, que em seu vôo livre fende os ares de
cuja resistência se ressente, poderia imaginar que voaria ainda melhor no vácuo. Foi assim que Platão se
aventurou nas asas das idéias, nos espaços vazios da razão pura. Não se apercebia que, apesar de todos
os seus esforços, não abria nenhum caminho, uma vez que não tinha ponto de apoio em que pudesse
aplicar suas forças".
Entretanto, a razão não deixa de construir sistemas metafísicos porque sua vocação própria é buscar
unificar incessantemente, mesmo além de toda experiência possível. Ela inventa o mito de uma "alma-
substância" porque supõe realizada a unificação completa dos meus estados d'alma no tempo e o mito de
um Deus criador porque busca um fundamento do mundo que seja a unificação total do que se passa
neste mundo... Mas privada de qualquer ponto de apoio na experiência, a razão, como louca, perde-se
nas antinomias, demonstrando, contrária e favoravelmente, tanto a tese quanto a antítese (por exemplo:
o universo tem um começo? Sim pois o infinito para trás é impossível, daí a necessidade de um ponto de
partida. Não, pois eu sempre posso me perguntar: que havia antes do começo do universo?). Enquanto o
cientista faz um uso legítimo da causalidade, que ele emprega para unificar fenômenos dados na
experiência (aquecimento e ebulição), o metafísico abusa da causalidade na medida em que se afasta
deliberadamente da experiência concreta (quando imagino um Deus como causa do mundo, afasto-me
da experiência, pois so o mundo é objeto de minha experiência). O princípio da causalidade, convite à
descoberta, não deve servir de permissão para inventar.

Emmanuel Kant

O Alcance da Crítica Kantiana


(Prefácio da 2.ª edição da Crítica da Razão Pura)

Um rápido olhar lançado nesta obra levará a pensar, de início, que sua utilidade é inteiramente negativa
ou que ela só serve para nos impedir de conduzir a razão especulativa além dos limites da experiência, e
é isso que lhe dá sua primeira utilidade. Mas logo se perceberá também que sua utilidade é positiva, pelo
fato mesmo de os princípios sobre os quais se apóia a razão especulativa, para se aventurar fora de seus
limites, na realidade terem por conseqüência inevitável não a extensão, mas, olhando mais de perto, a
restrição do uso de nossa razão. É que, com efeito, esses princípios ameaçam de tudo enfeixar nos
limites da sensibilidade, da qual propriamente dependem, e assim reduzir a nada o uso puro (prático) da
razão. Ora, uma crítica que limita a razão em seu uso especulativo é, por esse lado, bem negativa; mas,
ao suprimir com um mesmo golpe o obstáculo que restringe seu uso prático ou que até ameaça anulá-la,
essa crítica, de fato, tem uma utilidade positiva da mais alta importância. É o que se reconhecerá logo
189
que se esteja convencido de que a razão pura tem um uso prático absolutamente necessário (quero
significar o uso moral), no qual ela se estende inevitavelmente além dos limites da sensibilidade e no
qual, sem para isso ter necessidade do auxílio da razão especulativa, a razão prática, porém, quer estar
assegurada contra toda oposição de sua parte, a fim de não cair em contradição consigo mesma. Negar
que a crítica, ao prestar-nos esse serviço, tenha uma utilidade positiva, porque sua função consiste
unicamente em fechar as portas à violência que os cidadãos poderiam temer uns aos outros, a fim de
que cada um possa realizar seus negócios tranqüilamente e em segurança. Que o espaço e o tempo só
sejam formas da intuição sensível e, conseqüentemente, das condições da existência das coisas como
fenômenos; que, além disso, não tenhamos conceitos do entendimento e, portanto, quaisquer elementos
para o conhecimento das coisas, sem que uma intuição correspondente nos seja dada, e que, por
conseguinte, não possamos conhecer nenhum objeto como coisa em si, mas apenas como objeto da
intuição sensível, isto é, como fenômeno, é o que será provado na parte analítica e daí resultará que todo
conhecimento especulativo possível da razão se reduz unicamente aos objetos da experiência. Mas, o que
é preciso marcar bem, surge aí uma reserva: é que, se não podemos conhecer esses objetos como coisas
em si, podemos ao menos pensá-los como tais.
Se assim não fora, chegaríamos à absurda proposição de que existem fenômenos ou aparências sem que
haja nada que apareça. Quando se supõe que nossa crítica não tenha feito a distinção que ela estabelece
necessariamente entre as coisas como objetos de experiência e essas coisas como objetos em si, será
preciso então que se estenda a todas as coisas em geral, consideradas como causas eficientes, o
princípio da causalidade e, conseqüentemente, o mecanismo natural que ele determina. Por conseguinte,
eu não poderia dizer do próprio ser, por exemplo, da alma humana, que sua vontade é livre e que,
entretanto, está submetida à necessidade física, isto é, que não é livre, sem cair em evidente
contradição, É que, nas duas proposições, tomei a alma no mesmo sentido, isto é, como uma coisa em
geral (como objeto em si) e, sem as advertências da crítica, não poderia encará-la de outro modo.
Mas se a crítica não se enganou ao ensinar-nos a considerar o objeto em dois sentidos diferentes, como
fenômeno e como coisa em si; se a dedução dos conceitos do entendimento é exata e se,
conseqüentemente, o princípio da causalidade só se aplica às coisas no primeiro sentido, ao passo que no
segundo sentido essas mesmas coisas não mais lhe estejam submetidas, a mesma vontade pode ser
concebida, sem contradição, de um lado, como estando necessariamente submetida, do ponto de vista
fenomenal (em seus atos visíveis), à lei física, conseqüentemente, como não sendo livre e, de outro,
enquanto faz parte das coisas em si, como escapando a essa lei, por conseguinte, como livre. Ora,
embora sob esse último ponto de vista eu não possa conhecer minha alma por intermédio da razão
especulativa (e ainda menos pela observação empírica) e, conseqüentemente, eu também possa
conhecer a liberdade como a propriedade de um ser ao qual atribuo efeitos no mundo sensível - posto
que seria necessário que eu a conhecesse de uma maneira determinada em sua existência, mas não no
tempo (o que é impossível, pois aqui nenhuma intuição pode ser submetida ao meu conceito) - eu posso,
no entanto, pensar a liberdade, isto é, que sua idéia não contém a menor contradição, desde que admita
nossa distinção crítica dos dois modos de representação (o modo sensível e o intelectual), assim como a
restrição que daí deriva relativamente aos conceitos puros do entendimento e, por conseguinte, aos
princípios decorrentes desses conceitos. Admitamos agora que a moral supõe necessariamente a
liberdade (no sentido mais estrito) como uma propriedade de nossa vontade, colocando a priori como
dados da razão princípios práticos que dela se originam e que, sem essa suposição, seriam
absolutamente impossíveis; mas admitamos também que a razão especulativa tenha provado que a
liberdade não fosse de modo algum concebida; será preciso então que necessariamente a suposição
moral dê lugar àquela cujo contrário implica em evidente contradição, isto é, que a liberdade, e com ela a
moralidade (cujo contrário não implica em contradição, quando não se supõe a liberdade previamente),
desaparecem no mecanismo da natureza. Todavia, como é suficiente que, do ponto de vista da moral, a
liberdade não seja contraditória e que, conseqüentemente, ela possa ser concebida, e como, desde que
não se coloque como obstáculo ao mecanismo natural da própria ação (tomados num outro sentido), não
há necessidade de se lhe ter um conhecimento mais amplo, a moral pode manter sua posição enquanto a
física conserva a sua. Ora, é o que não teríamos descoberto se a crítica não nos houvesse previamente
instruído sobre nossa inevitável ignorância relativamente às coisas em si e se ela não houvesse limitado
190
aos simples fenômenos todo nosso conhecimento teórico. Desse modo, pode-se mostrar essa mesma
utilidade dos princípios críticos da razão pura relativamente à idéia de Deus, a liberdade e a imoratalidade
segundo a necessidade que minha razão tem em seu uso prático necessário, sem rechaçar ao mesmo
tempo as pretensões da razão especulativa em suas visões transcendentes; pois, para chegar aí, lhe é
necessário empregar princípios que na realidade só se aplicam a objetos da experiência sensível e que
sempre transformam em fenômenos aquilo a que se aplicam, mesmo que esse algo não possa ser um
objeto de experiência, e desse modo declaram impossível toda extensão prática da razão pura. Tive
então que suprimir o saber para substituí-lo pela crença.

Crítica ao Argumento Ontológico


(Crítica da Razão Pura, Dialética Transcendental)

Cem táleres reais não contêm mais do que cem táleres possíveis. Pois, como os táleres possíveis
exprimem o conceito e os reais o objeto e sua posição em si mesma, meu conceito não exprimiria o
objeto inteiramente e conseqüentemente não estaria de acordo com ele, caso o objeto contivesse mais
do que o conceito. Mas sou mais rico com cem táleres reais do que com sua idéia (isto é, se eles são
simplesmente possíveis). De fato, o objeto na realidade não está simplesmente contido de uma maneira
analítica em meu conceito, mas ele enriqueceu sinteticamente meu conceito (que é uma determinação do
meu estado), sem que os cem táleres concebidos sejam aumentados por este ser que está situado fora
do meu conceito.
Quando, então, eu concebo uma coisa, quaisquer que sejam e por mais numerosos que sejam os
predicados por meio dos quais eu a concebo (mesmo que a determine completamente), e só por isso eu
acrescente que essa coisa existe, eu não estarei acrescentando absolutamente nada à coisa. Se assim
fora, não existiria mais a mesma coisa, mas algo além do que pensei no conceito; e eu não mais poderia
dizer que é exatamente o objeto do meu conceito que existe. Se numa coisa eu concebo toda realidade,
exceto uma, e pelo fato de dizer que essa coisa defeituosa existe, a realidade que lhe falta não lhe será
acrescentada por isto; mas ela existe precisamente tão defeituosa quanto a concebo, pois, de outro
modo, existiria outra coisa diferente do que concebi. Se, por conseguinte, eu concebo um ser como a
suprema realidade (sem falhas), sempre resta saber se esse ser existe ou não. De fato, embora em meu
conceito não falte nada do conteúdo real possível de uma coisa em geral, ainda falta, porém, alguma
coisa com relação a todo meu estado intelectual, a saber, que o conhecimento de um objeto seja possível
a posteriori. E aqui se mostra a causa da dificuldade que reina nesse ponto. Se se tratasse de um objeto
dos sentidos, eu não poderia confundir a existência da coisa com seu simples conceito. De fato, o
conceito só me faz conceber o objeto como concordante com as condições universais de um
conhecimento empírico possível em geral, enquanto a existência me faz concebê-lo como compreendido
no contexto de toda experiência; e, se o conceito do objeto não é de modo algum aumentado para sua
ligação com o conteúdo de toda experiência, nosso pensamento dele recebe em acréscimo mais
percepção possível. Se, ao contrário, quisermos pensar a existência unicamente por intermédio da pura
categoria, não será de espantar que não possamos indicar nenhum critério que sirva para distingui-la da
simples possibilidade.
Qualquer que seja a natureza e a extensão do conteúdo de nosso conceito de um objeto, somos
obrigados a sair desse conceito para lhe atribuir a existência. Com relação a objetos sensíveis, a
passagem se faz por meio do encadeamento que liga o conceito a alguma de minhas percepções,
segundo as leis empíricas; mas, para os objetos do pensamento puro, não existe nenhum meio de
reconhecer sua existência, já que seria preciso reconhecê-la inteiramente a priori; nossa consciência de
toda existência (quer ela resulte imediatamente da percepção, quer resulte de raciocínios que unem
alguma coisa à percepção) pertence inteiramente à unidade da experiência, e se uma existência fora
desse campo não deve ser tida por absolutamente impossível, ela também não deixa de ser uma
suposição que nada pode justificar.
O conceito de um ser supremo é uma idéia muito útil com relação a muitas coisas, mas, precisamente
porque é apenas uma idéia, ele é inteiramente incapaz de estender a si só nosso conhecimento com
relação ao que existe. Nem pode mesmo nos instruir o suficiente com relação à possibilidade. É certo que
191
o caráter analítico da possibilidade - que consiste no fato de que simples posições (realidades) não
engendram contradição - não lhe pode ser contestado; mas, como a ligação de todas as propriedades
reais numa coisa é uma síntese cuja possibilidade não podemos julgar a priori, posto que as realidades
não nos são dadas especificamente, e, mesmo que isso acontecesse, que não resultaria daí nenhum
juízo, o caráter da possibilidade dos conhecimentos sintéticos que deve ser sempre buscado na
experiência, à qual o objeto de uma idéia não pode pertencer, faz-se muito necessário que o ilustre
Leibnitz tenha feito aquilo de que se orgulhava, isto é, chegar a conhecer a priori a possibilidade de um
ser ideal tão elevado.
Essa prova ontológica (cartesiana) tão glorificada, que pretende demonstrar por meio de conceitos a
existência de um ser supremo, perde, então, todo seu valor e não nos tornaremos mais ricos em
conhecimentos com simples idéias quanto um comerciante não se tornaria em dinheiro se, com o
pensamento de aumentar sua fortuna, ele acrescentasse alguns zeros em seu livro de caixa.

O Rigorismo de Kant
(Fundamento da Metafísica dos Costumes)

Conservar a própria vida é um dever e, além disso, é uma coisa para a qual todos possuem uma
inclinação imediata. Ora, é por isso que a solicitude, freqüentemente inquieta, com que a maior parte dos
homens se dedica a isso, não é menos desprovida de todo valor intrínseco e é por isso que sua máxima
não possui nenhum valor moral. É certo que eles conservam sua vida de acordo com o dever, mas não
por dever. Em compensação, quando contrariedades ou uma aflição sem esperança tenha roubado de
um homem todo gosto de viver e se o infeliz, com ânimo forte, fica muito mais indignado com sua sorte
do que desencorajado ou abatido, se deseja a morte e, no entanto, conserva a vida sem amá-la, não por
inclinação ou temor, mas por dever, então sua máxima possui um valor moral.
Ser bom, quando se pode, é um dever e, ademais, existem certas almas tão capacitadas para a simpatia
que, mesmo sem qualquer motivo de vaidade ou de interesse, elas experimentam uma satisfação íntima
em irradiar alegria em torno de si e vivem o contentamento de outrem, na medida em que ele é obra
sua. Mas eu acho que no caso de uma ação desse tipo, por mais de acordo com o dever e mais amável
que seja, não possui porém verdadeiro valor moral, já que ela se coloca no mesmo plano de outras
inclinações, a ambição, por exemplo, que, quando coincide com o que realmente está de acordo com o
interesse público e o dever, com o que, por conseguinte, é honorável, merece louvor e encorajamento,
mas não respeito, pois falta a essa máxima o valor moral, isto é, o fato de que essas ações sejam feitas
não por inclinação, mas por dever. Suponha-se então que a alma daquele filantropo esteja ensombrada
por um desses desgostos pessoais que sufocam toda simpatia pela sorte de outrem e que ele sempre
ainda tenha o poder de fazer bem a outros infelizes, mas que não seja tocado pelo infortúnio dos outros,
por estar demasiado absorvido pelo seu próprio, e que nessas condições em que nenhuma inclinação não
mais o leve a isso, ele porém se arranque dessa insensibilidade mortal e aja, livre da influência de
qualquer inclinação, unicamente por dever; então, só então sua ação terá verdadeiro valor moral. E digo
mais: se a natureza tivesse colocado no coração deste ou daquele um pouco de simpatia, se aquele
homem (honesto de resto) fosse frio por temperamento e indiferente aos sofrimentos de outrem, talvez
porque, tendo para com seus próprios sofrimentos um dom especial de resistência e de paciente energia,
ele suponha que também nos outros, ou deles exija as mesmas qualidades; se a natureza não tivesse
formado esse homem particularmente o que na verdade não seria sua obra pior) para fazer dele um
filantropo, não encontraria ele, então, em si próprio o meio de se dar um valor muito superior ao que
possa ter um temperamento naturalmente bonsoso? Certamente! E á aqui precisamente que surge o
valor do caráter, valor moral e incomparavelmente o mais elevado, que provém daquele que faz o bem
não por inclinação, mas por dever.
Assegurar a própria felicidade é um dever (indireto, ao menos); pois, o fato de não estar contente com a
própria situação, com o viver pressionado por inúmeros cuidados em meio de necessidades não
satisfeitas, poderia facilmente tornar-se uma grande tentação de violar seus deveres. Mas, aqui ainda,
sem pensar no dever, todos os homens já têm, por eles próprios, a inclinação para a felicidade mais
duradoura e mais íntima, pois, precisamente nessa idéia de felicidade, as inclinações se unificam numa
192
totalidade. Ocorre apenas que o preceito que ordena o tornar-se feliz muitas vezes assume tal
caráter, que traz grande prejuízo a algumas inclinações, e, contudo, o homem não pode fazer um
conceito definido e certo dessa soma de satisfações a ser dada a todas a que chama de felicidade; desse
modo, não há por que se surpreender que uma inclinação única, determinada quanto ao que promete e
quanto à época em que pode ser satisfeita, possa levar vantagem sobre uma idéia flutuante, que, por
exemplo, uma pessoa que sofre de gota possa gostar mais de saborear o que é de seu gosto e sofra em
seguida, pois, segundo seu cálculo, ao menos nessa circunstância ela não se privou, por causa da talvez
enganosa esperança de uma felicidade a ser encontrada na saúde, do gozo do momento presente. Mas,
nesse caso igualmente, se atendência universal não determinasse sua vontade, se a saúde, para ela ao
menos, não fosse coisa tão importante de fazer entrar em seus cálculos, o que restaria ainda aqui, como
em todos os outros casos, seria uma lei, uma lei que ordena trabalhar para a própria felicidade não por
inclinação, mas por dever, e é por isto somente que sua conduta possui um verdadeiro valor moral.
Assim, devem ser certa e igualmente compreendidas as passagens da Escritura em que é ordenado amar
ao próximo, ainda que inimigo. Pois, o amor como inclinação não pode ser ordenado; mas fazer o bem
precisamente por dever, na medida em que não há inclinação que nos conduza a isso, e mesmo que uma
aversão natural e invencível a isto se oponha, eis aí um amor prático e não patológico, que reside na
vontade e não na tendência da sensibilidade, em princípios da ação e não numa compaixão debilitante;
ora, esse amor é o único que pode ser ordenado.

