Você está na página 1de 12
_ 4 a INDIGENA ‘AMO VII = ¥* 54 JANELRO-HARGO 1990 CENTRO DE ESTUDOS INDIGENAS F.C.L./UNESP = Cempus ‘a a TERRA _INDIGENA 29 AS COLOCACOES COMO FORMA SOCIAL, SISTEMA TECNOLOGIGO E UNIDADE DE RECURSOS NATURAIS* Mauro W. Barbosa de Almeida** De acordo com dados de 1980, os seringueiros constitu iam metade da forga de trabalho rural acreana, gerando 33% do va jor da produg&e nfo urbana, e utilizando 50% das terras do Estado~ Utilizande dades do censo agropecuario é possivel estimar entre 13.000 € 18.000 © nimero de colocagGes de seringueiros, dando em prego a 36.000 pessoas, e sustentando 100.000 moradores da flores ta © tema dessa exposigao é apresentar uma contribuigao a discussao dos direitos dessa populagdo como integrantes do pais e do here. Falar sobre 0 uso de recursos naturais por seringueiros apresenta uma @ificuldade inicial. os seringueiros sao chamades de trabalhadores extrativistas- 0 extrativismo é associado automat ica mente em nossos ouvidos ao sistema dos seringais e dos barracdes. Virou sinénimo, assim, de atraso técnico, de Gependéncia, de degra dagdo ambiental, de escravidio por dividas, de privag&o de cidada- nia e de ideologia de terror. * Este texto foi apresentado como palestra num 12 Encontro do Meio Ambiente realizado em Rie Branco/Acre, em janeiro de 1988, coordenado pelo Instituto de Estudos Amazénicos (IEA). ** UNICAMP/ TEA. TERRA_INDIGENA. oS a ee Quero defender aqui a tese de que tal sindrome do extra tivismo estagnado, dependente, predatério e repressive deriva das relagées séciais de distribuigaio'e de poder nos seringais, e nao do extrativismo enquanto modo de uso de recursos naturais e en quanto forma de vida. Com 0 colapso do mer¢ado mundial para a bor racha, a maquina extrativo-exportadora dos barracdes tornou-se ob soleta. Com isso, os seringueiros tiveram que desenvolver, a par, tir de sua experiéncia camponesa, mas sobretudo apreendende tecno logias indigenas, um modo de vida florestal, que dependesse ao mi nimo de bens importados. Foi a origem do atual sistema das coloca goes. Hoje, enquanto os seringais estao obsoletes, as coleca- gdes so 0 embrido de um mode de adaptagao humana 4 floresta tro- pical que & social, ecolégica e econdmicamente promissor. Coloca- se para os trabalhadores da mata, portanto, uma tarefa revolucio— naria e dificil: destruir o sistema anacrénico dos seringais, e desenvolver o sistema das colocagées. Abolir as relagdes sociais de patronagem, elevando a um novo patamar o manejo agroextrativis ta auto-sustentado criado pelos seringueiros. Esse programa comegou a se delinear ao final dos anos 70. Ele @ uma revolug&o teérica e um reajuste de contas de nds, acreanes, com um passade onde o seringal se associa a sentimentos de identidade e de culpa. Meu antigo colega do Gindsio Acreano, Terri Vale de Aquino, hoje injustamente insultado por agentes man dados de longe para destruir 0s nossos indios, descobriu que 8 Caxinaud do Jord3o, que a etnologia declarara extintos pela fren~ te de expansdo extrativista, haviam consequido sobreviver, | dota dos de identidade étnica e de vontade de viver como Caxinaua, ao contrério do que alegam ignorantes que confundem — sobrevivéncia com “aculturagéo" maliciosamente, para, com o argumente desta, a- nular aquela. Com o apoio do Trii, os Caxinaua revitalizaram - se enquanto povo e continuaram a ser seringueiros. A antropéloga Mary Allegretti, que ouvira falar dos se ringueiros através de Terri, surpreendeu eos que leram sua tese de mestrado ao encontrar no rio Tarauaca habitantes da floresta, nem indios nem camponeses, profundamente conscientes de sua condi, TERRA_INDIGENA G0 de explorados pelo sistema de barragées, mas ao mesmo tempo identificados 4 vida na floresta, que nao queriam a bandenar. © sociélogo amazonense Carlos Teixeira explorou a di— mensdo simbélica e cultural da natureza na vida do seringueiro em outra tese de mestrado, sobre um seringal do rio Madeira. Foi nessa época, em 1981, apos os trabalhes pioneiros de Terri Aquino, Mary Allegretti e ae Carlos Teixeira, que ini- ciei minha prépria pesquisa no municipio de Cruzeiro do Sul. Por essa ocasiao, porém, os empates dos seringueiros acreanos haviam tornado patente a aspiragao, pelos seringueiros, de uma forma de vida florestal independente de patrées; tratava-se de obter o reconhecimento de seus direitos ao territério, que é a base dessa forma de vida. & essa aspiragSo que o Conselho Nacio nal dos Seringueiros expressa quands reinvidica a criacdo de re. servas extrativistas. = Os seringueiros, em suma, afirmam que ndo sao meros a péndices de uma instituigdo arcaica e em desaparigao. IL Vamos traduzir essa negago na forma de uma afirmagSo. A unidade de uso de recursos da floresta nao @ 0 se- vingal, e sim a colecage © os grupos domésticos que a consti tuem. & na colocagie que so tomadas as