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ARTIGOS REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN.

1999

DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL:


PARTICIPAÇÃO AUTÔNOMA E INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS NA TRANSIÇÃO BRASILEIRA

Alberto Tosi Rodrigues


Universidade Federal do Espírito Santo

RESUMO
O artigo propõe uma leitura das mobilizações e desmobilizações políticas da sociedade como a contrapartida
dos processos de ampliação e estreitamento dos canais institucionais que regulam a interação dos atores,
isto é, como movimentos de “socialização” ou “privatização” do conflito sócio-político. Tomando o caso
empírico brasileiro, discute a transição e a “consolidação” democráticas do ponto de vista da
permeabilidade do sistema político à participação autônoma da sociedade mobilizada.
PALAVRAS-CHAVE: mobilização; democracia; transição; conflito político.

I. INTRODUÇÃO Nos anos setenta, sob os impactos da crise


estagflacionista do capitalismo central, esse mes-
No âmbito da sociologia política, o pensamento
mo conservadorismo, por meio da célebre
conservador sempre indicou uma correlação direta
Trilateral Comission, passou a associar as
entre a mobilização social e a eclosão de
disfuncionalidades do sistema político provocadas
disfuncionalidades políticas sistêmicas de caráter
pelos processos de mobilização social à incapaci-
desorganizador e desagregador.
dade dos governos de lançar mão de mecanismos
Para citar um autor que teve influência im- adequados de gestão econômica (basicamente,
portante no debate brasileiro desde os anos ses- relacionados à crise fiscal do Estado) e de
senta, Samuel Huntington traçou um modelo — implementação de políticas públicas em geral.
compartilhado no essencial com diversos outros Assim foi introduzido o debate sobre a
pesquisadores — segundo o qual os processos “governabilidade” dos regimes democráticos: a
de modernização socioeconômica gerariam a dis- mobilização “excessiva” da sociedade foi
seminação rápida de certas aspirações (de con- diretamente vinculada à sobrecarga de demandas
sumo, bem-estar etc), por parte das camadas su- sobre o sistema político e, por fim, à paralisia
balternas da sociedade, que remeteriam ao siste- decisória e à incapacidade dos governos dos pa-
ma político uma carga de demandas que, nos paí- íses capitalistas centrais de viabilizar políticas ca-
ses “em desenvolvimento”, dificilmente poderia pazes de debelar a crise (cf. CROZIER;
ser processada e atendida, gerando uma mobili- HUNTINGTON; WATANUCKI, 1975). As difi-
zação política vista sempre como anômica. “A culdades do enfrentamento da crise econômica
relação entre mobilização social e instabilidade po- foram atribuídas, assim, ao próprio processo
lítica parece ser razoavelmente direta. A urbani- político democrático e, mais especificamente, lo-
zação e os aumentos nos índices de alfabetiza- calizadas, pelos conservadores, “nos dispositivos
ção, educação e exposição aos meios de massa institucionais da democracia de massa do Estado
provocam um incremento das aspirações e ex- social” (OFFE, 1984).
pectativas, as quais, se não satisfeitas, galvani-
Deste ponto de vista, quanto maior a diferen-
zam os indivíduos e os grupos para a política. Na
ciação social e, com ela, quanto mais as condi-
ausência de instituições políticas fortes e adaptá-
ções para a organização e a mobilização da socie-
veis, tais acréscimos de participação redundam
dade se fizessem presentes, numa palavra, quan-
em instabilidade e violência. [...] Quanto mais
to maior a participação, maiores seriam os ris-
rápida a instrução da população, mais freqüente é
cos para a governabilidade. Nos países “em de-
a derrubada do governo” (HUNTINGTON, 1975,
senvolvimento” (América Latina em especial), por
p. 60).

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 12, jun. 1999, p. 99-119


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extensão, a eclosão dos regimes autoritários nos posição para o “combate” político em moldes mais
sessenta e setenta foi compreendida e até mesmo autônomos, também um novo tipo de ética públi-
justificada como uma restauração legítima dos ca.
meios governativos por parte de Estados nacio-
As bases sociais do conflito político brasileiro
nais ameaçados pelo achaque de massas mobili-
cindiram-se, no período, entre um setor organi-
zadas pela ação do populismo irresponsável.
zado, cuja participação autônoma expandiu-se —
No Brasil, durante três décadas, entre os anos das reivindicações localizadas para a participação
trinta e sessenta deste século, processou-se a in- no espaço público de abrangência nacional —, e
corporação clientelista das massas urbanas ao um desorganizado, que permaneceu como objeto
processo político. da manipulação populista ou de usos de “novo”
tipo. Durante a transição à democracia, esses
Tal incorporação se fez, fundamentalmente,
novos contornos assumidos pelas práticas políti-
por via do corporativismo de Estado e da prática
cas da sociedade interagiram de modo importan-
populista, que têm, por sua vez, raízes culturais e
te com o processo de reinvenção da ordem
organizacionais mais profundas no
institucional. Mais uma vez, colocou-se o
patrimonialismo, no patriarcalismo e no
contraponto entre as reivindicações expressas
coronelismo tradicionais. Não discutirei aqui tais
pelas mobilizações políticas da sociedade organi-
matrizes políticas, mas é importante apontar ao
zada, por um lado, e as “necessidades objetivas”
menos que se, por um lado, o patriarcalismo (cf.
postas pela tecnocracia do Estado em termos de
DUARTE, 1939; HOLANDA, 1992), o
governança do aparelho estatal com vistas ao
patrimonialismo (cf. FAORO, 1979;
combate à crise econômica associada à inflação
SCHWARTZMAN, 1988) e o coronelismo (cf.
crescente e ao endividamento externo.
LEAL, 1975) dizem respeito aos processos his-
tóricos de privatização do público em contextos O objetivo deste artigo é, contra o pano de
de ausência de competição ou de competição po- fundo deste painel rapidamente pincelado, levan-
lítica controlada, por outro lado o populismo (cf. tar elementos analíticos que permitam uma leitu-
WEFFORT, 1980) e o corporativismo populista ra das mobilizações sociais diversa da posta pelo
(cf. DINIZ e BOSCHI, 1991) são respostas conservadorismo sociológico. Uma leitura que
institucionais ao advento da competição política encara as mobilizações e desmobilizações da so-
imposta por uma ampla diferenciação social (cf. ciedade organizada como a contrapartida dos pro-
SANTOS, 1993). cessos de ampliação e estreitamento do sistema
político ou, em outros termos, como movimen-
Como se sabe, o movimento de 1964 pôs fim
tos de “socialização” ou de “privatização” do
ao ciclo populista. Após uma década de regime
conflito sóciopolítico. Tomando, também, o pro-
burocrático-militar, mais especificamente após o
cesso brasileiro de “transição” e “consolidação”
momento de maior repressão social e fechamen-
democráticas, pretendo levantar alguns elemen-
to político (1968-1974), os nós tradicionais da
tos relacionados à tensão que se estabelece entre
política brasileira foram, em parte, desatados. Do
os processos de mobilização social e a constru-
final dos anos setenta em diante desencadeou-se
ção das novas instituições políticas da democra-
uma mudança nos mecanismos pelos quais as li-
cia.
deranças políticas usualmente convocam as mas-
sas, urbanas e rurais, a tomar parte nos conflitos II. O PROCEDIMENTO DEMOCRÁTICO
políticos. Nesta mudança, quebrou-se a exclusi-
Bobbio (1985 e 1988) ensina que a democra-
vidade dos padrões populistas de articulação lide-
cia é, basicamente, um método. Com o advento
rança/massa e de mobilização política da socie-
da modernidade, a antiga democracia encontrou-
dade. Embora o antigo formato persista ainda de
se com o liberalismo para uma associação reci-
modo considerável — em processos eleitorais de
procamente proveitosa: este último proveria à
nível e abrangência variados, e especialmente
primeira as garantias civis indispensáveis à liber-
como prática incorporada à cultura política — e
dade dos atores e a primeira daria ao último um
embora lideranças à direita e à esquerda valham-
método, um procedimento para a tomada das de-
se dele ainda agora para orientar a própria condu-
cisões coletivas.
ta, sua vigência passou a ser contrastada pela
emergência de um setor organizado da sociedade Num texto que se tornou referência para grande
civil que logrou articular, além de uma nova dis- número de análises dos processos de democrati-

