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A HISTORIA HOJE: dividas, desafios, propostas Roger Chartier "Tempo de incerteza", "epistemological crisis", "tournant critique": estes sio os diagnésticos, geralmente inquietos, feitos sobre a histéria nos iltimos anos. Basta lembrar duas de jes que abriram o caminho para uma ampla reflexdo coletiva. De um lado, aquela estampada no editorial do mimero de margo-abril de 1988 da revista Annales, que dizia: "Hoje, parece ter chegado o tempo das incertezas. A reclassificagdo das disciplinas transforma a paisagem cientifica, questiona as primazias estabelecidas, afeta as vias tradicionais pelas quais circulava a inovagio. Os paradigmas dominantes, que se ia buscar nos marxismos ou nos estruturalismos, assim como no uso confiante da quantificagao, perdem sua capacidade estruturadora (...) A historia, que havia baseado boa parte de seu dinamismo em uma ambigdo federativa, ndo é poupada por essa crise geral das cigncias sociais."" A segunda declaragdo, inteiramente diferente em suas razdes mas semelhante em suas, conclusdes, foi feita em 1989 por David Harlan em um artigo da American Historical Review que suscitou uma discusso que se prolonga até hoje "A volta da literatura mergulhou os estudos histéricos numa extensa crise epistemologica. (questionou nossa ctenga num passado fixo ¢ determindvel, comprometeu a possibilidade da representagdo histérica e minou nossa capacidade de nos localizarmos no tempo."” e e © que indicam esses diagnésticos, que parecem ter algo de paradoxal numa época em que 0 movimento editorial na area de histéria demonstra uma vitalidade invejavel e uma inventividade renovada, traduzidas na continuidade das grandes obras coletivas, no Tangamento de colegdes européias, no aumento do ntimero de tradugdes, no eco intelectual de algumas obras importantes? Eles denotam, creio, essa grande mutagdo que representa para a histéria © desaparecimento dos modelos de compreensao, dos principios de inteligibilidade que foram de modo geral aceitos pelos historiadores (ou ao menos pela maior parte deles) a partir dos anos 60. A histéria dominante baseava-se entio em dois projetos. Primeiro, a aplicagZo ao estudo das sociedades antigas ou contemporineas do paradigma estruturalista, abertamente reivindicado ou implicitamente praticado. Tratava-se antes de mais nada de identificar as estruturas e as relagdes que, independentemente das percepgdes ¢ das intengdes dos individuos, comandam os mecanismos econémicos, organizam as relagdes sociais, engendram | mpyistoire et sciences sociales. Un tournant critique?" Annales ESC, 1988, p. 291-293 (citagdo p. 291-292). ? David Harlan, "Intellectual history and the retum of literature", American Historical Review, 94, jun 1989, p. 879.907 (citagdo p. 881). Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, as formas do discurso. Dai a afirmacdo de uma separacdo radical entre 0 objeto do conhecimento histérico propriamente dito e a consciéncia subjetiva dos atores. Segunda exigéncia: submeter a histéria aos procedimentos do numero e da série ou, melhor dizendo, inscrevé-la num paradigma do conhecimento que Carlo Ginzburg, em artigo célebre,’ designou como "galileano”. Tratava-se af de, gragas & quantificagao dos fendmenos, 8 construgdo de séries ¢ aos procedimentos estatisticos, formular rigorosamente as relagGes estruturais que eram o objeto préprio da histéria. Deslocando a formula de Galileu em II Saggiatore, o historiador supunha que o mundo social "é escrito em linguagem matemitica" e dedicava-se a estabelecer suas leis. Os efeitos dessa dupla revolusdo da histéria, estruturalista e "galileana", ndo foram pequenos. Gragas a ela, a disciplina se afastou de uma simples cartografia das particularidades ou de um simples inventério, jamais coneluido, alias, de casos ou fatos singulares. A