neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)
Abrindo a mente
Os caminhos da mente humana são um assunto delicioso, embora
ocasionalmente espinhoso. Várias vezes, no período de perguntas após palestras, em programas de rádio ou em e-mails motivados por algo que escrevi, recebo a crítica de que a ciência (e a neurociência, em especial), ao reduzir a mente a um punhado de matéria, remove o divino da existência, despe a vida de poesia e de mistérios.
O reducionismo científico, afinal, não é um grande engano da
ciência – uma crença, errônea, de que todo comportamento ou fenômeno poderia ser reduzido a moléculas?
Em vez de ficar chateada com essas perguntas, adoro respondê-
las. A resposta longa começa com a lembrança de que René Descartes, o pensador francês que bolou o método do reducionismo, buscava uma maneira de abordar aquelas questões tão incrivelmente grandes e complexas que desafiavam tentativas de compreendê-las em toda a sua extensão. Descartes, então, propôs quebrar inicialmente tais questões em partes menores, essas sim abordáveis. Compreendidas as partes, torna-se possível passar ao nível seguinte: entender como elas se encaixam e como, da sua interação, emergem outras propriedades, não explicadas pelas unidades.
Esse, o real reducionismo, funciona tão bem que até hoje é
empregado – com sucesso! – como parte do método científico, a busca sistemática por entender como moléculas se arranjam em estruturas que se organizam em níveis cada vez mais complexos, de cuja interação emergem habilidades extraordinárias como o pensamento.
A resposta curta, no entanto, é que eu discordo que a ciência dispa
a vida de poesia, mistérios e encantamento. Minha convicção surgiu no dia em que, sentada à mesa da sala para fazer um trabalho de bioquímica para a faculdade, levantei os olhos para observar minhas primas, crianças, pulando às gargalhadas sobre o sofá- cama aberto. Naquele momento, entendi que a bioquímica do livro estava nos corpinhos das minhas primas – e passei a enxergá-las como dois punhados de moléculas organizados de uma maneira tão maravilhosa que se transformavam em crianças, capazes de brincar, rir, ganhar consciência – e de me fazer amá-las.
Se a ciência mostra que somos punhados de moléculas
organizadas de formas específicas que nos tornam capazes de nos apaixonar, de querer o bem e até de achar nossa existência um milagre, ela só torna a vida ainda mais extraordinária. Moléculas não pensam – mas, se de sua organização nasce a mente, isso não é poesia pura? SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br
[...] Moléculas não pensam, mas, se de sua organização nasce