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zação, Robert Dahl (1971) propôs uma definição da tomada de decisão acerca do que as
mínima para o procedimento democrático. Seria pessoas querem ou do que pensam ser o
uma poliarquia o regime que desenvolvesse sufi- melhor, o que requer algum grau de infor-
cientemente a institucionalização dos procedimen- mação. Daí o acréscimo de um terceiro
tos e a ampliação da participação da cidadania. critério, pelo qual “cada cidadão deve ter
oportunidades adequadas e iguais para des-
Qualquer processo de tomada de decisões in-
cobrir e validar (dentro do tempo permiti-
clui, segundo Dahl, dois estágios analiticamente
do pela necessidade de uma decisão) a es-
distinguíveis: a composição da agenda política (isto
colha sobre a matéria a ser decidida que
é, a decisão sobre que temas serão objeto de de-
melhor serviria aos interesses dos cida-
liberação) e a decisão propriamente dita (“estágio
dãos” (DAHL, 1989, p. 112).
decisivo”), isto é, os resultados (cf. DAHL, 1989,
p. 107). Para que uma dada ordem política seja (4) Mas há ainda o risco de que a agenda
considerada democrática, pressupõe-se que as de temas a serem decididos seja excessi-
decisões só podem ser legitimamente tomadas vamente limitada. O controle sobre a agen-
pelos próprios membros da associação, isto é, por da pode ser expropriado ao conjunto da
aqueles aos quais as decisões se aplicam e que cidadania por indivíduos ou oligarquias,
estão, ao cabo, obrigados a cumpri-las. E que esta como no caso de detentores de cargos exe-
tomada de decisão se faça em condições de igual- cutivos que pretendam esvaziar as atribui-
dade. Supõe-se que cada membro adulto da as- ções do parlamento, por exemplo. Daí o
sociação “é o melhor juiz de si mesmo”, ou seja, acréscimo do critério pelo qual “a demos
é um cidadão. deve ter a oportunidade exclusiva de deci-
dir que matérias serão colocadas na agen-
Sob uma ordem política democrática, teremos
da de matérias a serem decididas por meio
um processo político plenamente democrático se
do processo democrático” (DAHL, 1989,
for observado um conjunto de critérios ideal-tí-
p. 113). Sem prejuízo da possibilidade de
picos, a saber:
delegação, por parte da demos, da decisão
(1) No processo de tomada de decisões, sobre algum tema da agenda.
os cidadãos devem ter condições adequa-
(5) Há, finalmente, o risco de que a demos
das e iguais entre si para introduzir ques-
seja excessivamente restrita. Ou seja: qual
tões na agenda política e para expressar as
o tamanho da cidadania para que um siste-
razões pelas quais preferem um determi-
ma seja democrático? Essa questão envol-
nado resultado a outro.
ve tanto o problema da inclusão (quais
(2) No estágio decisivo do processo de to- pessoas devem ser legitimamente incluí-
mada de decisões, deve ser assegurada a das na demos) quanto o problema do es-
cada cidadão igual oportunidade de expres- copo da autoridade (em que medida o po-
sar sua escolha; e essa escolha deve ser der decisório da demos pode ser legitima-
computada com peso igual ao das esco- mente alienado). Daí o quinto critério ge-
lhas dos demais cidadãos. (Esse critério ral, pelo qual “a demos deve incluir todos
não implica em proibição de representação os membros adultos da associação, exceto
proporcional ou delegação de poderes para visitantes e pessoas que se comprove se-
certas decisões). rem mentalmente incapazes” (DAHL, 1989,
p. 129).
Atendendo a estes dois primeiros critérios,
sustenta Dahl, já se pode falar em governo de Em suma, do ponto de vista da teoria demo-
acordo com o processo democrático. crática, os dois critérios básicos, na acepção de
Dahl, garantem já a vigência de uma democracia,
(3) O terceiro critério procura responder à
ou melhor, de um processo democrático em sen-
objeção pela qual se questiona a capacida-
tido amplo, ou ainda, numa tradução algo força-
de intelectual dos componentes da demos
da, de uma democracia “procedural” ou
para tomar determinados tipos de decisão.
“procedimental”. “Em contraste [acrescenta] um
Dahl lembra que a democracia está histó-
sistema que também atenda ao critério do enten-
rica e teoricamente associada ao problema
dimento esclarecido pode ser considerado plena-
do esclarecimento, uma vez que trata-se

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mente democrático com respeito à agenda e com radicalmente (com o predomínio numérico, pela
relação à demos. Num limiar ainda superior, um primeira vez na história, da população urbana so-
processo que em adição propicie o controle final bre a rural), se re-industrializava sobre novas ba-
da agenda por sua demos é plenamente democrá- ses (essencialmente, com base no capital exter-
tico com relação a sua demos. Mas apenas se a no), promovia uma reestruturação ocupacional de
demos for inclusiva o suficiente para atender ao grandes proporções (com predomínio do setor
quinto critério poderemos descrever o processo secundário, em detrimento do primário, e com
de tomada de decisão como plenamente demo- amplo crescimento relativo do terciário), sem fa-
crático” (DAHL, 1989, p. 130, sem grifo no ori- lar na melhoria sensível de alguns indicadores so-
ginal) . ciais, como escolaridade (SANTOS, 1985), o
corporativismo era retomado pelo regime como
E sustenta que, embora trate-se de critérios
a tecnologia institucional mais adequada ao con-
ideal-típicos, não se pode simplesmente acusá-
trole dos atores sociais tradicionais, notadamente
los de irreais ou descolados da realidade. Argu-
as classes trabalhadoras.
menta que a pressuposição de igualdade política
não cai por terra frente às desigualdades de re- Deve-se considerar que as metas econômicas
cursos dos diferentes atores, que obviamente e políticas do regime militar, em resposta ao
existem na realidade. Pelo contrário, afirma que “pretorianismo” (HUNTINGTON, 1975, p. 204-
o fundamental é que as desigualdades de recur- 273) vigente na crise do populismo, eram “lim-
sos (econômicos, ideológicos, de status etc) não par o mercado de produtores ‘ineficientes’, he-
redundem em desigualdades formais dos cidadãos rança das primeira etapas de industrialização e,
individuais frente ao processo político. “Quando não casualmente, em sua grande maioria capita-
diferenças nos recursos políticos tornam os ci- listas locais; por termo às demandas ‘excessivas’
dadãos politicamente desiguais, então essa desi- ou ‘prematuras’ de participação política e
gualdade necessariamente revela-se como uma econômica do setor popular; eliminar eleições e
violação dos critérios” (DAHL, 1989, p. 131; ver partidos políticos, que haviam sido canais de trans-
também BEETHAN, 1994 e SAWARD, 1994). missão dessas demandas [...]; ‘disciplinar’ a força
de trabalho em suas relações diretas com os em-
III. BRASIL AUTORITÁRIO: DESMOBI-
presários; e subordinar as organizações de classe
LIZAÇÃO, CONTROLE E RENASCI-
— sobretudo os sindicatos — que podiam sus-
MENTO
tentar o ressurgimento das lideranças e deman-
A história da passagem da autocracia das que se buscava eliminar. A obtenção dessas
estabelecida pelos militares em 1964 para um re- metas aparecia como a estabilização das relações
gime que pudesse ser submetido à prova dos cri- sociais a partir da qual, por sua vez, começavam
térios de Dahl, como sabemos, foi complexa, longa a ser possíveis as inversões internas e externas
e truncada. E, ainda assim, os resultados da pro- [...]” (O’DONNELL, 1976, p. 16).
va são controversos.
A retomada do corporativismo estatal é o ins-
Sob o regime burocrático-militar, o Estado não trumento fundamental para a consecução desses
só havia aprofundado o capitalismo brasileiro objetivos. Em contraste com o corporativismo
como, do ponto de vista de suas relações com a populista, essa nova intervenção autoritária do
sociedade, também ampliara a significação políti- Estado caracteriza-se pela concomitante
ca do corporativismo tradicional, ao mesmo tem- “estatização” das organizações da sociedade e
po em que banira — ao menos como prática vi- “privatização” de certas áreas do Estado, de modo
gente, no período — o padrão populista de com- segmentário, isto é, diferenciado segundo o re-
petição, responsável pela mobilização das massas corte de classe. Grosso modo: houve uma reto-
urbanas até então. Houve enfim um re- mada aprofundada da tutela corporativista sobre
estreitamento da arena política, possibilitado pela os sindicatos de trabalhadores, visando não mais
reação militar à radicalização da instabilidade po- apenas antecipar-se à sua organização autônoma,
lítica e econômica do final do período populista e mas deliberadamente reprimir a ativação populista
que foi garantido pelo aprofundamento da tutela de que haviam sido objeto e, concomitantemente,
corporativista (O’DONNELL, 1976). estabeleceram-se franquias ao acesso de certos
setores empresariais ao Estado, na forma de fi-
Ao mesmo tempo em que o Brasil se urbanizava

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nanciamentos, isenções e incentivos. Consolidam- a tentativa de reformulação do marco legal do


se nesse momento os “anéis burocráticos”, típi- novo regime com o processo Constituinte de
cos do “modelo político brasileiro”. Estabeleceu- 1987-88 e, finalmente, a primeira eleição presi-
se, enfim, — há um certo consenso entre os ana- dencial desde 1960, em 1989.
listas sobre isso — um novo pacto de dominação
O que importa destacar aqui é que a ampla
ou uma nova aliança de classes, setores ou gru-
modernização econômica operada pelo regime
pos sociais, estruturada num tripé apoiado sobre
militar entre 1964 e 1984, do mesmo modo que
o Estado, o capital estrangeiro e,
vinculou-se à repressão extremada da participa-
subordinadamente, o capital nacional (cf. CAR-
ção social pretoriana-populista no momento ini-
DOSO, 1975).
cial — da qual o “novo” corporativismo que des-
Sob tais condições de fechamento político taquei acima foi um aspecto importante —, tam-
extremado, não se pode, de modo abrangente, falar bém viabilizou a diferenciação social com base
em participação política da sociedade nos dez na qual se deu, na última década do regime, a
primeiros anos de regime militar. A partir do go- explosão associativa e o surgimento dos movi-
verno Geisel e especialmente sob o governo mentos sociais urbanos, do novo sindicalismo e
Figueiredo, porém, ganham visibilidade três di- do PT.
nâmicas (evidentemente interligadas) nesse sen-
IV. CONJUNTURA, PROCESSO, MOBILIZA-
tido: a chamada abertura política, especialmente
ÇÃO
no que diz respeito à legislação restritiva das li-
berdades mínimas, à dinâmica parlamentar e à Para acionar aqui os elementos analíticos ne-
retomada da importância do processo eleitoral (cf. cessários ao estudo de situações relacionadas à
VELASCO E CRUZ e MARTINS, 1983; DINIZ, ampliação da participação da sociedade organiza-
1985); o desenvolvimento do associativismo e a da no conflito político, é preciso estabelecer al-
erupção dos movimentos sociais urbanos (cf. guns pontos básicos sobre conjunturas conflitivas
BOSCHI, 1987; SADER, 1988; DOIMO, 1995); e processos de mobilização social, importantes
e o surgimento do novo sindicalismo combativo, para a seqüência do raciocínio.
cuja fachada mais visível aparecia no ABC paulista
Conflitos políticos são situações em que se
nos últimos anos da década de setenta (cf. KECK,
verifica a oposição entre atores portadores de
1988). No plano partidário, a reforma de 1979
objetivos, recursos e estratégias diferenciadas. Seu
deu à luz tanto a continuidade dos partidos vigen-
resultado não pode ser estabelecido a priori, ape-
tes no bipartidarismo (PMDB e PDS, como su-
nas pela avaliação de capabilities intrínsecas ou
cedâneos de MDB e Arena), quanto a retomada
estoques de recursos disponíveis aos atores polí-
das tendências populistas — desta vez como far-
ticos. Ele deve antes estar relacionado à análise
sa — à direita (PTB) e à esquerda (PDT), sendo
do próprio desenrolar do processo conflitivo, que
surpreendida, no entanto, pelo surgimento do PT,
inclui tanto constrangimentos de ordem
cujas bases sociais fundamentais se constituíram
institucional quanto a oposição de outros atores
a partir da modernização econômica apontada. No
e, inclusive, a intervenção de eventos absoluta-
início da década de oitenta, por sua vez, surgem
mente aleatórios ou imprevisíveis.
a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra “É extremamente difícil prever o resultado de
(MST), como as expressões mais importantes da uma disputa observando o princípio, porque nem
organização autônoma das classes trabalhadoras sequer sabemos quem mais vai entrar nela. A
urbanas e rurais e significando, nesse particular, conseqüência lógica de se insistir demasiadamente
um corte nítido com respeito ao populismo e ao no determinismo das origens privadas do confli-
coronelismo, respectivamente. to é atribuir um valor de zero ao processo políti-
co” (SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 50, sem
Eclodem também, e não por coincidência, as
grifos no original; ver também HINDESS, 1982,
grandes mobilizações de massa com a Campanha
p. 500).
das “Diretas Já” de 1984 (cf. RODRIGUES, 1993
e 1995), à qual se segue o estabelecimento do Um conflito, por sua vez, estabelece-se entre
governo civil da Aliança Democrática, as tentati- agentes numa arena específica (ou ao mesmo tem-
vas fracassadas de conter o processo inflacioná- po em diferentes arenas) e em torno de uma de-
rio que se agudizava crescentemente desde 1983, terminada agenda. De acordo com a linguagem