Hegel

O Idealismo Lógico: Hegel

Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice
metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser,
desenvolvimento. Este vir-a-ser, porém, é racionalizado por Hegel, elevado a processo dialético; e este
processo dialético não é um movimento a quo adi quod, e sim um processo circular, emanentista.
Jorge Guilherme Frederico Hegel nasceu em Stutgart, em 1770. Estudou teologia e filosofia.
Interessou-se pelos problemas religiosos e políticos, simpatizando-se pelo criticismo e pelo iluminismo;
em seguida se dedicou ao historicismo romântico. Aproximou-se dos sistemas de Fichte e de Schelling,
afastando-se deles em seguida até combatê-los quando professor nas universidades de Jena, Heidelberg
e Berlim. Nessa última universidade lecionou até há morte, adquirindo grande renome e exercendo vasta
influência. Faleceu em 1831 vítima de cólera. Renunciara, entrementes, aos ideais revolucionários e
críticos, para favorecer as tendências absolutistas e intransigentes do estado prussiano.
Em seus últimos anos, torna-se suspeito de panteísmo; alguns o ridicularizaram (apelidando-o de
Absolutus von Hegelingen); corre o boato de que ele duvida da imortalidade da alma. Na realidade, Hegel
era ao mesmo tempo suficientemente prudente e sufucientemente hermético para que se tornasse muito
difícil fazer-lhe acusações precisas dessa ordem! O poeta Heinrich Heine, que seguiu seus cursos de 1821
a 1823, conta, no entanto, que ele, um dia, respondeu bruscamente a um estudante que lhe falava do
Paraíso: "O senhor então precisa de uma gorjeta porque cuidou de sua mãe enferma e porque não
envenenou ninguém!" Em todo caso, o futuro mostraria amplamente que a filosofia do pensador oficial
da monarquia escondia um grande poder explosivo!
Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A
razão aqui não é apenas, como em Kant, o entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras
segundo as quais pensamos o mundo. Ela é igualmente a realidade profunda das coisas, a essência do
próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O
racional é real e o real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista por
excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em
definitivo, Idéia, Espírito. Sua filosofia representa, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do
conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cada
acontecimento particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual não é mais
do que um aspecto ou um momento.
193
Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo essencialmente moderno,
pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os
tempos, que dizia que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos os seus
contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra que as estruturas sociais,
assim como os pensamentos dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O
que há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta como processo histórico: "A
história universal nada mais é do que a manifestação da razão".
As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências
Filosóficas; A Filosofia do Direito. Foi um gênio poderoso; sua cultura foi vastíssima, bem como a sua
capacidade sistemática, tanto assim que se pode considerar o Aristóteles e o Tomás de Aquino do
pensamento contemporâneo. No entanto, freqüentemente deforma os fatos para enquadrá-los no
esquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e
políticos.
É preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é
senão a história do Espírito universal que se desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir,
no final, a plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no final será o que
ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O
panteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos só é parcial e muito
provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo
de hegeliano na filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséia
do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a
história da terra. De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não temos a
impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos
surgem no Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo,
"alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como ordem, como liberdade, logo como
consciência. Esse progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens. Cada
povo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse progresso do Espírito. O
Espírito humano é de início uma consciência confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação
imediata. Depois, ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de instituições
organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura".
Enfim, o Espírito se descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa para
finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua
alçada todas as outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos os
saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz
Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia
puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização que
triunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após ter
saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo a
expressão mais perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força
não "oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que o
exprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a
virtude, como ele diz, "exprime o curso do mundo".
Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico é absolutamente
paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida,
identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é
o domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão
à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente, que no fundo tudo permanece
idêntico. Aplicar a razão à história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo isso, o
racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano. Como isso é possível?
É possível porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético - no qual a
contradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no
próprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é
194
senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles e de
Leibnitz, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a
contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é mais
estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como num
diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não
pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não
ela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente transformada e enriquecida
numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).

A Dialética

A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "a
marcha e o ritmo das próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se
enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real,
a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada
mais podemos dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito
envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou
determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples,
equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto que
vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se
reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão
de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o
escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate,
mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é
vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha
e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.
a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultiva
seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor
não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo.
O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao
passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma
contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor
só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho
desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.
c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi por
medo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação
infeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se
de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo
incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e
recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma
conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo,
transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que é
o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o
domínio e a servidão.
Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído
substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da
experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcender
a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia
necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da
experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia,
195
portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo
racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.
No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se
achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo
da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não
podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo
o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente
valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia
ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a
negação e o mal são condições de positividade e de bem.
Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder racionalizar o
elemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional.
E por isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a
positividade se realiza através da negatividade, do ritmo famoso de tese, antítese e síntese. Essa dialética
dos opostos resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo
elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto
de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidade
mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da
antiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidos
na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo a própria lei do ser.
Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.
Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a
história em geral se valoriza na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto,
isto é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito abstrato, que representa
o elemento universal e comum dos particulares. Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático,
como o de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegel
considerava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas imanentistas.
Podemos resumir assim:
1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de
identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente
mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável,
realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é
universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é
essencialmente conexo com tudo;
3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da
história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a
história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser,
não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide
com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que no
espírito humano adquire plena consciência de si mesmo.
Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou
dever deduzir a priori o desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história
natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não só nos aspectos gerais,
nos momentos essenciais, mas em toda particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria
transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista e
imanentista.
Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamente
potenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir
empírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal história
dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a
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sua odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano,
como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qual
o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.

Textos de Hegel

Dialética Hegeliana: A Contradição é o Motor do Pensamento

Para o senso comum, a oposição entre verdadeiro e falso é algo de fixo; habitualmente ele espera que se
aprove ou se rejeite em bloco um sistema filosófico existente; e, numa explicação sobre tal sistema, ele
só admite uma ou outra dessas atitudes. Não concebe a diferença entre os sistemas filosóficos como o
desenvolvimento progressivo da verdade; para ele, diversidade significa unicamente contradição. O broto
desaparece na eclosão da flor e poder-se-ia dizer que aquele é refutado por esta; do mesmo modo, o
fruto declara que a flor é uma falsa existência da planta e a substitui enquanto verdade da planta.
Essas formas não só se distinguem, mas se suplantam como incompatíveis. No entanto, sua natureza
cambiante faz delas momentos da unidade orgânica em que não só não estão em conflito mas onde
tanto um quanto outro é necessário; e essa igual necessidade faz a vida do conjunto. Mas comumente
não é assim que se compreende a contradição entre sistemas filosóficos; e, ademais, o espírito que
apreende a contradição habitualmente não sabe liberá-la ou conservá-la livre de sua unilateralidade, e
reconhecer na forma, do que parece se combater e se contradizer, momentos mutuamente necessários.

O Absoluto Por Fim Não é Senão Aquilo Que Ele é na Realidade

A vida e o reconhecimento divinos podem, então, se se quiser, ser definidos como um jogo de amor para
consigo mesmo; essa idéia cai no nível da edificação e mesmo da insipidez, se lhe retirarmos a seriedade,
a dor, a paciência e o trabalho do negativo. Essa vida, em-si, é a serena igualdade e a unidade consigo
que nada têm a fazer com o ser-outro e a alienação, nem com a superação dessa alienação. Mas esse
em-si é universalidade abstrata caso negligenciemos sua natureza de ser para-si e, por isso, o movimento
espontâneo da forma. É inexato crer, ao declarar a forma como igual à essência, que o conhecimento
possa se satisfazer com o em-si ou a intuição absoluta da primeira dispensam o acabamento da primeira
e o desenvolvimento da segunda. Precisamente porque a forma é tão essencial à essência quanto a
essência a si própria, não se deve apreendê-la ou exprimi-la apenas como essência, isto é, como
substância imediata ou pura intuição de si do divino, mas também como forma e em toda riqueza da
forma desenvolvida. Só então é que ela é concebida e exprimida como atual. A verdade é o todo. Mas o
todo não é senão a essência que se conclui por seu desenvolvimento. Há que dizer do absoluto que ele é
essencialmente resultado, que ele não é senão por fim o que ele é em verdade, e é nisto precisamente
que consiste sua natureza de ser sujeito atual ou Devir de si.

O Senhor e o Escravo

Buscar a morte do outro implica em arriscar a própria vida. Por conseguinte, a luta entre duas
consciências de si é determinada do seguinte modo: elas se experimentam a elas próprias e entre si por
meio de uma luta de morte. Não podem evitar essa luta, pois são forçadas a elevar ao nível da verdade
sua certeza de si, sua certeza de existir para si; cada uma deve experimentar essa certeza em si mesma
e na outra. Só arriscando a própria vida é que se conquista a liberdade. Só assim é que alguém se
assegura de que a natureza da consciência de si não é o ser puro, não é a forma imediata de sua
manifestação, não é sua imersão no oceano da vida. Essa luta prova que nada existe na consciência que
não seja perecível para ela, prova que ela, portanto, não é senão puro ser para-si. O indivíduo que não
arriscou sua vida pode certametne ser reconhecido como pessoa, mas não atingiu a verdade desse
reconhecimento como consciência de si independente.(¹)
O senhor é a consciência que é por si mesma, mas essa consciência, aqui, está além de seu puro
conceito: ela é consciência para-si que é mediada consigo mesma por uma outra consciência(²),
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notadamente por uma consciência cuja natureza implica no fato de ela estar unida a um ser
independente ou às coisas em geral. O senhor está em relação com esses dois momentos: com a coisa
enquanto tal, objeto do apetite, e com a consciência cujo caráter essencial é a coisa externa. Uma vez
que o senhor (a), enquanto conceito da consciência de si, é relação imediata do ser para-si, mas (b) é
simultaneamente mediação, em outras palavras, um ser para-si que só o é por meio do outro, ele se
relaciona (a) imediatamente com os dois e (b) imediatamente com cada um por intermédio do outro. O
senhor tem, com o escravo, uma relação mediata em virtude da existência independente, pois é
precisamente a ela que o escravo está preso, ela é sua cadeia e da qual não pode se desprender na luta,
o que o levou a mostrar-se dependente, posto que possuía sua independência numa coisa externa.
Quanto ao senhor, ele é a potência que domina esse ser externo, pois provou na luta que o considera
como puramente negativo; uma vez que ele domina esse ser e que esse ser domina o escravo, o senhor
também o domina. Desse modo o senhor se relaciona com a coisa por mediação do escravo; este último,
enquanto consciência de si, relaciona-se negativamente com a coisa e a ultrapassa; mas ao mesmo
tempo a coisa é para ele independente e o escravo não pode, por meio de sua negação, chegar a
suprimi-la; ele só faz trabalhar.
Em compensação, para o senhor, graças a essa mediação, a relação imediata torna-se a pura negação da
coisa ou o seu gozo; aquilo que o apetite não conseguiu, ele o consegue; domina a coisa e se satisfaz na
fruição. O apetite não chega a isso por causa da independência da coisa; mas o senhor, ao colocar o
escravo contra ela e si próprio, só entra em contato com o aspecto dependente da coisa, fruindo-a
puramente; deixa o aspecto independente da coisa para o escravo que a trabalha.(³)
(¹) Este difícil texto de é característico do método hegeliano. Ele inspirou amplamente as análises de
nossos contemporâneos sobre as relações do eu com o outro. Na luta de duas consciências, Hegel
examina simultaneamente a relação de dois "eu" e a relação de cada eu com sua própria vida. O
"senhor", aquele que é vitorioso no combate, aceitou arriscar a vida. Por conseguinte, ele é mais do que
ela, por sua coragem colocou-se acima dos objetos comuns da necessidade e da existência empírica. O
vencido, aquele que se rendeu, tem medo de perder a vida. Por conseguinte, ele é, de início, escravo da
vida e de seus objetos empíricos. Torna-se tembém escravo do senhor que o conserva (servus =
conservado) a fim de ler em seu olhar temeroso e submisso o reflexo de sua vitória, a fim de se fazer
reconhecer como consciência.
(²) Hegel quer dizer que o senhor não é senhor "em-si", mas por meio de uma mediação, isto é, uma
relação. O senhor se define por sua relação com o escravo (e por sua relação com os objetos que
depende, ela própria, da relação com o escravo). No ponto de partida, o senhor domina os objetos da
necessidade, posto que no campo de batalha ele se mostrou corajoso, superior à sua vida, portanto, aos
objetos das necessidades. Secundariamente, o senhor domina os objetos por mediação do escravo que
trabalha, isto é, que transforma os objetos materiais em objetos de consumo e de fruição para o senhor.
(³) Graças ao trabalho do escravo, a relação do senhor com a coisa é uma relação de simples gozo que
equivale à negação da coisa. Pensamos nos versos de Valéry:
Como o fruto se funde em fruição
Como em delícias ele muda sua ausência
Numa boca em que sua forma se extingue.

Concepção Dialética da História da Filosofia

Em suas lições sobre a história da filosofia, Hegel assinalava que a noção de História da Filosofia "envolve
uma contradição interna". Com efeito, "a filosofia quer conhecer o imperecível, o eterno, seu fim é a
verdade. Mas a história conta o que foi numa época e que desapareceu em outra, substituído por outra
coisa". Se a verdade é eterna, "ela não penetra na esfera do que passa e não tem história". Entretanto, a
filosofia encontra-se toda nos sistemas dos filósofos. A idéia geral de filosofia permanece abstrata se não
se confunde com os diversos sistemas dos filósofos no decurso da história, assim como a noção geral de
fruto só se explicita quando efetivamente se trata de "cerejas, ameixas ou uvas". Na realidade, cada
filosofia corresponde a um momento da história, a uma etapa na conquista do espírito absoluto. Cada
filosofia é "o espírito da época existente como espírito que se pensa". Ela surge "no devido momento,
198
nenhuma ultrapassou seu tempo" (¹). As filosofias sucessivas não se refutam, mas as novas
filosofias mostram as anteriores como verdades parciais passíveis de serem integradas numa síntese mais
ampla que se elabora com o tempo. A história da filosofia oferece momentos privilegiados ou, como diz
Hegel, "nós" em que vêm se reconciliar dialeticamente os contraditórios. A filosofia de Platão, por
exemplo, é a síntese do imóvel ser parmenídico com a mobilidade heracliteana.
Nesse sentido, citaremos um excerto das lições sobre a História da Filosofia:
A razão é una e essa racionalidade una, um sistema e, por isso, a evolução das determinações do
pensamento é igualmente racional. Os princípios gerais surgem segundo a necessidade da noção
fundamental. A posição dos precedentes é determinada pelo que se segue. O princípio de uma filosofia
passa, na seguinte, para a categoria de um momento. Não se refuta uma filosofia, apenas sua posição é
que é refutada. As folhas, de início, são o modo de existência mais elevado da planta, depois é o botão e
o cálice que, em seguida, se transformam em envoltório a serviço do fruto; é assim que o primeiro
elemento é colocado numa categoria inferior pelo seguinte.
As filosofias são as formas do Uno. Um estudo mais avançado mostrar-nos-á como progridem seus
princípios, de maneira que o seguinte é uma nova determinação do precedente...
O estoicismo faz do pensamento um princípio, mas o epicurismo proclama vedadeiro o princípio
diretamente oposto: o sentimento, o prazer para um, portanto, é o geral e para outro o particular, o
individual: para o primeiro, é o homem pensante; para o segundo, o homem sensível. Somente sua
reunião constitui a totalidade da noção e o homem, aliás, compõe-se dos dois elementos, do geral e do
particular, do pensamento e da sensibilidade. Sua união é a verdade. Mas ambas se manifestam, uma
após outra, opondo-se. O ceticismo é o princípio negativo que se eleva contra os dois precedentes; ele
afasta o caráter exclusivo de um e outro, mas engana-se quando acredita os ter eliminado, pois ambos
são necessários.
Desse modo, a essência da história da filosofia consiste em que princípios exclusivos transformam-se em
momentos, em elementos concretos e se conservam, por assim dizer, num nó; o princípio das
concepções subseqüentes é superior ou, o que dá no mesmo, mais profundo... A história de Platão não é
um ecletismo, mas uma reunião das filosofias precedentes que então formam um todo vivo, uma união
em uma viva unidade do pensamento...
É importante, antes de tudo, conhecer os princípios dos sistemas filosóficos e em seguida reconhecer
cada um deles como necessário; sendo necessário, ele se apresenta em sua época como superior. Se se
for mais adiante, a determinação precedente torna-se apenas um ingrediente da nova, ela é assumida
sem ser rejeitada. Desse modo, todos os princípios são conservados. Assim, o Uno, a unidade, é o
fundamento de tudo; aquilo que se desenvolve na razão progride na unidade dessa razão... Conhecer
verdadeiramente um sistema é tê-lo justificado em-si. Limitar-se a refutar uma filosofia é não
compreendê-la; é preciso ver a verdade que ela contém. Nada mais fácil do que criticar, do que ver em
alguma parte o caráter negativo; isto é sobretudo gosto característico dos jovens, mas se só se vê a
negação, ignora-se o conteúdo que, ele sim, é afirmativo; supera-se-o sem que se encontre no interior. A
dificuldade consiste em ver o que os sistemas filosóficos contêm de verdadeiro; só quando são
justificados em si próprios é que se pode falar de seu limites, de suas deficiências.
(¹) Encontramos essa idéia em Marx, num contexto materialista: "Os filósofos não brotam da terra como
cogumelos, eles são os frutos de seu tempo, de seu povo, cujas forças mais sutis e mais ocultas se
traduzem em idéias filosóficas. O mesmo espírito fabrica as teorias filosóficas na mente dos filósofos e
constrói as estradas de ferro com as mãos dos operários. A filosofia não é exterior ao mundo".

