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A música engendra certos estados de alma, e desde tempos imemoriais os homens a

praticam conscientemente com esta finalidade. Em ocasiões felizes como casamentos,


celebrações de vitórias, ela torna os participantes alegres e felizes e os convida a dançar.
Mas a música representa ainda muito mais que isso.

Psicologia da música

ESTUDOS SÉRIOS demonstram que as adeus aos desaparecidos ao som de


pessoas na Idade Média eram menos músicas graves e solenes, numa at-
depressivas porque as numerosas festas mosfera que incitava, querendo-se ou
Placa do
século XIII, de
e quermesses as mantinham unidas e não, ao exame de consciência e à refle-
Takht-i-Sulayman, bem orientadas no seio da comunida- xão. Em tempos de guerra, tanto nas
Irã. de. Em funerais, as famílias davam seu tribos primitivas quanto entre os po-

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vos mais civilizados, o rufar dos tambores efeitos sonoros de vanguarda, influindo so-
fazia calar o medo dos soldados e os insen- bre a vida sentimental do público. Quando
sibilizava. A música militar dava-lhes a a sombra de uma mão toca a fechadura de
impressão de invulnerabilidade e eles mar- uma porta tendo por trás dela uma pessoa
chavam decididamente e seguros de si ao que nada suspeita, é principalmente a músi-
encontro do inimigo. Sabe-se que na ca que mexe com os nervos dos espectado-
Segunda Guerra Mundial os regimentos es- res e faz parar sua respiração quando o in-
coceses obtiveram grande sucesso pelo fato vasor abre a porta com um único golpe
de que em meio ao horror dos campos de brusco. Nas cenas de perseguição, o ritmo
batalha os tocadores de gaita de foles não cada vez mais rápido da música acelera os
paravam de tocar suas canções, fatigando os batimentos cardíacos do público. No desfe-
combatentes até a medula dos ossos. Isso cho, uma música suave e arrebatadora en-
tinha um duplo efeito: os inimigos fugiam a volve os amantes, que caem um nos braços
toda pressa enquanto os escoceses eram do outro.
cada vez mais estimulados.
A indústria cinematográfica faz uso in- O sábio de Siracusa
tenso da música, utilizando toda a gama de
Na tradição ocidental, Pitágoras foi um
dos primeiros a empreender a pesquisa sis-
temática da influência da música sobre a
psique humana. A história conta que ele
começou suas pesquisas quando passou ao
lado de uma forja onde vários ferreiros fa-
bricavam uma espada, e para tanto cada um
dava, alternadamente, um golpe de martelo.
Ele se perguntou como era possível que
cada martelo produzisse um tom mais ou
menos alto e com timbre diferente. Então
ele fez experiências com um dispositivo que
consistia de cordas esticadas por pesos desi-
guais e descobriu que havia uma relação en-
tre a altura dos sons e a diferença dos pesos,
e que certos sons simultaneamente se har-
monizavam e outros não. A doutrina pita-
górica da harmonia é a ciência das propor-
ções entre os intervalos dos sons bem como
da seqüência de sons ordenados no tempo
segundo linhas rítmicas e melódicas. Ele
elaborou um sistema de princípios univer-
sais que os pitagóricos também reconhe-
ciam na ordenação e na construção do
macrocosmo, do cosmo e do microcosmo.
Segundo a sabedoria de seus Mistérios,
eles consideravam que o cosmo solar não
era uma máquina, algo mecânico sem alma,
mas um “logos” em manifestação. Sabe-se
que por trás das formas visíveis se encontra