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geralmente utilizada, arena refere-se às condições aquela pela qual os atores se ocupam de
dadas de um conflito ou conjunto de conflitos, expandir ou controlar o alcance dos con-
bem como a seus modos de ação específicos flitos; e
(voto, greves, demissões etc) e às limitações acer-
(c) a de que, implícita às anteriores, reside
ca dos possíveis resultados. Por exemplo: se fa-
a idéia de que a restrição do conflito aos
lamos de um conflito na arena parlamentar, os
limites de seus contendores iniciais tende
resultados possíveis serão provavelmente leis, re-
a perpetuar a correlação de forças dada a
gulamentações, fiscalizações etc. Do mesmo
princípio, enquanto que a expansão do al-
modo, agenda pode ser definida como a pauta de
cance do conflito tende a desequilibrá-lo
temas e/ou questões em torno da qual os confli-
em favor dos contendores interessados em
tos são armados, cujo conteúdo é também ele
(e que se mostrem efetivamente capazes
objeto do conflito, bem como a disposição tem-
de) ampliá-lo.
poral desses temas. Por exemplo: pode haver um
conflito tanto em torno de um programa de Conforme a propensão dos atores e a situação
privatizações quanto um conflito para que o tema dada, as estratégias tenderão, pois, à
das privatizações possa entrar na agenda. “privatização” ou à “socialização” do conflito.
Conforme a imagem sugerida por
Em suma, a conjuntura é um momento de um
Schattschneider, “o conflito político não é como
processo político mais longo, balizado por certos
uma partida de futebol, que se efetua num campo
parâmetros políticos (e econômicos, sociais, cul-
medido, por um número pré-determinado de jo-
turais, ideológicos etc) estruturados, no qual de-
gadores, e na presença de um público rigorosa-
terminados atores, portadores de recursos e es-
mente excluído do campo de jogo. A política é
tratégias, confrontam-se conflitivamente em tor-
muito mais semelhante ao jogo original e primiti-
no de arenas e agendas específicas, com vistas à
vo do futebol, no qual todo mundo era livre para
obtenção de certos resultados. No decorrer do
participar, uma partida em que toda a população
processo conflitivo conjuntural, as estruturas que
de um povoado podia jogar contra toda a popula-
servem de balizamento aos atores, as arenas e
ção de outro povoado, correndo livremente para
agendas em torno das quais os atores conflitam,
um ou outro lugar pelo campo aberto. Muitos
os recursos de que dispõem, os objetivos que ini-
conflitos são estreitamente confinados por meio
cialmente buscavam, e inclusive os próprios atores
de uma variedade de estratégias, mas a qualidade
enquanto entidades unitárias, estão sujeitos a trans-
distintiva dos conflitos políticos é que a relação
formações diversas, desejadas ou não, esperadas
entre os ‘jogadores’ e o público não foi definida
ou não. E conflito político é toda situação em que
precisamente, e em geral não há nada que evite
os obstáculos à consecução dos objetivos de de-
que os espectadores participem do jogo”
terminados atores incluem a oposição de outros
(SCHATTSCHNEIDER, 1967, p. 24).
atores (cf. HINDESS, 1982, p. 498). Em decor-
rência, o resultado final do conflito é função direta Mas é claro que o alcance de um conflito será
de sua abrangência. função também da escala de organização, moti-
vação e potencial de mobilização dos atores e, ao
Valho-me aqui de três proposições de
mesmo tempo, do grau de competitividade do sis-
Schattschneider, pelas quais estabelece-se uma
tema, isto é, da natureza das instituições políti-
relação direta entre, de um lado, a abrangência
cas. É preciso atentar, em especial, para aqueles
do conflito e o perfil dos atores (se individuais ou
conflitos capazes de hegemonizar a grande arena
coletivos, se muitos ou poucos, se de direita ou
política nacional.
de esquerda), e, de outro, a composição e a reso-
lução da agenda política. A discussão do quesito participação requer,
na nova situação de articulação e organização que
(a) em primeiro lugar, a de que o resultado
se abriu na sociedade brasileira a partir da década
de qualquer conflito político é função de
de setenta, a abordagem de algumas perspectivas
seu alcance, de sua possibilidade de en-
analíticas que podem ajudar a esclarecer o fenô-
volver um número maior ou menor de
meno da mobilização política da sociedade, tanto
atores;
sob as condições da transição de um regime au-
(b) em decorrência disso, a proposição de toritário à democracia quanto sob a vigência for-
que a estratégia política mais importante é mal desta.

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A primeira questão é: como conceituar a exceções, a ênfase na novidade dos movimentos


mobilização política da sociedade num contexto (então chamados “novos movimentos sociais”)
de ampliação da arena política — tanto do pon- fez com que a institucionalidade política apare-
to de vista dos novos espaços institucionais fran- cesse na análise como categoria residual, sim-
queados paulatinamente pela transição à demo- plesmente como fonte de satisfação das deman-
cracia, quanto do ponto de vista do ingresso no das ou de repressão ao protesto. Mas a partir da
jogo de novos atores políticos? Como passa a se década passada, tanto na Europa quanto nos Es-
dar a relação entre o conflito político, as novas tados Unidos, surgiram estudos mais específicos
regras do jogo e os novos jogadores (postos ao que procuraram trazer o processo político ao centro
lado dos antigos)? Como analisar o impacto des- da abordagem das mobilizações sociais (cf.
ta ampliação sobre os desdobramentos do jogo? TILLY, 1978 e 1985; OFFE, 1985; DOBRY, 1986;
Como compreender as mobilizações sociais, não TARROW, 1989; GAMSON, 1990; entre outros).
como meras irrupções esporádicas ou como com-
Desta literatura mais recente, interessa aqui
portamentos anômicos de massa, mas como lan-
destacar duas possibilidades analíticas abertas na
ces políticos que são parte do próprio conflito
interface das mobilizações com o sistema políti-
democrático?
co institucional: uma que parte da conjuntura,
A literatura sobre mobilizações dispõe de res- outra que parte do processo. A primeira é o mo-
postas diversas sobre estas questões. Este não é delo de análise de conjunturas fluidas, isto é, con-
o local para uma resenha exaustiva — que pode junturas de crise política conjugadas, no correr
ser encontrada em Mann (1991) e Tarrow (1988, do curto prazo, a amplos processos de
p. 421-428) — mas posso indicar aqui algumas mobilização de massa, desenvolvido por Michel
respostas pertinentes à questão geral da relação Dobry (1983 e 1986). A segunda é a perspectiva
entre, de um lado, a mobilização social de massa, de análise de ciclos de protesto e reforma, isto é,
por vezes chamada de “protesto político”, e de uma agregação de episódios de mobilização e a
outro o sistema político institucionalizado, em aferição das respostas dadas pelo sistema políti-
especial a institucionalidade política democráti- co, no correr de um prazo mais longo, desenvol-
ca. vida por Sidney Tarrow (1988 e 1989).
Nem toda literatura trata das mobilizações Na perspectiva de Dobry, a especificidade das
como participação de massa em grandes ques- conjunturas de crise política está justamente nas
tões de política nacional, que é nosso interesse complexas relações que se estabelecem entre as
mais imediato aqui. Inicialmente ligada à psicolo- mobilizações e as mudanças no estado dos siste-
gia social da virada do século (cf. LE BON, 1954; mas políticos. “Em oposição a todas as formas
CANETTI, 1983) ou à sociologia do desenvolvi- de reificação das instituições [escreve ele] trata-
mento dos anos cinqüenta e sessenta (cf. se, desde logo, de abordar as ‘estruturas’, ‘orga-
SMELSER, 1963; além do já citado nizações’ ou ‘aparelhos’ levando em conta sua
HUNTINGTON, 1975), a pesquisa sobre mobili- sensibilidade às mobilizações, aos lances desferi-
zações ganhou grande impulso do final da década dos, à atividade tática dos protagonistas das cri-
de sessenta até a década de oitenta, nos Estados ses. Mas trata-se também de decifrar simultane-
Unidos e na Europa Ocidental, motivada pelas amente as lógicas de situação que, em tais con-
ondas de protesto político que irrompiam. Enquan- textos, tendem a se impor aos atores e tendem a
to os estudiosos europeus enfatizavam as causas estruturar suas percepções, seus cálculos e seus
estruturais dos movimentos, as identidades comportamentos” (DOBRY, 1986, p. 39-40, sem
coletivas que eles expressavam e suas relações grifo no original).
com o capitalismo avançado (cf. TILLY, 1978;
Tal enfoque equivale a avaliar as conjunturas
TOURAINE, 1981; entre outros), os americanos
críticas como momentos em que grandes ques-
preferiam um enfoque “atitudinal”, destacando a
tões políticas nacionais mobilizam um conjunto
participação (ou constrangimentos à participação)
“novo” de atores, ampliando de modo importan-
dos grupos organizados no protesto de massa e
te, para estas conjunturas, o conjunto de atores
suas formas de ação coletiva (cf. GAMSON,
normalmente presentes nas situações políticas
1968; LIPSKY, 1970; OBERSCHALL, 1973;
rotineiras. O pressuposto é que se vive numa so-
OLSON, 1978; entre outros). Nos trabalhos an-
ciedade dinâmica e pluralista o suficiente para
teriores à década de oitenta, salvo algumas