Nietzsche

Vida e Obra

Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röcken, localidade próxima a Leipzig.
Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio
Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira.
199
Em 1849, seu pai e seu irmão faleceram; por causa disso a mãe mudou-se com a família para
Naumburg, pequena cidade às margens do Saale, onde Nietzsche cresceu, em companhia da mãe, duas
tias e da avó. Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus colegas de escola o chamavam "pequeno
pastor"; com eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias e
escreveu seus primeiros versos.
Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na então famosa escola de Pforta, onde haviam
estudado o poeta Novalis o filósofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schiller
(1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824); sob essa influência e a de alguns professores,
Nietzsche começou a afastar-se do cristianismo. Excelente aluno em grego e brilhante em estudos
bíblicos, alemão e latim, seus autores favoritos, entre os clássicos, foram Platão (428-348 a.C.) e Ésquilo
(525-456 a.C.). Durante o último ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta Teógnis (séc. VI
a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e filosofia, mas,
influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig,
dedicando-se à filologia. Ritschl considerava a filologia não apenas história das formas literárias, mas
estudos das instituições e do pensamento. Nietzsche seguiu-lhe as pegadas e realizou investigações
originais sobre Diógenes Laércio (séc. III), Hesíodo (séc. VIII a.C.) e Homero. A partir desses trabalhos
foi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permaneceu por dez anos. A filosofia
somente passou a interessá-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontade e Representação, de
Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo de Schopenhauer, assim como pela
posição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo significado metafísico
que atribui à música.
Em 1867, Nietzsche foi chamado para prestar o serviço militar, mas um acidente em exercício de
montaria livrou-o dessa obrigação. Voltou então aos estudos na cidade de Leipzig. Nessa época teve
início sua amizade com Richard Wagner (1813-1883), que tinha quase 55 anos e vivia então com Cosima,
filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantou-se com a música de Wagner e com seu drama musical,
principalmente com Tristão e Isolda e com Os Mestres Cantores. A casa de campo de Tribschen, às
margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar d "refúgio e
consolação". Na mesma época, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a "sonhada
Ariane". Em cartas ao amigo Erwin Rohde, escrevia: "Minha Itália chama-se Tribschen e sinto-me ali
como em minha própria casa". Na universidade, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia
grega, esboçando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música.

O Filósofo e o Músico

Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a França; nessa ocasião, Nietzsche serviu o exército como
enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doença
parece ter sido a origem das dores de cabeça e de estômago que acompanharam o filósofo durante toda
a vida. Nietzsche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de prosseguir seus cursos.
Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual se costuma dizer que o verdadeiro
Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer e de Wagner. Nessa obra, considera Sócrates (470
ou 469 a.C.-399 a.C.) um "sedutor", por ter feito triunfar junto à juventude ateniense o mundo abstrato
do pensamento. A tragédia grega, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeição pela reconciliação
da "embriaguez e da forma", de Dioniso e Apolo, começou a declinar quando, aos poucos, foi invadida
pelo racionalismo, sob a influência "decadente" de Sócrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distinção
entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da ordem; Dioniso, o deus da
exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco, complementares
entre si, foram separados pela civilização. Nietzsche trata da Grécia antes da separação entre o trabalho
manual e o intelectual, entre o cidadão e o político, entre o poeta e o filósofo, entre Eros e Logos. Para
ele a Grécia socrática, a do Logos e da lógica, a da cidade-Estado, assinalou o fim da Grécia antiga e de
sua força criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sócrates pôde atrair os
jovens com a dialética, isto é, uma nova forma de disputa (ágon), coisa tão querida pelos gregos.
Nietzsche responde que isso aconteceu porque a existência grega já tinha perdido sua "bela imediatez", e
200
tornou-se necessário que a vida ameaçada de dissolução lançasse mão de uma "razão tirânica", a
fim de dominar os instintos contraditórios.
Seu livro foi mal acolhido pela crítica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o
"pensador privado" e o "professor público". Ao mesmo tempo, esperava-se com seu estado de saúde:
dores de cabeça, perturbações oculares, dificuldades na fala. Interrompeu assim sua carreira universitária
por um ano. Mesmo doente foi até Bayreuth, para assistir à apresentação de O Anel dos Nibelungos, de
Wagner. Mas o "entusiasmo grosseiro" da multidão e a atitude de Wagner embriagado pelo sucesso o
irritaram.
Terminada a licença da universidade para que tratasse da saúde, Nietzsche voltou à cátedra. Mas sua voz
agora era tão imperceptível que os ouvintes deixaram de freqüentar seus cursos, outrora tão brilhantes.
Em 1879, pediu demissão do cargo. Nessa ocasião, iniciou sua grande crítica dos valores, escrevendo
Humano, Demasiado Humano; seus amigos não o compreenderam. Rompeu as relações de amizade que
o ligavam a Wagner e, ao mesmo tempo, afastou-se da filosofia de Schopenhauer, recusando sua noção
de "vontade culpada" e substituindo-a pela de "vontade alegre"; isso lhe parecia necessário para destruir
os obstáculos da moral e da metafísica. O homem, dizia Nietzsche, é o criador dos valores, mas esquece
sua própria criação e vê neles algo de "transcendente", de "eterno" e "verdadeiro", quando os valores
não são mais do que algo "humano, demasiado humano".
Nietzsche, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento da grande arte da
Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influência de
Schopenhauer. Nessa época Wagner voltara-se, ao mesmo tempo, a recusa do cristianismo e de
Schopenhauer; para Nietzsche, ambos são parentes porque são a manifestação da decadência, isto é, da
fraqueza e da negação. Irritado com o antigo amigo, Nietzsche escreveu: "Não há nada de exausto, nada
de caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o mundo no reino do espírito, que não tenha
encontrado secretamente abrigo em sua arte; ele dissimula o mais negro obscurantismo nos orbes
luminosos do ideal. Ele acaricia todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música; acaricia toda
a forma de cristianismo e toda expressão religiosa de decadência" .
Solidão, Agonia e Morte

Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sombra: um ano depois apareceu Aurora, com a qual se
empenhou "numa luta contra a moral da auto-renúncia". Mais uma vez, seu trabalho não foi bem
acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer-lhe o recebimento da obra, nem
respondeu à carta que Nietzsche lhe enviara. Em 1882, veio à luz A Gaia Ciência, depois Assim falou
Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, Nietzsche
contra Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade de Potência só
apareceram depois de sua morte.
Durante o verão de 1881, Nietzsche residiu em Haute-Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e,
durante um passeio, teve a intuição de O Eterno Retorno, redigido logo depois. Nessa obra defendeu a
tese de que o mundo passa indefinidamente pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do
sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietzsche transferiu-se para Gênova, no outono de 1881, e
depois para Roma, onde permaneceu por insistência de Fräulein von Meysenburg, que pretendia casá-lo
com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propôs-lhe casamento e foi
recusado, mas Lou Andreas Salomé desejou continuar sua amiga e discípula. Encontraram-se mais tarde
na Alemanha; porém, não houve a esperada adesão à filosofia nietzschiana e, assim, acabaram por se
afastar definitivamente.
Em seguida, retornou à Itália, passando o inverno de 1882-1883 na baía de Rapallo. Em Rapallo,
Nietzsche não se encontrava bem instalado; porém, "foi durante o inverno e no meio desse desconforto
que nasceu o meu nobre Zaratustra".
No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou a residir em Naumburg, em companhia da mãe e
da irmã. Apesar da companhia dos familiares, sentia-se cada vez mais só. Além disso, mostrava-se muito
contrariado, pois sua irmã tencionava casar-se com Herr Foster, agitador anti-semita, que pretendia
fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teutônica. Nietzsche desprezava o
anti-semitismo, e, não conseguindo influenciar a irmã, abandonou Naumburg.
201
Em princípio de abril de 1884 chegou a Veneza, partindo depois para a Suíça, onde recebeu a visita
do barão Heinrich von Stein, jovem discípulo de Wagner. Von Stein esperava que o filósofo o
acompanhasse a Bayreuth para ouvir o Parsifal, talvez pretendendo ser o mediador para que Nietzsche
não publicasse seu ataque contra Wagner. Por seu lado, Nietzsche viu no rapaz um discípulo capaz de
compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falecer muito cedo, o que o amargurou
profundamente, sucedendo-se alternâncias entre euforia e depressão. Em 1885, veio a público a Quarta
parte de Assim falou Zaratustra; cada vez mais isolado, o autor só encontrou sete pessoas a quem enviá-
la. Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemão Paul Lanzky, que lera Assim
falou Zaratustra e escrevera um artigo, publicado em um jornal de Leipzig e na Revista Européia de
Florença. Certa vez, Lanzky se dirigiu a Nietzsche tratando-o de "mestre" e Nietzsche lhe respondeu:
"Sois o primeiro que me trata dessa maneira".
Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou
o auge da crise; escrevia cartas ora assinando "Dioniso", ora "o Crucificado" e acabou sendo internado
em Basiléia, onde foi diagnosticada uma "paralisia progressiva". Provavelmente de origem sifilítica, a
moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de
1900.

O Dionisíaco e o Socrático

Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de expressão: o aforismo e o poema. Isso trouxe
como conseqüência uma nova concepção da filosofia e do filósofo: não se trata mais de procurar o ideal
de um conhecimento verdadeiro, mas sim de interpretar e avaliar. A interpretação procuraria fixar o
sentido de um fenômeno, sempre parcial e fragmentário; a avaliação tentaria determinar o valor
hierárquico desses sentidos, totalizando os fragmentos, sem, no entanto, atenuar ou suprimir a
pluralidade. Assim, o aforismo nietzschiano é, simultaneamente, a arte de interpretar e a coisa a ser
interpretada, e o poema constitui a arte de avaliar e a própria coisa a ser avaliada. O intérprete seria uma
espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por
aforismos; o avaliador seria o artista que considera e cria perspectivas, falando pelo poema. Reunindo as
duas capacidades, o filósofo do futuro deveria ser artista e médico-legislador, ao mesmo tempo.
Para Nietzsche, um tipo de filósofo encontra-se entre os pré-socráticos, nos quais existe unidade entre o
pensamento e a vida, esta "estimulando" o pensamento, e o pensamento "afirmando" a vida. Mas o
desenvolvimento da filosofia teria trazido consigo a progressiva degeneração dessa característica, e, em
lugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmativo, a filosofia ter-se-ia proposto como tarefa "julgar
a vida", opondo a ela valores pretensamente superiores, mediando-a por eles, impondo-lhes limites,
condenando-a. Em lugar do filósofo-legislador, isto é, crítico de todos os valores estabelecidos e criador
de novos, surgiu o filósofo metafísico. Essa degeneração, afirma Nietzsche, apareceu claramente com
Sócrates, quando se estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e
aparente, verdadeiro e falso, inteligível e sensível. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche,
fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o
Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e
sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido
místico de toda a tradição da época da tragédia.
Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber místico da unidade da
vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma "chave" que abre o caminho essencial do mundo. Mas
Sócrates interpretou a arte trágica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas
sem efeitos, tudo de maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia
na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a seus discípulos que
se abstivessem dessas emoções "indignas de filósofos". Segundo Sócrates, a arte da tragédia desvia o
homem do caminho da verdade: "uma obra só é bela se obedecer à razão", formula que, segundo
Nietzsche, corresponde ao aforismo "só o homem que concebe o bem é virtuoso". Esse bem ideal
concebido por Sócrates existiria em um mundo supra-sensível, no "verdadeiro mundo", inacessível ao
conhecimento dos sentidos, os quais só revelariam o aparente e irreal. Com tal concepção, criou-se,
202
segundo Nietzsche, uma verdadeira oposição dialética entre Sócrates e Dioniso: "enquanto em todos
os homens produtivos o instinto é uma força afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e
negativa, em Sócrates o instinto torna-se crítico e a consciência criadora". Assim, Sócrates, o "homem
teórico", foi o único verdadeiro contrário do homem trágico e com ele teve início uma verdadeira
mutação no entendimento do Ser. Com ele, o homem se afastou cada vez mais desse conhecimento, na
medida em que abandonou o fenômeno do trágico, verdadeira natureza da realidade, segundo Nietzsche.
Perdendo-se a sabedoria instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do
espírito, o aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto irrefreado de
tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional. Penetrar a própria razão das coisas,
distinguindo o verdadeiro do aparente e do erro era, para Sócrates, a única atividade digna do homem.
Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento não tarda a encontrar seus limites: "esta sublime
ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e
o conduz incessantemente a seus limites onde este se transforma em arte".
Por essa razão, Nietzsche combateu a metafísica, retirando do mundo supra-sensível todo e qualquer
valor eficiente, e entendendo as idéias não mais como "verdades" ou "falsidades", mas como "sinais". A
única existência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homem está destinado
à multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação.