histéria pode assim retomar a ambigdo que havia fundado no inicio deste século a ciéncia social, especialmente na sua verso sociolégica e durkheimiana: identificar estruturas ¢ regularidades, e portanto, formular relagdes gerais, ‘Ao mesmo tempo, a historia se libertava da "bien maigre idée du réel” expresso de Michel Foucault - que a havia durante muito tempo habitado, uma vez que ela considerava que 08 sistemas de relagdes que organizam o mundo social sdo to "reais" quanto os dados materiais, fisicos, corporais, percebidos na imediatez da experiéncia sensivel. Essa "nova historia" estava portanto fortemente ancorada, para além da diversidade dos objetos, dos territérios © dos costumes, nos mesmos prineipios que sustentavam as ambigdes © as conquistas das outras ciéncias sociais. Nos ultimos dez anos, foram essas certezas, longa e amplamente partilhadas, que foram abaladas. De um lado, sensiveis a novas abordagens antropoldgicas ou sociolégicas, os historiadores quiseram restaurar o papel dos individuos na construgao dos lagos sociais. Daf resultaram varios deslocamentos fundamentais: das estruturas para as redes, dos sistemas de posigdes para as situagSes vividas, das normas coletivas para as estratégias singulares. A “micro-histéria", inicialmente italiana, hoje espanhola,’ foi a tradugdo mais viva dessa transformacado da abordagem histérica baseada no recurso a modelos interacionistas ou etnometodoldgicos. Radicalmente diferente da monografia tradicional, a microstoria pretende construir, a partir de uma situacdo particular, normal porque excepcional, a maneira como os individuos produzem o mundo social, por meio de suas aliangas e seus confrontos, através das dependéncias que os ligam ou dos conilitos que os opdem. O objeto da histéria, portanto, no sdo, ou ndo so mais, as estruturas ¢ os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relagdes sociais, e sim as racionalidades ¢ as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as familias, os individuos. Uma forma inédita de histéria social assim se afirmou, centrada nas distancias discordincias existentes, de um lado, entre os diferentes sistemas de normas de uma sociedade e, de outro, dentro de cada um deles. O olhar se desviou das regras impostas para suas aplicagdes inventivas, das condutas forgadas para as decisdes permitidas pelos recursos proprios de cada um: seu poder social, seu poder econémico, seu acesso & informagio. Habituada a estabelecer hierarquias ¢ a construir coletivos (categorias sécio-profissionais, > Carlo Ginzburg, "Spie. Radiei di un paradigma indiziario", em Miti, emblemi, spie, Morfologia e storia (Turim, Bunaudi, 1986), p. 158-209, * Giovanni Levi, L'redita, immateriale. Carriera di un esorcista nel Piemonte del Seicento (Curim, Einaudi, 1985); Jaime Contreras, Sofas contra Riquelmes. Regidores, inguisidores y criptojudios (Madi, Anaya/Mario Muchnik, 1992). Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, classes, grupos), a histéria das sociedades atribuiu-se novos objetos, estudados em pequena escala. E 0 caso da biografia ordindria, j4 que, como escreveu Giovanni Levi, "nenhum sistema normativo é de fato suficientemente estruturado para eliminar toda possibilidade de escolha consciente, de manipulagdo ou interpretagdo das regras, de negociagio, Parece-me que a biografia constitui nesse sentido o lugar ideal para se verificar 0 caréter intersticial - ¢ ainda assim importante -da liberdade de que as pessoas dispdem, assim como para se observar a mancira como funcionam concretamente os sistemas normativos que nunca esto isentos de contradigdes" > Assim também a reconstituigdo dos processos dinimicos (negociagdes, transagées, trocas, conflitos etc.) que desenham de maneira mével, instavel, as relag6es sociais, ao mesmo tempo em que recortam os espagos abertos as estratégias