105
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

conter setores sociais organizados e conjun- pouco ou nada comuns, aumenta muito o grau de
turalmente mobilizáveis. Tal ampliação em torno imprevisibilidade do jogo, assim como também
de grandes questões faz com que todos os prota- podem tornar-se instáveis tanto os objetivos pon-
gonistas deixem de basear seus cálculos políti- tuais e certas preferências dos atores quanto até
cos nos referenciais rotineiros, ou seja, na lógica mesmo certas regras do jogo político. Como re-
dos campos sociais específicos aos quais nor- sultado, os atores ficam mais dependentes ainda
malmente sua atividade política está confinada. dos lances desferidos pelos demais jogadores para
Em tais conjunturas, passam a referenciar sua decidirem quais serão seus próprios lances se-
atividade tática em uma lógica de situação de cuja guintes. Isto é, a perturbação da capacidade de
elaboração participam e por cujos contornos são cálculo dos atores, em vista da rapidez, incerteza
influenciados, lógica que perpassa o confinamento e imprevisibilidade do jogo conjuntural, aumenta
dos diferentes espaços sociais e das diferentes a interdependência tática entre esses atores.
arenas políticas rotineiras que convivem numa so-
A estes momentos de instabilidade, de
ciedade complexa e cria uma base temática co-
imprevisibilidade, de rompimento com procedi-
mum sobre a qual o conflito conjuntural passa a
mentos políticos rotineiros e de mudança nas are-
ocorrer.
nas de jogo, Dobry chama de conjunturas políti-
Por exemplo, no Brasil de 1984 (na campanha cas fluidas. No centro da crise, está a ampliação
das “Diretas Já”) ou de 1992 (na campanha pelo do jogo, isto é, a mobilização política (conjuntural)
impeachment de Collor), sindicalistas e operári- da sociedade. Nessas conjunturas, o espaço so-
os, capitalistas e líderes de entidades empresari- cial se simplifica, pois tudo passa a girar em tor-
ais, deixaram de operar politicamente a partir da no de algumas poucas ou mesmo de uma única
lógica normalmente empregada nas relações en- “grande” questão política jogada na arena nacio-
tre empresários e trabalhadores; os estudantes nal e, ao mesmo tempo, o jogo político torna-se
deixaram de agir a partir da lógica própria às ques- infinitamente mais complexo, pela precariedade e
tões universitárias; e mesmo os congressistas pela velocidade das relações. Até que, ao final, o
deixaram de agir exclusivamente a partir da lógi- esgotamento da questão central leve à
ca e da rotina próprias aos jogos de força parla- desmontagem da lógica de situação e o jogo po-
mentares; e assim fizeram todos estes atores ci- lítico tenda a reestruturar-se em torno de novas e
tados, para passarem a agir em torno da grande antigas arenas setoriais e de relações
questão política nacional colocada na agenda (elei- institucionalizadas (em parte, as mesmas de an-
ções diretas ou impeachment). Abandonaram com tes, em parte, novas relações). Em suma, o jogo
isso, por um momento, suas arenas políticas volta ao “normal”, mas as cartas podem estar sig-
setoriais, ou seja, os espaços socialmente circuns- nificativamente reembaralhadas (cf.
critos nos quais rotineiramente atuavam, para jo- RODRIGUES, 1993, cap. 1).
garem o grande jogo (ampliado) da política naci-
A partir desta discussão, é possível fazer pelo
onal, durante a vigência da conjuntura crítica. Ou,
menos duas inferências, a saber. Em primeiro lu-
dito de outro modo, estas arenas restritas mo-
gar, se tomarmos um lapso de tempo maior, pode
mentaneamente se fundiram numa grande arena
ser possível detectar mais de uma (talvez várias)
política nacional.
conjunturas de mobilização como a descrita aci-
Como conseqüência imediata disso que aca- ma, em torno de questões nacionais, ao lado de
bamos de dizer, os recursos políticos de que os outras, de abrangência mais restrita, em torno de
atores se valem em situações rotineiras mudam questões setoriais. Tal observação, em perspecti-
de valor (podem ampliar-se ou reduzir-se), mo- va temporal mais alongada, poderia permitir de-
dificando o peso relativo dos contendores. Dada tectar conexões e inter-relações entre estes dife-
a rapidez com que isso ocorre nas conjunturas rentes episódios, aparentemente isolados, bem
de crise, toda a rotina estratégica que geralmente como seus respectivos impactos sobre o jogo
empregam se desestrutura. Ocorre uma situação político institucional “rotineiro”. Em segundo lu-
de incerteza generalizada entre os diferentes gar, nesse lapso mais longo talvez fosse possível
atores, aumentando a dificuldade de cada um para considerar também os eventuais vínculos exis-
calcular as próprias ações e as dos adversários, tentes entre as respostas institucionais dadas pelo
bem como antecipar os possíveis resultados de- sistema político e os episódios de mobilização
las. Como as situações são novas e as interações conjuntural. Isto é, seria possível verificar se o

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN. 1999

sistema político, de algum modo, reformulou-se específicas da análise de conjuntura (cf.


em resposta ao advento das mobilizações que ori- TARROW, 1988, p. 429; 1989, p. 32-40, p. 82-
ginaram conjunturas críticas ou não. E se 90).
reformulou-se, verificar se o fez no sentido de
Em segundo lugar, considere-se a importân-
atender a demandas ou de dotar-se de instrumen-
cia do espaço social constituído pelos movimen-
tos capazes de oferecer desestímulos a novas
tos sociais, no interior do qual arregimentam ade-
pressões sociais (isto é, desenvolver “tecnologias
sões, travam a batalha do convencimento, com-
de contenção”).
petem com outros potenciais movimentos e de-
Parecem ser estas as questões colocadas por senvolvem identidades políticas. Conforme o
Sidney Tarrow. Como vimos acima, na literatura enfoque de cada autor, esse espaço social pode
mais recente sobre mobilizações a principal novi- ser chamado de “setor dos movimentos sociais”,
dade talvez seja o fato de haver-se rompido as “sub-cultura dos movimentos sociais” ou “rede
barreiras analíticas entre política “institucional” e de movimentos sociais”. Este setor, sub-cultura
“não-institucional”. Com isso, emergiram algu- ou rede de movimentos, tal como o entende
mas formulações importantes acerca das Tarrow, abrange todos os indivíduos e grupos que
interações entre mobilização e instituições. estejam engajados em alguma forma de ação
direta visando fins coletivos ou bens públicos.
Em primeiro lugar, considere-se o conceito de
Isso inclui as organizações formais que dão su-
estrutura de oportunidades políticas e, ligado a
porte a movimentos sociais (ONGs, por exem-
ele, também a preocupação que se passou a ter
plo), mas também se estende ao conjunto de par-
com a relação entre a emergência, a estratégia e a
ticipantes esporádicos ou àqueles que emprestam
dinâmica dos movimentos de protesto e contes-
apoio informal aos movimentos (no Brasil, por
tação, de um lado, e o quadro cultural e as tradi-
exemplo, OAB, ABI, Igreja Católica etc). E pode
ções da política nacional, de outro. Ou seja, se
também incluir eventualmente os grupos de inte-
não há solução de continuidade entre a política
resse comuns (inclusive sindicatos e centrais sin-
feita nas instituições e a feita nas ruas (como
dicais). Não me parece de outra natureza a noção
também o demonstra o modelo analítico de
de “campo ético-político” desenvolvida por
Dobry), ambas devem estar sujeitas a conjuntos
Doimo (1995) na análise dos movimentos sociais
de constrangimentos ou de oportunidades que
brasileiros da década de 1970, e que também tem
dificultam ou facilitam a ação de alguns sujeitos
relações com as “matrizes discursivas” de que
políticos em detrimento de outros, conforme a
fala Sader (1988), a propósito dos mesmos mo-
situação (o que se costuma chamar de “seletividade
vimentos. Na visão de Tarrow, “pessoas e gru-
estrutural”).
pos podem mover-se para dentro ou para fora do
Mais especificamente, deve-se considerar — setor de movimento social, e mesmo organiza-
na avaliação do impacto político das mobilizações ções fundadas para atividades não-movimentalistas
— o grau de abertura ou fechamento do sistema podem cooperar com ele por breves períodos [...].
político, isto é, o perfil do regime; a estabilidade O tamanho, o caráter e a composição do setor de
ou instabilidade dos alinhamentos políticos pac- movimento social mudam ao longo do tempo,
tuados ao nível da política institucional; a presen- assim como os grupos se mobilizam e
ça ou ausência de aliados e grupos de apoio com desmobilizam, os temas entram e saem da agen-
lastro organizacional e engajamento institucional da política e as elites respondem com diferentes
consolidado; presença ou ausência de divisões combinações de facilitação, repressão, indiferen-
dentro das elites políticas e seu grau de tolerância ça e reforma” (TARROW, 1988, p. 432).
ao protesto; a capacidade ou incapacidade do
Trata-se em suma de um espaço de protesto
governo na formulação de políticas, bem como
potencial, no interior do qual circulam temáticas
seu grau de agilidade na elaboração de respostas
e experiências mobilizatórias entre os movimen-
a demandas. É claro que esta chamada “estrutu-
tos e, ao mesmo tempo, indivíduos e grupos com-
ra de oportunidades” deve ser considerada em sua
petem por espaço e hegemonia, isto é, desenvol-
variação ao longo do tempo, o que nos obriga a
vem “relações políticas” do mesmo modo que os
pensar a relação entre as mobilizações e a
grupos organizados em torno da institucionalidade
institucionalidade política a partir de um registro
o fazem.
temporal mais alongado, que extrapola as lides