decisdes relevantes so- bre o volume e a variedade da producdo, nivel de povoamento e conservagaéo ambiental. f uma unidade de manejo, uma forma de or ganizag3o social e o lugar de uma cultura que os _ seringueiros criaram durante aqueles "cem anos de solid3o" em que foram es— guecidos pelo mesmo capitalismo que para ca os trouxe sem passa gem de volta. Falarei de colocagdes com base na pesquisa que reali- zei de setembro de 1982 a novembro de 1983, em doze meses —_ de permanéncia em seringais do alto Jurua. Trata-se de area de ter ra firme, j& proxima 4 fronteira como Peru, distante de uma se mans por canoa da cidade de Cruzeiro do Sul e do hospital mais Ce 32. préximo, sem estradas ou ramais. Seu suposto proprietaério nunca visitou 0 seringal, que é arrendado por curtos periodos a pa trdes locais que buscam lucros rapidos. = A vegetagao & a floresta tropical densa, com 4reas de tabecal; os selos, de acordo com o levantamento Radambrasil, s&o- do tipo cambissolo eutréfico; o relevo é de colinas separadas por grotas e grotides. Distantes da margem do Jurué, esse seringal das cabe- ceiras tem temperatura amena, @ livre de piuns e catuquins, e su prido de 4gua clara e fresca pelos igarapés ¢ cacimbas. Estas S&o gualidades ambientais muito valorizadas pelos - seringueiros de 14. © seringal @ constituido por um conjunto de colocacdes que ocupam cerca de 22.000 ha, divididos entre 26 colocagées com uma média de 900 ha por colocag&o. Mapeei cinco seringais conti- nuos a esse, cobrindo tedas as cabeceiras do rio Tejo, e compro- vando que essa densidade é superior 4 média. Nas colocagées, a media eram duas ou trés casas ou gru pos domésticos, com 6 membros em média. Assim, enquanto uma colo cagao ocupava 900 ha e 16-18 moradores, cada casa ocupava cerca de 340 ha e 6 moradores. Isso di uma densidade demografica de 2 hab/km?. Tal n{imero, que pode parecer baixo, reflete um dos meca nismos mais importantes de controle ambiental e social das colo— cagSes, como mostrarei adiante. A colocagSo pode atuar como uma equipe de cacga, e como equipe de tr vale para certas tarefas coletivas; compartilha a casa-de-farinha, e agrupa seus rogados ew colénias. A carne de caga é compartilhada ao nivel da colocagdo, mesmo que tenha sido obtida por um des grupos domésticos isoladamente. Colocagées préximas interligam-se por lagos de paren tesco, casamento, compadrio, cooperagao e comércio; refnem- se em mutirées e festas, sem respeitar fronteiras do seringal. Essas formas de sociabilidade sao importantes para con trabalangar as tensdes latentes entre vizinhos, alimentadas por acusagées e fofocas em torno de questées de rocado (porcos x ro- Ga por exemplo), mulheres, caga‘e estradas. Essa tensSes atuam << TERRA INViccNA oo —eeeeeeeeSeFSFSsSsFshhh no sentido de rarefazer as colocagSes que competem por recursos naturais limitados. Em suma: a sociedade das colocagdes esta ion ge de ser reduzida 4s relagées seringueiro—patrao. Isso nos leva a nosso tema principal que é a colocag3o como unidade de uso de recursos naturais. O recurso natural mais dbvio nas colocagGes sao as se- ringueiras agrupadas em modulos que s4o as estradas de seringa. © destaque para esse recurso vem do fato de que ele constitui a base da pretensdo de patrées 4 propriedade do seringal - embora, de fato, nenhum papel exergam na abertura e conservagao desses médulos de utilizacdo de recursos. A “renda” é a expressdo simbo lica dessa pretensao. be Para os seringueiros, no entanto, a colocagdo @ mais que um conjunto de estradas de seringa. & um microcosmo social ¢ natural, concebido como idealmente auténomo em predutes agrico- las (farinha, tabaco, milho, café, agicar), em carne, em mate riais de construgao e em oportunidade de trabalho para uma fami- lia ampliada em crescimento. Para realizar esse objetivo, uma colocag3o deve abran— ger um conjunto de diferentes recursos distribuidos por zonas e- colégicas horizontalmente dispostas. Deve conter rios ou igara pés, com “pogos" piscosos, praias, barrancos e terra firme; mata virgem com seringueiras, palmeiras e fauna abundante; solos de tipo “barro preto” ou “barro areifisco" para seus rogados. Na mata bruta so iniciados rogades tedos os anos. Es- ses rogados (de mandioca e milho, mais bananeiras e outros ad tens) passam por ciclos de manejo que duram de trés a seis anos, passando ent&o ao estagio de capoeiras ainda produtivas por dois ou trés anos; finalmente, as capoeiras so abandonadas por perio dos de quarenta anos ou mais, revertendo 4 mata bruta. Esse manejo combina-se a outros, como o dos campos de pastagens, que comegam com rogades de arroz e situam-se na vizi- nhanga das casas; das praias € barrancos para milho, melancia e feijao; do tabaco etc. Os terreiros também compreendem, com o campo, a margem do igarapé e a orla da mata, umd unidade de manejo - compreenden

Você também pode gostar