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Ana Caroline Ribeiro – 2010

Precioso ensopado
Teresinha nunca havia tido muita sorte com as coisas da vida. Ou, pelo menos,
era assim que via sua própria história: um tanto quanto azarada, além de muito
ordinária. Se pudesse pintá-la, na certa não sairia da nuance cinzenta.
Sem grandes casos para contar aos filhos quando a curiosidade infantil teimava
em revirar cada canto do passado da mãe preta, a cozinheira, com calma, reafirmava não
haver muito que dizer.
Nascida e criada no interior de Minas Gerais, chegou ao mundo como a quarta
filha de um casal que só fazia plantar. Ganhou ainda, mais quatro irmãos e ficou sendo,
então, a herdeira do meio. Da posição, não lucrou muita coisa, pois não sendo nem a
filha mais velha, nem a mais nova, não teve direito aos cuidados extras normalmente
oferecidos aos que, por sorte, assim nascem.
Aos dezoito anos, decidiu dar um novo rumo para a própria vida e, então,
caminhou. Caminhou até seus pés, sujos de terra, mancharem o asfalto da cidade
grande. Para trás, não precisou deixar mais do que uns poucos conhecidos e a tristeza da
mãe ao vê-la partir. Sem estudos, foi fazer aquilo que mais sabia: cozinhar, ofício que,
até hoje, paga o sustento de seus cinco filhos.
Seu marido é um homem bom para os moleques. Já ela, há alguns anos que
cultiva por ele um sentimento que não o amor, mas que também não sabe definir ao
certo o que é. Quem sabe seja piedade. Compaixão por alguém que reconhece não ter
sido o que sonhou.
Para o serviço, acorda cedo e, ligeira, passa por entre sabores e cheiros da feira
escolhendo o prato do dia, sem nem perceber a beleza do colorido das frutas. A patroa
exige ingredientes frescos. Frango, só se morto no dia.
Trabalha com o rádio ligado à janela da cozinha. O locutor se tornou seu amigo
mais próximo, para quem ela pode, em tom maior, cantar sem sentir pesar o julgamento
dos ouvidos alheios. E, então, cozinha e canta. Canta e cozinha e se encanta quando o
locutor traz as notícias dos astros. Teresinha torce para que o amigo anuncie a mudança
que tanto espera para sua sorte. Não sabe se virá de plutão ou de netuno. Mas, de que
importa? Nada entende de astros. Importante mesmo é que a mudança venha, mesmo
que por milagre ou acaso.
Viveu assim até a semana em que a patroa ficou doente, quase sem sair da cama.
Teresinha correu a ajudar como pôde e lembrou-se da mãe, que ensinou: doença se trata
é com um bom ensopado de galinha.
Atendendo a preferência da patroa, o animal foi comprado ainda vivo e a
cozinheira se encarregou do abatimento. Começou pelo pescoço, depois penas, pele. E
foi então que o mundo se coloriu. Não pelo vermelho do sangue, ainda quente. Mas pela
firmeza de um objeto verde, duro feito pedra, que encontrou dentro da galinha.
Sua história sem estudos não impediu que reconhecesse ali a mudança de vida
que tanto esperava. Tratava-se de uma jóia rara, uma pedra preciosa que a galinha,
agora morta, havia trazido dentro de si para ela, a Teresa sem sorte. Estava feito. Não
foram os astros os responsáveis pelo novo destino da cozinheira, mas, sim, a terra, a
mesma terra que havia sujado seus pés por anos seguidos e que, agora, lhe oferecia o
que talvez seja sua criação mais delicada: uma esmeralda.
Lavou a pedra, examinou-a bem e guardou o objeto no lugar mais seguro que
pôde. Desejou abraçar a galinha, beijar o animal erguê-lo aos céus para agradecer. Mas
tudo que fez foi jogá-lo na panela e terminar o ensopado.
Foi atrás de confirmar sua suspeita sobre a pequena pedra. Seria mesmo uma
esmeralda? E como descobrir quanto lhe rendeira o achado? Centenas, milhares,
milhões? Com receio, confiou o objeto aos olhos do joalheiro. Contou o causo, cheia de
expectativa. Em instantes, espanto para o senhor, alívio para Teresinha – realmente se
tratava de uma esmeralda.
A cozinheira correu para casa em atropelos de ideias e alegrias. Mas antes que
pudesse chegar ao seu destino, parou para contar a novidade à empregada da vizinha.
Vendo a euforia do momento, o feirante que passava foi logo se interando do
acontecido, para seu total espanto. E, de espanto em espanto, a vizinhança toda tomou
nota do que havia ocorrido com a cozinheira preta, que dizia não ter boa sorte.
Em poucos dias, a história ganhou espaço nas manchetes do jornal. Lá estavam:
Teresa preta, a pedra verde e a galinha, cuja cor não vem ao caso. Não aquela galinha,
que já tinha virado ensopado e curado a patroa. Outras, muitas outras, diferentes por não
possuírem uma pedra preciosas que fosse, no papo.
Quando entrevistada, Teresinha responde a quem quer que pergunte sobre qual
mudança a pedra trouxe para sua vida: agora, quando a curiosidade dos netos teimar em
querer ouvir histórias narradas pela avó, a cozinheira poderá dizer, com calma, que
possui ao menos um caso, de um colorido esverdeado, para ilustrar sua trajetória de
mato, terra, cozinhas, ensopados, galinhas e, agora, esmeralda.

Publicado em 08/04/2010 às 21h17 no portal R7

Mulher compra galinha que engoliu esmeralda

Ela havia comprado o bicho em uma granja vizinha para preparar um ensopado

Uma cozinheira encontrou uma pedra preciosa no papo de uma galinha em


Betim, na região metropolitana de Belo Horizonte. Ela havia comprado o bicho em uma
granja vizinha para preparar um ensopado.

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