107
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Em terceiro lugar, considere-se o tema dos rais”, por certo, mas uma vez o ciclo desencade-
ciclos de protesto e o das relações estabelecidas, ado há uma retroalimentação em que resultados
dentro destes ciclos, entre protesto e reforma de protestos passados catapultam as expectati-
política. Baseado nos trabalhos de Tilly sobre os vas frente a novos confrontos. Tal enfoque, por-
movimentos do século XIX e no de Pizzorno so- tanto, privilegia a percepção do processo em an-
bre conflito industrial, Sidney Tarrow observou damento, sem esquecer as especificidades dos
que a magnitude do conflito, seus canais de difu- lances conjunturais. “Um ciclo de protesto é fun-
são, as formas de ação empregadas, além dos damentalmente um processo político” (TARROW,
próprios atores e dos tipos de organização, vari- 1988, p. 435, sem grifo no original).
am enormemente ao longo do tempo. Ao tomar
Nesse sentido, o ciclo pode ser analisado em
em consideração o ciclo, abandona a idéia de “es-
três fases. Uma fase ascendente, que dá origem
tabilidade estrutural” dos sistemas políticos para
ao ciclo a partir de uma situação estrutural de
trabalhar com a idéia de “estabilidade dinâmica”,
acúmulo de “injustiças” ou de repressão sobre
o que implica compreender as mobilizações como
certos setores sociais (como na primeira década
sucessivas realizações, embora em diferentes for-
do regime militar brasileiro), e/ou pelo apareci-
matos, de um mesmo princípio de interação en-
mento de novas oportunidades de ação política
tre os atores sociais mobilizados e a
(como em sua segunda década). Dada essa situ-
institucionalidade. Tal abordagem permite identi-
ação, o surgimento de movimentos disruptivos
ficar, ao longo do período, diferentes fases de
se difunde como que “por imitação”. Nessa fase,
consenso e mobilização, de mudança ideológica
o protesto se espalha de um grupo a outro e ten-
ou organizacional, e de transformações
de a pressionar a estrutura de oportunidades po-
institucionais, todos fatores que impactam a emer-
líticas visando a abertura de novas oportunidades
gência de uma dada questão na agenda política.
(como o processo brasileiro de “descompressão”
Assim, lançam-se novas luzes sobre conjunturas
e “abertura” política). Estas mobilizações desen-
de forte mobilização de massa, pois se de um lado
rolam-se num sentido crescente até o pico do ci-
elas se explicam pelo sucesso das bandeiras ou
clo. Nesse momento, descrito na literatura como
da organização dos movimentos, e pela estrutura
“momento de loucura” (moment de folie, moment
de oportunidades encontrada no momento, “por
of madness), chegamos a uma situação que pode
outro podem ser explicadas por externalidades nos
ser satisfatoriamente analisada como uma “con-
ciclos de protesto, no qual grupos que emergem
juntura fluida”, vista acima (como na campanha
na crista da onda do protesto podem aproveitar-
pelas “Diretas Já”). A ela segue-se uma fase des-
se da atmosfera geral de descontentamento cria-
cendente, de desmobilização, resultado do des-
da pelos esforços de outros durante as fases ini-
gaste do tema central que monopolizava a agen-
ciais do ciclo” (TARROW, 1988, p. 434-435).
da, e marcada pela reciclagem dos movimentos e
Ciclos de protesto podem ser definidos, em organizações, bem como de suas temáticas (cf.
suma, como agregações de episódios de TARROW, 1989, p. 50-56). Acrescente-se que o
mobilização parcialmente autônomos e indepen- momento descendente poderia ser visto, também,
dentes. Em seu curso, novas formas de ação como a porta de entrada para uma nova fase as-
emergem e evoluem, o setor (rede ou sub-cultu- cendente.
ra) dos movimentos cresce e muda sua composi-
A partir desta concepção de ciclo, Tarrow fala
ção, e as oportunidades políticas surgem ou ces-
em “reforma” no plano político institucional como
sam, em parte em conseqüência dos temas pos-
indicativo de “sucesso” de um ciclo de protestos
tos na agenda, das práticas mobilizatórias e das
(o processo Constituinte de 1987-1988 pode ser
conquistas obtidas pelos próprios movimentos que
visto por este ângulo). Conforme a situação, po-
brotam no correr do ciclo.
deria seguir-se um ciclo de reformas como res-
Tarrow pensa os ciclos de protesto como algo posta a um ciclo de protestos. Não se trata de
análogo ao ciclo econômico, isto é, como uma seqüência temporal linear: pode haver uma
série de decisões individuais e coletivas tomadas interpenetração de processos. E associa-se, des-
num contexto marcado pela ação de fatores te modo, a efetividade da mobilização dos agen-
sistêmicos que não são uniformemente experi- tes sociais aos processos de mudança institucional.
mentados, mas antes difusamente percebidos. Os
Cabe agora olhar mais de perto, e por outro
fatores que desencadeiam o ciclo são “estrutu-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN. 1999

ângulo, o que temos até aqui chamado de “estru- na democracia, volta ao autoritarismo, vazio de
tura de oportunidades políticas”. Pois o que apa- poder), mas nenhuma está firmada; situação em
rece, do ponto de vista dos movimentos, como que a virtù dos agentes prevaleceria sobre a for-
mudanças nas oportunidades de ação, do ponto tuna das determinações estruturais; intervalo de
de vista institucional pode ser percebido como regime situado entre a desestruturação do
mudanças no regime político. autoritarismo e o estabelecimento de alguma for-
ma de democracia; em que as regras do jogo são,
V. MOBILIZAÇÃO, TRANSIÇÃO, “CON-
antes de tudo, objeto do conflito; regras que “de-
SOLIDAÇÃO”
finirão, em larga escala, os recursos a serem
Já nos perguntamos qual o efeito do despendidos e os atores com permissão de entra-
engajamento de um grande número de novos da na arena política” (O’DONNELL e
atores num conflito político dado. Mas a mesma SCHMITTER, 1988, p. 23).
pergunta poderia ser feita de outro ângulo: sob
Debalde tanta indeterminação, parece haver
que condições institucionais seria facultada e/ou
porém um caminho “normal” pelo qual passaria
facilitada ou, por outro lado, restringida e/ou difi-
o processo. O princípio de tudo é a “liberali-
cultada, a entrada num dado conflito de um am-
zação”, momento da reconquista de direitos for-
plo espectro de novos atores individuais ou
mais elementares pelos cidadãos, da aquisição de
coletivos? Ou, por outra: qual o impacto sobre
liberdades cuja conseqüência é baixar o custo da
uma institucionalidade, digamos, “pouco toleran-
expressão de interesses individuais e coletivos.
te à participação”, da entrada de um grande nú-
Uma vez reduzido este custo, a tendência é a erup-
mero de novos atores na disputa em torno dos
ção de focos de descontentamento e contestação
conflitos políticos principais da agenda?
ao regime, que terão um “efeito multiplicador”.
É claro que o desejo contido nestas indaga- O próximo passo é a “democratização”, entendi-
ções é o de relacionar a compreensão das mobili- da como o conjunto de “processos mediante os
zações conjunturais e dos ciclos de protesto à quais as regras e procedimentos da cidadania são
configuração do regime político. Mais especifi- aplicados a instituições políticas previamente
camente, o interesse aqui é relacionar estes ele- dirigidas por outros princípios [...], ou são ex-
mentos aos processos de democratização, ou do pandidos, para incluir pessoas que antes não go-
que se convencionou chamar de “transição” de zavam desses direitos nem estavam submetidas a
regime autoritário e “consolidação” da democra- essas obrigações [...] ou, ainda, estendidos de
cia. forma a dar conta de temas e instituições que pre-
viamente não se encontravam sujeitas à partici-
Como seria impossível aqui, mais uma vez,
pação dos cidadãos [...]” (O’DONNELL e
uma resenha exaustiva da enorme literatura dis-
SCHMITTER, 1988, p. 25-26).
ponível, tomarei como exemplo representativo do
que se pode chamar de “primeira geração” de Assim, embora distintas, liberalização e demo-
estudos sobre a transição, os trabalhos de cratização estão associadas, uma vez que quanto
O’Donnell e Schmitter sobre o sul da Europa e a mais avança a primeira, mais difícil se torna manter
América Latina, em especial suas generalizações as restrições ao efetivo advento da segunda.
conceituais. Quase década e meia depois de
A liberalização principia, nessa perspectiva,
publicada, esta análise da transição de regime au-
com o surgimento de tensões entre grupos “du-
toritário e “consolidação” democrática parece ter
ros” e “brandos” no interior das forças autoritári-
se tornado uma espécie de senso comum acadê-
as, pois “não há transição cujo início não seja
mico. No entanto, o papel nela atribuído à
conseqüência — direta ou indireta — de impor-
mobilização política da sociedade organizada,
tantes divisões no próprio regime autoritário”
creio, não corresponde ao que se verificou
(O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 41-42).
empiricamente durante a alongada transição bra-
O lance seguinte é a formação de alianças demo-
sileira.
cratizantes entre os brandos do regime e os mo-
Desde logo estes autores frisam a derados da oposição consentida. A grande amea-
indeterminação e incerteza características da tran- ça, onipresente nos cálculos deste ainda
sição de regime. Trata-se de situação, afirmam, reduzidíssimo grupo de atores, é a de um golpe
em que várias alternativas estão postas (ingresso que reverta a abertura e recrudesça o autorita-

