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A Estranha
A Estranha
As horas que Nilson passou encolhido sob a escada naquele beco escuro não
haviam sido entediantes como ele imaginara, ou como qualquer um poderia
supor de uma longa espera de mais de oito horas. Apesar das condições
extremamente desconfortáveis, de ficar agachado, escondido no vão formado
por duas fedorentas lixeiras, ele saboreara cada minuto, imaginando a cena,
quadro a quadro, do que iria acontecer quando estivesse frente a frente com
ela.
Tudo que ele sabia sobre ela era o primeiro nome: Sabrina. Sobrenome: nem
fazia idéia. Aliás, tudo sobre Sabrina parecia terminar em perguntas para as
quais ninguém tinha resposta. O que era mais estranho ainda era que, desde
que ele a conhecera três semanas atrás, eles haviam se visto praticamente
todas as noites e conversado por longas e longas horas.Conversado talvez não
fosse exatamente o termo. Ela quase não falava, ele é quem acabava falando
sem parar. Estranho, pois normalmente ele era muito reservado e bem, uma
mulher que fala pouco é sempre algo estranho, não é?
Eles haviam se conhecido num barzinho da zona leste, videokê até a meia-
noite, samba ao vivo até o último cliente. Ela chamara a atenção dele por três
motivos: primeiro, porque ela era um absurdo de linda; o segundo, porque a
palidez da pele dela sozinha já era bastante chamativa e quando comparada
aos habituais tons morenos e negros da pele dos outros freqüentadores, ela
praticamente brilhava no escuro do bar. Terceiro, e este era o motivo mais
estranho, era que ela não tirava os olhos dele, como se estivesse hipnotizada.
Como Nilson bem sabia, ele era tudo, menos boa pinta. Não que fosse feio, ele
era algo mais complicado do que isso. Nilson era extremamente... comum. Era
tão comum que normalmente acabava entrando e saindo sem que ninguém
percebesse. E também não era um cara cuja atitude e postura pudessem
justificar o olhar fixo que aquela mulher maravilhosa lhe dirigia, parecendo
sonhar em devorá-lo vivo e impaciente por ver chegar logo este
momento.Nilson era essencialmente um perdedor e isso se traduzia na sua
postura, em seus ombros caídos e andar meio cabisbaixo.
Nilson era aquele tipo de cara que até que todo mundo simpatiza com ele, que
todo mundo define como um carinha legal, mas ninguém chama pra festa, só
chama quando precisa que ele faça alguma coisa. As irmãs - e ele tinha um
monte delas - ligavam para pedir ajuda em tudo: para levá-las para fazer
compras no mercado, para trocar botijão de gás, para consertar torneira
pingando, para trocar cartucho de impressora, todas as tarefas que
normalmente um marido faria, com exceção de sexo. Ele detestava esses
chamados, mas a absoluta ausência de qualquer coisa que parecesse com
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uma vida social faziam com que ele não tivesse uma desculpa pra não ir. Só
tinha parado naquele barzinho porque era aniversário de uma colega de
serviço e, como ela errara na hora de enviar o convite por e-mail, este acabara
indo para todos os funcionários do administrativo. Até para o Nilson. Ele sabia
que não havia sido convidado de verdade, mas que diabo: se ficasse em casa,
sabia que alguma das irmãs ia arrumar alguma coisa para ele fazer. E isso era
tudo que ele não queria.
Porém ali, naquele momento, para aquela mulher, Nilson parecia o mais
delicioso macho já nascido na face da Terra, e ela não parecia disposta a
perder a oportunidade. Ainda que o olhar fixo dela tenha parecido durar uma
eternidade, segundos depois de ele ter percebido que ela olhava para ele, ela
se aproximou da mesa onde ele estava sentado. Taí outra coisa sobre ela da
qual ele não se lembrava: de vê-la atravessando o salão para chegar na mesa.
Quando tentava se lembrar, parecia que ela simplesmente havia se
materializado ao lado dele.
- Olá! Meu nome é Sabrina! Está sozinho? - a voz ligeiramente rouca traduzia
um leve sotaque, que ele não conseguia identificar de onde era. A partir desta
pergunta, começavam um sonho e um pesadelo.