individuais. Jaime Contraras diz isso muito bem em seu recente livro Sofos contra Riquelmes. "Os grupos nao anulavam os individuos, e a objetividade de suas forgas no impedia a estes de trilhar uma trajetéria pessoal. As familias (...) desenvolveram suas estratégias para ampliar suas esferas de solidariedade ¢ de influéncia, mas seus homens, individualmente, também exerceram seu papel. Se 0 chamado do sangue e o peso das linhagens eram intensos, também 0 eram 0 desejo € as possibilidades de criar espagos pessoais. No drama que criou o fantasma da heresia - uma criagdo pessoal de um inguisidor ambicioso defrontaram-se, em duro jogo, interesses coletivos e concepgdes diferentes do préprio mundo, mas também cada individuo péde reagir pessoalmente a partir de sua propria framazon original."* Uma segunda razio abalou ainda mais profundamente as certezas antigas: a conscientizagao dos historiadores de que seu discurso, qualquer que seja sua forma, é sempre uma narrativa. As reflexdes pioneiras de Michel de Certeau,’ em seguida o grande livro de Paul Ricoeur,* ¢ mais recentemente a aplicagdo a histéria de uma "poética do conhecimento" que tem por objeto, segundo a definigdo de Jacques Ranciére, "o conjunto dos procedimentos literarios pelos quais um discurso se subtrai a literatura, se atribui um estatuto de ciéncia ¢ significa isso", obrigaram os historiadores a reconhecer, querendo ou nao, que a histéria pertence ao género da narrativa-entendido no sentido aristotélico da “articulagio em um cenredo de ages representadas". Essa constatagdo no foi ponto pacifico para aqueles que, rejeitando a historia événementielle em beneficio de uma historia estrutural e quantificada, pensavam ter posto fim as aparéncias enganosas da narragdo e 4 demasiado longa e duvidosa proximidade entre a histéria e a fabula. A ruptura entre as duas tinha parecido definitiva: no lugar ocupado pelas personagens ¢ os herdis das narrativas antigas, a "nova hist6ria" instalava entidades andnimas ¢ abstratas; 0 tempo espontineo da consciéncia, ela substituia por uma temporalidade construida, hierarquizada, articulada; ao cardter auto-explicativo da narragio, cla opunha a capacidade explicativa de um conhecimento controlavel e verificavel. Em Temps et récit, Paul Ricoeur mostrou o quanto era iluséria essa proclamada cesura, De fato, toda histéria, mesmo a menos narrativa, mesmo a mais estrutural, é sempre $ Giovanni Levi, "Les usages de la biographie", Annales ESC, 1989, p, 13251336 (citagdo p. 1333-1334), ® Jaime Contreras, op. cit. p. 20. 7 Michel de Certeau, L’Eeriture de I'Histoire (Paris, Gallimard, 1975). * Paul Ricoeur, Temps et récit (Pars, Editions du Seuil, 1983-85, 3 tomes) Jacques Rancitre, Les mots de histoire. Essai de postique du savoir (Paris, Editions du Seuil, 1992), p. 21 Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, construida a partir de formulas que governam a produgdo das narrativas. As entidades com que os historiadores lidam (sociedade, classes, mentalidades etc.) sto "quase personagens", dotadas implicitamente das propriedades dos herdis singulares ou dos individuos ordinarios que compdem as coletividades que essas categorias abstratas designam. De outro lado, as temporalidades histéricas mantém uma forte dependéncia em relagao ao tempo subjetivo: em paginas soberbas, Ricoeur mostra como 0 Méditerranée au temps de Philippe II, de Braudel, no fundo se baseia numa analogia entre o tempo do mar e © tempo do rei, e como a longa duragdo nfo passa ai de uma modalidade particular, derivada, do ato de colocar o acontecimento dentro de um enredo. Enfim, os procedimentos explicativos da histéria continuam solidamente ancorados na légica da imputagao causal singular, ou seja, no modelo de compreensio que, no quotidiano ou na ficso, permite dar conta das decisdes e das agdes dos individuos. Semelhante