109
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

rismo. Mas a efetividade das alianças e oposições te” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 85).
esboçadas só se manifesta quando ocorre, a par-
Tornam-se apoiadores da transição mesmo os
tir da chamada “ressurreição da sociedade civil”,
grupos privilegiados que inicialmente apoiaram o
a mobilização política de um amplo leque de for-
regime autoritário e que agora não vêem mais
ças sociais.
necessidade em sua permanência, seguidos por
De modo muito semelhante às fases do ciclo profissionais liberais e setores assalariados de clas-
de protesto de que fala Tarrow, O’Donnell e se média, que trazem à cena pública a interven-
Schmitter vêem três fases no processo de ção de suas entidades de classe, que ganham o
mobilização social durante a transição de regime. status de “entidades representativas da sociedade
Na primeira — quando novos atores começam a civil” e, também, pela re-articulação dos traba-
perceber seu espaço potencial, mas antes de uma lhadores e do movimento sindical operário. E isso
“explosão” mobilizatória oposicionista — os bran- sem contar “a literal explosão dos movimentos
dos/moderados parecem representar a melhor al- de base”, especialmente ligados a igrejas.
ternativa; na segunda, quando os protestos alcan-
Configura-se o que Tarrow chama de setor
çam o pico, a situação de “desordem” parece fa-
(sub-cultura ou rede) de movimentos sociais, que
vorecer os duros, que acenam com o golpe,
forma o caldo a partir do qual conjunturas de ação
acuando os brandos/moderados; na terceira,
coletiva disruptiva emergem em meio ao cenário
quando se dá uma desmobilização relativa, “a ca-
das transições de regime (“conjunturas fluidas”,
pacidade de tolerância dos vários atores aumen-
na linguagem de Dobry; “revolta popular”, para
tará. Os elementos brandos e indecisos no regi-
O’Donnell e Schmitter). “Em alguns casos e em
me já liquidado, assim como as classes e setores
momentos particulares da transição [descrevem
sociais que lhe deram apoio, terão aprendido a
eles] muitas dessas diversas camadas da socie-
lidar com novos conflitos e demandas, com mo-
dade reúnem-se para formar o que denominamos
dificações nas regras do jogo e arranjos
‘revolta popular’. Sindicatos, movimentos de base,
institucionais, assim como com níveis e padrões
grupos religiosos, intelectuais, artistas, clérigos,
de demandas e de organização populares que ja-
defensores dos direitos humanos e associações
mais teriam aceito no início da transição”
profissionais apóiam-se mutuamente em seus es-
(O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 53-54).
forços pela democratização e formam um todo
Ou seja, no curso da transição de regime au- maior que se identifica a si mesmo como ‘o povo’,
toritário — que se afigura, na descrição de el pueblo, il popolo, le peuple, ho laos. Esta frente
O’Donnell e Schmitter, como leito de um “ciclo emergente exerce forte pressão para expandir os
de protesto” típico — a liberalização, sua primei- limites da mera liberalização e da democratização
ra fase, desprende energias estancadas e possibi- parcial. A fantástica convergência que essa re-
lita a descoberta de espaços públicos desativados volta envolve é ameaçadora, tanto para os bran-
e identidades coletivas esquecidas ou até então dos do regime, que patrocinaram a transição na
não configuradas: “ela pode envolver o ressurgi- esperança de controlar suas conseqüências, quan-
mento dos partidos políticos anteriormente exis- to para alguns dos seus quase-aliados, os opo-
tentes ou a formação de novos partidos para exer- nentes moderados do regime, que esperavam do-
cer pressão a favor da democratização ou mes- minar, sem essa ruidosa interferência, a competi-
mo de uma revolução; o aparecimento repentino ção subseqüente pelas mais altas posições do go-
de livros e revistas dedicados a assuntos há mui- verno” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p.
to suprimidos pela censura; a conversão de anti- 91-92).
gas instituições — sindicatos, associações de clas-
A fase final deste ciclo é a desmobilização.
se e universidade — de agentes de controle go-
“Em qualquer caso, independentemente da inten-
vernamental em instrumentos para expressão de
sidade e do pano de fundo de que emerge, a re-
interesses, ideais e de raiva contra o regime; a
volta popular é sempre efêmera. A repressão
emergência de organizações de base que articu-
seletiva, a manipulação e a cooptação realizadas
lam exigências há muito reprimidas ou ignoradas
pelos incumbentes do regime transicional; a fadi-
pelo regime autoritário; a expressão de preocu-
ga produzida por freqüentes demonstrações nas
pações éticas por parte de grupos religiosos e es-
ruas; os conflitos internos que estão fadados a
pirituais previamente conhecidos pela sua pruden-
ocorrer no tocante às escolhas de procedimentos
te acomodação às autoridades; e assim por dian-

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e políticas substantivas; um sentimento de desi- ar ao apelo à intervenção militar e ao empenho


lusão ética com relação aos compromissos ‘rea- pela mobilização das massas” (O’DONNELL e
listas’ impostos por pactos e/ou pela emergência SCHMITTER, 1988, p. 73); e finalmente o mo-
de padrões autoritários de liderança no interior de mento econômico da transição, em que se faria
alguns dos grupos que a compõem – todos estes mister enfrentar o legado de crise econômica e
são fatores que levam à dissolução da revolta. A de aumento de desigualdades sociais geralmente
ascensão e declínio desta revolta deixa muitas herdados do autoritarismo e que poderia ser
esperanças frustradas e muitos atores desiludi- equacionado, por sua vez, nos casos em que fos-
dos” (O’DONNELL e SCHMITTER, 1988, p. 94- se possível, por um pacto entre organizações
95). corporativas do capital e do trabalho nacional-
mente centralizadas.
Abrem-se, ao longo destes diferentes momen-
tos do ciclo transicional, espaços para a celebra- O desfecho “normal” da transição, neste mo-
ção de pactos (ou para um ciclo de reformas, como delo, seria marcado por pactos políticos apoia-
diria Tarrow), dados entre grupos restritos de dos sobre tecnologias de contenção, como se
atores, visando redefinir as regras sob as quais mobilizações sociais fossem, ao mesmo tempo,
atuam, por meio do estabelecimento de garantias um recurso necessário para ajudar a “distender”
mútuas. Trata-se, na acepção de O’Donnell e o autoritarismo, e uma inconveniência a ser dis-
Schmitter, de uma forma de entrada na democra- pensada tão logo os recursos acumulados pela
cia “por meios não-democráticos”, já que os pac- oposição “democrática” fossem suficientes para
tuantes (via de regra “oligarquias”) “tendem a a celebração de acordos intra-elite. Nesse desfe-
reduzir a competição e o conflito; buscam limitar cho, dá-se a convocação de eleições razoavelmen-
a responsabilidade junto ao público mais amplo; te competitivas para os cargos fundamentais do
intentam controlar a agenda de prioridades políti- governo, cujas regras, pactuadas entre os princi-
cas; e distorcem deliberadamente o princípio da pais atores do processo, quando estabelecidas
igualdade entre os cidadãos. Não obstante, estes com sucesso representam as bases de um “con-
pactos podem alterar relações de poder; promo- senso contingente”, em torno do qual a nova de-
ver novos processos políticos e conduzir a resul- mocracia se estabelece. O impacto destas elei-
tados não antecipados” (O’DONNELL e ções fundadoras, para O’Donnell e Schmitter, será
SCHMITTER, 1988, p. 68). diferenciado conforme os resultados obtidos pe-
las forças mais à direita ou mais à esquerda. Se-
Ou seja, este tipo de mudança política pactua-
gundo os autores, haverá maiores chances de
da, apesar de ser capaz de abrir novas possibili-
estabilização se os resultados do centro-direita
dades para a democracia, implica na constituição
forem satisfatórios.
de repertórios de contenção institucionais, for-
mulados na medida em que diferentes pactos são Em suma, a “transição se encerra quando a
celebrados. ‘anormalidade’ já não constitui a característica
principal da vida política; acontece quando os
Segundo nossos autores — embora ressaltem
atores estabelecem — e respeitam — um conjun-
sempre que nos casos reais as fases não são tão
to de normas mais ou menos explícitas que defi-
linearmente dispostas — poderíamos distinguir
nem os canais a serem utilizados para acesso a
três momentos aos quais corresponderiam três
cargos de governo, os meios que podem empre-
tipos de pactos: o momento militar, equacionado
gar legitimamente em seus conflitos, os procedi-
pelo pacto entre duros e brandos em torno da
mentos a se aplicar na tomada de decisões esta-
liberalização política e da disposição de volta dos
tais, e os critérios usados para excluir do jogo.
militares aos quartéis; o momento político, sacu-
Em outras palavras, a normalidade torna-se uma
dido já pelas mobilizações, no qual a necessidade
característica principal da vida política quando
de restabelecimento dos mecanismos básicos da
aqueles que estão ativos na política nutrem a ex-
competição política poderia equacionar-se por um
pectativa de que todos ajam de acordo com as
pacto destinado a “limitar a agenda de alternati-
regras — e ao conjunto dessas regras de jogo
vas políticas, compartilhar proporcionalmente da
denominado regime” (O’DONNELL e
distribuição de benefícios, [e] restringir a partici-
SCHMITTER, 1988, p. 107, sem grifos no origi-
pação dos não pactuantes na tomada de decisões.
nal).
Em troca, os pactuantes concordam em renunci-

111
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

Uma vez que os procedimentos principiam seu Para Schmitter e O’Donnell, após a entrada
processo de rotinização, estes autores tendem a em operação dos processos acima e a rotinização
considerar que adentramos o momento de “con- da alternância (ou de um maior realinhamento)
solidação” da democracia. O que se espera desta dos partidos no poder, estaria completada a
fase é que nela seja possível estruturar e legitimar regulação interna das principais instituições de-
as coletividades, identidades políticas, arranjos mocráticas: competição partidária, atuação das
específicos e recursos que tenham surgido du- associações de interesses, parlamento funcionan-
rante a transição. Trata-se da institucionalização do, poder executivo responsável. Padrões con-
da incerteza própria à democracia, a partir de um tingentes se tornariam então estruturas firmadas,
quadro de referências “estabilizado”. Não se tra- práticas e normas seriam convertidos em leis ou
ta de um simples prolongamento da transição. A regulamentos embasados na autoridade do Esta-
consolidação tem, na perspectiva destes autores, do e na letra da Constituição. No que tange aos
uma dinâmica própria. Os dias tormentosos, atores e arenas do conflito que se impõem na
conflitivos e incertos em que os regimes autori- passagem dos regimes autoritários aos democrá-
tários são derrubados vão, paulatinamente, sen- ticos, observa Schmitter que “[...] assim como
do substituídos por momentos de “normalização”, O’Donnell e eu propusemos que os movimentos
de “rotinização” — agora em padrões democráti- foram o espaço crucial para a determinação dos
cos — da vida política. “Enquanto que durante a resultados da derrocada do regime autoritário e
transição uma forma pura de causalidade política que os partidos foram centrais na transição para
tende a predominar, numa situação de mudança a democracia, agora proporei que o parlamento e
rápida, alto risco e escolha estratégica [...] as associações de interesse são os espaços
indeterminada, durante a consolidação os atores onde a consolidação será decidida”
têm [...] que organizar suas estruturas internas (SCHMITTER, 1985, p. 22, sem grifos no origi-
mais previsivelmente, consultar seus ‘constituin- nal).
tes’ mais regularmente, mobilizar seus recursos
Em suma, o que se passaria da transição à
com mais confiança, considerar as conseqüênci-
consolidação da democracia seria uma transfor-
as de longo prazo de suas ações mais seriamente,
mação das contingências engendradas no perío-
e geralmente experimentar os constrangimentos
do conflitivo de derrocada do autoritarismo em
impostos por deficiências materiais e resistênci-
um padrão institucional estruturado, rotinizado,
as normativas profundamente arraigadas de modo
normalizado. Um processo no qual atores políti-
muito mais perceptível” (SCHMITTER, 1985, p.
cos de vocação disruptiva, de um lado, ou re-
6).
pressiva, de outro, simplesmente sairiam de cena,
A partir do funcionamento regular de um ou então transformar-se-iam em grupos
legislativo eleito livre e competitivamente, tido institucionalizados (internamente falando) com
sempre como instituição central da nova demo- interesses estruturados, ocupando posições dife-
cracia, seriam definidas algumas questões renciais com relação à institucionalidade político-
cruciais: a natureza e o caráter da representação jurídica. Um processo no qual as próprias regras
territorial; a relação entre os partidos (no plano constitutivas do regime deixariam de ser objeto
eleitoral e no parlamento); a autonomia das agên- do contencioso e passariam a balizar expectati-
cias estatais e para-estatais; as estratégias das vas mutuamente normalizadas. Um processo ao
associações de interesses; as formas de relacio- cabo do qual estariam recolocadas em seus devi-
namento com as pressões sociais etc. É, enfim, dos lugares – com ou sem rearranjos — inclusi-
o processo de estabilização da representação se ve aquelas relações de assimetria social que enra-
estruturando, via dois canais genéricos de aces- ízam a dominação política numa dominação
so: o territorial, controlado por partidos; e o fun- econômica.
cional, manipulado por associações de interesse.
Pelo modelo O’Donnell/Schmitter, as mobili-
Qual seria o sentido, pois, da eventual presen- zações, que estavam no centro da arena no mo-
ça de protestos políticos ou mobilizações de mas- mento de se forçar as portas da “liberalização”, e
sa, se as demandas sociais passam a ser expres- os partidos, que foram os canais privilegiados no
sas pelos canais rotineiros, pelo voto ou pelo encaminhamento da “democratização”, dão lugar,
pertencimento organizacional estruturado? com o advento da “consolidação democrática”, à
prevalência, no centro da cena pública, do parla-

