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N a p o n t a d a l í n g u A

Laura Cardoso Pereira


CONCRETO E ABSTRATO
Pasquale Cipro Neto

Referindo-se a “América”, poema bento”, de Gilberto Gil. Diz a canção: Se recorrermos à etimologia, cons-
de A rosa do povo, de Carlos Drum- “Rebento, substantivo abstrato/ O ato, tataremos que a palavra “abstrato” é da
mond de Andrade, João Cabral de a criação, o seu momento (...) Rebento, família de “abstrair”, que vem do latim
Melo Neto exaltava o que lhe parecia tudo que nasce é rebento/ Tudo que “abstrahere” e significa “separar”, “ar-
essencial no fazer poético: a concre- brota, que vinga, que medra/ Rebento rancar”, “desatar”, “desligar”, “afastar-
tização do abstrato e a abstratização raro como flor na pedra/ Rebento farto se”, “separar-se”. De fato, o primeiro
do concreto. O mestre pernambucano como trigo ao vento”. significado que os dicionários dão para
exemplificava sua afirmação com este Pensando bem, parece que Gil “abstrair” é “separar”, o que confirma
trecho: “Só o primeiro cão,/ em frente segue os passos sugeridos por Cabral. a definição de abstrato do parágrafo
do homem/ cheirando o futuro”. Para Substantivo abstrato (já que designa anterior e torna compreensível o signi-
Cabral, “cheirar o futuro” era a exata “o ato de rebentar” – um dos valores ficado filosófico de “abstrair” e de
dimensão da concretização do abs- dos abstratos é justamente o de indicar “abstração”.
trato. o “ato de”), “rebento” logo se concre- A canção de Gil caminha e conso-
Um dia, numa das “inesquecíveis” tiza (“raro como flor na pedra”, “farto lida o pensamento de Cabral: “Outras
aulas sobre as classificações do substan- como trigo ao vento”). Como se vê, é vezes Rebento simplesmente/ No
tivo, aprendemos na escola que “con- difícil, quase impossível separar o presente do indicativo/ Como a corrente
creto dá pra pegar; abstrato não dá pra abstrato do concreto. O beijo, por de um cão furioso/ Como as mãos de
pegar”. Começa a confusão: Deus é exemplo, que é “o ato de beijar”, por um lavrador ativo (...) Rebento, a
concreto ou abstrato? E fada? E saci? isso abstrato, concretiza-se assim que reação imediata/ A cada sensação de
E luz? E alma? E isso? E aquilo? E os lábios se tocam (“O amor é grande abatimento/ Rebento, o coração
nada! e cabe/ no breve ato de beijar”, diz dizendo ‘bata’/ A cada bofetão do
Abismo. Mistério. Não foi à toa Drummond no poema “O mundo é sofrimento”. O tiro certeiro de Gil se
que Drummond terminou seu célebre grande”, de Amar se aprende amando). dá justamente na passagem do substan-
poema “Aula de Português” com estas Definido como “palavra com que tivo para a primeira pessoa do singular
palavras: “O português são dois; o se nomeia uma ação, qualidade, estado do presente do indicativo, o que
outro, mistérios”. O outro português ou sentimento dos seres, dos quais se explicita quão tênue é a linha que se-
é o da aula de português, o da aula de pode separar e sem os quais não para o concreto do abstrato.
gramática. poderia existir”, o substantivo abstrato Alguém ainda se habilita a dizer
Ao tratar do capítulo da classi- passa a concreto num piscar de olhos, que “concreto dá pra pegar; abstrato
ficação dos substantivos, os queridos como na canção de Gil. Por ser “o ato não dá pra pegar”?
colegas talvez não precisassem chegar de rebentar”, “rebento” se define como Até a próxima. Um forte abraço.
ao ponto de citar o pensamento de abstrato, mas concretiza-se quando
Cabral, quiçá muito profundo para “brota”, “vinga”, “medra”, nas palavras Pasquale Cipro Neto
mentes, corações e espíritos jovens, mas de Gil. “Medra”, por sinal, não professor do Sistema Anglo de Ensino, idealizador e

poderiam fazê-los (aos jovens) ouvir significa “tem medo”. Significa “cres-
apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV
Cultura, autor da coluna Ao Pé da Letra, do Diário do Grande
(e ler e entender) a memorável “Re- ce”, “avança”. ABC e de O Globo, consultor e colunista da Folha de S. Paulo

24 C u l t - novembro/2000

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