Uma manhã, Nilson acordou sentindo frio, muito frio... E logo a confusão
mental de quem está acordando foi substituída por uma confusão ainda pior: a
de quem acordou e descobriu estar tudo errado. Era óbvio que estava frio...
ele estivera dormindo na rua! Acordara e se descobrira caído num beco,
cercado pelos homens do resgate. Sua camisa estava em frangalhos, a calça
estava suja - ele havia se mijado todo, seus sapatos haviam desaparecido. Sua
pele apresentava profundos arranhões, como se ele tivesse brigado com uma
onça. Havia um pequeno corte em seu pescoço, mas que apesar de pequeno,
era bem profundo e, para desespero do paramédico que o atendia, não
fechava de forma alguma.
Foi levado ao hospital, onde precisou ser submetido a uma pequena cirurgia
para fechar o corte em seu pescoço. De acordo com o cirurgião, o corte fora
banhado com algum tipo poderoso de anti-coagulante, o que impedia o seu
fechamento. Se não tivesse tido a sorte de ter sido encontrado por um grupo de
adolescentes que voltava de uma festa, teria ficado ali, caído naquela calçada,
sangrando até a morte.
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Após a alta do hospital, Nilson voltou ao seu apartamento e descobriu que este
havia sido vendido, bem com seu carro. Sua conta bancária tinha sido
esvaziada e seus investimentos, zerados. Estava sem nada. E descobriu que
estava sem nada porque ele mesmo tinha feito tudo aquilo: vendido casa,
carro, esvaziado as contas. Não soube o que dizer quando viu-se na filmagem
da câmera de segurança do banco, retirando todo o dinheiro de sua conta. Só
lhe restou sentar em um banco de praça e chorar.
Foi ao puteiro algumas vezes, tomando todo o cuidado para não transparecer
que fora ali para investigar, não para transar. E logo foi recompensado com as
informações que queria por uma das meninas, uma moreninha até que
bonitinha, mas que tinha o defeito de não parar de falar nem por um minuto.
Ficou sabendo por ela que no prédio do lado funcionava uma tecelagem
clandestina, onde imigrantes ilegais da Bolívia trabalhavam em regime semi-
escravo e que, no porão, morava uma mulher meio maluca, que devia ser
garota de programa, porque saia todas as noites usando roupas bastante
sensuais e só voltava de manhã. Ninguém jamais a vira na região durante o
dia. Como ela não fazia concorrência direta com as garotas do puteiro,
ninguém se interessara por ela. Devia ser alguma drogada, que fazia programa
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para sustentar o vício. Ela devia ser gringa, também, porque tinha a pele
branca demais pra ser brasileira. Nessa hora, Nilson teve certeza: era Sabrina.
Com a ajuda do dono do bar onde tomava café todos os dias, Nilson chegou a
um traficantezinho de drogas que lhe vendeu uma arma fria e munição. E agora
estava lá, aquela hora, esperando como um louco o momento em que ela
chegasse, o momento em que teria sua vingança.
Acompanhada do homem, ela entrou pelo beco, desceu uma pequena escada
que levava a uma porta, a qual ela abriu sem auxílio de chave. Parecia confiar
tanto que ninguém entraria ali que não se preocupava com a segurança. Ela e
seu acompanhante entraram, mas nenhum dos dois acendeu a luz.
Mas o que Nilson viu, dentro do porão do prédio, ele jamais poderia ter
imaginado, mesmo em seus pesadelos mais insanos.
Nilson ficou horrorizado com aquela cena, mas sentiu também um certo alívio,
proporcionado pela explicação de um entre tantos mistérios: a origem dos
arranhões profundos em seu próprio corpo.
Tornando tudo ainda mais estranho - Deus, onde toda aquela loucura iria
chegar? - Sabrina começou lentamente a lamber o sangue que escorria das
feridas no peito de sua silenciosa vítima. E, com o sangue que absorvia, seus
olhos começaram a assumir um tom de vermelho, a princípio muito pálido mas
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que foram se intensificando cada vez mais, até que lágrimas de sangue
começaram a escorrer deles.
Mas o que estava por vir faria Nilson duvidar ainda mais de sua sanidade.
