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A arte de subir às estrelas

Daniel De Simone - 1998


A ARTE DE SUBIR ÀS ESTRELAS:

Chico.
O mestre dos olhos famintos.
Das feridas que somem, atacadas com versos desvairados.
Empoeirados de amores proibidos.
Do giz que molha tuas mãos e desenha mistérios, de duras
realidades.
Do espião de borboletas no fundo do oceano.
Da criança que sabe. Que tudo é nada. Que nada é suficiente
para saciar tremenda fantasia.
Do sábio. Do poeta que abre as portas das mentes ociosas. Dos
corações solitários.

Viver a vida profundamente, sabendo que levá-la muito a sério


seria perigoso para seres tão sensíveis.
Um homem que arrisca para aprender os segredos. Para semear
os prazeres e espalhá-los pelas praias. Salgadas pela maresia.
Coberta de saias.

Chico. O mestre.
Intruso libertino.
Tua poesia abre trilhas em mares vermelhos. Em vidas insensíveis.
Me consola saber que és perigoso para o mundo. Necessário
para a vida.

Eu diria que és um pescador.


De loucas agonias. De glórias permitidas. De amantes
esquecidos. De luzes derradeiras. De amores torturados. De
verdes fantasias. De rosas melodias. De penas corriqueiras. De
guerras domingueiras. De homens derrotados. De morros
suburbanos. De sangue na garganta.
De mortes. De cores. De dores.
Da vida.
Fotógrafo frustrado. Eterno fisgador.

Chico. O grande Chico místico. Que engole a vida e


fala com ela em tardes de Gávea e chopes
redimidos.

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Cavaleiros. Bailarina. Funcionários. Enforcados. Mulheres.
Estrelas. Meninos. Cabides. Pigméus. Poeira. Diamantes.
Malandros. Lábios. Seios. Bocas. Cheiros. Vinho. Bandeiras.
Turistas. Beijos. Amores. Portas. Montanhas. Palavras.
Trapaças. Pedras. Latas. Gravatas. Viúvas. Choro. Conselho.
Gavetas. Milagres. Corpos. Pecados. Tristeza. Tijolos.
Valsinhas. Carências. Delícias. Carícias. Sonhos. Guerra.
Veneno. Fado. Sangue. Gritos. Silêncio. Mulata. Pedaço.
Cinema. Boteco. Fisgada. Castigo. Mágoa. Noite. Amantes.
Domingo. Calma. Governo. Vergonha. Amigos. Cigarro.
Fogueira. Samba.
Flores. Trevas.
Maresia. Marelua.
Cálice. Lágrima. Bêbados.
Praia. Deus. Pão. Chão. Vento. Amor. Hortelã. Alecrim.
Folhetim. Carnaval.
Lençóis. Jasmins. Coqueiros. Fontes. Sardinhas. Mandioca.
Azulejo. Roupa. Juízo. Sabonete. Violão.
Rua. Tempo. Rua.
Tatuagem. Açúcar. Mar. Noiva. Olhos. Feijoada. Futebol.
Fantasia. Agonia. Vadia. Baldia. Orgia. Hemorragia.
Emoção. Coração. Gol. Sol. Almanaques. Prostitutas.
Tamborim. Quimera. Primavera. Lei. Cordão. Liberdade.
Nascer. Sorrir. Agredir. Adorar. Enfeitar. Seduzir. Infernizar.
Rezar. Cuspir. Chorar. Cantar. Gemer. Amar. Rasgar. Tirar.
Gritar. Comer. Trair. Sonhar.
Viver.
Palavras que pintaram o mundo. E criaram tua história.

Teu pentagrama é uma aquarela. Que aprende com o


passo do tempo. Que amamenta crianças com goles de
palavras. Com visões necessárias. Com chutes desenhados
no espaço. Com flores que assemelham-se à alegria.

Sem saber o que iria acontecer, criaste


uma Banda. Saíste pelo mundo num
voo rasteiro e tocaste o céu. Nunca
acreditaste muito nas alturas. Porém,
subiste por luas misteriosas. Por pedras
moribundas. Por mares escondidos.

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Chico. Driblaste a censura como enorme
centroavante. E soubeste nadar no
imenso mar. De tanto amar.

Atenas. Amsterdam. Managua e Porto


Rico. Belém. Manaus. Tocantins. Maceió.
Rio.
Buarque infinito. O lógico exultante. O
contador de delírios.
Aquele que sabe que todo "vai passar"

Teus tijolos cresceram. Cresceram. Paredes de valsinhas.


Sambinhas eternos.
Com desalento, olhaste a Maria sem esquecer a Ligia. E criaste
um Fado Tropical que calou a boca de Bárbara.

Chico. Aquele que dominou a arte de subir às estrelas. Na


solidão da meia noite. Sem contar pra ninguém.

Chico. Aquele do urbano coração. Que pouco sabe de raios


matinais. Que faz amor com as luzes da noite.

Só queria te dizer que hoje é a alegria. De saber que dos


infernos sempre surges. Para ferir a lógica do tempo.