andlise, que inscreve a historia na classe das narrativas e identifica os parentescos fundamentais que unem todas as narrativas, sejam elas de histéria ou de ficgdo, tem varias conseqiiéncias. A primeira permite considerar como uma questo mal-colocada o debate travado em tomo do suposto ‘retormo da narrativa" que, para alguns, teria caracterizado a histéria nesses iiltimos anos. Como, na verdade, poderia haver "retorno” ou redescoberta onde ndo houve nem partida nem abandono? A mutagio existe mas é de outra ordem, Ela tem a ver com a preferéncia dada recentemente a algumas formas de narrativa em detrimento de outras, mais clissicas. Por exemplo, as narrativas biogrificas entrecruzadas da micro-histéria ndo acionam nem as mesmas figuras nem as mesmas construgdes das grandes “narrativas" estruturais da hist6ria global ou das "narrativas" estatisticas da historia serial. Dai decorre uma segunda proposta: a necessidade de recuperar as propriedades especificas da narrativa histérica em relago a todas as outras. Elas esto ligadas, em primeiro lugar, 4 organizacio "em camadas" ou "folheada" (como escrevia Michel Certeau) de um discurso que compreende em si mesmo, sob a forma de citagdes que constituem efeitos da realidade, os materiais que fundamentam e cuja compreensdo ele pretende produzir. Elas estdo ligadas, igualmente, aos procedimentos de acreditagdo especificos gragas aos quais a historia mostra e proclama seu estatuto de conhecimento verdadeiro. Todo um conjunto de trabalhos, inscritos no literary criticism 4 americana, dedicou-se assim a recuperar as formas através das quais se da o discurso da histéria, A empreitada pade abarcar projetos diferente: uns empenhados em estabelecer taxinomias e tipologias universais, outros desejosos de reconhecer as diferengas localizadas e singulares, No primeiro caso pode-se incluir a tentativa de Hayden White, que visa a identificar as figuras retéricas que comandam e constrangem todos os modos possiveis da narragdo e da explicagdo histéricas - a saber, os quatro tropos classicos, metafora, metonimia, sinédoque e, com um estatuto particular, "metatropolégico", ironia.'° E uma mesma busca de constantes -constantes antropolégicas (que constituem as estruturas temporais da experiéncia) ¢ constantes formais (que governam os modos de representagdo ¢ de narragdo das experiéncias histéricas) - que conduz Reinhart Koselleck a distinguir tés tipos de historia: a histéria-notagdo (Aufschreiben), a hist6ria cumulativa (Fortschreiben), a hist6ria-reescritura (Umschreiben).' "© Hayden White, Metahistory: the historical imagination in the ninteenth-century (Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1973); The tropics of discourse: essays in cultural criticisrn (Baltimore © Londres, The Johns Hopkins University Press, 1978), e The content of the form: narrative discourse and historical imagination (Baltimore e Londres, The Johns Hopkins University Press, 1986). "Reinhart Koselleck, "Erfahrungswandel und Methodenwechsel, Eine historisch-anthropologische Skizze", em Historische Methode, sob a diregdo de C. Meier e J, Risen (Munique, 1988), p.13-16. Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, No segundo caso, o de uma poética do conhecimento sensivel as distancias e as diferengas, colocar-se-do os trabalhos que, como o recente livro de Philippe Carrard, Poetics of the new history,”? recuperam como diferentes historiadores, membros de uma mesma escola” ou de um mesmo grupo, mobilizam de formas bastante diversas as figuras da ou o apagamento do eu no discurso do conhecimento, o sistema dos tempos verbais, a personificagao das entidades abstratas, as modalidades da prova: citagdes, quadros, grificos, séries quantitativas ete Assim abalada em suas certezas mais bem-ancoradas, a histéria também se defrontou com varios