Com uma das mãos, Sabrina levantou a cabeça do rapaz, expondo seu
pescoço. E de sua boca, uma gosma incolor começou a escorrer, em
abundância, e ela derramou esta gosma por sobre o pescoço do sujeito. Com a
longa unha do indicador da outra mão, em um gesto rápido e preciso, rasgou a
pele e cortou a jugular de sua vítima. O sangue, que em condições normais
espirraria longe, foi segurado pela gosma extremamente viscosa, passando
apenas a escorrer sobre o peito do desconhecido. Ela então se debruçou sobre
ele e começou a sorver aquele sangue em goles generosos, como quem
saboreia com calma uma deliciosa taça de vinho.
Com o corpo paralisado pelo medo, assim como a vítima dentro do porão,
Nilson assistia a tudo com o cérebro funcionando em desesperada batalha pela
sanidade.
Seria o revólver em seu bolso capaz de destruir uma criatura como aquela?
Será que ele precisava de balas de prata? E onde arrumar tal coisa numa hora
daquelas? Tinha apenas uma coisa a seu favor: aquele prédio era uma
tecelagem, e tecelagens tendem a pegar fogo muito fácil. Especialmente as
clandestinas, que não cuidam de manutenção.
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Se fosse um filme de terror, ele iria entrar e enfrentar a criatura, mas este não
era o caso. Ele não iria fazer uma imbecilidade daquelas. Pelas explorações
que fizera no bairro ao planejar sua vingança, sabia que algumas quadras
abaixo, na avenida principal, havia um hipermercado 24 horas, no qual também
havia um posto de gasolina.
Jogou seu revólver e as balas dentro de uma das lixeiras, não queria correr o
risco de ser parado pela polícia e ser detido por porte ilegal de armas. Procurou
atravessar a distância entre o covil da criatura e o posto de gasolina da
maneira mais discreta possível, rezando muito para não ser assaltado, rezando
ainda mais para que aquela coisa não o seguisse.
A rua logo ficou cheia de curiosos e Nilson tratou de se misturar a eles o mais
rápido possível. Gritos desesperados vinham de dentro da tecelagem: eram os
trabalhadores semi-escravos. O prédio estava trancado por fora. Quando os
bombeiros chegaram, tiveram de usar de machados para abrir as portas.
Nilson observava todos os que saíam da tecelagem, por seus próprios pés ou
resgatados pelos bombeiros. Nenhuma das vítimas sequer se parecia com
Sabrina. Ele permaneceu lá até o fogo se extinguir, no meio da tarde. Não viu
nada que indicasse que o monstro pudesse ter sobrevivido ao incêndio. O
acontecimento teve ainda um efeito colateral muito útil: com a exposição da
situação dos bolivianos na imprensa, o empresário que os escravizava foi
preso. O incêndio ajudara a destruir outro tipo de monstro.
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Nos dias seguintes, Nilson pesquisou tudo que pode sobre o fato. Fingindo-se
de parente de uma desaparecida, foi aos hospitais da região e não localizou
nenhuma vítima do incêndio cuja descrição batesse com a de Sabrina. Entre
médicos, policiais e bombeiros, não achou ninguém que tivesse sequer noção
de que havia uma moça como aquela morando naquele porão. Entre os corpos
das vítimas fatais, todos foram identificados e nenhum era dela.
Nilson retomou então sua vida. Ter sido capaz de vencer uma força
sobrenatural daquelas desenvolveu muito sua auto estima. Arranjou um novo
emprego, mandou as irmãs se virarem para resolverem seus problemas
sozinhas e começou a freqüentar a vida noturna. Todas as mulheres que
conheceu, daí para frente, eram absolutamente normais. Ele nunca mais teve
notícias de Sabrina ou de qualquer outra criatura sobrenatural como ela.
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Por isso achou tão estranho aquela linda mulher de cabelos negros e pele tão
pálida estar olhando para ele com tanto interesse...
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Sobre o Autor
Sobre a Obra
O conto “A Estranha” foi escrito em 2009 e publicada pela primeira vez no site
do “Recanto das Letras” (www.recantodasletras.uol.com.br/autores/edsontomaz)
e hoje faz também parte do acervo do Letras de Sangue.
Licenciamento da Obra
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