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ativa uma força divina primordial, vivente e os ritmos do coração e da respiração, o esta-
pulsante. Assim como os antigos sábios do do sono e do despertar, a absorção e a
hindus ouviam, no coração mesmo da cria- assimilação dos alimentos, a tensão e o
ção, o som fundamental “AUM” que tudo repouso do sistema nervoso bem como dos
penetra, os pitagóricos partiam de um tom músculos. A música interior da alma ressoa
fundamental cósmico para gerar seqüências igualmente nos movimentos graciosos do
sonoras das quais cada nota é reproduzida corpo, no caminhar suave, no semblante
de oitava em oitava. Todos os corpos celes- jovial e expressivo, na voz que canta, nos
tes, todas as galáxias, todo o conjunto de olhos brilhantes que refletem tanto as tra-
sóis, de planetas e de luas têm seu próprio vessuras como as profundezas da alma.
tom, sua própria vibração e cantam em con- Os pitagóricos atribuíam as doenças e os
junto o maravilhoso hino da criação. Diz-se distúrbios das funções mentais, psíquicas e
que Pitágoras, enquanto iniciado nos anti- corporais às relações desarmônicas no inte-
gos Mistérios do Egito e da Índia, podia rior do complexo sistema vital humano.
perceber interiormente essa “harmonia das Acreditava-se que a causa principal da
esferas”. desarmonia era o egocentrismo, o ter os
olhos voltados apenas para o próprio inte-
Pitágoras ensinou no Egito

Os ensinamentos pitagóricos relativos à


medida e ao número são fundamentados no
princípio de Hermes: “Assim como é em
cima, assim é embaixo”. Ou seja, a ordem,
as leis, as relações subjacentes que regulam
a vida do cosmo e do macrocosmo regulam
igualmente as do microcosmo, portanto de
cada ser humano em particular. Existe har-
monia entre o Espírito, a alma e o corpo
quando o Espírito, sempre novo e sempre
se renovando, ressoa em harmonia com as
vibrações e as moções do cosmo que pene-
tra e envolve de todos os lados o campo de
vida humano. Quando atravessam a alma,
as impressões espirituais da supranatureza
provocam emoções e sentimentos que dão à
alma o desejo de expressá-los através da
poesia, do canto e da dança. Eis porque os
pitagóricos comparavam o corpo humano a
um instrumento musical, em particular à
lira de sete cordas, que, aliás, Pitágoras to-
cava magistralmente. Quando se volta to-
talmente para o Espírito, a alma humana
põe-se espontaneamente a cantar seu hino
sob a poderosa força da inspiração e har-
moniza seu instrumento, o corpo, a esse
hino. A essência da música, medida e núme-
ro, ritmo e harmonia equilibram o corpo,

