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Roberto Axe

CONTOS
CURTOS

1
ÍNDICE

Pág. 3 .................................................O QUADRO


Pág. 6.......................................................O PINGO
Pág. 9.........................................................O POTE
Pág 12..........................................O MORIBUNDO
Pág 15.................................................O ESPELHO
Pág. 17.....................................................A PORTA
Pág. 19....................................................A GOSMA

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O QUADRO

A velha tinha saudade de quando era velha... agora


julgava-se 'muito velha'. Passava os dias ali,
sentada na cadeira junto à janela de sua pequena
casa. Era uma observadora silenciosa da vida que
brotava, incessante e indomável, através dos
ruidosos risos das crianças que brincavam alheias
pela rua. Ela ali, sentada, só olhava para fora... a
seu lado o baú imaginário em que guardara suas

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infinitas lembranças, e que agora acomodava,
zelosa, os instantes estéreis e sem cor de seu dia a
dia. Acondicionava os segundos com carinho neste
baú invisível e inseparável, pois haveria de ser ele o
companheiro em sua última e definitiva viagem. Ou
não. Ficara íntima da morte, até conversava com
ela; certa vez se flagrou servindo chá para dois,
quando se deu conta, riu. Foi a última vez que riu.
Não encontrava mais motivo para risos, já não
conversava com ninguém, dizer o que? Apenas
olhava pela janela. As pessoas passavam
indiferentes pela rua, nem notavam seu semblante
cansado, seu olhar perdido nas banalidades lá de
fora. Era só um rosto velho na velha janela da velha
casinha, nada mais. Um belo dia, foi comprar frutas
em uma feira ali perto, não muitas, pois não podia
carregar peso. Quando voltou para casa, parou seus
passos arrastados bem em frente à sua moradia.
Olhou para a janela vazia, aberta, e imaginou-se ali,
sentada. Visualizou seu rosto triste naquela janela e
concluiu que aquilo mais parecia um quadro, sim,
um quadro melancólico que tinha como adequada
moldura o velho marco e a descascada guarnição da
janela; a escuridão dentro da casa - quase não
acendia as luzes, pois recolhia-se cedo - emprestava
as tintas lúgubres com que era pintado o fundo
daquela tela na parede caiada. Sorriu. Entrou,
humilde, em sua residência, largou as frutas na
cozinha e foi ao quarto. Revirou em uma gaveta até
achar um velho batom, em seguida postou-se em
frente ao espelho e com sua mão trêmula, pintou,
ou melhor, borrou os lábios de vermelho. Retirou

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os grampos e penteou os cabelos brancos e finos.
Terminada a tarefa, dirigiu-se à sua cadeira na
janela, sentou-se e abriu um imenso sorriso de
acrílico. Agora, a velha inclinava a cabeça numa
reverência respeitosa aos transeuntes da rua e
presenteava-os com seu melhor sorriso. Era
correspondida. Ficou feliz... se era para
protagonizar uma obra de arte, mesmo que num
quadro que tenha como moldura o marco e a
acabada guarnição de sua janela, que estivesse
alegre. Quem sabe assim contrariasse, zombeteira,
o artista... este artista que com a destreza dos
mestres, tão bem soube usar o martelo e o cinzel
para esculpir-lhes os sulcos no rosto; este artista
que tão bem soube misturar tintas até encontrar o
tom de cinza com que lhe pintou o olhar e a alma.
Quem sabe seu sorriso representasse um pequeno
deboche, uma pilhéria, uma provocação, qualquer
coisa... a este impertinente, hábil e irreversível
artista chamado Tempo...

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O PINGO

Era na hora das refeições que a tensão se abatia


sobre aquela familia. Na comprida mesa, todos se
reuniam para comer sob o olhar severo do
patriarca. Um homem duro, que não gostava de
conversas durante as refeições, e era obedecido.
Todos comiam amiúdes, cabeça baixa, e só mesmo
o ruído dos talheres nos pratos eram percebidos. Na
cabeceira da mesa o pai, ao lado a mãe, do outro
lado a filha mais velha e depois as duas meninas
menores. Desde pequenas eram alertadas para os
momentos 'cruciais' do dia. - Na mesa, educação e
silêncio - que nunca esquecessem disto. Havia