O Vôo da Águia, a Ascensão da Montanha

A crítica nietzschiana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral: o combate à teoria das
idéias socrático-platônicas é, ao mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo.
Segundo Nietzsche, o cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de lágrimas, em oposição ao
mundo da felicidade eterna do além. Essa concepção constitui uma metafísica que, à luz das idéias do
outro mundo, autêntico e verdadeiro, entende o terrestre, o sensível, o corpo, como o provisório, o
inautêntico e o aparente. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o povo", de uma
vulgarização da metafísica, que é preciso desmistificar. O cristianismo, continua Nietzsche, é a forma
acabada da perversão dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas e crenças que
permitem à consciência fraca e escava escapar à vida, à dor e à luta, e impondo a resignação e a
renúncia como virtudes. São os escravos e os vencidos da vida que inventaram o além para compensar a
miséria; inventaram falsos valores para se consolar da impossibilidade de participação nos valores dos
senhores e dos fortes; forjaram o mito da salvação da alma porque não possuíam o corpo; criaram a
ficção do pecado porque não podiam participar das alegrias terrestres e da plena satisfação dos instintos
da vida. "Este ódio de tudo que é humano", diz Nietzsche, "de tudo que é 'animal' e mais ainda de tudo
que é 'matéria', este temor dos sentidos... este horror da felicidade e da beleza; este desejo de fugir de
tudo que é aparência, mudança, dever, morte, esforço, desejo mesmo, tudo isso significa... vontade de
aniquilamento, hostilidade à vida, recusa em se admitir as condições fundamentais da própria vida".
Nietzsche propôs a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo:
"munido de uma tocha cuja luz não treme, levo uma claridade intensa aos subterrâneos do ideal". A
imagem da tocha simboliza, no pensamento de Nietzsche, o método filológico, por ele concebido como
um método crítico e que se constitui no nível da patologia, pois procura "fazer falar aquilo que gostaria
de permanecer mudo". Nietzsche traz à tona, por exemplo, um significado esquecido da palavra "bom".
Em latim, bonus significa também o "guerreiro", significado este que foi sepultado pelo cristianismo.
Assim como esse, outros significados precisariam ser recuperados; com isso se poderia constituir uma
genealogia da moral que explicaria as etapas das noções de "bem" e de "mal". Para Nietzsche essas
etapas são o ressentimento ("é tua culpa se sou fraco e infeliz"); a consciência da culpa (momento em
que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas e voltam-se contra si mesmas); e o ideal
ascético (momento de sublimação do sofrimento e de negação da vida). A partir daqui, a vontade de
potência torna-se vontade de nada e a vida transforma-se em fraqueza e mutilação, triunfando o
negativo e a reação contra a ação. Quando esse niilismo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de potência
deixa de querer significar "criar" para querer dizer "dominar"; essa é a maneira como o escravo a
concebe. Assim, na fórmula "tu és mau, logo eu sou bom", Nietzsche vê o triunfo da moral dos fracos
203
que negam a vida, eu negam a "afirmação"; neles tudo é invertido: os fracos passam a se chamar
fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A "profundidade da consciência" que busca o Bem e a
Verdade, diz Nietzsche, implica resignação, hipocrisia e máscara, e o intérprete-filólogo, ao percorrer os
signos para denunciá-las, deve ser um escavador dos submundos a fim de mostrar que a "profundidade
da interioridade" é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista do intérprete que
desça até os bas-fonds da consciência, o Bem é a vontade do mais forte, do "guerreiro", do arauto de um
apelo perpétuo à verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do super-homem, entendida esta
expressão no sentido de um ser humano que transpõe os limites do humano, é o além-do-homem.
Assim, o vôo da águia, a ascensão da montanha e todas as imagens de verticalidade que se encontram
em Assim falou Zaratustra representam a inversão da profundidade e a descoberta de que ela não passa
de um jogo de superfície.
A etimologia nietzschiana mostra que não existe um "sentido original", pois as próprias palavras não
passam de interpretações, antes mesmo de serem signos, e se elas só significam porque são
"interpretações essenciais". As palavras, segundo Nietzsche, sempre foram inventadas pelas classes
superiores e, assim, não indicam um significado, mas impõem uma interpretação. O trabalho do
etimologista, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretado, na
medida em que tudo é máscara, interpretação, avaliação. Fazer isso é "aliviar o que vive, dançar, criar".
Zaratustra, o intérprete por excelência, é como Dioniso.

Os Limites do Humano: O Além-do-Homem

Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, concebendo o primeiro como o triunfo da
afirmação da vontade de potência e o segundo como símbolo do mundo como vontade, como um deus
artista, totalmente irresponsável, amoral e superior ao lógico. Por outro lado, a arte trágica é concebida
por Nietzsche como oposta à decadência e enraizada na antinomia entre a vontade de potência, aberta
para o futuro, e o "eterno retorno", que faz do futuro numa repetição; esta, no entanto, não significa
uma volta do mesmo nem uma volta ao mesmo; o eterno retorno nietzschiano é essencialmente
seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Zaratustra doente e Zaratustra convalescente), o
eterno retorno causa ao personagem-título, primeiramente, uma repulsa e um medo intoleráveis que
desaparecem por ocasião de sua cura, pois o que o tornava doente era a idéia de que o eterno retorno
estava ligado, apesar de tudo, a um ciclo, e que ele faria tudo voltar, mesmo o homem, o "homem
pequeno". O grande desgosto do homem, diz Zaratustra, aí está o que me sufocou e que me tinha
entrado na garganta e também o que me tinha profetizado o adivinho: tudo é igual. E o eterno retorno,
mesmo do mais pequeno, aí está a causa de meu cansaço e de toda a existência. Dessa forma, se
Zaratustra se cura é porque compreende que o eterno retorno abrange o desigual e a seleção. Para
Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta.
Por isso, "os homens não têm de fugir à vida como os pessimistas", diz Nietzsche, "mas, como alegres
convivas de um banquete que desejam suas taças novamente cheias, dirão à vida: uma vez mais".
Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dioniso não é mais Sócrates, mas o Crucificado. Em
outros termos, a verdadeira oposição é a que contrapõe, de um lado, o testemunho contra a vida e o
empreendimento de vingança que consiste em negar a vida; de outro, a afirmação do devir e do múltiplo,
mesmo na dilaceração dos membros dispersos de Dioniso. Com essa concepção, Nietzsche responde ao
pessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o
homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e
da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. O eterno retorno, e apenas ele, oferece, diz
Nietzsche, uma "saída fora da mentira de dois mil anos", e a transmutação dos valores traz consigo o
novo homem que se situa além do próprio homem.
Esse super-homem nietzschiano não é um ser, cuja vontade "deseje dominar". Se se interpreta vontade
de potência, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores
estabelecidos. Com isso, desconhece-se a natureza da vontade de potência como princípio plástico de
todas as avaliações e como força criadora de novos valores. Vontade de potência, diz Nietzsche, significa
"criar", "dar" e "avaliar".
204
Nesse sentido, a vontade de potência do super-homem nietzschiano o situa muito além do bem e do
mal e o faz desprender-se de todos os produtos de uma cultura decadente. A moral do além-do-homem,
que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta à do
escravo e à do rebanho. Oposta, portanto, à moral da compaixão, da piedade, da doçura feminina e
cristã. Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humildade, piedade, amor ao próximo, constituem
valores inferiores, impondo-se sua substituição pela virtù dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo
risco, pela personalidade criadora, pelo amor ao distante. O forte é aquele em que a transmutação dos
valores faz triunfar o afirmativo na vontade de potência. O negativo subsiste nela apenas como
agressividade própria à afirmação, como a crítica total que acompanha a criação; assim, Zaratustra, o
profeta do além-do-homem, é a pura afirmação, que leva a negação a seu último grau, fazendo dela uma
ação, uma instância a serviço daquele que cria, que afirma.
Compreende-se, assim, porque Nietzsche desacredita das doutrinas igualitárias, que lhe parecem
"imorais", pois impossibilitam que se pense a diferença entre os valores dos "senhores e dos escravos".
Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Potência exorta os operários a reagirem "como
soldados".

Uma Filosofia Confiscada

Apoiado na crítica nietzschiana aos valores da moral cristã, em sua teoria da vontade de potência e no
seu elogio do super-homem, desenvolveu-se um pensamento nacionalista e racista, de tal forma que se
passou a ver no autor de Assim Falou Zaratustra um percursor do nazismo. A principal responsável por
essa deformação foi sua irmã Elisabeth, que, ao assegurar a difusão de seu pensamento, organizando o
Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocá-lo a serviço do nacional-socialismo. Elisabeth, depois do
suicídio do marido, que fracassara em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitrariamente notas e
rascunhos do irmão, fazendo publicar Vontade de Potência como a última e a mais representativa das
obras de Nietzsche, retendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitui uma
interpretação, feita por Nietzsche, de sua própria filosofia, que não se coaduna com o nacionalismo e o
racismo germânicos. Ambos foram combatidos pelo filósofo, desde sua participação na guerra franco-
prussiana (1870-1871).
Por ocasião desse conflito, Nietzsche alistou-se no exército alemão, mas seu ardor patriótico logo se
dissolveu, pois, para ele, a vitória da Alemanha sobre a França teria como conseqüência "um poder
altamente perigoso para a cultura". Nessa época, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, Jacob
Burckhardt (1818-1897), que insistia junto a seus alunos para que não tomassem o triunfo militar e a
expansão de um Estado como indício de verdadeira grandeza.
Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche revela o desejo de uma Europa unida para enfrentar o
nacionalismo ("essa neurose") que ameaçava subverter a cultura européia. Por outro lado, quando
confiou ao "louro" a tarefa de "virilizar a Europa", Nietzsche levou até a caricatura seu desprezo pelos
alemães, homens "que introduziram no lugar da cultura a loucura política e nacional... que só sabem
obedecer pesadamente, disciplinados como uma cifre oculta em um número". No mesmo sentido,
Nietzsche caracterizou os heróis wagnerianos como germanos que não passam de "obediência e longas
pernas". E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por causa do nacionalismo e anti-semitismo
do autor de Tristão e Isolda: "Wagner condescende a tudo que desprezo, até o anti-semitismo".
Para compreender corretamente as idéias políticas de Nietzsche, é necessário, portanto, purificá-lo de
todos os desvios posteriores que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tempo um
antidemocrático e um antitotalitário. "A democracia é a forma histórica de decadência do Estado",
afirmou Nietzsche, entendendo por decadência tudo aquilo que escraviza o pensamento, sobretudo um
Estado que pensa em si em lugar de pensar na cultura. Em Considerações Extemporâneas essa tese é
reforçada: "estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados,
segundo as quais o estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-
lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez". Por outro lado,
Nietzsche não aceitava as considerações de que a origem do Estado seja o contrato ou a convenção;
essas teorias seriam apenas "fantásticas"; para ele, ao contrário, o Estado tem uma origem "terrível",
205
sendo criação da violência e da conquista e, como conseqüência, seus alicerces encontram-se na
máxima que diz: "o poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo não seja arrogância,
usurpação e violência".
O Estado, diz Nietzsche, está sempre interessado na formação de cidadãos obedientes e tem, portanto,
tendência a impedir o desenvolvimento da cultura livre, tornando-a estática e estereotipada. Ao contrário
disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a realização da cultura e para fazer nascer o além-do-
homem.

Assim Falou Zaratustra

Em Ecce Homo, Nietzsche intitulou seus capítulos: "Por que sou tão finalista?", "Por que sou tão sábio?",
"Por que sou tão inteligente?", "Por que escrevo livros tão bons?". Isso levou muitos a considerarem sua
obra como anormal e desqualificada pela loucura. Essa opinião, no entanto, revela um superficial
entendimento de seu pensamento. Para entendê-lo corretamente, é necessário colocar-se dentro do
próprio núcleo de sua concepção da filosofia: Nietzsche inverteu o sentido tradicional da filosofia, fazendo
dela um discurso ao nível da patologia e considerando a doença "um ponto de vista" sobre a saúde e
vice-versa. Para ele, nem a saúde, nem a doença são entidades; a fisiologia e a patologia são uma única
coisa; as oposições entre bem e mal, verdadeiro e falso, doença e saúde são apenas jogos de superfície.
Há uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doença e a saúde e a diferença entre as duas é apenas de
grau, sendo a doença um desvio interior à própria vida; assim, não há fato patológico.
A loucura não passa de uma máscara que esconde alguma coisa, esconde um saber fatal e "demasiado
certo". A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é a "meditação ascética", que
consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as paixões; com isso, a vontade de potência, a
sensualidade e o livre florescimento do eu são considerados "manifestações diabólicas". Mas, para
Nietzsche, aniquilar as paixões é uma "triste loucura", cuja decifração cabe à filosofia, pois é a loucura
que torna mais plano o caminho para as idéias novas, rompendo os costumes e as superstições
veneradas e constituindo uma verdadeira subversão dos valores. Para Nietzsche, os homens do passado
estiveram mais próximos da idéia de que onde existe loucura há um grão de gênio e de sabedoria,
alguma coisa de divino: "Pela loucura os maiores feitos foram espalhados foram espalhados pela Grécia".
Em suma, aos "filósofos além de bem e mal", aos emissários dos novos valores e da nova moral não
resta outro recurso, diz Nietzsche, a não ser o de proclamar as novas leis e quebrar o jugo da
moralidade, sob o travestimento da loucura. É dentro dessa perspectiva, portanto, que se deve
compreender a presença da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o momento em
que a "doença" saiu de sua obra e interrompeu seu prosseguimento. As últimos cartas de Nietzsche são o
testemunho desse momento extremo e, como tal, pertencem ao conjunto de sua obra e de seu
pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da saúde à doença, e a loucura
deveria cumprir a tarefa de fazer a crítica escondida da decadência dos valores e aniquilamento: "Na
verdade, a doença pode ser útil a um homem ou a uma tarefa, ainda que para outros signifique doença...
Não fui um doente nem mesmo por ocasião da maior enfermidade".

Kierkegaard

Kierkegaard é um dos raros autores cuja vida exerceu profunda influência no desenvolvimento da obra.
As inquietações e angústias que o acompanharam estão expressas em seus textos, incluindo a relação de
angústia e sofrimento que ele manteve com o cristianismo – herança de um pai extremamente religioso,
que cultuava a maneira exacerbada os rígidos princípios do protestantismo dinamarquês, religião de
Estado.
Sétimo filho de um casamento que já durava muitos anos – nasceu em 1813, quando o pai, rico
comerciante de Copenhague, tinha 56 e a mãe 44 –, chamava a si mesmo de "filho da velhice" e teria
seguido a carreira de pastor caso não houvesse se revelado um estudante indisciplinado e boêmio.
Trocou a Universidade de Copenhague, onde entrara em 1830 para estudar filosofia e teologia, pelos
cafés da cidade, os teatros, a vida social.
206
Foi só em 1837, com a morte do pai e o relacionamento com Regina Oslen (de quem se tornaria
noivo em 1840), que sua vida mudou. O noivado, em particular, exerceria uma influência decisiva em sua
obra. A partir daí seus textos tornaram-se mais profundos e seu pensamento, mais religioso. Também em
1840 ele conclui o curso de teologia, e um ano depois apresentava "Sobre o Conceito de Ironia", sua tese
de doutorado.
Esse é o momento da segunda grande mudança em sua vida. Em vez de pastor e pai de família,
Kierkegaard escolheu a solidão. Para ele, essa era a única maneira de vivenciar sua fé. Rompido o
noivado, viajou, ainda em 1841, para a Alemanha. A crise vivida por um homem que, ao optar pelo
compromisso radical com a transcendência, descobre a necessidade da solidão e do distanciamento
mundano, está em Diários.
Na Alemanha, foi aluno de Schelling e esboça alguns de seus textos mais importantes. Volta a
Copenhague em 1842, e em 1843 publica A Alternativa, Temor e Tremor e A Repetição. Em 1844 saem
Migalhas Filosóficas e O Conceito de Angústia. Um ano depois, é editado As Etapas no Caminho da Vida
e, em 1846, o Post-scriptum a Migalhas Filosóficas. A maior parte desses textos constitui uma tentativa
de explicar a Regina, e a ele mesmo, os paradoxos da existência religiosa. Kierkegaard elabora seu
pensamento a partir do exame concreto do homem religioso historicamente situado. Assim, a filosofia
assume, a um só tempo, o caráter socrático do autoconhecimento e o esclarecimento reflexivo da
posição do indivíduo diante da verdade cristã.
Polemista por excelência, Kierkegaard criticou a Igreja oficial da Dinamarca, com a qual travou um
debate acirrado, e foi execrado pelo semanário satírico O Corsário, de Copenhague. Em 1849, publicou
Doença Mortal e, em 1850, Escola do Cristianismo, em que analisa a deterioração do sentimento
religioso. Morreu em 1855.

Filósofo ou Religioso?