desafios. © primeiro, langado sob modalidades diferentes, até mesmo contraditérias, de um lado e de outro do Atlintico, pretende romper todo e qualquer laco entre a historia e as ciéncias sociais. Nos Estados Unidos, a investida tomou a forma do linguistic turn que, dentro da estrita ortodoxia saussuriana, toma a linguagem como um sistema fechado de signos cujas relagdes produzem por si s6 significagdo. A construgdo do sentido é assim separada de qualquer intengdo ou controle subjetivos, jé que ela é atribuida a um fancionamento lingtiistico automético e impessoal. A realidade nao mais deve ser pensada como uma referéncia objetiva, exterior ao discurso, pois que ela ¢ constituida pela e dentro da linguagem, John Toews claramente designou (sem aceitar) essa posigdo radical para a qual "a Tinguagem & concebida como um sistema autocontido de 'signos’ cujos significados sio determinados por suas relagdes uns com os outros, mais do que por sua relago com algum objeto ou sujeito ‘transcendental’ ou extra-lingtlistico” - uma posigdo que considera que "a criagdo do sentido é impessoal, operando 'pelas costas' dos usuarios da linguagem, cujos atos lingilisticos podem apenas exemplificar as regras e procedimentos das linguagens que eles habitam mas nao controlam".'? As operagdes histéricas mais corriqueiras ficam entdo sem objeto, a comegar pelas distingdes fundadoras entre texto e contexto, entre realidades sociais € expressdes simbélicas, entre discursos e priticas ndo-discursivas. Donde, por exemplo, 0 duplo postulado de Keith Baker, que aplica o linguistic turn aos problemas das origens da Revolugdo Francesa: de um lado, os interesses sociais ndo tém nenhuma exterioridade em relag&o aos discursos, pois que constituem "uma construcdo simbélica ¢ politica", e nao "uma realidade pré-existente"; de outro, todas as praticas devem ser compreendidas na ordem do discurso, pois as pretensdes de delimitar 0 campo do discurso em relagdo as realidades sociais ndo-discursivas que he so subjacentes invariavelmente indicam um dominio da ago que & cle proprio constituido discursivamente. Elas distinguem, na verdade, entre praticas discursivas - diferentes jogos de linguagem - mais do que entre fenémenos discursivos e ndo-discursivos"."* Do lado francés, o desafio, tal como o vimos se cristalizar nos debates travados em tomo da interpretagdo da Revolugdo Francesa, assumiu o aspecto inverso. Longe de postular a automaticidade da produgo do sentido, além ou aquém das vontades individuais, enfatiza-se a0 contririo a liberdade do sujeito, a parte refletida da agdo, as construgSes conceituais. A um s6 tempo so recusados os procedimentos classicos da historia social que visavam a " Philippe Carrard, Poetics of the new history: French historical discourse from Braudel to Chartier (Baltimore € Londres, The Johns Hopkins University Press, 1992). John E, Toews, “Intellectual history after the linguistic turn: the sutonomy of meaning and the irreduetibility of experience"; American Historical Review, 92, out 1987, p. 879-907 (citagdo p. 882) Keith Michael Baker, Inventing the French Revolution: essays on French political culture in the eighteenth century. (Cambridge, Cambridge University Press, 1990), p. 9e p. 5 Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, identificar as determinagdes desconhecidas que comandam os pensamentos e as condutas, e & afirmado o primado do politico, entendido como o nivel mais abrangente e mais revelador de toda sociedade. E essa ligago que Marcel Gauchet coloca no centro da recente mudanga de paradigma que ele cré discernir nas ciéncias sociais: "O que parece se desenhar a0 cabo da problematizagao da originalidade ocidental modema, & uma recomposi¢do do projeto de uma historia total. Segundo dois eixos: pelo acesso, através do politico, a uma chave nova para a arquitetura da