112
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN. 1999

mento, como arena por excelência do conflito Por hora, lembro que O’Donnell, em artigo
regrado, e dos grupos de interesse corporativo mais recente (1996), insinua que, para formações
organizados como atores políticos privilegiados sociais como as latino-americanas, o cotejo dos
de um jogo cujas regras tendem a ser universal- processos efetivos de construção democrática
mente conhecidas e rotineiramente aceitas, por- com o modelo da poliarquia de Dahl tende a des-
que anteriormente pactuadas. tacar apenas as lacunas e insuficiências dos sis-
temas políticos reais. Suas positividades, assim,
Esse modelo parece-me empiricamente insu-
deveriam ser buscadas em uma tradição política
ficiente. Ao contrário de Huntington, que vê a
própria. Penso, diferentemente, que o construto
mobilização social como erupção disfuncional e
de Dahl, justamente por seu caráter ideal-típico,
produz uma análise que é antes uma explicação
é o instrumento mais adequado para desvelar o
conservadora da emergência do autoritarismo
peso negativo da tradição política clientelista e au-
enquanto resposta institucional à mobilização,
toritária de países como o Brasil sobre as possi-
O’Donnell e Schmitter vêem a mobilização social
bilidades presentes de institucionalização da de-
do ponto de vista de sua funcionalidade no que
mocracia. É justamente do advento da “demo-
respeita ao processo de erosão da institucionalidade
cracia por meios não-democráticos” que estes li-
autoritária. Porém, assim como no primeiro, nos
mites emergem. Se reconstruirmos, porém, o
segundos também não há instrumentos analíticos
processo de mobilização crescente da sociedade
para dar conta da erupção de conjunturas de for-
organizada durante a transição, veremos que sem-
te mobilização social em contextos institucionais
pre houve uma alternativa histórica a esta contra-
democráticos. Mobilizações em contextos demo-
dição “em termos”.
cráticos, se levarmos tal modelo ao pé da letra,
constituiriam anomalias. O enfoque funcional e a VI. DEMOCRATIZAÇÃO SEM DEMOCRACIA
insistência na disjuntiva transição/mobilização
É certo que, conforme esperado pelo modelo
versus consolidação/desmobilização, inerentes ao
O’Donnell/Schmitter, a arena parlamentar ganha
modelo O’Donnell/Schmitter, limitam seu poder
peso significativo durante e após a redação e pro-
compreensivo e, além do mais, não permitem que
mulgação da Constituição brasileira de 1988. Não,
se leve em consideração a contribuição da
porém, na condição de locus institucional em que
mobilização da sociedade organizada para a cons-
se processam as demandas societais.
trução positiva de uma institucionalidade demo-
crática. A imagem que se incorporou ao senso comum
acadêmico de um contraponto linear entre uma
Pretendo, a título de um comentário final, des-
transição conflitiva e uma competição política
tacar que no processo brasileiro de transição e
democrática estável centrada na arena parlamen-
consolidação democráticas as novas instituições
tar e na representação societal via grupos de inte-
não rotinizaram uma competição política de molde
resse, no caso do Brasil, não corresponde aos
poliárquico porque os pactos da transição, por
fatos, entre outras, pelas seguintes razões.
terem sido firmados entre atores de perfil
oligárquico, deram sobrevida ao padrão autoritá- Em primeiro lugar, porque os pactos políticos
rio anterior de relação entre a sociedade e o Esta- firmados, embora tenham garantido a superação
do; e também porque, em função disso, as refor- do regime, não tiveram por objeto mover o siste-
mas institucionais oferecidas pelo sistema políti- ma político em direção à institucionalização de
co como resposta às mobilizações da transição uma nova ordem de relações entre Estado e so-
tiveram por objetivo limitar o alcance da sociali- ciedade. O modo pelo qual os pactos da transição
zação da política em vez de institucionalizar a se deram contribuiu antes para gerar, ao longo da
competição ampliada; e, finalmente, porque a ex- Nova República, um “clima” de ampla insatisfa-
clusão social, subproduto da modernização con- ção da sociedade com os resultados desses pac-
servadora, compôs um campo social cindido en- tos, seja com respeito ao fracasso dos experi-
tre a sociedade organizada e mobilizada, de um mentos de estabilização monetária, seja com res-
lado, e uma massa inorgânica e desmobilizada, peito à disseminação de práticas tradicionais “fi-
de outro, inviabilizando com isso o engajamento siológicas” incompatíveis com o momento de re-
de amplas faixas da população no processo de construção institucional. A crise do Estado, en-
participação política. Desenvolverei esse raciocí- quanto crise do pacto de dominação vigente sob
nio mais abaixo.

113
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

o autoritarismo (cf. SALLUM JR., 1995), que não mudanças na institucionalidade política formal,
pode ser discutida nos estreitos limites deste tra- embora tenham impactado diretamente o proces-
balho, amalgamou-se às outras dificuldades en- so de emergência de novos atores e a mobilização
contradas pela rotinização democrática da com- política da sociedade. O sistema político, preso
petição política, confrontando, no conflito ao padrão clientelista, respondeu com um “ciclo
transicional, a tendência à socialização do jogo de reformas” parcial e limitado (e sobretudo in-
político própria à lógica da sociedade organizada capaz de instituir um padrão efetivamente
e mobilizada à tendência à privatização do jogo, poliárquico) ao “ciclo de protestos” deflagrado
própria à lógica tecnocrática dos administrado- na transição.
res econômicos sob uma situação de crise fiscal
Assim, se por um lado, “houve mudanças subs-
e endividamento externo (cf. LOUREIRO, 1997).
tanciais nos padrões associativos e nas formas
A heterogeneidade da coalizão que possibili- de mobilização”, isto é, “intensificou-se o pro-
tou a transição inviabilizou, nesse sentido, a cesso de urbanização, aprofundou-se a diferen-
efetivação das expectativas por ela própria susci- ciação social, ampliou-se e fortaleceu-se a capa-
tadas — basicamente a idéia de que deveriam ser cidade de organização”, e, em função disso,
institucionalizadas novas articulações entre as “[a]mpliaram-se substancialmente as pressões e
associações de interesse emergentes e o poder demandas sobre o sistema institucional e o siste-
público, este último a ser remodelado. Nem o ma político”, por outro lado, no entanto, “os efei-
Estado nem sua forma de intervenção nos pro- tos políticos dessas mudanças foram superesti-
cessos econômico e político foram substancial- mados”, tanto pelos próprios atores políticos en-
mente alterados, o que representou uma longa volvidos quanto pelas formulações teóricas dos
sobrevida do padrão corporativista e autoritário analistas. As limitações de ordem política ao al-
de relação com a sociedade organizada. O efeito cance dessas mudanças sócio-econômicas podem
da eclosão da participação organizada e autônoma ser atribuídas, por seu turno, a duas causas, a
dos novos e antigos atores sóciopolíticos foi tor- saber. Por um lado, como notaram Camargo e
nar letra morta boa parte deste tipo de regula- Diniz, “o processo de mudança obedeceu antes a
mentação, o que, no entanto, não resolve o pro- uma lógica incrementalista do que a uma dinâmi-
blema institucional. Mas é certo também que, pelo ca de ruptura com padrões já estabelecidos, tan-
lado da sociedade, a setorização dos atores tradi- to no que se refere a segmentos da elite quanto às
cionais (as organizações sindicais e empresari- organizações populares” (1989, p. 11). Dito de
ais) impossibilitou a formulação de projetos glo- outro modo: os pactos que coroaram o desfecho
bal ou parcialmente consistentes ao nível das as- da transição limitaram o alcance da retomada do
sociações de interesse e deslocou para o Executi- processo de mobilização política crescente da
vo e o Congresso — em especial no momento sociedade, desencadeado pela complexificação
Constituinte — o gerenciamento da instituciona- social produzida pela modernização econômica.
lização, fazendo chegar à instância legislativa de- Como apontei em outro trabalho, no episódio de-
mandas dispersas e/ou de cunho exclusivamente cisivo da campanha pelo restabelecimento de elei-
corporativo (DINIZ, 1992). ções diretas para a Presidência da República, em
1984, a “lógica da negociação” prevaleceu sobre
Em segundo lugar, a tendência recente à cons-
a “lógica da ruptura”, isto é, o refluxo da ampli-
tituição de uma sociedade “moderna, dinâmica e
ação havida na arena política em direção a uma
pluralista” (DAHL, 1989), que servisse de base a
situação, novamente, de disputas intra-elite —
uma competição política em moldes horizontais
embora estas não sejam comparáveis, em termos
(à imagem do sistema político americano) não
de excludência social, às que dominaram o perí-
chegou a ser capaz — em especial por conta da
odo anterior a 1964 — prevaleceu sobre a lógica
resistência ferrenha das velhas estruturas
da “socialização” do conflito (cf. RODRIGUES,
clientelistas e da direita que delas se vale — de
1993). Por outro lado, os “aperfeiçoamentos da
dotar o novo regime, que se desenhava, de uma
capacidade de organização não se traduzem au-
institucionalidade formal tipicamente poliárquica,
tomaticamente em absorção satisfatória pelo sis-
apesar de atuar de fato nesse sentido. A
tema político institucional”, isto é, o conflito do
complexificação social que se observou ao longo
qual emergiu a institucionalidade formal pós-au-
das décadas de sessenta, setenta e oitenta teve
toritária resultou na prevalência das posições da-
impacto não imediato e pouco evidente sobre as