Teu silêncio ofende. Teus versos deleitam. Euforizam como valsa


brasileira.

Chico. O demócrata criador. Que despe a arte sem esquecer


sua gente. Que grita em forma de acalanto. Que cria luz para
crianças. Castelos para adultos. E circos para sábios.

Obrigado, Chico. O turbilhão de palavras levadas pelo vento.


O amante furtivo. O mendigo voador. O rebelde favelado.
O burguês mais pobre do Brasil.

Na época das trevas, entraste no mar com fúria indecente.


Esperaste além-mar com calma coerente. Porém, o teu
desânimo foi do trágico criador de esperanças. Foi quando
teus versos convidaram à raiva. Ela veio decidida, poderosa.
Contudo, serenamente, ela foi virando poesia. Aos poucos, os
versos foram saindo do oceano. Dançando com gente
humilde. Assim, as frases beliscaram um mar obsoleto. Até virar
beldades incontidas pelo tempo. 4
Obrigado, Chico. Tua poesia é algo assim como ouvir o canto
da vigília. Precisa e preciosa. É parir em dias solitários. Sem
doutores. Diria que é penetrar em campos cheios de espinhos.
Ou quiçá tua música seja uma conselheira. Uma companheira
de sois distraídos, que sobem a eternas montanhas e banham
corações sombrios. Quem sabe.
Talvez seja dormir ao lado de pérolas, embebidas de sonhos nus.

Ansiei por muito tempo a leitura do teu segredo. Embora saiba


algo sobre ele, é só teu. Por sempre.
Contudo, resta-me o consolo de ser teu amigo. De saber como
alguém fez com que a lua fosse atingível. De embriaguez e
sonhos de carnaval. Delineaste na areia as marcas mais íntimas
do universo. E apagaste sombras medonhas, de olhos vidrados.
Teu sono me acorda. Me leva a barcos que incendeiam águas
amargas, desafiando a sutil calmaria do vinho. Arquibancadas
lotadas de memórias e euforias. Que penetram na mente do
afogado e furam paredes algemadas. Fustigadas.

Obrigado, Chico. Enfermeiro fantasiado de


poeta.

Procurei. Indaguei. Pesquisei. Busquei. Atraído,


entrei em nuvens e porões. E o sol raiou, como
fruta madura.
Agora, estou feliz. Em algum coqueiro, terei a lembrança de um
homem chamado Francisco.

Quero que saibas que o orgulho de partilhar teu tempo


assemelha-se à algaravia das esmeraldas, que percorrem
lamentos. Simplesmente teu leito é de alforria, em tempos
difíceis, de lirismo difícil. De muitos. Para poucos. De poucos.
Paratodos. Porque vozes silenciosas ainda caminham em urbes
de lata. E o lirismo navega na pele de milhões, vestindo àqueles
que ainda lutam. Eles sabem que terão uma canção tua, para
desabafo da alma, e conforto do coração.
Palavras desenhadas pela noite.
Obrigado, Francisco. Pelas tardes de solidão, de sólida
companhia. Os fados tropicais mais belos, que surgem da
cachaça e jogam bola nos prédios do Rio. Teu Rio. As favelas
transvestidas em mansões. Os pivetes limpos de tanta sujeira.
Pendurados dos faróis, em macas de brinquedo, brincando com
o vento. Esquecendo os para-brisas. Pulando em para-quedas.
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Alvoradas de neon. Criadas em laboratórios sub-marinos.
Acordes que penetram nas veias e as iluminam até ficarem
sem fala. Corpos perdem força e relaxam. Rostos voam, dando
quixotescas risadas. Permitindo à mente confundir-se com
memórias.
Música valeriana. Em doses justas.
Útero de violão. Testemunha de nascimentos súbitos,
milagrosos. De vidas novas. Teus filhos. Acordes que chovem
em mares de rosas.
Uma música se rebela. Teimosa, não quer sair. Resistindo à
pressão externa. Ela quer ser perfeita, ainda que demorada.
Partos dourados, duradouros. No fim ela surge, em prantos
fortes, que dissipam julgamentos.

Um homem chamado simplesmente Francisco. Autor das mais


ousadas invenções do ser humano. Da humildade, por
exemplo. Cultor de enormes melodias, saíste à rua quando
necessário.
Francisco, teu espaço será imitado em outros tempos. Talvez, os
dois dormidos, debaixo de uma sombra de verão. Será o nosso
momento de abrir outras trilhas, igualmente valiosas.
Francisco, meu velho, o que será, naquele dia, de noites de
carvão, andorinhas.
Descobrindo palhaços traficantes de sorrisos.
Meu Francisco, o Francisco do meu tempo.

As palavras que engravidam esta folha, são inúteis narrações


de beleza.
Elas tentam te descrever. Mas não conseguem. Será preciso
ouvir-te. Ler-te. Até o fim.
Para desvendar o prazer da arte.
A arte de subir às estrelas.

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A arte de
subir às
estrelas
pertence ao livro

“Chico Buarque e as feridas de delícia”

-Daniel De Simone-1998

Daniel De Simone- TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

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