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resse e a total surdez à “harmonia das esfe- possível especificar os efeitos terapêuticos
ras”. O “homem-eu” fecha-se às vibrações da música de certos compositores. Assim,
provindas do mundo divino que conferem Mozart aliviaria as dores reumáticas; Schu-
boa saúde, harmonia, força e luz. Essa rup- bert auxiliaria na luta contra a insônia e
tura faz vibrar na psique falsas notas que Haendel contra os problemas emocionais; e
acabam suscitando, tanto concreta como Bach favoreceria a digestão. Sabe-se que o
figuradamente, dissonância, cacofonia, ba- otorrinolaringologista parisiense Alfred A.
rulho e tumulto, que causam estados pato- Tomatis (1920-2001) obteve bons resulta-
lógicos. dos com as primeiras sinfonias de Mozart
nos casos de autismo, de problemas auditi-
A música como terapia vos (como certas formas de surdez e do mal
de Meunière, um desequilíbrio que tem sua
A música representava um papel impor- origem no ouvido interno).*
tante na terapia preconizada pelos pitagóri- Pesquisas recentes sobre o cérebro mos-
cos. Eles analisavam, em primeiro lugar, a tram que esse órgão necessita fundamental-
doença e as tensões desarmônicas por elas mente de ritmo. Se o ritmo, diferente para
causadas. Se o desequilíbrio entre os fato- cada um, faltar, surge o desarranjo das fun-
res psíquicos estivesse muito fraco de um ções cerebrais que se manifestam principal-
lado, e muito forte de outro, eles tempera- mente em forma de estresse. O estresse
vam pela música as forças dominantes pode trazer conseqüências funestas para a
como o instinto, a angústia, o ódio, o ciú- saúde, e os pacientes que sofrem de estresse
me, a autocomiseração e a arrogância, e profundo teriam primeiro de seguir uma
reforçavam e dinamizavam outras forças terapia utilizando a bateria. A pessoa que
como a abnegação, a compaixão e o desejo toca bateria busca espontaneamente, poder-
de harmonia universal, de verdade, de bele- se-ia dizer, o ritmo que lhe convém, e esse
za. O princípio dessa terapia evidencia-se ritmo teria um efeito salutar sobre suas agi-
do relato em que Pitágoras, ao tocar sua tação e tensões nervosas. Sessões de bateria
lira, reconduz à razão um homem furioso a freariam, parariam e até mesmo curariam o
ponto de cometer um homicídio. Mediante autismo, a demência e o mal de Alzheimer.
certas sonoridades, ele evocou na alma em No movimento denominado “New Age”,
furor desse homem, o entendimento, a em que o sentimento e a sensibilidade têm
calma e o autocontrole. Isso nos faz pensar importante papel, o comportamento em re-
imediatamente na história bíblica em que lação à música torna-se diferente. A idéia
Davi apazigua com sua harpa a psique do básica é que a psique do homem moderno
sombrio e ciumento Saul, que está pronto se parece com fragmentos de uma bomba
para matá-lo. detonada. O homem condenou-se ao isola-
Não sabemos precisamente que tipo de mento ao abandonar a ordem natural; ele
música os pitagóricos usavam e como eles a não apenas rompeu a ligação com seu pró-
aplicavam, embora conheçamos alguns dos prio passado, mas também com sua mãe, a
princípios seguidos por eles, e é muito inte- Terra, com o sol, a lua e as estrelas.
ressante encontrá-los na terapia pela música Com uma seqüência de sons sutis, muitas
praticada em nossos dias. Nos crescentes vezes sintéticos, compreendendo elementos
casos de instabilidade emocional – que são elaborados com base em antigas músicas
uma conseqüência do tumulto e do estresse litúrgicas ou de civilizações antigas esqueci-
da vida social – bons resultados são fre- das, como, por exemplo, a dos celtas, a dos
qüentemente obtidos nos centros que apli- indianos e a dos aborígines da Austrália,
cam esse método. Cientificamente é mesmo tenta-se cobrir o abismo entre a vida danifi-

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cada, dividida, e o ser mais profundo. Fa- intermédio do soberano do céu e da terra,
zendo uso de bacias sonoras tibetanas e fosse transmitida aos simples mortais.
cantando tons harmônicos tenta-se evocar Sabemos que a antiga civilização chinesa
forças que ligam magicamente à comunida- era bastante inclinada às cerimônias e
de mundial que transcende tempo, raça e conhecia múltiplos rituais. Inúmeras pres-
religião. crições, regras e leis regulavam a vida social
desse imenso império. A música tinha ali
A nota cósmica de 442 Hertz um papel importante nos rituais e cerimô-
nias, e toda ela derivava de Huang Chung, a
Além da Escola de Mistérios de Pitágo- ressonância áurea. Para os antigos chineses
ras, nas terapias musicais atuais e no movi- a música significava muito mais que um
mento “New Age”, o emprego consciente simples divertimento ou a evocação de um
da música tendo em vista certos resultados ambiente sereno e piedoso. Ela era uma fór-
(por exemplo, a cura ou desenvolvimento mula dinâmica que invocava e vertia a força
do ser mais profundo), encontra-se somen- sagrada do som. Por meio dessa música era
te em pequenos grupos. Em contraposição, possível comunicar à consciência das pes-
na antiga China, a ordem social inteira esta- soas as verdades eternas, elevar e manter os
va fundamentada e organizada segundo os habitantes do império em alto nível moral.
princípios musicais. Esses princípios cor- Num antigo escrito chinês é dito: “Median-
respondem em suas grandes linhas, como é te a influência da música os cinco deveres
evidente, aos ensinamentos pitagóricos sociais são executados espontaneamente, os
sobre o ritmo, as relações e a harmonia. No olhos e os ouvidos são mais claros, o sangue
apogeu da civilização chinesa, a sociedade e a energia vital ficam equilibrados, os pra-
não necessitava passar por flagelos tais zeres são dominados, os usos e costumes
como a tirania, a exploração, a repressão, as são melhorados, e a paz perfeita reina no
coalizões de interesse e os grupos de pres- império”.
são. Não, ali eram feitos esforços para orga-
nizar a sociedade segundo os princípios A tonalidade é a medida das coisas
cósmicos. A vida terrestre podia ser o refle-
xo da ordem divina e da harmonia perfeita Huang Chung exprimia, principalmente,
que reina no cosmo de modo a ser traspas- a ligação entre o céu e a terra por um siste-
sada pelas energias celestes. Assim como os ma musical em que a oitava consistia, como
antigos hindus, também os habitantes da an- no sistema ocidental, de doze notas. Cada
tiga China acreditavam que uma sonorida- uma dessas doze notas estava associada a
de inaudível, um som original, constituía o um signo do zodíaco. E dependendo da
próprio fundamento e toda a manifestação hora, do dia e do mês do ano, um determi-
do Espírito, da matéria e da energia. Eles nado tom predominava na música. O cará-
denominavam esse som original Huang ter dessa música era assim ligado aos movi-
Chung ou “o som amarelo”. Huang Chung mentos do céu e servia, por assim dizer, de
também significava “soberano supremo” canal de transmissão de energias cósmicas.
ou “vontade divina”. O amarelo era tanto a A idéia de perfeição baseada no Huang
cor da sabedoria celeste como a do impera- Chung ia tão longe que mesmo as institui-
dor reinante. Esse Huang Chung celeste, ções do Estado, como, por exemplo, os
inaudível, correspondia a certo som terres- ministérios e os serviços administrativos,
tre audível: o Huang Chung terrestre de possuíam sua própria tonalidade e sua pró-
442 Hertz. Era ele que ligava a terra ao céu pria música cerimonial.
e cuidava para que a vontade divina, por Os pesos e medidas também eram deter-