114
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN. 1999

queles atores que tinham interesse em construir co falar em “democracia consolidada” no Brasil.
mecanismos que antes limitassem a absorção de
A crise política vivida na transição brasileira
modo autônomo e dar trânsito à intervenção so-
configurou-se numa crise eminentemente
cial organizada sobre o processo político. “Cris-
institucional. Mais especificamente, foi uma cri-
talizou-se, portanto, o hiato entre a sociedade e o
se de incompatibilidade entre instituições formais
Estado, gerando um foco de crises crônico e per-
aspirantes à poliarquia (mas marcadas pelo
manente” (CAMARGO e DINIZ, 1989, p. 11).
“casuísmo” e por uma concepção autoritária de
Em terceiro lugar, dado o perfil socialmente relação com a demos) e processos políticos
excludente da modernização por que passou o país, efetivos em que a sociedade organizada, intervin-
a faceta organizada da sociedade tem composto do com mobilizações que tenderam a ampliar o
o terreno societal ao lado de imensas massas espaço público, confrontou-se com tecnologias
econômica e politicamente marginalizadas, com- institucionais de contenção viabilizadas por práti-
prometendo o volume e a eficácia das demandas cas de inspiração tradicional, tendencialmente
substantivas. Se os setores sociais organizados restritivas do espaço público, e portanto
carecem da contrapartida do Estado em termos tendencialmente antidemocráticas. “Os desloca-
de uma institucionalização formal eficaz dos ca- mentos sociais das últimas décadas [nota
nais de acesso ao processo político, as massas Wanderley Guilherme] produziram a emergência
inorgânicas crescentes continuam sob o domínio de realidades sociais inéditas, e redefiniram o sig-
da institucionalidade informal clientelista nificado político de situações mais antigas. O
(notadamente o coronelismo e o populismo, en- resultado agregado mais significativo dessas mo-
tendidos aqui não como um fenômeno histórico dificações consiste no intenso confronto entre o
datado, mas antes como uma matriz processo político instaurado por essas novas re-
comportamental). Como observou Francisco alidades e o velho processo político característi-
Weffort, “a ordem política inaugurada no Brasil co do corporativismo subdesenvolvido associa-
em 1988-89 reflete um processo de transição no do ao populismo irresponsável. [...] Em poucas
qual essas duas dimensões da democratização palavras, a essência da crise institucional con-
(liberalização e participação) tiveram um cresci- temporânea define-se pelo fato de que o proces-
mento extremamente desigual. O aumento da so político real deixou para trás, e muito longe,
liberalização (do direito à informação e à expres- as instituições criadas há cinqüenta anos. O
são) foi muito maior do que o da participação — corporativismo subdesenvolvido está em crise
isto é, da capacidade do povo de influenciar o porque não consegue conter mais encapsulado o
governo e suas políticas, seja por eleições, seja processo normal de competição entre os diver-
por outros meios democráticos” (WEFFORT, sos segmentos sociais. Ao mesmo tempo, ainda
1992, p. 21-22). não se desenharam com clareza os marcos
institucionais que irão balizar a evolução histórica
E isso apesar das possibilidades de participa-
futura” (SANTOS, 1993, p.37-38, sem grifos no
ção formalmente facultadas pela Constituição de
original).
1988 (cf. BENEVIDES, 1991). Segundo a pers-
pectiva de Weffort, o Brasil vive presentemente E o problema não se limita ao sistema de
um sistema dual, que opõe marginalizados e inte- intermediação de interesses corporativos. A “gran-
grados, estes últimos os únicos a acessar os me- de política” (parlamento, partidos, eleições) tam-
canismos de participação. Assim, embora a bém continua refém de uma institucionalidade
institucionalidade democrática formal faculte a informal herdeira da tradição clientelista e autori-
possibilidade de influência, a marginalização de tária que concorre com o “pacote institucional”
caráter sócio-econômico, que diminui a capaci- poliárquico e obstaculiza sua implantação efetiva.
dade de organização dos grupos sociais — ao lado
O importante a destacar aqui é que em dife-
da influência da institucionalidade clientelista ain-
rentes oportunidades, ao longo do processo de
da existente sobre os comportamentos desses
democratização — seja no momento seminal da
setores desorganizados — tem vedado seu exer-
campanha das diretas, seja no processo Consti-
cício de fato.
tuinte, seja na eleição presidencial de 1989 —
Diante destas e de outras questões que não é houve oportunidades históricas para escolhas
possível abordar aqui, seria no mínimo enigmáti- políticas que privilegiassem a institucionalização

115
DEMOCRACIA E MOBILIZAÇÃO SOCIAL

da poliarquia em detrimento da manutenção de não mais populistas), justamente porque esta via
traços institucionais autocráticos e tradicionais. lhes possibilitou o acúmulo de recursos políticos
necessários para fazer frente aos adversários
Nesse sentido, apenas indicarei uma questão
controladores do aparelho de Estado.
— a ser desenvolvida em outra oportunidade —
que pode iluminar a análise da construção desta Por outro lado, a recepção da ideologia
institucionalidade híbrida e do estreitamento rela- neoliberal no Brasil operou-se com o intento, en-
tivo dos espaços de mobilização sob a democra- tre outros, de contrapor-se à ética pública por
cia recente. Trata-se da constituição, nas déca- assim dizer “tocquevilleana” surgida nos anos
das de 1980 e 1990, de dois pólos político-ideo- setenta. A esta ética associativista e solidária a
lógicos distintos na política brasileira. Cada qual ideologia neoliberal contrapôs uma ética de mer-
gestando e procurando implementar modos di- cado, privatista e pré-liberal-democrática, como
versos de enfrentamento das questões fundamen- uma de suas contribuições para a formação das
tais do processo de democratização, ou seja: o atitudes e para o balizamento do comportamento
problema do Estado — a crise fiscal/financeira e dos atores. Uma ética de mercado que associou-
a crise do poder público (poder de Justiça e de se intimamente, por sua vez, à tradição clientelista
polícia, manutenção da ordem etc) —, o proble- e autocrática cultivada tradicionalmente pela di-
ma da estruturação do regime — no que respeita reita. No Brasil, mesmo sem a presença da rela-
ao mencionado conflito entre a institucionalização ção entre os interesses organizados e o Welfare
do “full package” poliárquico em meio às remi- State, que tornara-se o alvo mais imediato das
niscências oligárquicas — e o problema da parti- críticas neoliberais nos países industrializados, tal
cipação — relativa tanto às tecnologias ideologia não deixou de voltar-se contra a
institucionais de contenção da participação da recentíssima organização política dos trabalhado-
sociedade organizada e mobilizada, inseridas ou res e dos segmentos populares. Os atores que
mantidas mesmo em contexto democrático, quan- compuseram este pólo buscaram enfrentar a cri-
to às barreiras sócio-econômicas limitativas da se financeira do Estado a partir das noções de
participação de amplos setores inorgânicos da Estado mínimo e das reformas orientadas para o
sociedade brasileira. mercado (que assentam-se sobre a idéia de
desregulamentação dos direitos sociais) e, nesse
Por um lado, o campo ético-político gestado
processo, mais valeram-se das reminiscências
a partir dos movimentos populares urbanos e do
institucionais oligárquicas do que buscaram es-
novo sindicalismo da década de setenta espraiou-
tabilizar uma ordem institucional de perfil
se para o espaço público de abrangência nacio-
poliárquico. Do mesmo modo, no intuito de ob-
nal, especialmente com a formação do PT e sua
ter a margem de manobra adequada ao enfoque
ascensão eleitoral durante os anos oitenta e no-
tecnocrático e centralizador de gestão econômica
venta. Esses atores, basicamente polarizados em
e de implementação das políticas de estabilização
torno da esquerda partidária e do sindicalismo de
monetária por eles adotado — em nome, mais
tradição combativa, buscaram tratar o problema
uma vez, da governabilidade —, apostaram na
do Estado a partir da idéia de desprivatização,
contenção da mobilização da sociedade organiza-
isto é, da remoção dos enclaves empresariais de
da e na cooptação (desta vez por via dos media e
suas posições privilegiadas frente ao aparelho de
do marketing político) das amplas parcelas de-
Estado e do aumento de transparência na relação
sorganizadas da população, seja no âmbito do
deste corpo estatal com a sociedade, e isso como
conflito distributivo, seja no âmbito do processo
uma fórmula para a superação da crise financeira
eleitoral.
e de autoridade pública de que padece o Estado
brasileiro; assim como buscaram tratar o proble- O segundo pólo, como se sabe, vem se tor-
ma do regime no sentido da equalização regrada nando crescentemente hegemônico, mas as re-
da competição política (sem “casuísmos” e correntes crises econômicas internacionais e os
particularismos) e, portanto, no sentido da avanços eleitorais da esquerda doméstica apon-
poliarquia; e, finalmente, buscaram tratar do pro- tam para um acirramento do conflito e, com ele,
blema da participação enquanto mobilização da novos picos de mobilização.
sociedade organizada em moldes autônomos (e
Recebido para publicação em janeiro de 1998.

116
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 12: 99-119 JUN. 1999

Alberto Tosi Rodrigues (tosi@politica.pro.br) (http://www.politica.pro.br) é Mestre em Ciência Política,


Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e Professor de
Ciência Política e Sociologia do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES).

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