A posição de Kierkegaard leva algumas pessoas a levantar dúvidas a respeito do caráter filosófico de seu
pensamento. Pra elas, tratar-se-ia muito mais de um pensador religioso do que de um filósofo. Para além
das minúcias que essa distinção envolveria, cabe verificar o que ela pode trazer de esclarecedor acerca
do estilo de pensamento de Kierkegaard. Pode-se perguntar, por exemplo, quais as questões
fundamentais que lhe motivam a reflexão, ou, então, qual a finalidade que ele intencionalmente deu à
sua obra.
Estamos habituados a ver, na raiz das tentativas filosóficas que se deram ao longo da história, razões da
ordem da reforma do conhecimento, da política, da moral. Em Kierkegaard não encontramos,
estritamente, nenhuma dessas motivações tradicionais. Isso fica bem evidenciado quando ele reage às
filosofias de sua época – em especial à de Hegel. Não se trata de questionar as incorreções ou as
inconsistências do sistema hegeliano. Trata-se muito mais de rebelar-se contra a própria idéia de sistema
e aquilo que ela representa.
Para Hegel, o indivíduo é um momento de uma totalidade sistemática que o ultrapassa e na qual, ao
mesmo tempo, ele encontra sua realização. O individual se explica pelo sistema, o particular pelo geral.
Em Kierkegaard há um forte sentimento de irredutibilidade do indivíduo, de sua especificidade e do
caráter insuperável de sua realidade. Não devemos buscar o sentido do indivíduo numa harmonia
racional que anula as singularidades, mas, sim, na afirmação radical da própria individualidade.
De onde provém, no entanto, essa defesa arraigada daquilo que é único? Não de uma contraposição
teórico-filosófica a Hegel, mas de uma concepção muito profunda da situação do homem, enquanto ser
individual, no mundo e perante aquilo que o ultrapassa, o infinito, a divindade. A individualidade não
deve portanto ser entendida primordialmente como um conceito lógico, mas como a solidão característica
do homem que se coloca como finito perante o infinito. A individualidade define a existência.
Para Kierkegaard, o homem que se reconhece finito enquanto parte e momento da realização de uma
totalidade infinita se compraz na finitude, porque a vê como uma etapa de algo maior, cujo sentido é
infinito. Ora, comprazer-se na finitude é admitir a necessidade lógica de nossa condição, é dissolver a
singularidade do destino humano num curso histórico guiado por uma finalidade que, a partir de uma
dimensão sobre-humana, dá coerência ao sistema e aplaca as vicissitudes do tempo.
207
Mas o homem que se coloca frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico não se vê
diante de um sistema de idéias mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que
nenhuma lógica pode explicar: a fé. Esta não é o sucedâneo afetivo daquilo que não posso compreender
racionalmente; tampouco é um estágio provisório que dure apenas enquanto não se completam e
fortalecem as luzes da razão. É, definitivamente, um modo de existir. E esse modo me põe
imediatamente em relação com o absurdo e o paradoxo. O paradoxo de Deus feito homem e o absurdo
das circunstâncias do advento da Verdade.
Cristo, enquanto Deus tornado homem, é o mediador entre o homem e Deus. É por meio de Cristo que o
homem se situa existencialmente perante Deus. Cristo é portanto o fato primordial para a compreensão
que o homem tem de si. Mas o próprio Cristo é incompreensível. Não há portanto uma mediação
conceitual, algum tipo de prova racional que me transporte para a compreensão da divindade. A
mediação é o Cristo vivo, histórico, dotado, e o fato igualmente incompreensível do sacrifício na cruz.
Aqui se situam as circunstâncias que fazem do advento da Verdade um absurdo: a Verdade não nos foi
revelada com as pompas do conceito e do sistema. Ela foi encarnada por um homem obscuro que morreu
na cruz como um criminoso. O acesso à Verdade suprema depende pois da crença no absurdo, naquilo
que São Paulo já havia chamado de "loucura". No entanto, é o absurdo que possibilita a Verdade. Se
permanecesse a distância infinita que separa Deus e o homem, este jamais teria acesso à Verdade. Foi a
mediação do paradoxo e do absurdo que recolocou o homem em comunicação com Deus. Por isso
devemos dizer: creio porque é absurdo. Somente dessa maneira nos colocamos no caminho da
recuperação de uma certa afinidade com o absoluto.
Não há, portanto, outro caminho para a Verdade a não ser o da interioridade, o aprofundamento da
subjetividade. Isso porque a individualidade autêntica supõe a vivência profunda da culpa: sem esse
sentimento, jamais nos situaremos verdadeiramente perante o fato da redenção e, conseqüentemente,
da mediação do Cristo.

O Sofrimento Necessário

A subjetividade não significa a fuga da generalidade objetiva: ao contrário, somente aprofundando a


subjetividade e a culpa a ela inerente é que nos aproximaremos da compreensão original de nossa
natureza: o pecado original. E a compreensão irradia luz sobre a redenção e a graça, igualmente
fundamentais para nos sentirmos verdadeiramente humanos, ou seja, de posse da verdade humana do
cristianismo. A autêntica subjetividade, insuperável modo de existir, se realiza na vivência da
religiosidade cristã.
A subjetividade de Kierkegaard não é tributária apenas da atmosfera romântica que envolvia sua época.
Seu profundo significado a-histórico tem a ver, mais do que com essa característica do Romantismo, com
uma concepção de existência que torna todos os homens contemporâneos de Cristo. O fato da redenção,
embora histórico, possui uma dimensão que o torna referência intemporal para se vivenciar a fé. O
cristão é aquele que se sente continuamente em presença de Deus pela mediação do Cristo. Por isso a
religião só tem sentido se for vivida como comunhão com o sofrimento da cruz. Por isso é que
Kierkegaard critica o cristianismo de sua época, principalmente o protestantismo dinamarquês,
penetrado, segundo ele, de conceituação filosófica que esconde a brutalidade do fato religioso, minimiza
a distância entre Deus e o homem e sufoca o sentimento de angústia que acompanha a fé.
Essa angústia, no entender de Kierkegaard, estaria ilustrada no episódio do sacrifício de Abraão. Esse
relato bíblico indica a solidão e o abandono do indivíduo voltado unicamente para a vivência da fé. O que
Deus pede a Abraão – que ele sacrifique o único filho para demonstrar sua fé – é absurdo e desumano
segundo a ética dos homens.
Não se trata, nesse caso, de optar entre dois códigos de ética, ou entre dois sistemas de valores. Abraão
é colocado diante do incompreensível e diante do infinito. Ele não possui razões para medir ou avaliar
qual deve ser sua conduta. Tudo está suspenso, exceto a relação com Deus.
208
O Salto da Fé

Abraão não está na situação do herói trágico que deve escolher entre valores subjetivos (individuais e
familiares) e valores objetivos (a cidade, a comunidade), como no caso da tragédia grega. Nada está em
jogo, a não ser ele mesmo e a sua fé. Deus não está testando a sabedoria de Abraão, da mesma forma
como os deuses testavam a sabedoria de Édipo ou de Agamenon. A força de sua fé fez com que Abraão
optasse pelo infinito.
Mas, caso o sacrifício se tivesse consumado, Abraão ainda assim não teria como justificá-lo à luz de uma
ética humana. Continuaria sendo o assassino de seu filho. Poderia permanecer durante toda a vida
indagando acerca das razões do sacrifício e não obteria resposta. Do ponto de vista humano, a dúvida
permaneceria para sempre. No entanto Abraão não hesitou: a fé fez com que ele saltasse imediatamente
da razão e da ética para o plano do absoluto, âmbito em que o entendimento é cego. Abraão ilustra na
sua radicalidade a situação de homem religioso. A fé representa um salto, a ausência de mediação
humana, precisamente porque não pode haver transição racional entre o finito e o infinito. A crença é
inseparável da angústia, o temor de Deus é inseparável do tremor.
Por tudo o que a existência envolve de afirmação de fé, ela não pode ser elucidada pelo conceito. Este
jamais daria conta das tensões e contradições que marcam a vida individual. Existir é existir diante de
Deus, e a incompreensibilidade da infinitude divina faz com que a consciência vacile como diante de um
abismo. Não se pode apreender racionalmente a contemporaneidade do Cristo, que faz com que a
existência cristã se consuma num instante e ao mesmo tempo se estenda pela eternidade. A fé reúne a
reflexão e o êxtase, a procura infindável e a visão instantânea da Verdade; o paradoxo de ser o pecado
ao mesmo tempo a condição de salvação, já que foi por causa do pecado original que Cristo veio ao
mundo. Qualquer filosofia que não leve em conta essas tensões, que afinal são derivadas de estar o finito
e o infinito em presença um do outro, não constituirá fundamento adequado da vida e da ação. A
filosofia deve ser imanente à vida. A especulação desgarrada da realidade concreta não orientará a ação,
muito simplesmente porque as decisões humanas não se ordenam por conceitos, mas por alternativas e
saltos.

Emmanuel Kant

A Moral de Kant

É só no domínio da moral que a razão poderá, legitimamente, manifestar-se em toda sua pujança. A
razão teórica tinha necessidade da experiência para não se perder no vácuo da metafísica. A razão
prática, isto é, ética, deve ao contrário, ultrapassar, para ser ela própria, tudo que seja sensível ou
empírico.
Toda ação que toma seus móveis da sensibilidade, dos desejos empíricos, é estranha à moral, mesmo
que essa ação seja materialmente boa. Por exemplo: se me empenho por alguém por cálculo interessado
ou mesmo por afeição, minha conduta não é moral. Com efeito, amanhã, meus cálculos e meus
sentimentos espontâneos poderiam levar-me a atos contrários. A vontade que tem por fim o prazer, a
felicidade, fica submetida às flutuações de minha natureza. Nesse ponto, Kant se opõe não só ao
naturalismo dos filósofos iluministas, mas, também, à ontologia otimista de São Tomás, para quem a
felicidade é o fim legítimo de todas as nossas ações. Em Kant, há o que Hegel mais tarde denominará
uma visão oral do mundo que afasta a ética dos equívocos da natureza. O imperativo moral não é um
imperativo hipotético que submeteria o bem ao desejo (cumpre teu dever se nele satisfazes teu
interesse, ou então, se teus sentimentos espontâneos a ele te conduzem), mas o imperativo categórico:
Cumpre teu dever incondicionalmente.
Em que consiste esse dever? Uma vez que as leis que a Razão se impõe não podem, em nenhum caso,
receber um conteúdo da experiência e que devem exprimir a autonomia da razão pura prática, as regras
morais só podem consistir na própria forma da lei. "Age sempre de tal maneira que a máxima de tua
ação possa ser erigida em regra universal" (primeira regra). O respeito pela razão estende-se ao sujeito
racional: "Age sempre de maneira a tratares a humanidade em ti e nos outros sempre ao mesmo tempo
209
como um fim e jamais como um simples meio" (segunda regra). Desse modo, o princípio do dever,
para ser absolutamente rigoroso, não implica em nenhuma "alienação", como diríamos hoje, em
nenhuma "heteronomia", como diz Kant.
Para se unirem numa justa reciprocidade de direitos e obrigações, os homens só têm que obedecer às
exigências de sua própria razão: "Age como se fosses ao mesmo tempo legislador e súdito na república
das vontades" (terceira regra).
O único sentimento que tem por si mesmo um valor moral nessa ética racionalista é o sentimento do
respeito, pois não é anterior à lei, mas é a própria lei moral que o produz em mim; ele me engrandece,
ele me realiza como ser racional que obedece à lei moral. Vimos que, pelo fato de ser puramente formal,
essa moral não me propõe, efetivamente, um ato concreto a realizar. Ela simplesmente autoriza ou
proíbe este ou aquele ato que tenho vontade de praticar. Por exemplo, vejo de imediato que não tenho o
direito de mentir, mesmo que me diga: e se todos fizessem o mesmo? A mentira de todos para com
todos é contraditória, portanto, proibída. A moral formal, por conseguinte, apresenta-se como
essencialmente negativa. Como diz Jan Kélévitch, o imperativo categórico é um "proibitivo categórico".
A moral de Kant, ao privilegiar a razão humana, exprime sua desconfiança com relação à natureza
humana, aos instintos, às tendências de tudo o que é empírico, passivo, passional, ou, como diz Kant,
patológico. Tal é o rigoríssimo kantiano. A razão fala sobre a forma severa do dever porque é preciso
impor silêncio à natureza carnal, porque é preciso, ao preço de grande esforço, submeter a humana
vontade à lei do dever. Por conseguinte, o domínio da moral não é o da natureza (submissão animal aos
instintos) nem o da santidade (em que a natureza, transfigurada pela graça, sentiria uma atração
instintiva e irresistível pelos valores morais). O mérito moral é medido precisamente pelo esforço que
fazemos para submeter nossa natureza às exigências do dever.

Moral e Metafísica

A moral de Kant é o que chamamos de uma moral independente. Ela não possui outro fundamento além
da consciência humana, essa consciência que é essencialmente razão. Mesmo que o universo não tenha
o menor sentido, mesmo que a alma seja mortal, o discípulo de Kant se sabe obrigado a respeitas as
máximas da razão.
Todavia, Kant vai reerguer a metafísica - essa metafísica cuja demonstração era impossível, segunda a
crítica da razão pura. A originalidade de Kant está no fato de que, ao invés de buscar os fundamentos de
sua moral na metafísica, ele vai estabelecer os fundamentos de uma metafísica na moral, a título de
"postulados da razão prática". Por exemplo: o dever me prescreve a realização de certa perfeição moral
que não consigo atingir na vida presente (posto que não chego a purificar totalmente a determinação de
querer dos móveis sensíveis). Kant então postula a imortalidade da alma.
Por outro lado, Kant constata que a virtude e a felicidade quase não estão juntas, neste mundo em que,
de um modo geral, os maus são muito prósperos. Ele então postula que um Deus justiceiro, por
intermédio de um sistema de recompensa e punições, restabelecerá no além a harmonia entre virtude e
felicidade.
Finalmente, partindo da consciência da obrigação moral, Kant vai postular a liberdade humana. Com
efeito, a obrigação moral exclui a necessidade dos atos humanos. A obrigação não teria o menor sentido
se minha conduta fosse automaticamente determinada por minhas tendências ou pelas influências que
sofri. Ser moralmente obrigado é ter o poder de responder sim ou não à regra moral, é ter a liberdade de
escolher entre o bem e o mal. "Tu deves, diz Kant, então podes."
Esta liberdade não poderia ser demonstrada. No plano dos fenômenos, isto é, da experiência, do que
hoje denominamos ciência psicológica, eu vejo que meus atos, ao contrário, são determinados uns pelos
outros no tempo. Aquele crime pode ser explicado pelas paixões de seu autor, pela deplorável educação
que recebeu, etc... E, no entanto, o homem se sente responsável, por conseguinte, livre. Não
esqueçamos que o mundo dos fenômenos, isto é, do determinismo, é um mundo de aparências. Por trás
desse determinismo aparente, pelo qual o mundo se me apresenta no conhecimento, esconde-se a
realidade numenal de minha liberdade. Por conseguinte, é fora do tempo, é nas profundezas do ser
inacessível ao saber científico, que o mau escolheu livremente o seu caráter de mau. Em tal sistema,
210
portanto, não existe liberdade parcial nem meia-responsabilidade. Totalmente determinados nas
aparências fenomenais, seríamos totalmente livres em nossa realidade numenal: daí se segue que
nenhum pecado poderia ser escusável.

A Crítica do Juízo

Desse modo, a filosofia de Kant nos surge como uma filosofia essencialmente trágica, já que afirma
simultaneamente a necessidade da natureza (na Crítica da Razão Pura) e a exigência de uma liberdade
absoluta (na Crítica da Razão Prática).
Em sua terceira grande obra, A Crítica do Juízo, Kant se esforça por mostrar a possibilidade de uma
reconciliação entre o mundo natural e o da liberdade. A natureza não seja talvez não seja apenas o
domínio do determinismo, mas também o da finalidade que aparece notadamente na organização
harmoniosa dos seres vivos. Todavia, se o princípio de causalidade (determinismo) é constitutivo da
experiência (não posso dispensá-lo para explicar a natureza), o princípio de finalidade permanece
facultativo, puramente regulador (posso interpretar o agrupamento de certas condições como a
manifestação de um fim). Tudo se passa como se o pássaro fosse feito para voar, mas uma coisa apenas
é certa: o pássaro voa porque é constituído de tal maneira.
Os valores de beleza, presentes na obra de arte, igualmente nos oferecem uma espécie de reconciliação
entre a razão e a imaginação, já que, na contemplação estética, a bela aparência que admiramos parece
inteiramente penetrada dos valores do espírito. Finalidade sem fim (isto é, harmonia pura, fora de todo
móvel exterior à obra de arte), a beleza oferece à nossa imaginação a oportunidade de uma satisfação
inteiramente desinteressada. Ela é, no mundo kantiano, o exemplo único de uma satisfação ao mesmo
tempo sensível e pura de todo egoísmo, o momento privilegiado em que uma emoção, longe de
manifestar meu egoísmo dominador, dele me liberta e, como se diz muito bem, me "arrebata".

O Idealismo Pós-Kantiano

Considerações Gerais

A maior parte dos filósofos (é sua vocação mais preciosa, a menos que não seja seu pecado original) visa
à inteligibilidade perfeita e à unidade total. Nessas condições, a empresa kantiana só pode deixar os
filósofos insatisfeitos: para Kant, o entendimento não pode conhecer o fundo das coisas e se limita a
"soletrar os fenômenos". Como é então que o mundo sensível se deixa organizar, se ordenado pelas
categorias do espírito? E por que Kant mantém essa coisa em si que, segundo afirma, não podemos
conhecer nem designar?
Os sucessores de Kant, por conseguinte, vão propor sistemas em que, de modo diferente, a irredutível
oposição entre a coisa e o espírito será eliminada. Hegel, ao definir em uma palavra os sistemas de
Fichte, de Schelling, ao mesmo tempo que o seu próprio, caracteriza-os sucessivamente como idealismo
subjetivo, idealismo objetivo e idealismo absoluto.
Kant representa o centro do pensamento moderno. Para ele convergem e nele se compõem em um
fenomenismo absoluto o fenomenismo racionalista e o fenomenismo empírico. Dele depende todo
pensamento posterior, particularmente o idealismo clássico alemão, que desenvolve o conceito de
criatividade do sujeito, de síntese a priori, de autonomia do espírito, para uma forma de monismo
imanentista, em que toda realidade se resolve nos limites da experiência, e esta é totalmente produzida
pelo espírito.
Além de Kant, a outra fonte essencial do idealismo alemão é Spinoza. Este filósofo é arrancado do
desprezo e do esquecimento em que jazia, e o seu pensamento encaminha decisivamente o idealismo
para a trilha do monismo imanentista, para o qual já fora orientado por Kant. Todos os filósofos idealistas
(Fichte, Schelling, Schleiermacher, Hegel, Schopenhauer) dependem, mais ou menos, de Spinoza, bem
como dele dependem artistas, literatos, poetas, com Goethe à frente.
Paralelo e correspondente ao movimento filosófico do idealismo pode ser considerado o romantismo,
fenômeno artístico e literário, especialmente alemão. Com efeito, também o romantismo é denominado
211
pelo conceito de criatividade e liberdade do espírito, como o idealismo; e com o idealismo tem em
comum o historicismo, o conceito de desenvolvimento, e, por conseguinte, a valorização da nacionalidade
e da religião, que são produtos históricos.
Os maiores românticos alemães são Schlegel e Novalis. A estes podem-se acrescentar Schelling e
Schleiermacher; são eles, propriamente, filósofos idealistas, mas pertencem também ao movimento
romântico, pela íntima unidade espiritual do romantismo e do idealismo. Este, pois, propende, em geral,
mais para a arte e a poesia, do que para as ciências e a matemática; ao passo que se deu o contrário
com o racionalismo precedente.

