Você está na página 1de 2

ABRINDO A MENTE

25-10-2007

NEUROCIÊNCIA

Por Suzana Herculano-Houzel


neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro
Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em
Transformação" (ed. Objetiva)

Abrindo a mente

Os caminhos da mente humana são um assunto delicioso, embora


ocasionalmente espinhoso. Várias vezes, no período de perguntas
após palestras, em programas de rádio ou em e-mails motivados
por algo que escrevi, recebo a crítica de que a ciência (e a
neurociência, em especial), ao reduzir a mente a um punhado de
matéria, remove o divino da existência, despe a vida de poesia e de
mistérios.

O reducionismo científico, afinal, não é um grande engano da


ciência – uma crença, errônea, de que todo comportamento ou
fenômeno poderia ser reduzido a moléculas?

Em vez de ficar chateada com essas perguntas, adoro respondê-


las. A resposta longa começa com a lembrança de que René
Descartes, o pensador francês que bolou o método do
reducionismo, buscava uma maneira de abordar aquelas questões
tão incrivelmente grandes e complexas que desafiavam tentativas
de compreendê-las em toda a sua extensão. Descartes, então,
propôs quebrar inicialmente tais questões em partes menores,
essas sim abordáveis. Compreendidas as partes, torna-se possível
passar ao nível seguinte: entender como elas se encaixam e como,
da sua interação, emergem outras propriedades, não explicadas
pelas unidades.

Esse, o real reducionismo, funciona tão bem que até hoje é


empregado – com sucesso! – como parte do método científico, a
busca sistemática por entender como moléculas se arranjam em
estruturas que se organizam em níveis cada vez mais complexos,
de cuja interação emergem habilidades extraordinárias como o
pensamento.

A resposta curta, no entanto, é que eu discordo que a ciência dispa


a vida de poesia, mistérios e encantamento. Minha convicção surgiu
no dia em que, sentada à mesa da sala para fazer um trabalho de
bioquímica para a faculdade, levantei os olhos para observar
minhas primas, crianças, pulando às gargalhadas sobre o sofá-
cama aberto. Naquele momento, entendi que a bioquímica do livro
estava nos corpinhos das minhas primas – e passei a enxergá-las
como dois punhados de moléculas organizados de uma maneira tão
maravilhosa que se transformavam em crianças, capazes de
brincar, rir, ganhar consciência – e de me fazer amá-las.

Se a ciência mostra que somos punhados de moléculas


organizadas de formas específicas que nos tornam capazes de nos
apaixonar, de querer o bem e até de achar nossa existência um
milagre, ela só torna a vida ainda mais extraordinária. Moléculas
não pensam – mas, se de sua organização nasce a mente, isso não
é poesia pura?
SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da
UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira &
Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)

suzanahh@folhasp.com.br

[...] Moléculas não pensam, mas, se de sua organização nasce


a mente, isso não é poesia pura?

Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq2510200706.htm

Você também pode gostar