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minados por Huang Chung. O padrão de em evolução. E mesmo que certas expres-
comprimento era o de uma corda que pro- sões musicais tenham florescido por longo
duzia a ressonância áurea, e o padrão de tempo, cedo ou tarde elas envelhecem e são
pesos era o peso de uma barra de metal que, postas de lado.
com a dimensão certa, emitia a ressonância Na sabedoria dos Mistérios é falado so-
áurea. Os protótipos desses pesos e medi- bre a força oculta e secreta da música. Algo
das eram conservados no Ministério da dessa sabedoria pode ser encontrado no mi-
Música. Acreditava-se que a música que to de Orfeu e Eurídice (ver Pentagrama 3,
não fosse baseada no Huang Chung era 2007). Esse mito grego, explicado de diver-
grosseira e sensual, e caso as advertências sas maneiras, e a justo título chamado de
das autoridades não fossem suficientes para “drama do amor impossível”, inspirou
suprimi-la, ela era interditada em razão de numerosos compositores (por exemplo,
sua influência imoral. Finalmente, a antiga Monteverdi, Gluck, Offenbach). E não é à
civilização chinesa que havia florescido toa: a música sempre foi a forma artística
com a música e mediante ela, também decli- mais apta a expressar o amor divino. Assim
nou mediante a música; a música chinesa como o Espírito, a música é volátil e intan-
tradicional acabou sendo comprimida na gível. Assim como o Espírito, ela não tem
camisa de força das regras e preceitos e passado nem futuro, mas vive e atua direta-
sofreu influências estrangeiras, sobretudo mente no “agora”. E, do mesmo modo que
ocidentais. em um toque espiritual, na música podem
Esse exemplo mostra que se a música saltar centelhas do fogo divino.
pode ser portadora de verdades eternas, suas
formas estão sujeitas à mudança. Ela sem-
pre busca novas formas de expressão que se * Tomatis, Alfred A. L’oreille et la vie
adaptam ao psiquismo do gênero humano (O ouvido e a vida). Paris: Laffont, 1990.

À direita: Harpista tocando no banquete de Rekmire, vizir e


governador de Tebas (1504-1450 a. C.). Detalhe de pintura em
tumba da necrópole de Sheikh Abd el-Qurna, margem ocidental
do Nilo próximo a Luxor, Egito.

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