totalidade, e pela absorgao, em fungdo dessa abertura, da parte refletida da agdo humana, das filosofias mais elaboradas aos sistemas de representagiio mais difusos."" Os historiadores (entre os quais me incluo) para quem petmanece essencial o pertencimento da historia as ciéncias sociais tentaram responder a essa dupla, e por vezes rude, interpelagdo, Contra as formulagdes do linguistic turn ou do semiotic challenge, segundo a expresso de Gabrielle Spiegel,'* eles consideram ilegitima a redugio das praticas constitutivas do mundo social aos principios que comandam os discursos. Reconhecer que as realidades passadas s6 so acessiveis (macisamente) através dos textos que pretendiam organizé-las, submeté-las ou representé-las nem por isso significa postular a identidade entre duas légicas: de um lado, a légica letrada, logocéntrica ¢ hermenéutica que governa a produgao dos discursos; de outro, a ligica pritica que regula as condutas ¢ as agdes. Toda historia deve levar em conta a irredutibilidade da experiéncia ao discurso, prevenindo-se contra o emprego descontrolado da categoria "texto", com muita freqiléncia indevidamente aplicada a praticas (ordindrias ou ritualizadas) cujas téticas e procedimentos ndo sdo em nada semelhantes As estratégias discursivas. Manter a distingdo entre umas e outras € 0 tinico meio de evitar "dar como principio da pritica dos agentes a teoria que se deve construir para explicar sua razdo", smundo a férmula de Pierre Bourdieu.'” Por outro lado, deve-se constatar que toda construgdo de interesses pelos discursos ela propria socialmente determinada, limitada pelos recursos desiguais (de Tinguagem, conceituais, materiais etc.) de que dispdem os que a produzem. Essa construgdo discursiva remete portanto necessariamente as posigdes e as propriedades sociais objetivas, exteriores a0 discurso, que caracterizam os diferentes grupos, comunidades ou classes que constituem 0 mundo social. Em conseqiiéncia, o objeto fundamental de uma historia cujo projeto ¢ reconhecer a ‘mancira como os atotes sociais investem de sentido suas priticas ¢ seus discursos parece-me residir na tensdo entre as capacidades inventivas dos individuos ou das comunidades e 0s constrangimentos, as normas, as convengSes que limitam - mais ou menos fortemente, dependendo de sua posi’ nas relagées de dominacdo - 0 que Ihes é possivel pensar, enunciar e fazer. A constatago vale para uma historia das obras letradas e das produces estéticas, sempre inscritas no campo dos possiveis que as tomam pensaveis, comunicdveis compreensiveis - ¢ nao se pode sendo concordar com Stephen Greenblatt quando ele afirma que "a obra de arte & 0 produto de uma negociagdo entre um criador ou uma classe de "5 Marcel Gauchet, "Changement de paradigme en sciences sociales?” p. 169). "® Gabrielle M. Spiegel, "History, historicism, and the social logic of the text in the Middle Ages Journal of Medieval Studies, vol. 65, n° 1, jan. 1990, p, 59-86 (citagio p. 60). ’ Pierre Bourdieu, Choses dites (Paris, Les Editions de Minuit, 1987), p. 76. Le Débat, 50, 1988, p. 165-170 (citagdo “Speculum, A Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, criadores e as instituig6es e praticas da sociedade".'* Mas vale igualmente para uma histéria das priticas ordindrias que so, também elas, invengdes de sentido limitadas pelas determinagSes miltiplas que definem, para cada comunidade, os comportamentos legitimos as normas incorporadas, Contra 0 "retorno ao politico", pensado dentro de uma autonomia radical, é preciso, parece-me, colocar no centro do trabalho do historiador as relagdes, complexas ¢ variaveis, estabelecidas entre os modos da organizagao e do exercicio do poder em uma dada sociedade e, de outro lado, as configuragées sociais que tornam possivel essa forma politica e que sao por ela engendradas. Assim, a construgdo do Estado