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REPORTAGEM

4 | PORTO ALEGRE, DOMINGO, 12/05/2002 ESPECIAL ZERO HORA

Ao receber delegação incumbida de manifestar preocupação com restrições à liberdade de imprensa na Venezuela, presidente

Cara a cara com MARCELO RECH


◆ Enviado Especial/Caracas

Para quem desceu à catacumba política há um mês, ao ser deposto e três dias depois
reconduzido ao poder, o presidente Hugo Chávez Frías mantém uma retórica
surpreendentemente inabalável.
Em uma hora e meia de conversa com Zero Hora na terça-feira passada, ao lado de
editores do Canadá, da Espanha e da Dinamarca, Chávez não exibiu qualquer sinal de ter
extraído alguma lição de seu inferno político.
– Sou o mesmo homem. Não mudei – avisa, para o bem ou para o mal da Venezuela, uma
das maiores incógnitas da política mundial.
O enigma Hugo Chá- que durmo tarde. Hoje, me deitei às 4 transmitir sua versão sobre uma das
vez Frías está de pé, ma- da manhã. máculas de seu mandato – o cerco de
nuseando uma agenda Gentil, pede desculpas pelo atraso de chavistas ao diário El Nacional em 7 de
com capa verde sobre sua uma hora na audiência, causado pela janeiro passado, uma notícia que cor-
mesa de reuniões no Pa- espera por um intérprete – além de Par- reu o mundo. Quando começa a narrar
lácio de Miraflores, kinson, não fala espanhol o dinamar- o episódio, entremeando-o com impre-
quando entra no gabi- quês Mogens Schmidt, diretor do Fó- cações contra a imprensa de Caracas,
nete a delegação de rum Mundial de Editores. Chávez deixa evidente que é um ho-
quatro editores da Como o intérprete não aparece mes- mem obcecado por sua imagem e guia-
Associação Mundial mo, os representantes de ZH e El Mun- do pela aversão à maior parte da mídia,
de Jornais (WAN). do assumem o improviso da tradução. “um dos grandes temas que precisam
Usualmente, Além da desorganização da falta de in- ser discutidos na Venezuela”.
Chávez não rece- térprete, a audiência chama a atenção
beria uma entidade por outro fato: Chávez está sozinho, Humor de Chávez oscila da euforia
estrangeira incumbi- nenhum assessor por perto. à furia em questão de segundos
da de manifestar A presença de Chávez se basta para O presidente não se conforma que,
preocupação com res- Chávez. Sua autoconfiança explode no em uma notícia sobre sua visita a uma
trições à liberdade de primeiro minuto. favela, o El Nacional tenha escrito que
expressão em seu país, – Vou fazer uma pergunta franca – fora mal recebido e publicado uma foto
mas neste início de tarde avisa ele, que não pergunta nada, mas em que aparecia rodeado por um pu-
da terça-feira passada joga sobre a comitiva uma frase desti- nhado de pessoas.
abre uma exceção, graças nada a tentar desconcertar de saída os – É mentira. Eu estava cercado por
à intervenção de um conta- interlocutores. centenas de populares e fui aclamado.
to venezuelano do diretor – Vocês não são objetivos, porque há Como o jornal não quis se retificar, os
do jornal El Mundo, de Ma- uma tendência à solidariedade entre os manifestantes foram exigir direito à ré-
dri, Pedro J. Ramírez. meios de comunicação – afirma Chá- plica – diz ele, tentando justificar o sí-
Sorriso largo, aperto de vez, contrariado pelo que considera in- tio ao jornal.
mão de pára-quedista, Chávez tromissão da entidade em assuntos ve- Chávez se transtorna e volta ao nor-
olha fundo nos olhos cada um nezuelanos. mal constantemente. Seu humor oscila
dos estrangeiros e pergunta de on- Ele não está interessado no con- da euforia à fúria em questão de segun-
de vêm. traponto. Quer desabafar sobre sua per- dos. Nessa montanha-russa emocional,
– De Porto Alegre, Brasil – respon- manente rusga com os veículos da Ve- o presidente anima-se ao dissertar so-
do. nezuela. bre suas suspeitas de envolvimento de
– É uma cidade industrial. Já fui con- – Com exceção de alguns poucos, jornais e TVs com o golpe, entusias-
vidado muitas vezes para ir lá – retru- aqui na Venezuela os meios de comu- ma-se com sua interpretação do mo-
ca, para aparentar familiariedade. nicação atropelam o país – afirma, na mento – “outros países já estariam em
A missão da comitiva encabeçada primeira de um sem-número de vezes guerra civil” – e dramatiza, quase aos
pelo presidente da WAN, o canadense em que mistura governo e pátria, Chá- brados, seu papel histórico:
Roger Parkinson, é discutir uma carta vez e Venezuela. – Vocês têm de levar em conta que
com oito pontos de defesa da liberda- este servidor tem uma relação passio-
de de expressão na Venezuela. Oposição atribui ao presidente nal intensa com esse povo. Sou capaz
Chávez convida os quatro a se uma invejável habilidade teatral de morrer por ele. Quando fui derruba-
sentar – ele se acomoda ao lado de Para não deixar dúvidas, o presidente do, 6 milhões de pessoas saíram às ruas
uma bandeira venezuelana em arremata o pensamento muitos decibéis com a Constituição na mão, gritando e
seu gabinete de decoração colo- acima do início da argumentação. cantando “Chávez, Chávez!”. Isso é
nial, com sete metros de pé-di- – Minha verdade é a verdade do po- não é loucura, é amor! – vibra o presi-
reito, quatro lustres gigantes, vo – proclama, aparentemente conven- dente em sua descarga de adrenalina.
colunas verde-claro e pinturas cido de sua personalíssima constatação. Subitamente, em absoluta calma, ele
de Simon Bolívar nas pare- A oposição atribui a Chávez uma in- se volta para mim e pergunta:
des. vejável habilidade teatral. Nos gestos – Queres um café? Não? Um suco,
Jaqueta, camiseta e jeans estudados, no tom de voz, na tentativa então?
azul-marinhos, o presidente de dominar a audiência, o presidente de E assim, entre altos e baixos, vai
deposita na mesinha seu fato parece estar atuando em seu palco- fluindo a conversa com o enigma.
celular e confidencia que gabinete. Que seja, mas, neste caso, ele Quando se sente pressionado a adotar
estava fazendo jogging. mereceria mesmo todos os aplausos, medidas de proteção física aos jornalis-
– Tenho de correr pois executa o papel à perfeição. tas e a moderar sua retórica que esti-
ao meio-dia, por- Chávez se mostra angustiado para mula os ataques, Chávez sai do sério

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