O Desenvolvimento do Idealismo

Apesar do seu conceito de criatividade do espírito, de síntese a priori, Kant deixara ainda uns dados, em
face dos quais o espírito é passivo: o mundo dos noumenons, que o espírito não consegue conhecer.
Esse mundo de coisa em si, esse mundo de dados, é representado especialmente de um lado por aquela
misteriosa matéria, e de outro lado por aquele mundo inteligível, donde derivaria toda a atividade
organizadora e criadora do espírito, no mundo empírico.
Ora, o idealismo clássico nega todo dado, ou coisa em si, perante o qual o espírito é passivo, e portanto
nega o transcendente mundo kantiano dos noumenons, e reduz tudo à mais absoluta imanência do
espírito. O mundo da matéria, das sensações, da natureza, é uma criação inconsciente do espírito; este é
transcendental - e não transcendente - com respeito à multiplicidade e ao vir-a-ser do mundo empírico,
no qual unicamente, entretanto, o espírito se realiza, vive, se concretiza a si mesmo indefinita e
livremente, e é plenamente cognoscível a si mesmo.

O Idealismo Ético: Fichte

O primeiro e maior discípulo de Kant, que encaminhou decididamente o criticismo pela senda do
idealismo imanentista, é Fichte. Resolve ele o mundo kantiano da sensibilidade, perante o qual, no dizer
de Kant, o espírito seria passivo, no mundo da natureza, criado pelo espírito para se realizar a si mesmo
como eticidade e liberdade, pois Fichte mantém o conceito kantiano do primado da razão prática,
precisamente no conceito do espírito como eticidade.
João Amadeu Fichte nasceu em 1762, em Rommenau. Primeiro estudou teologia na universidade de
Jena, depois dedicou-se entusiasticamente à filosofia kantiana, e conheceu pessoalmente Kant. Em 1794
foi convidado a lecionar na universidade de Jena. Aí teve que enfrentar a oposição das autoridades
religiosas e políticas, que - protestantes embora - tiveram intuição do seu anticristianismo e ateísmo.
Apesar das suas desculpas, enfim teve Fichte que deixar o ensino universitário. Depois de ter peregrinado
por várias universidades, e ter travado relações com um círculo romântico, estabeleceu-se
definitivamente, em 1810, na universidade de Berlim, onde pronunciou os famosos Discursos à Nação
Alemã, para incitar os seus patrícios contra Napoleão que humilhara e vencera a Alemanha. Faleceu em
Berlim, em 1814. Entre as suas obras, a principal é Fundamentos da doutrina da ciência, onde expõe
sistematicamente o seu pensamento.
Sustenta Fichte que o motivo fundamental, pelo qual se decide em favor do idealismo e não em favor do
dogmatismo, isto é, do realismo, seria prático, moral, em suma, uma questão de caráter. Dogmatismo
significa passividade, acomodação, fraqueza, debilidade; ao passo que idealismo, isto é, imanentismo,
significaria atividade, independência, liberdade, posse de si mesmo. E, de fato, este motivo prático,
moral, ficou sendo a base do idealismo posterior, que, portanto, procurou a sua justificação teorética em
uma metafísica monista-imanentista, e não em uma metafísica transcendente e teísta.
Assentado isto, Fichte concebe idealisticamente toda a realidade, tanto espiritual quanto material, como
uma produção do eu. Trata-se, naturalmente, de um eu universal, absoluto, transcendental, isto é, Eu
puro, de que o eu empírico, os diversos "eus empíricos" seriam concretizações particulares, no tempo e
no espaço. Nesses eus empíricos, e unicamente neles, o Eu puro vive, opera, desenvolve-se, em um
processo infinito, ético, em que está a sua divindade infinita.
212
Desenvolvendo a doutrina kantiana do primado da razão prática, Fichte pensa que a natureza íntima,
profunda, originária do eu seja atividade, moralidade. Para realizá-la, o eu criaria o mundo da natureza,
oporia a si mesmo o não-eu. Este seria precisamente como que o campo da sua atividade, o obstáculo a
superar para realizar a sua eticidade, a antítese que ele põe como tese, a fim de que seja possível a
síntese ética. Tal processo ascendente, pois, não tem fim, porque, se terminasse, apagar-se-ia a vida do
espírito, a qual é atividade, eticidade, e a realidade cairia do nada.
Naturalmente, tal produção do não-eu por parte do eu, tal produção da natureza por parte do espírito é
inconsciente. Mas, destarte, julga Fichte ter justificado, deduzido do eu o mundo da matéria, da
natureza; mundo que, para Kant, era um dado e inexplicável. Fica, todavia, racionalmente indeduzível o
conteúdo desse mundo da natureza, minerais, vegetais, animais, e cada indivíduo e cada ação sua,
porquanto em um sistema de idealismo absoluto deveria ser tudo racionalmente justificado - como mais
tarde, procurará fazer Hegel.
Mas, para que seja superado e vencido esse mundo natural, para que o espírito possa aplicar a ele a sua
atividade, é necessário que a natureza seja conhecida pelo espírito. Daí uma terceira duplicação do eu, a
dualidade do eu teorético e do eu prático, do eu cognoscitivo e do eu ativo. Temos o eu teorético,
quando, na antítese eu não-eu, prevalece o segundo elemento; temos, pelo contrário, o eu prático
quando prevalece o primeiro elemento, isto é, o espírito, que é precisamente eticidade. No conhecimento
começa a manifestar-se aquela atividade consciente do espírito, do eu (reflexão), que era, ao invés,
inconsciente no momento da produção da natureza, do não-eu (imaginação produtora), bem como na
multiplicação do "eu puro" nos "eus empíricos".
Tal série ideal da atividade do espírito, do eu, consciente e inconsciente, teorética e prática, tem por fim
a sempre mais perfeita realização do próprio espírito, isto é, a sua liberdade, a consciência da sua
natureza absoluta e divina. Consciência e liberdade que encontram um progresso na sociedade humana,
em uma sociedade de seres livres, no estado. Fichte tem uma concepção ética do estado, das nações,
dos povos, deva ser guiada e ensinada por um povo, uma nação, um estado ideal. Segundo ele, esse
estado seria a Alemanha. É um mito romântico da Alemanha, em que o povo alemão é considerado como
o povo puro e originário, encarnando a idéia da humanidade.
Daqui se pode compreender a ação política exercida por Fichte na Prússia, em Berlim - durante a
ocupação, a dominação de Napoleão, causa de humilhação para o povo germânico - com os Discursos à
Nação Alemã. Nestes discursos esforça-se Fichte para despertar no povo alemão, despedaçado e
dominado, uma consciência de unidade e autonomia nacionais, que deveriam ter culminado em um
estado alemão, superestado em face de outros estados.
Essa atividade utópica-política de Fichte tem certa semelhança com a atividade desenvolvida alguns anos
depois na Itália, por Gioberti que escreveu o famoso livro Primato morale e civile degli Italiani. Nesta obra
Gioberti não somente quer dar à Itália unidade e independência nacional e política, mas também procura
evidenciar o seu primado no mundo; primado moral e civil, isto é, religioso e cultural, que
indiscutivelmente ela possui, como herdeira da cultura clássica e sede do cristianismo católico romano.
Não é preciso lembrar que o Deus de Fichte não é transcendente, pessoa, criador, como o Deus do
teísmo e do cristianismo, isto é, não é Deus no sentido verdadeiro e próprio; mas é imanente, impessoal
e gerador do mundo, de sorte que o verdadeiro conceito de Deus é logicamente anulado, como
justamente observa Schopenhauer. Compreendem-se, assim, as acusações de ateísmo levantadas contra
Fichte. O Deus de Fichte é apenas ordo ordinans, isto é, deveria ser a ordem moral do mundo.
Entretanto, em um sistema imanentista - como é o de Fichte - acaba por coincidir com a ordem real,
natural, do mundo, em que o "deve ser" é reduzido ao "ser".
O próprio Fichte notou essa grave deficiência, essa demolição de Deus. E, em uma segunda fase do seu
pensamento, volta ele para uma concepção de Deus absoluto e imutável, ideal para o qual tende o
afanoso evolucionar humano, que aspira aos valores espirituais e morais.

O Idealismo Estético: Schelling

Embora colega de Fichte e mais velho que Hegel, Schelling está logicamente entre Fichte e Hegel, pelo
menos na primeira grande fase da sua especulação filosófica, denominada filosofia da identidade.
213
Ademais, representa ele a filosofia do romantismo, enquanto Schelling assume no seu sistema a
concepção romântica, em virtude da qual toda a natureza é espiritualizada, e o espírito humano atinge a
essência metafísica da realidade através de uma intuição estética.
Frederico Guilherme Schelling nasceu em 1775, em Leonberg. Em Tubinga teve Hegel como
condiscípulo, com o qual, em seguida, sustentou pesada polêmica. Passou da teologia à filosofia e
dedicou-se ao estudo de Spinoza, do qual deriva a sua concepção idealista; de Fichte, que constitui o
pressuposto imediato do seu pensamento, afastando-se entretanto dele em seguida. Em Leipzig integrou
a sua cultura humanista e literária com estudos científicos. Nele influíram também as turvas fantasias da
mística alemã. Foi sucessivamente professor nas universidades de Jena, Würzburg, Erlangen, Munique e
Berlim, onde dominara o seu adversário Hegel, cujo racionalismo ele demole. Faleceu em Berlim, em
1854, quando o idealismo já estava esfacelado.
Schelling foi um autor variado e fecundo. As faces do seu pensamento são fundamentalmente duas: o
período da filosofia da identidade, e o da filosofia da liberdade. As suas obras principais são: o Sistema
do idealismo Transcendental; Representação do meu Sistema (primeira fase, filosofia da identidade);
Filosofia e Religião; Pesquisas Filosóficas sobre a Essência da Liberdade Humana e os Objetos Conexos
com Esta (segunda fase, filosofia da liberdade).
A filosofia de Schelling é, fundamentalmente, idealista: o espírito, o sujeito, o eu, é princípio de tudo.
Como Fichte, admite que a natureza é uma produção necessária do espírito; recusa, porém, o conceito
de Fichte de que a natureza tenha uma existência puramente relativa ao espírito. Para ele, a natureza -
embora concebida idealisticamente - tem uma realidade autônoma com respeito ao sujeito, à
consciência. A natureza é o espírito na fase de consciência obscura, como o espírito é a natureza na fase
de consciência clara.
Então o princípio da realidade não é mais o eu de Fichte (o eu absoluto, o sujeito puro); mas deverá ser
um princípio mais profundo, anterior ao eu e ao não-eu: será precisamente a identidade absoluta do eu e
do não-eu, sujeito e objeto, espírito e natureza. Dessa identidade, princípio absoluto da realidade,
decorrerá, primeiro, a natureza e o seu desenvolvimento, e depois o espírito com toda a sua história, não
como sendo oposição e negação da natureza, mas como seu desenvolvimento e consciência.
Que a natureza seja espiritualidade latente e progressiva, Schelling julga demonstrá-lo mediante a
racionalidade imanente na própria natureza, e precisamente mediante a sua finalidade.
Ao surgir a sensibilidade, nasce no universo a consciência espiritual, começa o desenvolvimento do
espírito humano, que é um progresso, uma continuação com respeito ao desenvolvimento da natureza.
A unidade, a identidade profunda entre natureza e espírito deveria, segundo Schelling, ser aprendida pela
intuição estética expressa na obra de arte, que é a obra do gênio. E o gênio se encontra só no campo
estético, não no científico. Unicamente o gênio artístico atinge e revela o artista misterioso que atua no
universo.
Logo, a realidade absoluta é identidade entre natureza e espírito, objeto e sujeito: unidade de uma
multiplicidade. Mas então surge o problema que assoma em toda concepção monista da realidade: ou a
realidade verdadeira cabe ao idêntico, ao indistinto, ao uno imutável; ou o multíplice, o devir do mundo
tem uma realidade verdadeira. No primeiro caso, a multiplicidade e o devir do mundo, a natureza e o
espírito, são meras aparências subjetivas; no segundo, propende para a primeira solução: o idêntico não
é a causa do universo, mas é o próprio universo.
Mas então como se explica a visão, mesmo ilusória, do universo que aparece múltiplo e in fieri? Se a
realidade absoluta é una e imutável, e nada existe fora dela, como e donde pode surgir essa visão
destruidora do Absoluto? Schelling procura resolver esse problema, passando da filosofia da identidade à
filosofia da liberdade, de um sistema racional, a um sistema irracional. Tal passagem é representada pela
segunda fase do seu pensamento.
Nessa segunda fase, Schelling imagina o ser absoluto, Deus, como indiferença de irracional e racional,
possibilidade do irracional e do racional, vontade inconsciente que aspira à racionalidade, à própria auto-
revelação. Essa realização de racionalidade, essa revelação de Deus a si mesmo se realizam na
determinação das idéias eternas em Deus. Schelling concebe as idéias eternas ao mesmo tempo como
verbo de Deus, revelação de Deus a si mesmo, e como exemplares universais e imutáveis das existências
particulares e in fieri.
214
A passagem de Deus, do mundo ideal, ao mundo empírico e contingente, não se pode realizar
mediante uma dedução lógica, porquanto há essencial heterogeneidade entre o perfeito, o imutável, o
universal e o imperfeito, o temporal, o particular. Tal passagem se explica então mediante um ato
arracional, irracional da vontade, de liberdade. E isto é possível, porque as idéias eternas participam da
natureza divina, que é liberdade e vontade. Por conseguinte, elas se podem destacar do Absoluto, decair
no mundo empírico da multiplicidade, da individualidade, do contingente, do devir.
E, com efeito, tal queda, tal separação aconteceu e constitui o mundo material e espiritual, natural e
humano, com todo o mal que nele existe. Através, pois, da história da natureza e da humanidade,
deveria realizar-se progressivamente a redenção dessa queda original, o retorno das coisas a Deus, da
multiplicidade à Unidade, do finito ao Infinito. Essa redenção redimiria não só e não tanto o mundo e o
homem, mas o próprio Deus: porquanto, ele, assim, superaria o seu fundo originário arracional e
irracional, revelando-se plenamente a si mesmo, conquistando a sua racionalidade.
Compreende-se, portanto, como, para Schelling, é racional o mundo das ciências, das idéias; mas
irracional o mundo da existência, da realidade. Com relação ao primeiro é possível conhecimento
racional, ciência, filosofia; ao passo que o segundo pode ser unicamente descrito com base na
experiência.
O pensamento de Schelling é, pelo que se vê, difícil e proteiforme.