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ainda um problema maior: a toalha de mesa. Não
era raro ver o patriarca com o olhar congelado na
direção de algum garfo, durante o temeroso trajeto
do prato para a boca. Não admitia nenhuma mácula
na toalha de mesa, um farelo de pão, nada. Então
chegou um dia em que a preocupação atingiu seu
ponto máximo: o novo namorado da filha mais
velha iria, finalmente, almoçar com a familia
naquela mesa tão cheia de recomendações. A coisa
piorava por conta de ser Domingo, dia de usar a
toalha de linho branca com belos brocados
dourados. A moça fez todas as recomendações ao
rapaz, pois todo o cuidado era pouco. Chegou a
hora, todos sentaram sob o olhar autoritário do pai,
a tensão era imensa, e o silêncio de sempre
permeava os gestos calculados com que os
guardanapos eram colocados nos colos. Tão logo
começaram a comer, silentes, o rapaz percebeu no
olhar do homem na cabeceira um aviso mudo, que
tivesse muito cuidado então. Procurou no sorriso de
sua amada à sua frente o alívio para aquela situação
constrangedora, mas, aos poucos viu o semblante
alegre da namorada ir minguando; ao olhar para as
outras pessoas na mesa percebeu que sua mão era
alvo de olhares apavorados; caprichosamente, um
pingo de molho começava a formar-se embaixo de
seu garfo, refém do abraço inexorável da Lei da
Gravidade. Ficou imóvel, se tentasse deslocar o
talher até o solo seguro do prato, o pingo poderia
cair, qualquer gesto poderia fazer o pingo cair, sua
respiração poderia fazer o pingo cair... O patriarca
tinha os olhos fixos naquela catástrofe iminente, e

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os demais deslocavam seus olhos com vagar do pai
para o pingo... do pingo para o pai... mas o desastre
era irreversível, já não havia volta... E o pingo
pingou. Tal qual um tiro assassino que deixasse sua
marca de sangue em uma camisa muito branca.
Agora todos olhavam para o pingo na toalha. Um
pequeno ponto vermelho redondo e ruidoso, como
que a desafiar a autoridade imaculada daquela
brancura inelutável e infinita. Lentamente, todos
foram virando seus rostos a um só tempo, como se
aquilo fosse ensaiado, em direção ao pai. O homem
estava vermelho e sua veia jugular palpitava uma
tempestade com conseqüências incalculáveis. O
rapaz tremia. O silêncio que revestia aqueles
segundos dava um ar de eternidade ao tempo. Tudo
agora estava suspenso, inclusive as respirações. Foi
quando o patriarca tirou os olhos do pingo e os
perdeu no nada. Ficou parado, extático. Sua boca
foi abrindo lentamente e para surpresa de todos um
sorriso se achegou manso ao semblante sempre
fechado daquele homem, em seguida riu, e logo
depois explodiu em uma imensa gargalhada!
Gargalhava, gargalhava, e todos, aliviados
começaram a rir também, no começo risos meio
tímidos, mas depois gargalhavam a valer também.
O homem só dava rápidas paradas em seu riso
frenético para olhar e apontar para o pingo ali na
toalha, e logo seguia com as ruidosas gargalhadas.
Dizem as boas línguas que nesse dia dava para
escutar as risadas lá do outro lado da rua. Dizem
mais, dizem também que depois daquele pingo
aquela família nunca mais foi a mesma.

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O POTE

- Nunca mexa neste pote - dizia o pai com o pote na


mão - mas se um dia o fizer, arque com as
conseqüências! - escutou várias vezes esta frase
quando era garoto. O pai fazia a recomendação
com tal seriedade, que com o passar do tempo, nem
perto do pote ele passava. Não foram poucas as
vezes que olhava para aquele pote com raiva; por
que não podia pegá-lo? Que implicância era essa de
seu pai em relação a ele e aquele objeto? Um pote
comum, de louça branca, que não tinha nada de
mais? Restou disso tudo uma espécie de trauma,