absolutista pressupée uma diferenciagao forte e prévia das funsées sociais, ao mesmo tempo que exige a perpetuago (gragas a diversos dispositivos dos quais 0 mais importante é a sociedade da corte) do equilibrio da tensdes existentes entre os grupos sociais dominantes ¢ rivais. Contra 0 retomno a filosofia do sujeito que acompanha ou fundamenta o retorno ao politico, a "histéria ciéncia social" lembra que os individuos esto sempre ligados por dependéncias reciprocas, percebidas ou invisiveis, que moldam e estruturam sua personalidade ¢ definem, em suas modalidades sucessivas, as formas da afetividade e da nacionalidade. Compreende-se entio a importancia atribuida por muitos historiadores a uma obra por muito tempo nao-reconhecida, cujo projeto fundamental ¢ justamente articular, na longa duragio, construgdo do Estado moderno, modalidades da interdependéncia social figuras da economia psiquica: a obra de Norbert Elias."” trabalho de Elias permite, em especial, articular as duas significagdes que sempre se embaralham no uso do termo cultura tal como o manejam os historiadores. A primeira designa as obras ¢ os gestos que, em uma sociedade, esto ligados ao julgamento estético ou intelectual. A segunda refere-se as priticas ordindrias, "sem qualidades", que tecem a trama das relagdes quotidianas e exprimem a maneira como uma comunidade, em um determinado tempo ¢ lugar, vive e reflete sua relagdo com o mundo e a histéria, Pensar historicamente as formas as praticas culturais é portanto necessariamente elucidar as relagdes alimentadas por essas duas definigdes As obras nao tém sentido estavel, universal, congelado. Elas sao investidas de significagdes plurais e méveis, construidas na negociagdo entre uma proposic¢do e uma recepedo, no encontro entre as formas ¢ motivos que Ihes dio sua estrutura ¢ as competéncias ou expectativas dos pblicos que delas se apoderam. Por certo, os criadores, ou as autoridades, ou os "clérigos" (pertengam eles ou nao 4 Igreja) sempre aspiram a fixar 0 sentido ¢ a enunciar a interpretagdo correta que deve constranger a leitura (ou 0 olhar). Mas sempre, também, a recepedo inventa, desloca, distorce. Produzidas em uma esfera especifica, em um campo que tem suas regras, suas convengdes, suas hierarquias, as obras se evadem ganham densidade peregrinando, as vezes na longuissima duragdo, através do mundo social. Decifradas a partir de esquemas mentais ¢ afetivos que constituem a cultura prépria (no sentido antropolégico) das comunidades que as recebem, elas se tomam em troca um recurso '® Stephen Greenblatt, "Towards a poetics of culture", em The new historicism, sob a diregio de H. A. Veeser (Nove York e Londres, Routledge, 1989), p. 1-14 (citagdo p. 12). " Sobre a obra de Norbert Elias, ver Materialen zu Norbert Elias'Zivilisationstheorie, sob a diregio de P. Gleichmann, J. Goudsblom ¢ H. Korte (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 2 vol., 1977 © 1984); Hermann Korte, Uber Norhert Blias, Das Werden eines Menschenwissenschafilers (Frankfurt-am-Main, Surkamp, 1988); Stephen Menell, Norbert Elias, Civilization and the human self-image (Oxford, Basil Blackwell, 1989), © Roger Chartier, "Formation sociale et économie psychique: la société de cour dans les proces de civilisation", preficio a Norbert Blias, La société de cour (Paris, Flammarion, 1985, p. XVII), e "Conscience de soi e lien social”, preficio a Norbert Blias, La société des individus (Paris, Fayard, 1991, p. 7-29). Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113, para se pensar o essencial: a construgao do lago social, a consciéncia de si, a relagdo com 0 sagrado, Inversamente, todo gesto criador inscreve em suas formas e seus temas uma relag3o com as estruturas fundamentais que em um determinado momento e lugar moldam a Aistribuig3o do poder, a organizagdo da sociedade ou a economia da personalidade. Pensado (e pensando-se) como um demiurgo, o artista, 0 filsofo ou 0 sébio inventa contudo em meio ao constrangimento. Constrangimento das regras (da patronagem, do mecenato, do mercado etc.) que definem sua condigfio. Constrangimento mais fundamental ainda das determinagées ignoradas que habitam cada obra e fazem que ela seja concebivel, transmissivel, compreensivel. O que toda histéria cultural deve pensar € portanto, indissociavelmente, a diferenca pela qual todas as sociedades, por meio de figuras varidveis, separaram. do quotidiano um dominio particular da atividade humana, e as dependéncias que insctevem de miltiplas maneiras a invengdo estética ¢ intelectual em suas condigGes de possibilidade. Reancorada assim firmemente nas ciéncias sociais, a histéria nem por isso pode evitar um desafio: superar 0 confronto, no fim estéril, entre, de um lado, o estudo das posigées e das relagées e, de outro, a andlise das ages e das interagdes. Ultrapassar essa oposigao entre “fisica social" ¢ "fenomenologia social" exige a construsiio de novos espacos de pesquisa onde a propria definigdo das questdes obriga a inscrever os pensamentos claros, as intengdes individuais, as vontades particulares, nos sistemas de constrangimentos coletivos que, a0 ‘mesmo tempo, os tornam possiveis ¢ Ihes poem freios. Seriam miultiplos os exemplos desses novos recortes em que s40 necessariamente articuladas estruturas objetivas ¢ representagdes subjetivas. Um deles ¢ 0 espago de trabalho que liga critica textual, historia do livro ¢ sociologia cultural. Esse cruzamento inédito de tradiges disciplinares e nacionais bastante diversas (a historia literdria em suas diferentes definigdes, a bibliography & maneira anglo-saxénica, a histéria social da escrita tal como a praticam os paledgrafos italianos, a histéria sécio-cultural na tradigdo dos Annales) tem um retorno fundamental: compreender como a leitura particular ¢ inventiva de um leitor singular esta contida em uma série de determinagSes, sejam elas os efeitos de sentido visados pelos textos através dos préprios dispositivos de sua escrita, os cerceamentos impostos pelas formas que transmitem esses textos a seus leitores (ou a seus ouvintes) ou as competéncias ou convengées de leitura prdprias de cada "comunidade de interpretag’o" Tal abordagem, cuja primeira caracteristica é desalinhar as fronteiras canénicas, ¢ encontrada em muitos outros campos de pesquisa: por exemplo, nos estudos sobre cidade, sobre os processos educativos, sobre a construgdo dos conhecimentos cientificos. Ela lembra que as produgdes intelectuais e estéticas, as representagdes mentais, as priticas sociais, sio sempre governadas por mecanismos ¢ dependéncias desconhecidos dos prdprios sujeitos. Ea partir de uma tal perspectiva que se deve compreender a releitura histérica dos clissicos das cigncias sociais (Elias, mas também Weber, Durkheim, Mauss, Halbwachs) e a importancia reconquistada, em detrimento das nogdes habituais & historia das mentalidades, de um conceito como o de representagdo. De fato, ele permite designar ¢ ligar trés realidades maiores: primeiro, as representacdes coletivas que incorporam nos individuos as divisdes do mundo social ¢ estruturam os esquemas de percepgo e de apreciagdo a partir dos quais estes classificam, julgam e agem; em seguida, as formas de exibigdo do ser social ou do poder politico tais como as revelam signos e "performances" simbélicas através da imagem, do rito ou daquilo que Weber chamava de "estilizagdo da vida’; finalmente, a "presentificagao" em um representante (individual ou coletivo, concreto ou abstrato) de uma identidade ou de um poder, dotado assim de continuidade e estabilidade. Estudos Histéricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113,

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