O Idealismo Religioso: Schleiermacher

A Schelling pode-se ligar Schleiermacher, porquanto ele também é ligado estritamente ao movimento
romântico, e é, portanto, filósofo do Romantismo, embora muito inferior a Schelling como metafísico.
Juntamente com o Romantismo, Scheleiermacher procura valorizar, justificar a religião, desprezada e
expulsa da vida do espírito pelo racionalismo iluminista. Scheleiermacher teve uma influência vasta e
duradoura sobre o protestantismo liberal alemão, elucidando o princípio da experiência interior, elemento
germinal da Reforma luterana. É, porém, uma valorização no sentido imanentista, idealista, de sorte que
a religião se torna necessariamente e ainda mais radicalmente demolida.
Frederico Scheleiermacher nasceu em Breslau, em 1768. Foi professor em Halle e Berlim, onde
faleceu em 1831. As suas obras principais, em ordem cronológica, são: Discursos sobre a Religião;
Monólogos; Crítica das Doutrinas; A Fé Cristã. Estes críticos têm um interesse religioso, mas implicam
também numa concepção metafísica do mundo e da vida, mediante a qual o autor procura justificar a
religião em geral e o cristianismo em especial.
A concepção filosófica de Scheleiermacher é, fundamentalmente, a do idealismo romântico, isto é, do
monismo imanentista. Embora Scheleiermacher pense que não podemos conhecer nada a respeito de
Deus, teoreticamente, repete de muitos modos que a realidade é una, e que o espírito humano na sua
plena atualidade é a consciência de Deus imanente.
Segundo Scheleiermacher, o Absoluto não é atingível por via prática, moral, como julgava Kant. Para
Kant, a atividade que atinge o Absoluto é a vontade moral, a razão prática. Daí o primado da razão
prática; daí ser a metafísica substituída pela moral; daí ser a religião reduzida aos limites da razão
prática, isto é, resolvida na moral. Mas o Absoluto não é atingível sequer por via teorética, racional, como
julgava Hegel, dada a sua concepção panlogista-imanentista da realidade (toda a realidade é racional e
toda a racionalidade é real): daí a lógica coincidir com a ontologia, a ética ser resolvida na dialética, e a
religião aniquilada na filosofia.
O Absoluto - segundo Scheleiermacher - é atingido pelo sentimento: não pelo simples sentimento
entendido em sentido psicológico, que é uma atividade coordenada ao conhecimento e à vontade, e é,
como o conhecimento e a vontade, secundário, dependente e limitado; mas pelo sentimento potenciado
romanticamente em sentido metafísico, sentimento este que seria precisamente a faculdade do Absoluto,
do Uno, e a raiz comum das outras atividades psíquicas. Scheleiermacher quer libertar a religião não só
da ciência, mas também da moral, para celebrar uma religiosidade estética. Pensa ele - como Schelling -
que o Absoluto é atingido mediante a intuição estética, a que Schleiermacher julga poder dar um
específico valor religioso.
215
Scheleiermacher sustenta que o conhecimento e a vontade - a ciência e a moral - não podem atingir
o Absoluto, que é uno, porquanto o conhecimento e a vontade implicam a multiplicidade decorrente da
relativa mudança dos estados de consciência e a dualidade de duas atividades, (sujeito e objeto), uma
excluindo a outra. E julga que o privilégio de apreender a unidade metafísica do ser é devido ao
sentimento, valorizado metafisicamente.
Que relação existe entre sentimento e religião, entre os quais Scheleiermacher institui uma equação? O
Absoluto não é atingido pelo conhecimento, pela ciência, e nem sequer pela vontade, pela ética, e sim
pelo sentimento. E por que esta atividade deve ser considerada religiosa e não, por exemplo, estética?
Scheleiermacher parece proceder deste modo. Segundo a experiência religiosa, ele define, não
arbitrariamente, a religião como sendo a relação do finito com o infinito, porquanto, de fato, a relação do
finito com o infinito não pode ser senão dependência absoluta, do sentimento. Ao sentimento ele
reconhece o valor particular de imediata autoconsciência e transforma-o metafisicamente. E conclui
finalizando na equação sentimento-religião, e, portanto, acaba admitindo o primado da religião.
E como se realiza uma relação, isto é, uma multiplicidade, no sentimento, que deveria ser a plena
consciência do Absoluto? Propriamente pela referência do sujeito empírico - apreendido imediatamente
pelo sentimento psicológico, pela consciência imediata do eu - ao Absoluto, ao Uno, ao Eu, o qual deveria
ser apreendido pelo sentimento em sentido metafísico, que é abstrata unidade, indiferença absoluta. Essa
relação não é, evidentemente, como de criatura a Criador; mas como dualidade na unidade, uma
expressão da distinção geral idealista entre eu empírico e eu transcendental.
Mediante a doutrina desses dois sentimentos, (empírico e metafísico), segundo Scheleiermacher, seria
explicada a relação religiosa; mas não se compreende como no Absoluto, que é uno, e no sentimento,
que é a consciência do Absoluto, se determine essa dualidade. É o escolho fatal do monismo, contra o
qual Scheleiermacher em vão se bateu.
Parece, portanto, poder-se distinguir em Scheleiermacher uma religiosidade em sentido amplo, como
sentimento indeterminado da Unidade indeterminada, e uma religiosidade em sentido específico, que
seria a referência das várias e mutáveis determinações da autoconsciência ao Absoluto, ao mais alto e
mais puro Eu, que constitui a nossa essência. Nisto consistiria a religiosidade verdadeira e própria,
segundo Scheleiermacher.
A prescindir das críticas externas e internas que se podem fazer a essa construção metafísico-
imanentista, estético-romântica, é certo que, para Scheleiermacher, a religião ocupa o mais alto grau da
atividade humana, assim como o sentimento ocupa o vértice da vida espiritual. E como na vida espiritual
o conhecimento e a vontade seriam secundários e derivados com respeito ao sentimento, assim na
atividade religiosa a teoria e a prática, a doutrina e a moral, seriam expressões inadequadas e simbólicas
da religiosidade.
A filosofia religiosa de Scheleiermacher teve uma grande influência sobre o protestantismo liberal alemão
do século XIX.

Hegel

A Idéia, A Natureza, O Espírito

Os três grandes momentos hegelianos no devir dialético da realidade são a idéia, a natureza, o espírito. A
idéia constitui o princípio inteligível da realidade; a natureza é a exteriorização da idéia no espaço e no
tempo; o espírito é o retorno da idéia para si mesma. A primeira grande fase no absoluto devir do
espírito é representada pela idéia, que, por sua vez, se desenvolve interiormente em um processo
dialético, segundo o sólito esquema triádico (tese, antítese, síntese), cujo complexo é obejto da Lógica; a
saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do mundo natural e do
espiritual. É, portanto, anterior a estes, mas apenas logicamente.
Chegada ao fim de seu desenvolvimento abstrato, a idéia torna-se natureza, passa da fase em si à fase
fora de si; esta fase representa a grande antítese à grande tese, que é precisamente a idéia. Em a
natureza a idéia perde como que a sua pureza lógica, mas em compensação adquire uma concretidade
que antes não tinha. A idéia, todavia, também na ordem da natureza, deveria desenvolver-se mais ou
216
menos, segundo o processo dialético, das formas ínfimas do mundo físico até às formas mais
perfeitas da vida orgânica. Esta hierarquia dinâmica é estudada, no seu complexo, pela Filosofia da
natureza.
Finalmente, tendo a natureza esgotado a sua fecundidade, a idéia, assim concretizada, volta para si,
toma consciência se si no espírito, que é precisamente a idéia por si: a grande síntese dos opostos (idéia
e natureza), a qual é estudada em seus desenvolvimentos pela Filosofia do Espírito. O espírito
desenvolve-se através dos momentos dialéticos de subjetivo (indivíduo), objetivo (sociedade), absoluto
(Deus); este último se desenvolve, por sua vez, em arte (expressão do absoluto na intuição estética),
religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia (expressão conceptual, lógica, plena do
absoluto).
Com o espírito subjetivo, a individualidade empírica, nasce a consciência do mundo. O espírito subjetivo
compreende três graus dialéticos: consciência, autoconsciência e razão; com esta última é atingida a
consciência da unidade do eu e do não-eu. O espírito subjetivo é estudado, em sentido vasto, pela
psicologia, que se divide em antropologia, fenomenologia do espírito, psicologia propriamente dita. Não
estando, pois, o espírito individual em condição de alcançar, no seu isolamento, os fins do espírito, de
realizar a plena consciência e liberdade do espírito, surge e se afirma a fase do espírito objetivo, isto é, a
sociedade. No espírito objetivo, nas concretizações da sociedade, Hegel distingue ainda três graus
dialéticos: o direito (que reconhece a personalidade em cada homem, mas pode regular apenas a
conduta externa dos homens); a moralidade (que subordina interiormente o espírito humano à lei do
dever); a eticidade ou moralidade social (que atribui uma finalidade concreta à ação moral, e se
determina hierarquicamente na família, na sociedade civil, no estado).
A sociedade do estado transcende a sociedade familiar bem como a sociedade civil, que é um conjunto
de interesses econômicos e se diferencia em classes e corporações. O estado transcende estas
sociedades, não porque seja um instrumento mais perfeito para a realização dos fins materiais e
espirituais da pessoa humana (a qual unicamente tem realidade metafísica); mas porque, segundo Hegel,
tem ele mesmo uma realidade metafísica, um valor ético superior ao valor particular e privado das
sociedades precedentes, devido precisamente à sua maior universalidade e amplitude, isto é, é uma
superior objetivação do espírito, segundo a metafísica monista-imanentista de Hegel, daí derivando uma
concepção ético-humanista do estado, denominada por Hegel espírito vivente, razão encarnada, deus
terreno.
Segundo a dialética hegeliana, naturalmente a sucessão e o predomínio dos vários estados na história da
humanidade são necessários, racionais e progressivos; e necessária, racional e progressiva é a luta, a
guerra, grças à qual, ao predomínio de um estado se segue o predomínio de um outro, a um povo eleito
sucede um outro. Este, no fundo, tem razão sobre o vencido unicamente porque é vencedor, e aquele
tem culpa unicamente porque é vencido. A história do mundo - com todo o mal, as injustiças, os crimes
de que está cheia - seria destarte o tribunal do mundo. (O que se compreende, quando se faz coincidir o
"ser" com o "deve ser", como acontece de fato no sistema hegeliano, graças à dialética dos opostos, em
que os valores - verdadeiro-falso, bem-mal, etc. - são nivelados, porquanto igualmente necessários para
a realização da idéia).
Se bem que no sistema hegeliano a vida do espírito culmine efetivamente no estado, põe dialeticamente
acima do espírito objetivo o espírito absoluto, em que, através de uma última hierarquia ternária de graus
(arte, religião, filosofia), o espírito realizaria finalmente a consciência plena da sua infinidade, da sua
natureza divina, em uma plena adequação consigo mesmo.
Na arte o espírito tem intuição, em um objeto sensível, da sua essência absoluta; quer dizer, o belo é a
idéia concretizada sensivelmente. Portanto, no momento estético, o infinito é visto como finito. Na
religião, pelo contrário, se efetua a unidade do finito e do infinito, imanente no primeiro; mas em forma
sentimental, imaginativa, mítica. Hegel traça uma classificação das religiões, que não passa de uma
história das mesmas, segundo o seu sólito método dialético. Nessa classificação das religiões o
cristianismo é colocado no vértice como religião absoluta, enquanto no ministério da encarnação do
Verbo, da humanação de Deus, ele vê, ao contrário, a consciência que o espírito (humano) adquire da
sua natureza divina.
217
Acima da religião e do cristianismo está a filosofia, que tem o mesmo conteúdo da religião, mas em
forma racional, lógica, conceptual. Na filosofia o espírito se torna inteiramente autotransparente,
autoconsciente, conquista a sua absoluta liberdade, infinidade. Como as várias religiões representam um
processo dialético para a religião absoluta, assim, os diversos sistemas filosóficos, que se encontram na
história da filosofia, representariam os momentos necessários para o advento da filosofia absoluta, que
seria o idealismo absoluto de Hegel.

O Positivismo - Comte

Características Gerais do Positivismo

Ao idealismo da primeira metade do século XIX se segue o positivismo, que ocupa, mais ou menos, a
segunda metade do mesmo século, espalhado em todo o mundo civilizado. O positivismo representa uma
reação contra o apriorismo, o formalismo, o idealismo, exigindo maior respeito para a experiência e os
dados positivos. Entretanto, o positivismo fica no mesmo âmbito imanentista do idealismo e do
pensamento moderno em geral, defendendo, mais ou menos, o absoluto do fenômeno. "O fato é divino",
dizia Ardigò. A diferença fundamental entre idealismo e positivismo é a seguinte: o primeiro procura uma
interpretação, uma unificação da experiência mediante a razão; o segundo, ao contrário, quer limitar-se à
experiência imediata, pura, sensível, como já fizera o empirismo. Daí a sua pobreza filosófica, mas
também o seu maior valor como descrição e análise objetiva da experiência - através da história e da
ciência - com respeito ao idealismo, que alterava a experiência, a ciência e a história. Dada essa
objetividade da ciência e da história do pensamento positivista, compreende-se porque elas são fecundas
no campo prático, técnico, aplicado.
Além de ser uma reação contra o idealismo, o positivismo é ainda devido ao grande progresso das
ciências naturais, particularmente das biológicas e fisiológicas, do século XIX. Tenta-se aplicar os
princípios e os métodos daquelas ciências à filosofia, como resolvedora do problema do mundo e da vida,
com a esperança de conseguir os mesmos fecundos resultados. Enfim, o positivismo teve impulso, graças
ao desenvolvimento dos problemas econômico-sociais, que dominaram o mesmo século XIX. Sendo
grandemente valorizada a atividade econômica, produtora de bens materiais, é natural se procure uma
base filosófica positiva, naturalista, materialista, para as ideologias econômico-sociais.
Gnosiologicamente, o positivismo admite, como fonte única de conhecimento e critério de verdade, a
experiência, os fatos positivos, os dados sensíveis. Nenhuma metafísica, portanto, como interpretação,
justificação transcendente ou imanente, da experiência. A filosofia é reduzida à metodologia e à
sistematização das ciências. A lei única e suprema, que domina o mundo concebido positivisticamente, é
a evolução necessária de uma indefectível energia naturalista, como resulta das ciências naturais.
Dessas premissas teoréticas decorrem necessariamente as concepções morais hedonistas e utilitárias,
que florescem no seio do positivismo. E delas dependem, mais ou menos, também os sistemas político-
econômico-sociais, florescidos igualmente no âmbito natural do positivismo. Na democracia moderna -
que é a concepção política, em que a soberania é atribuída ao povo, à massa - a vontade popular se
manifesta através do número, da quantidade, da enumeração material dos votos (sufrágio universal). O
liberalismo, que sustenta a liberdade completa do indivíduo - enquanto não lesar a liberdade alheia -
sustenta também a livre concorrência econômica através da lida mecânica, do conflito material das forças
econômicas. Para o socialismo, enfim, o centro da vida humana está na atividade econômica, produtora
de bens materiais, e a história da humanidade é acionada por interesses materiais, utilitários, econômicos
(materialismo histórico), e não por interesses espirituais, morais e religiosos.
O positivismo do século XIX pode semelhar ao empirismo, ao sensismo (e ao naturalismo) dos séculos
XVII e XVIII, também pelo país clássico de sua floração (a Inglaterra) e porquanto reduz,
substancialmente, o conhecimento humano ao conhecimento sensível, a metafísica à ciência, o espírito à
natureza, com as relativas conseqüências práticas. Diferencia-se, porém, desses sistemas por um
elemento característico: o conceito de vir-a-ser, de evolução, considerada como lei fundamental dos
fenômenos empíricos, isto é, de todos os fatos humanos e naturais. Tal conceito representa um
equivalente naturalista do historicismo romântico da primeira metade do século XIX, com esta diferença,
218
entretanto, que o idealismo concebia o vir-a-ser como desenvolvimento racional, teológico, ao passo
que o positivismo o concebe como evolução, por causas. Através de um conflito mecânico de seres e de
forças, mediante a luta pela existência, determina-se uma seleção natural, uma eliminação do organismo
mais imperfeito, sobrevivendo o mais perfeito. Daí acreditar o positismo firmemente no progresso - como
nele já acreditava o idealismo. Trata-se, porém, de um progresso concebido naturalisticamente, quer nos
meios quer no fim, para o bem-estar material.
Mas, como no âmbito do idealismo se determinou uma crítica ao idealismo, igualmente, no âmbito do
positivismo, a única realidade existente, o cognoscível, é a realidade física, o que se pode atingir
cientificamente. Portanto, nada de metafísica e filosofia, nada de espírito e valores espirituais. No
entanto, atinge a ciência fielmente a sua realidade, que é a experiência? E a ciência positivista é pura
ciência, ou não implica uma metafísica naturalista inconsciente e, involuntariamente, discutível pelo
menos tanto quanto a metafísica espiritualista? Nos fins do século passado e nos princípios deste século
se determina uma crise interior da ciência mecaniscista, ideal e ídolo do positivismo, para dar lugar a
outras interpretações do mundo natural no âmbito das próprias ciências positivas. Daí uma revisão e uma
crítica da ciência por parte dos mesmos cientistas, que será uma revisão e uma crítica do positivismo.
Nessa crítica e vitória sobre o positivsmo, pode-se distinguir duas fases principais: uma negativa, de
crítica à ciência e ao positivismo; outra positiva, de reconstrução filosófica, em relação com exigências
mais ou menos metafísicas ou espiritualistas.