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bem como, uma curiosidade infinita: o que lhe
aconteceria, afinal, se o desobedecesse e pegasse
em suas mãos a misteriosa peça? Lembrava da voz
do progenitor basicamente por causa da
recomendação do pote; não era de falar muito,o
velho, era, até mesmo, um homem solitário.
Lembrava do pai sentado na sala, só, fumando seu
cachimbo. Ficava horas absorto, observando a
fumaça azulada; no que estaria pensando? O tempo
passou, casou, teve filhos, o velho pai se foi... e ele
nunca tocou naquele pote. O pote estava agora em
sua casa, jazendo no fundo de um armário,
embrulhado em papel. Sua esposa embrulhou a
peça rapidamente, pois ele não queria saber
daquilo, afinal, não era para ficar longe? Sempre
fora obediente ao velho pai, e embora não soubesse
o 'por que', respeitava seu pedido, ou ordem, nem
sabia direito. A verdade é que aquilo sempre lhe
incomodou, não era possível depois desse tempo
todo ainda remoer esse assunto, mas ele remoia.
Um dia, no trabalho, pensava no pote quando algo
lhe ocorreu: seu pai dizia - Nunca mexa nesse pote,
mas se um dia o fizer, arque com as conseqüências.
- Ora, já não era um menino! Seu pai há muito
tempo já não estava neste mundo! Sim, arcaria com
as conseqüências! Estava decidido, tão logo
chegasse em casa, pegaria o pote e, mais que isto, o
colocaria no centro da mesa de jantar como uma
espécie de troféu pela sua ousadia. Quando chegou
em casa estava nervoso, cumprimentou
rapidamente a mulher, os filhos e foi ao seu quarto,
trancando-se à chave para ficar mais à vontade com

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seus fantasmas. Abriu o armário e esticou seu braço
até pegar o pote embrulhado atrás de algumas
blusas de lã dobradas. Tremia. Sentou-se na cama
com o maior mistério de sua infância nas mãos,
procurou não pensar no velho, abriu o embrulho e
quando retirou a tampa do pote viu um papelzinho
dobrado, amarelado pelo tempo... Seus olhos
ficaram paralisados por um momento. Então, com
calma ele abriu o bilhete, ali se lia: VOCÊ ESTÁ
LIVRE! Reconheceu a caligrafia do pai, e naquele
momento sentiu que se livrava do imenso peso que
sempre o acompanhara em sua existência.Faziam,
ambos, pai e filho, uma reconciliação muda, através
justamente da transgressão, mesmo tardia, da
ordem dada. Aquelas três palavras naquele sucinto
bilhete eram a chave para todo o seu passado, e...
para seu futuro. - Então... - pensou ele - meu pai
era um brincalhão? dado a enigmas? Um homem
misterioso e com um lado lúdico que nunca
conheci? Ou, ainda, quem sabe, um sábio? Droga,
por que não abri este pote antes! - se emocionou.
Sim, arcaria com as conseqüências de ser
livre,segundo aquela zelosa recomendação, e com a
responsabilidade que a verdadeira liberdade traz. A
partir desta descoberta sua vida mudou. Estava
mais alegre, tranqüilo... e desenvolveu o hábito de
ao deitar, pensar em sua infância, no
relacionamento distante com o pai; lembrar de
conversas, procurar outros indícios, metáforas,
qualquer coisa... enfim, garimpar outras pequenas
pistas que o velho tenha deixado, tal qual pequenas
migalhas de pão em uma floresta, para que o filho,

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talvez um dia, encontrasse o caminho até seu duro,
solitário, misterioso, mas nunca fechado coração...

O MORIBUNDO

Seu amigo estava morrendo. Entrou no quarto do


hospital e o encontrou ali,deitado, abatido, magro,
nas últimas. Achou melhor não falar nada. Deixou
as flores que levara em uma mesa de canto, só
estavam os dois. Olhou novamente para aquele
homem de olhar longínquo, tão débil, e não pode
deixar de lembrar de todos aqueles anos passados.
Foram muito amigos, embora ultimamente a vida
os tenha colocado em caminhos muito diferentes. O
moribundo ali, atirado para morrer, que ironia,
sempre fora um homem de espírito positivo, um
otimista inveterado, um sonhador até. Já ele não.

