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Letras de Sangue

In Vino, Veritas!
In Vino, Veritas!

Edson Tomaz da Silva


Letras de Sangue

In Vino, Veritas!

“In vino, veritas!” - Antigo ditado romano, que significa “No vinho está a
verdade!”

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Embora possa parecer que não, ser bonito às vezes tem algumas
desvantagens. Aquela, para Ignácio, era uma rara situação onde ele
lamentava a beleza que já lhe abrira tantas portas.

Ter de deixar um emprego maravilhoso como aquele, onde havia gostado não
apenas da família que o contratara, mas também da cidade onde estava
morando, das amizades que ali fizera, tinha sido triste. Mas era óbvia a
direção que as coisas estavam tomando.

Ignácio trabalhava como um mordomo para uma família extremamente rica do


Rio de Janeiro. O problema é que uma recém-chegada sobrinha adolescente
do casal, que passaria a morar com a família para cursar escola, começara a
praticamente se jogar para cima dele. Ignácio estava vendo a hora em que ia
se dar mal por causa dela.

Começou a procurar outro emprego e encontrou aquele, junto a uma família


de origem holandesa, os Van Hoorsten. Mudar do Rio para a pequena cidade
onde os Van Hoorsten moravam não foi uma decisão agradável, mas
paciência. Não podia estragar suas boas referências.

Vindos de uma família já com dois séculos de história na região, e outrora


bastante numerosa, os Van Hoorsten atualmente estavam reduzidos aos dois
irmãos, Leopold e Veronika, ambos viúvos e sem filhos. Leopold já era um
homem bastante idoso, mas Veronika era um caso à parte.

Ela devia ter seus cinqüenta e tantos anos de idade, mas Ignácio só soube
disso mais tarde, pelas empregadas da casa. Quando a vira pela primeira
vez, lhe dera no máximo quarenta e dois anos. Belíssima, dona de longos
cabelos loiros e de olhos de um azul profundo, Veronika Van Hoorsten,
definitivamente, fazia faltar palavras no dicionário para descrever sua beleza.
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Os Van Hoorsten tinham uma pequena vinícola, trabalhavam com vinhos


artesanais que nunca custavam menos de quinhentos dólares a garrafa. Mais
do que o preço exorbitante, Ignácio se impressionava mesmo com o fato de
alguém conseguir plantar uvas num lugar onde chovia tanto. Os terrenos da
região eram praticamente um charco, o pior tipo de solo para plantio de uvas.
E a família fizera fortuna daquela forma.

No geral, Ignácio seguia o velho ditado de que um bom mordomo faz uma
sala parecer mais vazia com sua presença do que com sua ausência. Mas
não pode deixar de perguntar a Leopold Van Hoorsten, no que seria talvez o
único momento de indiscrição em toda sua carreira, como conseguiam plantar
uvas naquele lugar.

Leopold abriu um largo sorriso e respondeu apenas:

- Isto, meu caro, é o tipo do segredo que pode custar a alma de um homem!

Obviamente, Ignácio não tocou mais no assunto.

Quanto a Veronika, Ignácio não tinha muito contato, ela passava a maior
parte do tempo viajando. Pelas conversas que ouvia, Ignácio ficara sabendo
que ela coordenava a parte comercial do negócio mantido pelos dois irmãos.

Depois de dois anos trabalhando na propriedade sem que nenhum dos dois
irmãos recebesse uma visita sequer, Ignácio estranhou quando recebeu
ordens para preparar os aposentos de hóspedes para a chegada de um
grande grupo de convidados, que ficariam na propriedade durante um fim de
semana. Como de costume, restringiu suas perguntas ao necessário para
saber como deveria acomodar o grupo adequadamente. Quem eram e o que
fariam lá, não era de seu interesse.

Mas, estranha mesmo foi a ordem que recebera de dar folga a todos os
empregados no domingo.

- Senhora, com um grupo tão grande, não seria melhor...

- Não se preocupe, Ignácio, garanto a você que, passado o jantar do sábado,


nossos hóspedes estarão mais felizes sem ter a criadagem da casa por perto,
para que possam relaxar. Fique apenas você, para o caso de alguma
emergência.

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O grupo de dez homens e dez mulheres, composto unicamente de pessoas


bem sucedidas – com até algumas celebridades entre eles – mal chegou, foi
conduzido para uma visita aos vinhedos. Até aí, nada demais, não fosse a
chuva torrencial que caia lá fora.