Augusto Comte - Vida e Obras

Estudante da Politécnica aos 16 anos, Comte é nomeado em 1832 explicador de análise e de mecânica
nessa mesma escola e, depois, em 1837, examinador de vestibular. Ver-se-á retirado desta última função
em 1844 e de seu posto de explicador em 1851. Apesar de seus reiterados pedidos, não obterá o
desejado cargo de professor da Politécnica, nem mesmo a cátedra de história geral das ciências positivas
no Collège de France, que quisera criar em benefício próprio. A obra de Comte guarda estreitas relações
com os acontecimentos de sua vida. Dois encontros capitais presidem as duas grandes etapas desta
obra. Em 1817, ele conhece H. de Saint-Simon: O Organizador, o Sistema Industrial, e concebe, a partir
daí, a criação de uma ciência social e de uma política científica. Já de posse, desde 1826, das grandes
linhas de seu sistema, Comte abre em sua casa, rua do Faubourg Montmartre, um Curso de filosofia
positiva - rapidamente interrompido por uma depressão nervosa - (que lhe vale ser internado durante
algum tempo no serviço de Esquirol). Retoma o ensino em 1829. A publicação do Curso inicia-se em
1830 e se distribui em 6 volumes até 1842. Desde 1831 Comte abrirá, numa sala da prefeitura do 3.°
distrito, um curso público e gratuito de astronomia elementar destinado aos "operários de Paris", curso
este que ele levaria avante por sete anos consecutivos. Em 1844 publica o prefácio do curso sob o título:

Discurso dobre o espírito positivo.

É em outubro de 1844 que se situa o segundo encontro capital que vai marcar uma reviravolta na
filosofia de Augusto Comte. Trata-se da irmã de um de seus alunos, Clotilde de Vaux, esposa
abandonada de um cobrador de impostos (que fugira para a Bélgica após algumas irregularidades
financeiras). Na primavera de 1845, nosso filósofo de 47 anos declara a esta mulher de 30 seu amor
fervoroso. "Eu a considero como minha única e verdadeira esposa não apenas futura, mas atual e
eterna". Clotilde oferece-lhe sua amizade. É o "ano sem par" que termina com a morte de Clotilde a 6 de
abril de 1846. Comte sente então sua razão vacilar, mas entrega-se corajosamente ao trabalho. Entre
1851 e 1854 aparecem os enormes volumes do Sistema de política positiva ou Tratado de sociologia que
intitui a religião da humanidade. O último volume sobre o Futuro humano prevê uma reformulação total
da obra sob o título de Síntese Subjetiva. Desde 1847 Comte proclamou-se grande sacerdote da Religião
da Humanidade. Institui o "Calendário positivista" (cujos santos são os grandes pensadores da história),
forja divisas "Ordem e Progresso", "Viver para o próximo"; "O amor por princípio, a ordem por base, o
progresso por fim", funda numerosas igrejas positivistas (ainda existem algumas como exemplo no
219
Brasil). Ele morre em 1857 após ter anunciado que "antes do ano de 1860" pregaria "o positivismo
em Notre-Dame como a única religião real e completas".
Comte partiu de uma crítica científica da teologia para terminar como profeta. Compreende-se que alguns
tenham contestado a unidade de sua doutrina, notadamente seu discípulo Littré, que em 1851 abandona
a sociedade positivista. Littré - autor do célebre Dicionário, divulgador do positivismo nos artigos do
Nacional - aceita o que ele chama a primeira filosofia de Augusto Comte e vê na segunda uma espécie de
delírio político-religioso, inspirado pelo amor platônico do filósofo por Clotilde.
Todavia, mesmo se o encontro com Clotilde deu à obra do filósofo um novo tom, é certo que Comte, já
antes do Curso de filosofia positiva (e principalmente em seu "opúsculo fundamental" de 1822), sempre
pensou que a filosofia positivista deveria terminar finalmente em aplicações políticas e nas fundação de
uma nova religião. Littré podia sem dúvida, em nome de suas próprias concepções, "separar Comte dele
mesmo". Mas o historiador, que não deve considerar a obra com um julgamento pessoal, pode
considerar-se autorizado a afirmar a unidade essencial e profunda da doutrina de Comte.(¹)
(¹) Comte, afirmando vigorosamente a unidade de seu sistema, reconhece que houve duas carreiras em
sua vida. Na primeira, diz ele sem falsa modéstia, ele foi Aristóteles e na segunda será São Paulo.

A Lei dos Três Estados

A filosofia da história, tal como a concebe Comte, é de certa forma tão idealista quanto a de Hegel. Para
Comte "as idéias conduzem e transformam o mundo" e é a evolução da inteligência humana que
comanda o desenrolar da história. Como Hegel ainda, Comte pensa que nós não podemos conhecer o
espírito humano senão através de obras sucessivas - obras de civilização e história dos conhecimentos e
das ciências - que a inteligência alternadamente produziu no curso da história. O espírito não poderia
conhecer-se interiormente (Comte rejeita a introspecção, porque o sujeito do conhecimento confunde-se
com o objeto estudado e porque pode descobrir-se apenas através das obras da cultura e
particularmente através da história das ciências. A vida espiritual autêntica não é uma vida interior, é a
atividade científica que se desenvolve através do tempo. Assim como diz muito bem Gouhier, a filosofia
comtista da história é "uma filosofia da história do espírito através das ciências".
O espírito humano, em seu esforço para explicar o universo, passa sucessivamente por três estados:
a) O estado teológico ou "fictício" explica os fatos por meio de vontades análogas à nossa (a
tempestade, por exemplo, será explicada por um capricho do deus dos ventos, Eolo). Este estado evolui
do fetichismo ao politeísmo e ao monoteísmo.
b) O estado metafísico substitui os deuses por princípios abstratos como "o horror ao vazio", por longo
tempo atribuído à natureza. A tempestade, por exemplo, será explicada pela "virtude dinâmica"do ar (²).
Este estado é no fundo tão antropomórfico quanto o primeiro ( a natureza tem "horror" do vazio
exatamente como a senhora Baronesa tem horror de chá). O homem projeta espontaneamente sua
própria psicologia sobre a natureza. A explicação dita teológica ou metafísica é uma explicação
ingenuamente psicológica. A explicação metafísica tem para Comte uma importância sobretudo histórica
como crítica e negação da explicação teológica precedente. Desse modo, os revolucionários de 1789 são
"metafísicos" quando evocam os "direitos" do homem - reivindicação crítica contra os deveres teológicos
anteriores, mas sem conteúdo real.
c) O estado positivo é aquele em que o espírito renuncia a procurar os fins últimos e a responder aos
últimos "por quês". A noção de causa (transposição abusiva de nossa expeirência interior do querer para
a natureza) é por ele substituída pela noção de lei. Contentar-nos-emos em descrever como os fatos se
passam, em descobrir as leis (exprimíveis em linguagem matemática) segundo as quais os fenômenos se
encadeiam uns nos outros. Tal concepção do saber desemboca diretamente na técnica: o conhecimento
das leis positivas da natureza nos permite, com efeito, quando um fenômeno é dado, prever o fenômeno
que se seguirá e, eventualmente agindo sobre o primeiro, transformar o segundo. ("Ciência donde
previsão, previsão donde ação").
Acrescentemos que para Augusto Comte a lei dos três estados não é somente verdadeira para a história
da nossa espécie, ela o é também para o desenvolvimento de cada indivíduo. A criança dá explicações
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teológicas, o adolescente é metafísico, ao passo que o adulto chega a uma concepção "positivista"
das coisas.
(²) São igualmente metafísicas as tentativas de explicação dos fatos biológicos que partem do "princípio
vital", assim como as explicações das condutas humanas que partem da noção de "alma".

A Classificação das Ciências

As ciências, no decurso da história, não se tornaram "positivas" na mesma data, mas numa certa ordem
de sucessão que corresponde à célebre classificação: matemáticas, astronomia, física, química, biologia,
sociologia.
Das matemáticas à sociologia a ordem é a do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais
concreto e de uma proximidade crescente em relação ao homem.
Esta ordem corresponde à ordem histórica da aparição das ciências positivas. As matemáticas (que com
os pitagóricos eram ainda, em parte, uma metafísica e uma mística do número), constituem-se,
entretanto, desde a antiguidade, numa disciplina positiva (elas são, aliás, para Comte, antes um
instrumento de todas as ciências do que uma ciência particular). A astronomia descobre bem cedo suas
primeiras leis positivas, a física espera o século XVII para, com Galileu e Newton, tornar-se positiva. A
oportunidade da química vem no século XVIII (Lavoisier). A biologia se torna uma disciplina positiva no
século XIX. O próprio Comte acredita coroar o edifício científico criando a sociologia.
As ciências mais complexas e mais concretas dependem das mais abstratas. De saída, os objetos das
ciências dependem uns dos outros. Os seres vivos estão submetidos não só às leis particulares da vida,
como também às leis mais gerais, físicas e químicas de todos os corpos (vivos ou inertes). Um ser vivo
está submetido, como a matéria inerte, às leis da gravidade. Além disso, os métodos de uma ciência
supõem que já sejam conhecidos os das ciências que a precederam na classificação. É preciso ser
matemático para saber física. Um biólogo deve conhecer matemática, física e química. Entretanto, se as
ciências mais complexas dependem das mais simples, não poderíamos deduzi-las de, nem reduzi-las a
estas últimas. Os fenômenos psicoquímicos condicionam os fenômenos biológicos, mas a biologia não é
uma química orgânica. Comte afirma energicamente que cada etapa da classificação introduz um campo
novo, irredutível aos precedentes. Ele se opõe ao materialismo que é "a explicação do superior pelo
inferior".
Nota-se, enfim, que a psicologia não figura nesta classificação. Para Comte o objeto da psicologia pode
ser repartido sem prejuízo entre a biologia e a sociologia.

A Humanidade

A última das ciências que Comte chamara primeiramente física social, e para a qual depois inventou o
nome de sociologia reveste-se de importância capital. Um dos melhores comentadores de Comte, Levy-
Bruhl, tem razão de sublinhar: "A criação da ciência social é o momento decisivo na filosofia de
Comte. Dela tudo parte, a ela tudo se reduz". Nela irão se reunir o positivismo religioso, a história
do conhecimento e a política positiva. É refletindo sobre a sociologia positiva que compreenderemos que
as duas doutrinas de Comte são apenas uma. Enfim, e sobretudo, é a criação da sociologia que,
permitindo aquilo que Kant denominava uma "totalização da experiência", nos faz compreender o que é,
para Comte, fundamentalmente, a própria filosofia.
Comte, ao criar a sociologia, a sexta ciência fundamental, a mais concreta e complexa, cujo objeto é a
"humanidade", encerra as conquistas do espírito positivo: como diz excelentemente Gouhier - em sua
admirável introdução ao Textos Escolhidos de Comte, publicados por Aubier - "Quando a última ciência
chega ao último estado, isso não significa apenas o aparecimento de uma nova ciência. O nascimento da
sociologia tem uma importância que não podia ter o da biologia ou o da física: ele representa o fato de
que não mais existe no universo qualquer refúgio para os deuses e suas imagens metafísicas. Como cada
ciência depende da precedente sem a ela se reduzir, o sociólogo deve conhecer o essencial de todas as
disciplinas que precedem a sua. Sua especialização própria se confunde, pois - diferentemente do que se
passa para os outros sábios - com a totalidade do saber. Significa dizer que o sociólogo é idêntico ao
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próprio filósofo, "especialista em generalidades", que envolve com um olhar enciclopédico toda a
evolução da inteligência, desde o estado teológico ao estado positivo, em todas as disciplinas do
conhecimento. Comte repudia a metafísica, mas não rejeita a filosofia concebida como interpretação
totalizante da história e, por isto, identificação com a sociologia, a ciência última que supõe todas as
outras, a ciência da humanidade, a ciência, poder-se-ia dizer em termos hegelianos, do "universal
concreto".
O objeto próprio da sociologia é a humanidade e é necessário compreender que a humanidade não se
reduz a uma espécie biológica: há na humanidade uma dimensão suplementar - a história - o que faz a
originalidade da civilização (da "cultura" diriam os sociólogos do século XIX). O homem, diz-nos Comte,
"é um animal que tem uma história". As abelhas não têm história. Aquelas de que fala Virgílio nas
Geórgicas comportavam-se exatamente como as de hoje em dia. A espécie das abelhas é apenas a
sucessão de gerações que repetem suas condutas instintivas: não há, pois, num sentido estrito,
sociedades animais, ou ao menos a essência social dos animais reduz-se à natureza biológica. Somente o
homem tem uma história porque é ao mesmo tempo um inventor e um herdeiro. Ele cria línguas,
instrumentos que transmitem este patrimônio pela palavra, e, nos últimos milênios, pela escrita às
gerações seguintes que, por sua vez, exercem suas faculdades de invenção apenas dentro do quadro do
que elas receberam. As duas idéias de tradição e de progresso, longe de se excluírem, se completam.
Como diz Comte, Gutemberg ainda imprime todos os livros do mundo, e o inventor do arado trabalha,
invisível, ao lado do lavrador. A herança do passado só torna possíveis os progressos do futuro e "a
humanidade compõe-se mais de mortos que de vivos".
Comte distingue a sociologia estática da sociologia dinâmica. A primeira estuda as condições gerais de
toda a vida social, considerada em si mesma, em qualquer tempo e lugar. Três instituições sempre são
necessárias para fazer com que o altruísmo predomine sobre o egoísmo (condição de vida social). A
propriedade (que permite ao homem produzir mais do que para as suas necessidades egoístas imediatas,
isto é, fazer provisões, acumular um capital que será útil a todos), a família (educadora insubstituível
para o sentimento de solidariedade e respeito às tradições), a linguagem (que permite a comunicação
entre os indivíduos e, sob a forma de escrita, a constituição de um capital intelectual, exatamente como a
propriedade cria um capital material).
A sociologia dinâmica estuda as condições da evolução da sociedade: do estado teológico ao estado
positivo na ordem intelectual, do estado militar ao industrial na ordem prática - do estado de egoísmo ao
de altruísmo na ordem afetiva. A ciência que prepara a união de todos os espíritos concluirá a obra de
unidade (que a Igreja católica havia parcialmente realizado na Idade Média) e tornará o altruísmo
universal, "planetário". A sociedade positiva terá, exatametne como a sociedade cristã da Idade Média,
seu poder temporal (os industriais e os banqueiros) e seu pdoer espiritual (³) (os sábios, principalemtne
os sociólogos, que terão, à sua testa, o papa positivista, o Grão-Sacerdote da Humanidade, isto é, o
próprio Augusto Comte).
Vê-se que é sobre a sociologia que vem articular a mudança de perspectiva, a mutação que faz do
filósofo um profeta. A sociologia, cuja aparição dependeu de todas as outras ciências tornadas positivas,
transforma-se-á na política que guiará as outras ciências, "regenerando, assim, por sua vez, todos os
elementos que concorreram para sua própria formação". Assim é que, em nome da "humanidade", a
sociologia regerá todas as ciências, proibindo, por exemplo, as pesquisas inúteis. (Para Comte, o
astrônomo deve estudar somente o Sol e a Lua, que estão muito próximos de n'so, para ter uma
influência sobre a terra e sobre a humanidade e interditar-se aos estudos politicamente estéreis dos
corpos celestes mais afastados!!) Compreende-se que esta "síntese subjetiva", integrando-se
inteiramente no sistema de Comte, tenha desencorajado os racionalistas que de saída viram no
positivismo uma apologia do espírito científico!
A religião positiva substitui o Deus das religiões reveladas pela própria humanidade, considerada como
Grande-Ser. Este Ser do qual fazemos parte nos ultrapassa entretanto - pelo gênio de seus grandes
homens, de seus sábios aos quais devemos prestar culto após a morte (esta sobrevivência na veneração
de nossa memória chama-se "imortalidade subjetiva"). A terra e o ar - meio onde vive a humanidade -
podem, por isso mesmo, ser objeto de culto. A terra chamar-se-á o "Grande-Fetiche". A religião da
humanidade, pois, transpõe - ainda mais que não as repudia - as idéias e até a linguagem da crenças
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anteriores. Filósofo do progresso, Comte é também o filósofo da ordem. Herdeiro da Revolução, ele
é, ao mesmo tempo, conservador e admirador da bela unidade dos espíritos da Idade Média.
Compreende-se que ele tenha encontrado discípulos tanto nos pensadores "de direita" como nos "de
esquerda".
(³) Comte rejeita como metafísica a doutrina dos direitos do homem e da liberdade. Assim como "não há
liberdade de consciência em astronomia", assim uma política verdadeiramente científica pode impor suas
conclusões. Aqueles que não compreenderem terão que se submeter cegamente (esta submissão será o
equivalente da fé na religião positivista).

VI - Referências Bibliográficas

__ Coleção Os Pensadores, Os Pré-socráticos, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.I, agosto 1973.
__ Coleção Os Pensadores, Apologia de Sócrates / Platão, Nova Cultural, São Paulo, março 1999.
__ Coleção Os Pensadores, Defesa de Sócrates / Platão, Abril Cultural, São Paulo, 1.ª edição, vol.II,
agosto 1972.
__ Coleção Os Pensadores, Diálogos / Platão, Nova Cultural, São Paulo, 5.ª edição, 1991.
DURANT, Will, História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos Grandes Filósofos, São Paulo,
Editora Nacional, 1.ª edição, 1926.
FRANCA S. J., Padre Leonel, Noções de História da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís, História da Filosofia, Edições Melhoramentos,
São Paulo, 10.ª edição, 1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis, História da Filosofia Ilustrada pelos Textos, Editora Freitas
Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª edição, 1980.

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