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Era tido como 'pessimista', havia até quem dissesse
que era 'agourento'. - É o que dá... ter os pés no
chão, não fugir da fria e inexorável realidade, de
que valeu todo seu espírito otimista? - pensou.
Aquela visita era quase uma vitória. - Nosso time
joga na quinta. - disse, quebrando o gelo, mas logo
se deu conta da gafe: era domingo, talvez o
moribundo não estivesse neste mundo na quinta. O
homem na cama não falava nada, apenas
acompanhava, através de seus olhos afundados em
olheiras, os movimentos do amigo pelo quarto. Não
encontrando nada para dizer, o visitante parou em
frente à janela e perdeu o olhar no movimento
ruidoso da vida lá fora. Era um homem de
hábitos.Imaginava que teria de quebrar sua preciosa
rotina para ir a um velório, detestava velórios.
Bem, se o moribundo morresse durante o dia,
estaria trabalhando, era uma bela desculpa. Se fosse
à noite, aí nem pensar, via sua novela e depois
recolhia-se ao leito; e de madrugada em hipótese
alguma saía de casa. Estava decidido, inventaria
uma desculpa, mas não arredaria pé de sua
tranqüila rotina. Resolveu que já não tinha mais
nada a fazer ali; caminhou silencioso até a cama do
amigo e inclinou-se lentamente, até seus olhos frios
encontrarem o olhar embaçado e patético do
doente, aproximou bem o rosto, para que o
'otimista' constatasse o brilho duro daquele olhar.
Por alguns segundos mantiveram olhos nos olhos e
uma lágrima desceu solitária pela face do
moribundo, enquanto a ponta de um sorriso se fez
notar nos lábios do visitante. Sentiu uma agradável

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sensação de vitória, já podia ir embora para o
abraço morno de sua rotina. Saiu do quarto, desceu
no elevador, atravessou o saguão, sempre pensando
se o que fizera era o correto. Sim, sim, era o certo,
não podia fraquejar agora. Já estava na rua,
distraído por estes pensamentos, quando ao
atravessá-la foi colhido por um automóvel. Morreu
na hora. No dia seguinte, em seu velório, o caixão
jazia solitário na capela mortuária quando o
moribundo apareceu em uma cadeira de rodas,
conduzido por dois enfermeiros. Um deles, só para
carregar o soro. Estacionou, consternado, em frente
ao caixão. Fez um sinal com sua mão trêmula e o
outro enfermeiro inclinou-se, quase encostando sua
orelha na boca do paciente, este então sussurrou
com sua voz nas últimas: - Ele esteve lá no hospital
ontem. Que tragédia. Sabe, eu pressenti algo ruim.
Sim, quando nos despedimos, sei lá... meu coração
apertou, me emocionei. Naquele momento eu tive
certeza que aquela era a última vez... - traído pela
emoção, começou a chorar. Encontrou forças ainda
para dizer suas últimas palavras: - Sentirei
saudades...

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O ESPELHO

O espelho era a primeira coisa que avistava com


interesse, tão logo levantava pela manhã. Ao sair
do quarto, ainda zonzo pelo sono, ia direto ao
banheiro, lá olhava através do espelho para sua cara
desarrumada. Foi numa manhã dessas, quando fazia
a barba,que foi acometido por um estranho
raciocínio: aquele pedaço quadrado de vidro à sua
frente era onde havia pousado seus olhos ainda
confusos, todas as manhãs, nos últimos quarenta
anos. Quarenta anos!Desde que começou a acordar

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cedo para ir trabalhar. Ficou extático olhando-se
nos olhos com o aparelho de barba suspenso ao
lado do rosto lambuzado pela espuma. Quarenta
anos! Aquele espelho ali à sua frente, tão próximo e
íntimo, viu tudo! Seu rosto envelheceu aos poucos,
mas aquele espelho, amigo fiel, não deixou que
percebesse. Mas agora percebia. Afoito, Removeu
o creme com a toalha, enxaguou o rosto e olhou-se
com atenção. Envelhecera. Mas, por que só agora
se dava conta? Um sorriso, então, se achegou
manso emprestando sua luz serena àquele rosto já
sulcado e começando a mostrar sinais de cansaço.
Reparou nas pequenas rugas ao redor dos olhos,
reparou também em alguns sinais que não tinha,
presente indigesto com o qual o tempo lhe brindara.
Por que? - pensou - só agora percebia tudo isto?
Envelheceu e não viu. Sorriu novamente, um
sorriso meio amargo é verdade, mas um singelo
reconhecimento a este, que agora reconhecia,
sempre fora seu melhor amigo. Não, não podia
culpar o espelho pelo tempo que passou e deixou
suas marcas ao redor de seus olhos. Na verdade,
ingrato era ele, que ao passar do tempo nunca olhou
para seu amigo fiel. Egoísta, sempre viu a si
mesmo através do espelho, nunca vira o espelho, só
a sua imagem refletida nele. Agora reparava com
calma, quase carinhosamente naquele vidro tão
próximo, tão comum... tão corriqueiro... tão banal...
que nunca foi merecedor de sua atenção. Ficou
envergonhado. Sim, envelheceu, mas seu amigo, o
espelho, na sua frieza neutra e caprichosa, nunca
deixou que percebesse...