Obviamente, quando voltaram no finalzinho da tarde, estavam encharcados e


enlameados, mas rindo feito um grupo de adolescentes em excursão de
escola. De todas, a mais encharcada e a mais risonha era Veronika Van
Hoorsten. Ignácio estava achando tudo muito estranho, para alguém de um
comportamento sempre tão sério e reservado como ela.

Terminadas as providências após o jantar, as mesmas vans que haviam


trazido os convidados levaram os empregados para a cidadezinha mais
próxima, onde iam aproveitar a folga inesperada. Ignácio também foi
dispensado e recolheu-se ao seu quarto. Mas, mal chegou, o telefone tocou.
Era Veronika Van Hoorsten.

- Desculpe, Ignácio, mas poderia vir até o meu quarto? Estou com um
probleminha inesperado.

Em poucos instantes, lá estava ele no quarto dela. Ela o recebeu vestindo um


roupão verde que, antes mesmo de que ele tivesse tempo de fechar a porta
atrás de si, já estava caído ao chão.

Extasiado com a beleza da mulher nua a sua frente, Ignácio só percebeu


tarde demais quando um pano embebido em clorofórmio foi fortemente
pressionado contra seu rosto. Não teve como reagir e desmaiou.

Quando acordou, pode perceber pelo cheiro característico de umidade e


poeira que estava na adega, mas não conhecia aquele aposento. Estava
caído no chão, com os pulsos e os tornozelos amarrados. À sua frente, uma
cena surreal.

Vestidos com túnicas e capuzes nas cores vermelho e preto, bordados com
estranhos símbolos que Ignácio desconhecia, vinte e dois estranhos olhavam
para ele com olhos impiedosos. Percebendo que ele acordara, um deles
apontou para ele e ordenou:

- Comecem!

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Dois encapuzados se aproximaram dele e começaram a chutá-lo com


violência. Ainda grogue com o clorofórmio, não teve como se defender.
Quando pareceram cansados de chutá-lo, levantaram-no e o forçaram a
encostar suas costas contra a parede.

Mais dois encapuzados se aproximaram. Cortaram as cordas que prendiam


seus pulsos e, com auxílio de uma pistola especial, cravaram dois parafusos
atravessando os pulsos de Ignácio, que gritou como louco com a dor absurda
a que foi submetido. Por fim, com auxílio de largas arruelas e porcas, ele
estava firmemente preso à parede.

- Ora, ora, ora. Belos pulmões, senhor Ignácio, belos pulmões. Fizemos bem
em dar folga aos outros empregados. Eles com certeza ouviriam o senhor.

Apesar do capuz, Ignácio reconheceu a voz de Leopold Van Hoorsten.

- Mas... Por quê? – perguntou Ignácio, com lágrimas nos olhos devido a dor
que sentia.

- O senhor não quis saber o segredo do nosso vinho, senhor Ignácio? Acabou
de descobri-lo. Nosso vinho é o único que pode ser usado em cerimônias
satânicas do mundo todo, porque é produzido numa situação totalmente
antinatural. E, para que as vinhas produzam nesta situação, é necessário o
sacrifício periódico de um inocente. No caso, hoje, este inocente é o senhor.

Ignácio arregalou os olhos de pânico.

- Mas que loucura é essa? Cerimônias satânicas? Isso só pode ser mentira...

- Não é loucura. E eu não menti. Eu disse para o senhor que o segredo de


nosso vinho custava a alma de um homem, não disse?

Fazendo um sinal para que os outros participantes se aproximassem,


sussurrou no ouvido de Ignácio:

- Eu não poderia mentir num assunto desses, senhor Ignácio. O senhor nunca
ouviu falar “in vino, veritas”?

E o ritual teve início...

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Sobre o Autor

Edson Tomaz da Silva nasceu em São Paulo, capital, em 26 de abril de 1971.


A paixão pelos gêneros de terror e suspense é antiga, mas o autor só
começou a publicar seus textos em 2009 no site Recanto das Letras”

Em 2010, criou o site Letras de Sangue, onde publica seus textos, na


companhia de outros escritores amadores, também apaixonados por terror e
suspense.

Para ajudar na divulgação do site, passou a publicar seus textos também no


Scribd, criando a Coleção Letras de Sangue.

Licenciamento da Obra

A presente obra encontra-se licenciada sob a licença Creative Commons


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