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A PORTA

Odiava portas. Tudo que 'fecha e têm dois lados'


lhe preocupava, mais que isto, lhe tirava o sono. O
que havia por detrás da porta? Quem poderia saber!
Dormia de porta aberta, pois se a fechasse,
imaginava o que estaria se passando do outro lado,
e vice-versa; também não podia ver quartos
fechados sem que sua imaginação se pusesse a
trabalhar freneticamente. Afinal, o que há do outro
lado da porta? Até que ponto, o que não via podia
assustá-lo tanto?Quando deitava demorava a
dormir, pois mesmo com a porta do quarto aberta,
como sempre, perdia o sono por conta do exíguo
espaço entre a porta e a parede, sim, mesmo aquela
pequena sombra que restava deveria portar seus
mistérios. Não gostava de mistério.Gostava das

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coisas às claras, bem iluminadas pelo Sol; coisas
que podia ver. - por que inventaram as portas? o
que tanto precisam esconder? Que intimidades
bizarras precisam ser 'varridas' para trás de uma
porta? - certa vez experimentou um alívio
filosófico: de tanto pensar no assunto descobriu que
pelo menos sabia o que se encontrava atrás de um
lado da porta: ele mesmo!já era um começo. Mas
quando concluiu que metade do mistério estava
resolvido, algo lhe ocorreu; havia sobrado 50% do
problema!As coisas pioraram. Já não conseguia
dormir. Numa de suas vigílias teve um estalo!O
Problema não é o 'outro lado' e sim, 'a porta'!
Levantou, estourou champanha, dançou de
felicidade! Finalmente a partir de agora haveria de
dormir! Não perdeu tempo: retirou as portas de sua
casa e teve prazer maior quando o fez em seu
quarto. Embriagado pela alegria, naquela noite sem
portas, dormiu como um anjo... ou talvez, como um
demônio...

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A GOSMA

A Gosma gruda tão logo acordamos. Ninguém vê a


Gosma, não a ouve, bem, pelo menos não com sua
própria voz. A Gosma fala pela voz dos outros, nos
vê através dos olhos alheios, nos atinge morna e
mansa através de seus agentes, ingênuos agentes
que ela usa e abusa, tão inocentes que são;
carregam a Gosma mas não percebem. A Gosma
está em tudo. Está na voz do apresentador de TV,na
notícia do jornal, no olhar da vizinha, no riso do
cara da banca, na bondade da professora, na mão
esticada do novo amigo,na saudação do velho que
passa, no pedido da empregada, na mensagem do

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Presidente, a Gosma é nojenta, gruda. Não há
banho que a remova. Ela vem pelo rádio, TV,
revistas, Internet, e... livros, mas... aí há um
problema para a Gosma; não são todos os livros
que se dispõem a serem melados pelo seu gosto
sem gosto, seu cheiro sem aroma, até porque a
Gosma fala mas não diz, ouve mas não escuta! A
Gosma é amorfa e inodora. Bem, os livros... aí a
salvação! É da Arte que se serviram e se servem os
que se negaram ao conforto morno da Gosma...
ufa! Sim,uma saída! A Gosma odeia tudo que não
fala da Gosma.A Gosma não gosta de nada que
anda, ela é estagnada, mansa, pegajosa. Seus
agentes nos cercam com seus olhares piedosos e
nos pedem, silentes, que nos lambuzemos com a
Gosma, mas agora já é tarde, já passamos muito
tempo atendendo pedidos gosmentos. É a nossa
vez, corremos então em direção ao mar, nada ficará
em nosso corpo, é um banho purificador! Sabemos
que a Gosma detesta o mar!Detesta a Noite!Odeia o
que não vê! Mergulhamos finalmente alegres na
imensidão; um mergulho na liberdade da Arte, um
mergulho satânico!

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